Grandes Incêndios Florestais em Portugal Continental como Resultado das
Perturbações nos Regimes de Fogo no Mundo Mediterrâneo
1 - Introdução
O fogo faz parte da natureza desde a criação do mundo, constituindo um dos
quatro elementos, considerados como essenciais no universo. E, embora seja mais
comummente associado à ideia de destruição e catástrofe, o fogo pode também ser
relacionado com a ideia de bênção e de renovação. Este aparente paradoxo,
reflete o duplo papel do fogo nas sociedades ao longo de milhões de anos,
simultaneamente, uma forma de destruição e de renascimento, tal como acontece
com os ecossistemas que têm evoluído na sua presença.
Apesar do fogo ser um fenómeno com impacte na Terra há mais de 400 milhões de
anos, tudo mudou profundamente quando os primeiros hominídeos aprenderam a
manuseá-lo e a controlá-lo, ocupando um lugar de destaque no triângulo do fogo
(PYNE, 2001). A verdade é que os seres humanos têm influenciado os regimes de
fogo ao longo de milhares de anos através do seu impacte sobre as taxas de
ignição, combustíveis e uso do solo (DENEVAN, 1992; PYNE, 2001; BOND et al.,
2005; MILLER et al., 2005; STORM e SHEBITZ, 2006; NEVLE e BIRD, 2008; BOWMAN,
2009; ARCHIBALD et al., 2009; PARISIEN e MORITZ, 2009). Assim, podemos afirmar
que a partir do momento que o homem dominou o fogo, ele mudou de forma
irreversível o curso da história da Terra, contribuindo para a definição de
novos regimes de fogo.
2 - O fogo no Mediterrâneo
O fogo é parte integrante de muitos ecossistemas (BENTO-GONÇALVES et al.,
2012), tendo acompanhado os desbastes da floresta através dos tempos, quer para
a agricultura, quer para o pastoreio, assumindo-se como um fator ecológico
determinante do desenvolvimento ou regressão dos sistemas florestais em
diversas partes do Mundo. No mediterrâneo, o seu papel foi muito marcante, o
que se ficou a dever a uma conjugação de características muito peculiares que
tornam os ecossistemas do Mediterrâneo diferentes dos do resto do Mundo. Estas
particularidades estão relacionadas, sobretudo, com as características
climáticas, e a longa e intensa presença humana e as suas influências no regime
do fogo (PAUSAS e VALLEJO, 1999).
A primeira evidência das mudanças induzidas pelo homem, através do fogo, na
paisagem mediterrânea remonta ao Neolítico (NAVEH, 1975). Desde então, a Bacia
do Mediterrâneo tem presenciado a evolução de muitas culturas, algumas com
elevadas densidades populacionais, e, na sua maioria, fazendo uso do fogo.
Contudo, esta particularidade, da antiga e intensa intervenção humana sobre o
uso do solo, é notória, sobretudo, na parte europeia da Bacia Mediterrânea,
onde o Homem utilizou o fogo como uma ferramenta para controlar e alterar o uso
dos espaços de uma forma mais intensa do que noutras regiões mediterrâneas
(WAINWRIGHT, 1994; GROVE, 1996; MARGARIS et al., 1996; GOLDAMMER et al., 2007).
A intervenção do Homem sobre as florestas é, de fato, o elemento milenarmente
importante de diferenciação das florestas das regiões de influência
mediterrânea e as florestas do Centro e do Norte da Europa. Daí nasce a ideia
de que desta mistura de povos tão diversos (que sucessivamente ocuparam estas
regiões europeias) se formou uma mentalidade uniforme a que podemos chamar de
mediterrânea, mentalidade de pastores, sobretudo de pastores nómadas inimigos
da floresta (PAVARI, 1954). Mais adiante escrevia ainda: A predominância da
pastorícia na economia dos povos primitivos mediterrâneos [ ] e as suas
consequências têm sido muito mais desastrosas [do] que em qualquer outra parte,
pois [ ] os três fatores da destruição do bosque, isto é, o corte, a pastagem e
o fogo, têm efeitos qual deles o mais intenso neste ambiente físico particular
(PAVARI, o. c.).
M. ALMEIDA (1934) escreveu: A floresta foi cedendo a pouco e pouco o terreno
ao desenvolvimento da agricultura, devido ao acréscimo da população e
especialmente ao da indústria pecuária e hoje, ainda infelizmente é prática em
muitas localidades, de recorrer ao fogo para destruir as matas e assim
baratearem a cultura ou tomarem mais fácil a renovação das pastagens.
