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EuPTCVHe0872-81782007000400004

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National varietyEu
Year2007
SourceScielo

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DIARREIA NUM DOENTE COM IMUNODEFICIÊNCIA COMUM VARIÁVEL: A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO

INTRODUÇÃO As imunodeficiências primárias compreendem um conjunto de distúrbios que afectam o desenvolvimento e maturação das células do sistema imunitário, daí resultando, entre outros, um aumento da susceptibilidade a infecções.

A Imunodeficiência Comum Variável (ICV) é o distúrbio de imunodeficiência primária mais prevalente na Europa com uma incidência variando entre 1: 50.000 a 1: 200.000, conforme os estudos (1,2) Afecta igualmente homens e mulheres e a idade de diagnóstico varia entre a e a década de vida (2,3).

Representa um grupo heterogéneo de doenças imunológicas de etiologia desconhecida, que se caracterizam por uma resposta deficiente dos anticorpos ao estímulo antigénico. O defeito básico reside na imunidade humoral, e consiste na incapacidade dos Linfócitos B se diferenciarem em plasmócitos capazes de produzirem os vários isotipos de imunoglobulinas, embora se verifique que um defeito na imunidade celular esteja também envolvido (3,4). O desenvolvimento defeituoso das células B resulta em anomalias da imunidade humoral, o que clinicamente se manifesta por infecções piogénicas de repetição, enquanto que o defeito no desenvolvimento dos linfócitos T acarreta uma anomalia da imunidade celular e consequentemente uma maior susceptibilidade a infecções oportunistas.

A característica laboratorial chave da ICV é a redução marcada dos níveis séricos de Imunoglobulina G (≤500 mg/dL em adultos), normalmente acompanhada de uma redução nos níveis de IgA; cerca de 50% dos doentes apresenta ainda redução dos títulos de IgM (3).

Na ausência de um teste diagnóstico definitivo para esta doença, a ICV permanece um diagnóstico de exclusão, que requer a eliminação de outras causas possíveis de hipogamaglobulinémia. Os critérios clínicos e laboratoriais foram definidos pela European Society for Immunodeficiencies (ESID) e são descritos no Quadro I.

Como foi referido, a susceptibilidade aumentada a infecções piogénicas é a característica clínica típica da doença, apresentando quase todos os doentes infecções sino-pulmonares de repetição (pneumonias, otites e sinusites) por microorganismos encapsulados. O aparecimento de bronquiectasias é comum, especialmente se o diagnóstico não for feito atempadamente.

Existe uma elevada incidência de neoplasias gastrointestinais e linforreticulares, verificando-se um aumento da incidência de adenocarcinoma gástrico (cerca de 50 vezes) e de linfoma (cerca de 30 vezes), em relação à população em geral (5,6,7).

Observa-se também uma predisposição aumentada para doenças auto-imunes com destaque para a anemia hemolítica e púrpura trombocitopénica idiopática, tiroidite auto-imune, anemia perniciosa, Síndrome de Sjögren,

hepatite auto-imune, cirrose biliar primária e vasculites, entre outros (2,8).

De todas as imunodeficiências primárias, é na ICV que são mais frequentes as queixas do foro gastrointestinal, apresentando cerca de metade dos doentes queixas digestivas nalgum ponto da evolução da sua doença (2,9,10).

Dor abdominal, náuseas e vómitos, diarreia e perda de peso são as queixas mais frequentes.

As manifestações gastrointestinais da ICV são muito variáveis e tendem a mimetizar doenças tais como a doença celíaca, anemia perniciosa e a doença inflamatória intestinal, embora existam algumas diferenças importantes a nível clínico e microscópico (9). Uma hiperplasia nodular linfóide com infiltração linfóide difusa e perda das vilosidades é frequentemente encontrada em biópsias intestinais. A hipertrofia de outros tecidos linfóides, incluindo gânglios periféricos, baço e fígado pode também ser encontrada (2,9).

