Sinostose radiocubital bilateral congénita e agenesia congénita do músculo
depressor do ângulo da boca
INTRODUÇÃO
Sinostose define a união de dois ossos adjacentes. A sinostose entre o rádio e
o cúbito, geralmente na extremidade proximal do antebraço, pode assumir duas
formas: congénita e adquirida. Esta última surge após um traumatismo, sendo
distinta da congénita por ter uma etiologia, tratamento e prognóstico
diferentes. A forma congénita é rara. (1,2)A primeira descrição foi feita em
1793 por Sandifort. (3)A sinostose radiocubital congénita (SRC) caracteriza-se
pela posição fixa do antebraço, que varia de uma posição neutra a uma posição de
hiperpronação.(4) A realização de actividades diárias simples pode ficar
comprometida. Esta deformidade pode ocorrer isoladamente ou associar-se a
outras malformações (musculo-esqueléticas, neurológicas, gastrointestinais,
cardíacas) ou a síndromes genéticas.(5)
A agenesia congénita do músculo depressor do ângulo da boca também é uma
entidade rara.(6) O diagnóstico baseia-se no quadro clínico típico: assimetria
da boca durante o choro (movimento descendente do lábio do lado não afectado,
permanecendo o do outro lado imóvel); restante face simétrica; lábio do lado
afectado parece mais fino; rugas frontais presentes; encerramento palpebral
completo e simétrico; presença da prega nasolabial. (7,8)Frequentemente,
associa-se a outras anomalias congénitas.(6)
Descreve-se o caso de uma menina de sete anos com SRC bilateral e agenesia
congénita do músculo depressor do ângulo da boca esquerdo.
Com a descrição deste caso pretende-se, além do relato da associação de duas
malformações raras (SRC e agenesia do músculo depressor do ângulo da boca),
alertar os pediatras e ortopedistas para a necessidade de despiste de outras
malformações e síndromas genéticos que se lhes poderão associar.
DESCRIÇÃO DO CASO
Descreve-se o caso de uma menina de sete anos, caucasiana, primeira filha de
pais saudáveis e não consanguíneos, fruto de uma gravidez vigiada, com
ecografias pré-natais descritas como normais. Nasceu de parto distócico
(fórceps), às 40 semanas de gestação, com boa adaptação à vida extra-uterina,
com 3730g (P75), 51cm de comprimento (P75) e perímetro cefálico de 34cm (P25).
Dos antecedentes familiares, a salientar: mãe, 32 anos, queratodermia
palmoplantar, paralisia facial periférica aos sete anos que resolveu totalmente
após fisioterapia; pai, 31 anos, saudável; irmão, quatro anos, queratodermia
palmoplantar; avó materna com artrite reumatóide.
No período neonatal, foi constatada assimetria facial, mais evidente durante o
choro, interpretada inicialmente como sendo de origem posicional. Não
apresentava dismorfismos faciais. Manteve boa evolução estato-ponderal (peso no
P25-50, estatura no P50) e um desenvolvimento psicomotor adequado à idade.
Aos seis meses, quando começou a bater palmas, os pais notaram que o fazia com
o dorso das mãos e não com as palmas. Foi constatada limitação bilateral da
prono-supinação. As radiografias dos antebraços revelaram SRC proximal
bilateral.
Aos dezassete meses, mantinha a assimetria facial quando sorria/chorava,
fazendo um movimento descendente do lábio do lado direito, mas não do esquerdo.
Não havia perda da mímica facial, do lacrimejo ou alterações da salivação. O
exame neurológico era normal. Realizou tomografia computorizada e ressonância
magnética cranio-encefálicas cujos resultados foram normais. A assimetria
facial foi atribuída à agenesia do músculo depressor do ângulo da boca
esquerdo. Pelo risco de associação a outras malformações, sobretudo cardíacas,
realizou um ecocardiograma que excluiu cardiopatia.
Aos cinco anos, por dificuldades na articulação das palavras iniciou terapia da
fala, com melhoria. Com essa idade, repetiu as radiografias dos antebraços
(Figura 1). Dado conseguir realizar as suas actividades diárias, foi protelada
a correcção cirúrgica para depois dos dezoito anos.
Figura 1' Radiografia do antebraço evidenciando sinostose radioulcubital
proximal congénita.
Aos sete anos, numa nova reavaliação, mantinha desvio direito da boca quando
sorria, com o lábio parecendo mais fino à esquerda, resultante da agenesia do
músculo depressor do ângulo da boca esquerdo (Figura 2 A). Mantinha limitação
bilateral da prono-supinação, resultante da SRC (Figura 2 B e C).
Figura 2. A)Assimetria facial, evidente com o sorriso, com movimento
descendente do lábio à direita (mas não à esquerda), ausência de outras
assimetrias faciais, presença da prega nasolabial. B) Posição fixa do antebraço
bilateralmente. C) Incapacidade de realizar o movimento de pronação do
antebraço, recorrendo a movimentos compensatórios da articulação do ombro.
