Trombose Venosa Mesentérica: uma causa rara de oclusão intestinal
INTRODUÇÃO
A trombose venosa mesentérica (TVM) é uma entidade rara, que representa cerca
de 10 a 15% das isquémias mesentéricas. [1] Em 95% dos casos afecta a veia
mesentérica superior. [2]
Em cerca de três quartos dos casos identifica-se um ou mais factor(es)
etiológico(s) subjacente(s). [1] Nestes incluem-se os estados de
hipercoagulabilidade hereditários (défice de inibidores da coagulação ou
aumento do nível ou função de factores de coagulação) ou adquiridos
(neoplasias, uso de contraceptivos orais, síndrome antifosfolipídico, síndrome
nefrótico), processos inflamatórios adjacentes (como por exemplo pancreatite ou
doença inflamatória intestinal), hipertensão portal ou, ainda, após traumatismo
ou cirurgia abdominal. [1] Por vezes existe uma associação de factores, como
por exemplo os pacientes com hipercoagulabilidade subjacente que desencadeiam
TVM como complicação de um processo inflamatório ou traumatismo abdominal. [3]
Nos estados de hipercoagulabilidade, contrariamente ao que ocorre nos casos de
TVM precipitada por causa intra-abdominal, a oclusão venosa inicia-se nos ramos
mais periféricos, estendendo-se posteriormente e de forma gradual aos ramos
principais. [1] A trombose venosa provoca retorno sanguíneo à parede e lúmen
intestinais, levando a edema e comprometimento progressivo da circulação
arterial, resultando em isquémia.
A apresentação clínica de TVM geralmente é subtil e insidiosa, de difícil
reconhecimento pela inespecificidade dos sintomas e sinais. O atraso
diagnóstico leva a morbilidade e mortalidade não desprezíveis.
CASO CLÍNICO
Os autores apresentam o caso de um doente do sexo masculino com 46 anos de
idade, sem antecedentes patológicos dignos de registo, que apresenta episódio
inaugural de sub-oclusão intestinal, consistindo em vómitos de estase,
distensão abdominal e aumento de peristaltismo, que se resolveu com tratamento
médico. Três meses depois manifesta dor epigástrica intensa e vómitos de
estase. Recorreu ao serviço de urgência, onde foi colocada a hipótese de se
tratar de pancreatite, contudo os exames laboratoriais e a ecografia abdominal
não apontaram para este diagnóstico e teve alta melhorado, embora sem
diagnóstico etiológico. Nos dois meses que se seguiram houve perda ponderal
significativa num total de 17 Kg, associado a náuseas e vómitos pós-prandiais e
dor abdominal tipo cólica intermitentes. Os vómitos pós-prandiais e a dor
abdominal tornaram-se constantes, tendo recorrido ao nosso centro. Ao exame
objectivo não foram detectadas alterações para além de sinais de desnutrição e
de desidratação ligeira.
Analiticamente destacava-se hemograma e coagulação normais, bioquímica sumária
normal, ferritina aumentada, marcadores tumorais normais, hormonas tiroideias
normais, serologias para VHB, VHC e HIV normais. A endoscopia digestiva alta
revelou estase na segunda porção do duodeno. A ecografia abdominal evidenciou
conglomerado de ansas com discreto espessamento parietal ao nível do flanco
esquerdo. A colonoscopia não encontrou qualquer lesão. Foi solicitado trânsito
esofagogastroduodenal que revelou uma zona de estenose, condicionando obstrução
parcial, a cerca de 25 cm a jusante do ângulo de Treitz, sugestiva de estenose
tumoral. (Fig._1) O estudo prosseguiu com realização de Tomografia
Computorizada (TC) abdominal, que confirmou estenose jejunal, associado a
espessamento de ansas de jejuno, não se observando nenhuma tumoração. Foi
colocada a hipótese de se tratar de uma estenose secundária a uma trombose
venosa mesentérica. A existência de antecedente familiar da mesma patologia
(irmão) e a ocorrência de tromboflebites de repetição na mãe, fez suspeitar de
trombofilia subjacente. No estudo da coagulação encontrou-se diminuição dos
níveis de Proteína C (43.6%) e de Proteína S livres (42.9%). O mesmo estudo
excluiu défice de antitrombina III e síndrome antifosfolipídico.