A infecção por Giardia Lamblia é uma causa comum de diarreia nestes doentes, que apresentam também um risco maior de infecção por gérmens enteroinvasivos como a Salmonella, Shigella e Campylobacter e menos frequentemente Citomegalovírus (9,11).

O tratamento destes doentes engloba duas vertentes: o tratamento antibiótico das infecções e o tratamento dirigido ao défice imune com Imunoglobulina ev (IgG).

O tratamento com IgG endovenosa tipicamente não afecta o curso das infecções gastrointestinais; estas, devem-se a um défice combinado da imunidade celular e humoral, não passível de ser corrigido pelas preparações de Imunoglobulina (IgG), que não atingem o lúmen intestinal e não contêm IgA (não administrável por via parentérica), importante para prevenir as infecções do intestino (9).

CASO CLÍNICO Doente do sexo feminino, raça caucasiana, 31 anos de idade, doméstica de profissão, seguida em Consulta de Medicina Interna, por Imunodeficiência Comum Variável diagnosticada na sequência de infecções respiratórias de repetição. No estudo realizado em consulta, para estudo das infecções respiratórias de repetição, tinha sido excluída fibrose quística e défice de α1 - antitripsina. As serologias para VHB, VHC, HIV 1 e 2 foram negativas.

O Rx do tórax sugeria imagens de bronquiectasias no lobo superior esquerdo, confirmadas por TC torácica.

O doseamento das Imunoglobulinas revelou a uma diminuição marcada das IgG, IgA e IgM (Quadro II), tendo sido colocada a hipótese de Imunodeficiência Comum Variável, diagnóstico confirmado mais tarde pelos testes de transformação linfoblástica.

Encontrava-se referenciada para Hospital de Dia para iniciar tratamento com Imunoglobulina; contudo, por queixas de diarreia e emagrecimento com cerca de 12 meses de evolução, foi decidido internamento para estudo de quadro clínico A doente referia episódios de diarreia aquosa (4-5 dejecções/dia), sem sangue, muco ou pús com duração de cerca de 1 semana, que alternavam com períodos de trânsito normal, acompanhada de perda ponderal (cerca de 30% do peso corporal). Este quadro era acompanhado de queixas de anorexia, astenia e mal-estar geral.

Ao exame objectivo encontrava-se consciente e orientada no tempo e espaço destacando-se um aspecto emagrecido (IMC de 17,2). Os pârametros hemodinâmicos eram estáveis. As mucosas encontravam-se coradas e hidratadas. Apresentava baqueteamento digital. A auscultação cardiopulmonar era normal e o abdómen não apresentava sinais de circulação colateral, era mole e depressível, não se palpando massas ou organomegálias.

Durante o internamento e com o objectivo de estudar a diarreia e perda ponderal que a doente referia, foram pedidos uma série de exames complementares de diagnóstico.

Analiticamente destacava-se uma anemia microcítica com Hb-10,4 g/L e VGM de 79,8 fL. Apresentava Hipoproteinémia com proteínas totais de 49,3 g/L, Hipoalbuminémia de 31 g/L e hipocalcémia (1,9 mmol/L).

A glicémia, função renal, transaminases, FA e gGT encontravam-se dentro dos valores normais. Os tempos de coagulação não estavam alterados. A Vitamina B12 estava diminuída [103 pg/mL; Valor de referência (VR): 200-950] e ácido fólico era normal (15,6 ngG/mL; VR: 3,0- 17,0).

O ferro sérico era de 4,2 μmol/L (VR: 6-27), com Saturação de transferina de 8,2% (VR: 35-40), capacidade total de fixação do ferro de 51.0 μmol/L (VR: 44,8-80,6) e ferritina de 13,7 ng/mL (VR: 9,0- 12,0). As Coproculturas e exame parasitológico de fezes não detectaram qualquer crescimento bacteriano, quistos ou trofoizoitos de parasitas. O teste da D-Xilose (18,3 mg/dL; VR: >25 mg/dL) estava diminuído com xilosúria também diminuída (3,2 g/5h). Os doseamentos de autoAnticorpos (ANA, ANCA, Acs anti-gliadina, anti-endomísio e anti-factor intrínseco) foram negativos. O RX simples abdómen era normal.