Por sua vez, no âmbito de uma caracterização mediterrânea do nosso país, O.
RIBEIRO (1963) escreveu: [ ] junto desta flora antiga convive, também desde
longa data, o Homem, com as queimadas, arroteias, culturas e rebanhos. A
degradação que ele provocou [ ] é uma ideia inseparável do estudo da vegetação
mediterrânea.
A abertura das florestas, através do corte e do fogo, permitiu alargar as áreas
de pastoreio em formas iniciais de aproveitamento, através de nomadismo e de
transumância dos gados, mas dada a pobreza alimentícia dessas áreas, para haver
continuidade na utilização, é ainda feita através do fogo a sua regeneração
valorizando os nutrientes deixados nas cinzas e, simultaneamente, eliminando a
competição das plantas indesejáveis. Por outro lado, a agricultura
desenvolvese paralelamente, tirando partido das melhores terras, mas onde o
fogo, na sua dupla função nutricional e de purificação, exerce igualmente o
seu papel central, antecipando a fertilização química e os herbicidas e
pesticidas (ALVES et al., 2006). Neste sentido, não há dúvida de que o fogo é
um dos mais importantes agentes de evolução florestal no Sul da Europa (PYNE,
1997).
Com o desenvolvimento industrial, e a transformação da sociedade rural em
urbana, estes países têm experimentado, desde a última metade do século XX, o
despovoamento das zonas rurais, o aumento da mecanização agrícola, a diminuição
da pressão da pastorícia e da coleta de lenha, e o aumento da urbanização das
áreas rurais (LEHOUÉROU, 1993). Estas mudanças no uso tradicional da terra e
estilos de vida das populações que resistiram (e ainda resistem) têm implicado
o abandono de grandes áreas agrícolas, o que levou à recuperação da vegetação e
a um aumento do combustível acumulado durante o Inverno e a Primavera, pronto
para alimentar os incêndios (fogos descontrolados) durante o Verão, quente e
seco (REGO, 1992; GARCÍA-RUIZ et al. 1996, ROXO et al. 1996).
Desde os anos 60 do século XX até à atualidade, a tendência geral de evolução
do número de incêndios e área queimada no Mediterrâneo Europeu, principalmente
nas Penínsulas Ibérica, Itálica e Grega, tem aumentado exponencialmente (JRC,
2001). As estatísticas de incêndios florestais compilados para a Espanha a
partir dos anos 60 revelam um claro aumento do número de incêndios e de
superfície queimada, especialmente a partir de meados dos anos 70 (MARTINEZ-
RUIZ 1994; MORENO et al., 1998; PIÑOL et al., 1998), e o mesmo acontece no caso
português, com a média anual da área ardida mais que a quadruplicar desde os
anos 60 do século XX (ISA/APIF, 2006).
3 - Os grandes incêndios florestais na história recente de Portugal
Em Portugal, a influência do ser humano sobre a floresta através do uso do fogo
(queimadas) surge a partir da Idade do Bronze (DEVY-VARETA, 1993). O trabalho
de KNAAP e LEEUWEN (1994) permite ler a evolução holocénica do coberto vegetal
regional como a sucessão de uma série de episódios de degradação, nomeadamente
em altitude, cuja causa mais plausível parece ter sido a intervenção antrópica
através do pastoreio (revelada nomeadamente por indícios de desflorestações por
incêndio sem consequente regeneração integral da floresta).
A evolução do uso do fogo em Portugal terá seguido as mesmas tendências do
restante mundo mediterrâneo, onde o fogo sempre fez parte dos ecossistemas. São
conhecidos, por exemplo, os problemas de erosão na bacia do Mondego (queimadas)
e da consequente intervenção Real em 1464: Carta Régia de D. Afonso V
(FERNANDES MARTINS, 1940).
Embora em Portugal não sejam conhecidos muitos documentos escritos relativos a
grandes incêndios florestais anteriores ao séc. XX, apenas a título de exemplo,
podemos destacar alguns relatos existentes: SILVA e BATALHA (1859) referem que
a região da Mata Nacional de Leiria foi afetada por diversos fogos entre 1818 e
1824, o último dos quais terá sido de grandes proporções (5 000ha); também
PINTO (1939), na sua obra O Pinhal do Rei relata que um incêndio florestal em
1824 consumiu cerca de 5 000ha na referida Mata Nacional de Leiria; ainda no
séc. XIX, em 1882 ou 1883 (?), terá ocorrido um incêndio de grandes proporções
na Matta do Bussaco, referido por NAVARRO (1884) no seu livro Quatro dias na
serra da Estrela.