DISCUSSÃO
A SRC, deformidade rara(1), com incidência desconhecida(9), resulta da falha na
segmentação longitudinal entre o rádio e o cúbito que ocorre, normalmente, na
sétima semana de gestação(4,10). As causas são desconhecidas, podendo resultar
de mutações espontâneas ou de uma base de transmissão genética (há casos com
história familiar positiva e associação com algumas síndromes genéticas).(4,5)
A SRC, embora presente ao nascimento, frequentemente só é diagnosticada quando
se verifica limitação da prono-supinação(10), numa idade média de seis anos
(seis meses a 22 anos).(5)
Não existe predomínio por nenhum sexo.(10) É maioritariamente bilateral (60-
80%).(4,10)
Embora possa ocorrer isoladamente, num terço dos casos, associa-se a outras
malformações: musculo-esqueléticas (polidactilia, sindactilia, hipoplasia do
primeiro dedo das mãos, fusão dos ossos cárpicos, luxação da anca, anomalias
dos joelhos e hiperlaxidez ligamentar), gastrointestinais, cardíacas e
neurológicas(1,10). Também se pode associar ao síndroma de Apert, síndroma de
Carpenter, artrogripose, disostose mandibulofacial, acrocefaloindactilia,
síndroma de William, síndroma de Klinefelter, síndroma de Holt-Oram e síndroma
fetal alcoólico.
Os défices funcionais, resultantes da rotação anormal do antebraço, dependem da
gravidade da deformidade (relacionada com o grau de pronação fixa) e da
bilateralidade. Nos casos ligeiros, os défices são, geralmente, compensados
pelos movimentos das articulações adjacentes (escapular, gleno-umeral e radio-
cárpica)(9), nos graves (bilaterais e com hiperpronação fixa), os movimentos
compensatórios poderão ser insuficientes, podendo haver incapacidade para a
realização de actividades simples como comer, escrever ou segurar objectos.
(1,4,10,11)
Embora seja assintomática e indolor, pode surgir dor se ocorrer subluxação da
cabeça do rádio, comum na adolescência, pelo que está indicado um controlo
radiológico regular. Em doentes com mais idade, a dor pode surgir nas
articulações adjacentes, devido aos movimentos compensatórios.(9)
O tratamento cirúrgico tem como objectivo restabelecer a rotação do antebraço e
prevenir a recorrência da anquilose.(10)As indicações, embora controversas,
incluem a presença de hiperpronação e bilateralidade, com deformidade grave.
(1,4) A decisão deve ter em conta a limitação funcional, a capacidade de
realização das actividades diárias, o ambiente socio-cultural e a profissão que
o doente pretende exercer.(1,10)Alguns autores recomendam a correcção
cirúrgica entre os quatro e os dez anos.(1)No caso descrito, apesar da
bilateralidade, a criança conseguia realizar todas as suas actividades, pelo
que a correcção cirúrgica foi protelada.
Frequentemente, a correcção por exérese da barra não é bem sucedida, pelo que a
maioria dos autores recomenda a osteotomia de correcção com fixação em prono-
supinação neutra/ funcional.
A agenesia do músculo depressor do ângulo da boca é uma anomalia facial minor,
presente desde o período neonatal, caracterizada pela assimetria facial
durante o choro. Tem uma etiologia multifactorial. É mais frequente do lado
esquerdo e no sexo masculino (2:1).(6) Pode ser diferenciada da verdadeira
paralisia facial com base na apresentação clínica típica, descrita
anteriormente. A electromiografia dos músculos faciais pode ajudar no
diagnóstico.
É frequente a associação a outras malformações (70%): cervicofaciais (48%),
cardiovasculares (44%), esqueléticas (22%), genito-urinárias (24%), do sistema
nervoso central - SNC - (10%) e gastrointestinais (6%).(6,8) Estas crianças
também poderão apresentar má progressão ponderal e atraso psicomotor. Pelo
exposto, é recomendada a pesquisa de malformações associadas, particularmente
cardiovasculares, a todos os recém-nascidos com assimetria facial durante o
choro.
No caso descrito, foram excluídas malformações do SNC e cardiopatia. Mas em
associação à agenesia do músculo depressor do ângulo da boca, a criança
apresentava uma malformação esquelética (SRC).
COMENTÁRIOS FINAIS
A SRC, deformidade rara do antebraço, geralmente proximal e bilateral, pode
associar-se a outras malformações musculo-esqueléticas, neurológicas,
gastrointestinais ou cardíacas e a síndromes genéticas. A realização das
actividades diárias pode ficar comprometida. Nos casos de deformidade severa,
com hiperpronação e bilateralidade, o tratamento deverá ser cirúrgico, entre os
quatro e dez anos.
A agenesia do músculo depressor do ângulo da boca é uma anomalia facial rara,
sendo mais frequente à esquerda. Está presente desde o nascimento, embora o
diagnóstico seja, frequentemente, tardio. Distingue-se da paralisia facial
verdadeira pela sua clínica típica: movimento descendente do lábio do lado não
afectado durante o choro, permanecendo o outro lado imóvel; ausência de outras
assimetrias faciais; presença de rugas frontais, encerramento palpebral
completo e simétrico, presença da prega nasolabial.