No estudo do tubo digestivo a Colonoscopia realizada mostrou uma mucosa sem alterações e a Endoscopia Digestiva Alta revelou uma mucosa gástrica normal, evidenciando a nível bulbar uma mucosa atapetada por pequenos pólipos, aspecto que se acentuava por D2 e que se estendia por um limite não definido. (Figuras 1 e 2) As biópsias das lesões polipóides observadas revelaram mucosa duodenal com arquitectura alterada por haver alargamento e encurtamento das vilosidades () consequência da presença de numerosos folículos linfóides na mucosa, com centros germinativos () um infiltrado mononuclear abundante intersticial, constituído quase exclusivamente por pequenos linfócitos, com numerosos eosinófilos, alguns polimorfonucleares e apenas escassos plasmócitos. No lúmen e em localização justaepitelial foram identificadas numerosas figuras sugestivas de Giardia. O estudo imunocitoquímico com anticorpos anti-CD20, CD3, CD5, CD10, BCL2, cadeia K e cadeia Lambda mostrou que a população linfóide era do tipo hiperplasia nodular folicular. (Figuras 3 e 4) Com base nos exames realizados concluímos pelos seguintes diagnósticos: síndrome de malabsorção (teste da D xilose alterado, hipoalbuminémia, hipocalcémia, diminuição da Vitamina B12 e sideropenia), Hiperplasia Nodular Folicular e Infecção por Giardia Lamblia, em doente com imunodeficiência comum variável.

A doente iniciou tratamento com Metronidazol (500 mg per os de 8/8h durante 7 dias), suplementação com ferro e Vitamina B12 tendo-se verificado uma melhoria do estado geral, com ligeiro aumento de peso (3-4 kg) aos 4 meses de seguimento, desaparecimento das queixas de diarreia e melhoria dos parâmetros laboratoriais de mal-absorção (albumina: 40 g/L, Cálcio de 2.07 mmol/L).

Em seguimento em regime de Hospital de Dia, onde lhe são administrados 25g de Imunoglobulina ev mensalmente.

DISCUSSÃO O tracto GI é o maior órgão imune do nosso organismo, encontrando-se num estado perpétuo de inflamação fisiológica devido à exposição contínua a antigénios alimentares ingeridos. Assim, não é surpreendente que doentes com imunodeficiências apresentem manifestações do foro digestivo em algum momento da sua doença.

A doente acima apresentada, tinha uma imunodeficiência comum variável, hipótese colocada por um quadro clínico sugestivo (infecções respiratórias de repetição, bronquiectasias, diarreia crónica) e confirmada laboratorialmente pelo doseamento de imunoglobulinas e testes de transformação linfoblástica alterados, após exclusão de outras causas de imunodeficiência.

Nestes doentes, a diarreia é uma das queixas gastrointestinais mais frequentes, sendo que as principais hipóteses etiológicas a colocar são: doença celíaca like, infecção por Giardia, doença inflamatória intestinal (DII) (nomeadamente colite ulcerosa (CU), hiperproliferação bacteriana e linfoma do intestino delgado (9).