Mais recentemente, nos anos 60 do séc. XX, depois do GIF de Vale do Rio
(Leiria, Figueiró dos Vinhos) em 1961 (LOURENÇO, 2009), o Plano Nacional de
Defesa da Floresta contra Incêndios (APIF, 2005) refere a ocorrência de três
GIF: Viana do Castelo (1962), Boticas (1964) e Sintra (1996).
Apesar destes relatos, até à década de 70 do século passado, os incêndios não
eram considerados um problema-chave para a floresta portuguesa. A partir desta
data, verificou-se um aumento da acumulação de combustível nas florestas,
devido à redução do pastoreio e à falta da roça de matos para a cama dos gados,
provocadas pelo êxodo rural iniciado por volta dos anos 50, que refletia de
perto as mudanças socioeconómicas então em curso nos países do sul da Europa,
em particular nas regiões do Mediterrâneo (LOURENÇO, 1991; VÉLEZ, 1993; MORENO
et al., 1998; REGO, 2001; BENTO-GONÇALVES et al., 2010).
Estas mudanças no uso tradicional da terra e estilo de vida das populações
implicaram o aumento de grandes áreas abandonadas de anteriores terras
agrícolas, o que, por um lado, levou à recuperação da vegetação e ao aumento do
combustível acumulado nos espaços florestais tradicionais (LOURENÇO, 1991;
REGO, 1992; GARCÍA-RUIZ et al., 1996; ROXO et al., 1996) e, por outra parte,
conduziu, naturalmente, ao aumento dos espaços com uso florestal. Muitas destas
áreas rurais tornaram-se paisagens propensas à ocorrência de incêndios de
grande intensidade, devido aos elevados níveis de biomassa, acumulados ao longo
dos anos e prontos para alimentar fogos catastróficos durante o Verão.
Assim, começaram a vulgarizar-se os incêndios florestais com área igual ou
superior a 100 hectares e, até à década de 80 do século passado, os incêndios
no nosso país nunca tinham atingido 10 000 hectares de área ardida numa só
ocorrência. O primeiro destes ocorreu no ano de 1986, no concelho de Vila de
Rei (LOURENÇO, 1986) e, o segundo, no ano seguinte, 1987, tendo afetado os
concelhos de Arganil, Oliveira do Hospital e Pampilhosa da Serra (LOURENÇO,
1988). A partir destas datas podemos dizer que se deu início a uma nova
realidade no que respeita aos grandes incêndios.
3.1. Grandes incêndios florestais na atualidade
Com base nas estatísticas dos incêndios disponibilizadas pelo Instituto da
Conservação da Natureza e das Florestas ' ICNF (2012)1, observa-se que no
decénio 1981-1990 os GIF representaram 1,6% do total das ocorrências registadas
nesses 10 anos, sendo este o valor mais significativo das últimas 3 décadas
(0,7% em 19912000 e em 2001-2010) (Tabela_1). No entanto, no que respeita à
área ardida, esta não foi a década mais representativa, pesem embora os 68,1%
de área ardida em GIF, pois os 79% registados na última década analisada (2001-
2010) representam o valor mais significativo (Tabela_1). Confirma-se assim que,
em termos gerais, os GIF representam uma pequena fração do número total das
ocorrências mas são responsáveis por uma grande percentagem do total da área
ardida (Tabela_1).
Outro aspeto que importa assinalar, é o facto de na última década (2001-2010)
se terem registado os grandes incêndios florestais de maior dimensão, isto
porque, apesar de não se ter registado entre 2001 e 2010 a maior percentagem de
ocorrências de GIF (0,7%) registou-se a maior área ardida (1 164 748ha), o que
significa que cada ocorrência observada nesta década queimou mais do que as
registadas nas anteriores (com uma área ardida média de 672ha) (Tabela_1).
Para tal, muito contribuiu o excecional ano de 2003 (Figura_1)2, com nove dos
treze GIF com área ardida superior a 10 000 ha, ocorridos entre 1981 e 2012, os
quais foram responsáveis por 124 503 ha de área ardida, ou seja, 31,5% do total
da área queimada. Foi ainda em 2003 que se verificou um dos dois únicos
incêndios, em igual período, com mais de 20 000 ha, e que ajudou a colocar o
referido ano no primeiro lugar do ranking em termos de área ardida (ICNF,
2012).
A análise do número de GIF e área ardida anualmente em GIF, entre 1981 e 2010,
permite confirmar uma ténue tendência de aumento destas variáveis ao longo dos
últimos 30 anos, sendo esta ligeiramente mais significativa no que respeita à
área ardida em GIF (R2=0,0354) do que no respeitante ao número de GIF
(R2=0,0217) (Figura_2).