O doente foi proposto para cirurgia, cerca de cinco meses após início dos
sintomas, tendo-lhe sido administrada heparina de baixo peso molecular nos seis
dias prévios (Enoxaparina 40mg). Intraoperatoriamente verificou-se a existência
de um conglomerado de ansas jejunais aderentes entre si, condicionando estenose
jejunal e dilatação a montante. (Fig._2a_e_2b) Para além disso, era aparente um
espessamento do mesentério e ingurgitamento das veias do mesentério a este
nível. (Fig._2c) Foi feita uma enterectomia de cerca de 40 cm de jejuno,
seguido de anastomose termino-terminal manual. (Fig_2d) No pós-operatório
manteve Enoxaparina 40mg até ao 15º dia, associando Varfarina 5mg a partir do
sexto dia. Iniciou alimentação ao terceiro dia, com boa tolerância. No oitavo
dia iniciou febre associado a citólise hepática (TGP 362; TGO 346; LDH 835),
com resolução nos dias seguintes. No 60º dia houve aparecimento de equimoses
cutâneas pré-tibiais, que coincidiram com um valor de INR (International
Normalized Ratio) de 3,77. Foi reduzida a dose de varfarina para metade, tendo
tido alta ao 15º dia assintomático e com valor de INR de 1,91.
O estudo histológico da peça operatória evidenciou a nível da zona de aderência
das ansas intestinais um trajecto fistuloso atingindo toda a espessura da
parede de uma das ansas intestinais e estendendo-se à subserosa da outra.
Apresentava extensa ulceração da mucosa na zona de estenose macroscópica. Em
toda a espessura da parede intestinal identificavam-se vasos sanguíneos muito
ectasiados e congestivos, bem como ligeiro infiltrado inflamatório
polimorfonuclear, havendo focalmente presença de células histiocitárias com
pigmento de hemossiderina. (Fig._3)
Electivamente, o doente repetiu estudo da coagulação que confirmou défice de
proteina C. O estudo foi alargado aos restantes elementos da família, tendo
sido detectados outros casos da mesma deficiência. (Fig._4)
O doente mantém-se assintomático, medicado com anticoagulante oral e com
controlo regular do INR.
DISCUSSÂO
Em termos gerais a TVM apresenta-se clinicamente sob uma de três formas
distintas: aguda, subaguda ou crónica. Na forma aguda a sintomatologia inicial
é exuberante e desproporcional aos achados físicos mas com rápida evolução para
enfarte intestinal e perfuração com peritonite. Na TVM subaguda a dor abdominal
persiste ao longo de dias ou semanas, mas sem enfarte intestinal pelo
desenvolvimento de colaterais. Na forma crónica não ocorrem sintomas durante a
instalação de trombose, manifestando-se posteriormente por sinais de
hipertensão portal. [1]
O caso índice ilustra um caso de TVM subaguda, manifestada por dor abdominal e
quadro de suboclusão intestinal.
A oclusão intestinal é uma forma rara de manifestação de TVM que resulta do
aparecimento de uma estenose isquémica. Ocorre geralmente a nível do intestino
delgado, sendo mais frequente no jejuno. [4]
O diagnóstico de TVM subaguda é difícil numa fase inicial, pela
inespecificidade das manifestações, requerendo um elevado índice de suspeição.
Os achados laboratoriais são inespecíficos, sendo que a leucocitose e a acidose
aparecem geralmente numa fase tardia, já com isquémia instituída.