Cerca de 60% dos doentes com ICV, apresentam diarreia crónica e uma síndrome de mal-absorção com hipoalbuminémia, hipocalcémia, diminuição da vitamina B12 e teste da d-xilose alterado (9). A histologia do intestino delgado pode mostrar nestes casos aplanamento das vilosidades juntamente com infiltração linfocítica na lâmina própria. Histologicamente semelhanças com a doença celíaca, excepto pelo facto de não haver infiltração da lâmina própria por plasmócitos (uma das características da enteropatia sensível ao glúten), os marcadores imunológicos de doença celíaca serem negativos e existir resposta à restrição de glúten na dieta em apenas 50% dos casos (9,11). A doente acima descrita, apresentava um padrão histológico que poderia ser enquadrável numa doença celíaca-like, juntamente com uma síndrome de mal-absorção; contudo o facto de a diarreia ter cedido após instituição de metronidazol permitiu-nos atribuir com segurança este quadro clínico à infecção por Giardia Lamblia, embora seja admissível que as alterações da arquitectura das vilosidades descritas contribuíssem em alguma extensão para a má-absorção apresentada.

A hipótese de DII era pouco provável, que a colonoscopia realizada não mostrava qualquer tipo de alteração na mucosa e houve melhoria do quadro com instituição da antibioterapia. Verifica-se que os doentes com ICV apresentam uma tendência elevada para doença inflamatória intestinal (DII), o que parece estar relacionado com a des-regulação das células T e realça o facto de alterações da imunidade celular estarem também envolvidas na ICV (2,9). Macroscopicamente os achados podem ser semelhantes à CU embora existam diferenças significativas a nível histológico, nomeadamente a ausência de células gigantes, de granulomas e de distorção das criptas intestinais (9).

A infecção por Giardia Lamblia é a na realidade, a causa infecciosa mais frequente de diarreia e mal-absorção nestes doentes, sendo detectada em 30% dos casos (9).

Em hospedeiros normais, a Giardíase causa geralmente uma diarreia auto-limitada que dura dias a semanas. os doentes com ICV podem desenvolver uma diarreia crónica com má-absorção e perda ponderal significativas, que apesar do tratamento adequado pode ter um curso crónico e recidivante. As alterações histológicas e o envolvimento da mucosa variam em gravidade, indo desde alterações ligeiras na arquitectura das vilosidades até atrofia vilosa total, condicionando má-absorção grave e esteatorreia. O diagnóstico pode ser feito pela detecção de quistos ou trofozoítos nas fezes, embora por vezes seja necessária a biópsia ou aspirado duodenal para detectar o parasita, tal como se verificou na doente apresentada.

Outra alteração encontrada nesta doente, enquadrável na sua ICV, foi a hiperplasia nodular focal ou linfóide. Esta alteração histo-patológica é uma das manifestações endoscópicas primárias encontrada em 60% dos casos (2,9) e apresenta-se como pequenos nódulos ou pólipos no intestino delgado correspondendo a agregados de linfócitos B organizados em folículos, confinados à lâmina própria e sub-mucosa do intestino delgado. Pode ser causa de enteropatia exsudativa e existem autores que acreditam que esta alteração pode estar relacionada com o desenvolvimento de linfoma intestinal (2), devendo estes doentes ser vigiados mais atentamente.

CONCLUSÃO Embora o Médico Gastrenterologista se encontre raramente envolvido no diagnóstico e assistência inicial de doentes com síndromes de imunodeficiências primárias, deve estar familiarizado com este tipo de patologia devido às múltiplas implicações produzidas no tubo digestivo.

Em primeiro lugar, porque mimetizam doenças como a colite ulcerosa, anemia perniciosa ou doença celíaca, apresentando contudo diferenças clínicas e histológicas importantes. Estes distúrbios não se devem apenas a alterações na imunidade humoral, e parecem até estar mais relacionados com defeitos da imunidade celular, o que poderá explicar o facto de alguns doentes com manifestações gastrointestinais da ICV não responderem à terapêutica com Imunoglobulina ev.

Em segundo lugar, o facto de estes doentes apresentarem incidência elevada de neoplasias digestivas, torna a sua vigilância endoscópica periódica de primordial importância.

Assim, a ICV deve ser considerada em qualquer doente que se apresente com manifestações gastrointestinais que não respondem aos tratamentos convencionais, especialmente em doentes com diarreia crónica em associação com infecções bacterianas recorrentes noutros órgãos.


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