Verifica-se igualmente que no conjunto dos trinta anos analisados, o de 2003
foi aquele que registou a maior área ardida por GIF, 395 640 ha, representando
93% do total da área ardida nesse ano, embora representassem menos de 1% das
ocorrências (253 registos). Já o ano de 2005 foi aquele que registou maior
número de GIF (422) embora com uma área ardida inferior à do ano de 2003 (-107
973 ha), mas, mesmo assim, muito significativa (287 668 ha), representando 85%
do total das áreas ardidas nesse ano (ICNF, 2012) (Figura_2). Estes dois anos
constituem, de facto, os mais preocupantes em termos da ocorrência de grandes
incêndios e da sua área ardida. Para os valores máximos atingidos, de áreas
ardidas no caso de 2003, e do número de ocorrências em 2005, muito contribuíram
as condições climáticas, que se apresentaram bastante favoráveis tanto à
ignição como à propagação de incêndios nestes anos (LOURENÇO et al., 2012). Por
outro lado, o ano de 2008 foi aquele que registou não só menos GIF, em relação
ao número total de ocorrências, 0,1% (18 registos), mas também menor área
ardida, 26%, correspondentes a 4 339 ha. A partir deste ano observa-se
novamente o aumento tanto do número como das áreas ardidas em GIF, sem,
contudo, se alcançarem os valores atingidos nos anos de 2003 e 2005 (Figura_2).
Desagregando a informação relativa aos grandes incêndios nos últimos 30 anos
verifica-se que os GIF mais frequentes foram os que queimaram áreas entre 100 e
500ha, representando, em média, 77,9% do total dos GIF, e foram responsáveis
por 40,3% da média das áreas queimadas em GIF neste período. Entre os de
dimensão superior a 500 ha, destacam-se, pela área consumida, aqueles com área
entre os 1 000 ha e 5 000 ha, que representando, em média, 8,7% do total,
queimaram, em termos médios, 30,9% da área total (Tabela_2, Figura_3, Tabela_3,
Figura_4).
Podemos ainda referir o fato de apenas em quatro anos (1986, 2003, 2004 e 2005)
se terem registado incêndios com área igual ou superior a 10 000ha, e, três
desses anos (2003, 2004 e 2005) terem ocorrido na última década, com destaque
para 2003, onde, estes grandes incêndios de maior dimensão (=10 000 ha) foram
responsáveis por 31,5% do total área ardida, nesse ano, em GIF.
4 - Conclusões
Os regimes de fogo têm tido uma evolução natural ao longo dos tempos, mas
recentemente o ser humano assumiu um papel preponderante nessa evolução. Com
efeito, a esmagadora maioria dos incêndios florestais é causada por atividades
humanas e apenas uma pequena parte por causas naturais (FAO, 2001). Além disso,
um número relativamente pequeno de incêndios é responsável pela maioria da área
ardida (STRAUSS et al., 1989).
Com efeito, em Portugal, a influência do ser humano sobre a floresta através do
uso do fogo (queimadas) remonta à Idade do Bronze (DEVY-VARETA, 1993). A partir
dos anos 50 do século XX, com a profunda desestruturação do mundo rural (BENTO-
GONÇALVES et al., 2010), criaram-se condições para uma profunda modificação dos
regimes de fogo vigentes no nosso país, até então. Assim, numa primeira fase,
começaram a vulgarizar-se os incêndios florestais com área igual ou superior
a 100 hectares e, mais tarde, em meados da década de 80 do século passado,
franquearam pela primeira vez a barreira de 10 000 ha ardidos. A partir dessa
década podemos dizer que se deu início a uma nova realidade, no que respeita
aos grandes incêndios, o que resultou da mudança dos regimes do fogo
verificados em Portugal a partir da segunda metade do século XX.
Os GIF representam, em Portugal, uma pequena fração do número total de
incêndios, acompanhando as tendências verificadas na Bacia do Mediterrâneo, mas
são responsáveis por uma grande percentagem da área ardida. Por outro lado, foi
nos últimos dez anos que se registaram os incêndios florestais de maior
dimensão, pois, apesar de não se ter registado a maior percentagem de GIF,
verificou-se a da maior área ardida, o que significa que, em média, nesta
década cada GIF queimou mais do que os das décadas anteriores. Isto resulta,
por um lado, da redução do número de grandes incêndios florestais ao longo dos
anos e, por outra parte, do aumento da área dos maiores grandes incêndios.