Dentro dos exames radiológicos salienta-se a importância da ecografia abdominal
com Doppler e TC abdominal com contraste. O ecodoppler dos vasos mesentéricos
permite observar o trombo ou anomalia no fluxo visceral, embora seja uma
técnica operador-dependente e, nos casos em que a distensão intestinal é
importante, a visualização dos vasos mesentéricos torna-se difícil. [5] A TC do
abdómen permite segundo alguns autores estabelecer o diagnóstico em 90% dos
casos. [6] Os achados típicos consistem em dilatação da veia mesentérica, com
defeito de preenchimento que representa o trombo, e parede venosa bem
delineada. [5,6] Em alguns casos é ainda evidente a existência de colaterais,
ingurgitamento dos vasos mesentéricos e edema do mesentério. [5] Contudo,
quando a trombose se restringe aos ramos mais periféricos esse diagnóstico pode
ser mais dificultado, muitas vezes só sendo visível dilatação e edema das
ansas, como neste caso. A existência de ansas com parede espessada ou com má
captação de contraste e de derrame peritoneal sugerem isquémia intestinal e
eventual necessidade de laparotomia. [5] Outros sinais mais raros, mas com
prognóstico ominoso são a existência de pneumatose intestinal, ar na veia porta
ou pneumoperitoneu. [5] A TC abdominal, para além de permitir avaliar os vasos
mesentéricos e o intestino afectado, permite excluir outras patologias
abdominais.
A angiografia é um método invasivo que pode ter um papel nos casos equívocos,
permitindo, em casos seleccionados, instituir medidas terapêuticas, tais como a
instilação de vasodilatadores ou de trombolíticos. [5]
Alguns autores consideram a angiografia por TC helicoidal e a angio-ressonância
com gadolíneo os primeiros exames a realizar em pacientes com suspeita de TVM.
[5] Ambas as técnicas permitem uma avaliação pormenorizada da circulação
mesenteroportal, embora com a desvantagem de não permitirem a avaliação da
anatomia extra-vascular.
Apesar dos vários exames complementares, em alguns casos o diagnóstico de TVM,
especialmente nos casos de TVM aguda, realiza-se apenas durante a laparotomia
ou autópsia.
Na literatura existem relatos de vários outros casos de TVM em que se
diagnosticou trombofilia subjacente: défice de proteína C, défice de
antitrombina III e síndrome anti-fosfolipídico. [4]
O défice de proteína C é uma anomalia genética rara de transmissão autossómica
dominante com penetrância incompleta, que pode ser identificada em 0,2-0,4% de
indivíduos saudáveis e em 3-4% dos pacientes com trombose venosa. [4] A maioria
dos pacientes com deficiência de proteína C são heterozigotos e manifestam o
primeiro episódio de trombose venosa antes dos 45 anos de idade, mais
frequentemente sob a forma de trombose venosa profunda nos membros inferiores
ou tromboembolia pulmonar, ou ambos. [7] A trombose venosa visceral é uma
manifestação menos comum. [7]
A base do tratamento de TVM sem evidência de necrose intestinal é a
anticoagulação que, nos casos em que existe trombofilia subjacente, deverá
manter-se a longo prazo. A Varfarinaé um anticoagulante oral que inibe a
síntese dos factores de coagulação dependentes da vitamina K (factores II, VII,
IX e X e proteínas C e S). As proteínas C e S têm uma semi-vida muito curta e
são as primeiras a ser afectadas pela varfarina. Desta forma verifica-se
paradoxalmente uma tendência pró-trombótica no início do tratamento com
varfarina e que persiste nos primeiros quatro dias.
A varfarina deve ser sobreposta com a heparina nos primeiros dias até obter um
INR entre 2 a 3 em dois dias consecutivos. Este regime visa contrariar a
tendência pró-trombótica inicial da varfarina e a prevenção da necrose cutânea,
que é uma complicação possível durante o início do tratamento com varfarina em
pacientes com défice de proteína C. [7]
Este caso enfatiza a importância do reconhecimento precoce dos estados de
hipercoagulabilidade em pacientes com TVM inexplicada, de forma a intervir
atempadamente e de forma conservadora. A terapia anticoagulante, quando
instituída precocemente, permite resolver a trombose, preservando a viabilidade
intestinal e evitando a necessidade de enterectomia e, ao evitar a recorrência
destes eventos, influencia favoravelmente o prognóstico a longo prazo.
A cirurgia está indicada para os casos em que existe evidência clínica ou
imagiológica de perfuração ou isquémia intestinal. Esta complicação ocorre
geralmente na TVM aguda e o prognóstico correlaciona-se com o comprimento de
intestino remanescente após ressecção. Neste caso clínico, foi necessário
proceder à enterectomia, à semelhança dos poucos casos publicados que
manifestaram estenose intestinal. [4]