Editorial: Cirurgia do cancro da mama: mitos, controvérsias e mudanças de
paradigma
CADERNO ESPECIAL
Editorial: Cirurgia do cancro da mama: mitos, controvérsias e mudanças de
paradigma
Joaquim Abreu de Sousa
Serviço de Oncologia Cirúrgica. Instituto Português de Oncologia do Porto FG,
EPE
Correspondência
O tratamento do cancro da mama tem um objectivo tridimensional: óptimo controlo
local e regional, óptimo resultado estético e máxima redução do risco de
recidiva à distância. A cirurgia conservadora seguida de radioterapia é
considerada a terapêutica apropriada para a maioria das doentes com cancro da
mama em estádios iniciais e durante algum tempo foi consensualmente assumido um
risco de recidiva local depois de cirurgia conservadora de 1% ao ano, no
entanto, estudos populacionais e institucionais recentes demonstram que o risco
de recidiva local depois de cirurgia conservadora é muito inferior ao estimado,
não ultrapassando os 2 a 3% aos 5 anos. Não existe um limiar de risco de
recidiva acima do qual a cirurgia conservadora seja uma contra-indicação
absoluta e a decisão deve ser sempre individualizada. As técnicas oncoplásticas
constituem uma alternativa efectiva para evitar as deformidades ou assimetrias
associadas a grandes ressecções de volume ou a localizações difíceis e nos
tumores de grandes dimensões o uso da quimioterapia neoadjuvante pode converter
1 de cada 3 doentes candidatas a mastectomia elegíveis para cirurgia
conservadora.
A equivalência da cirurgia conservadora à mastectomia em termos de
sobrevivência global está demonstrada há mais de 20 anos em 6 estudos
prospectivos randomizados 1-6, no entanto, a quantidade de tecido normal
envolvendo o tumor que deve ser removido para minimizar a recidiva local
continua a ser fonte de controvérsia. Cerca de 20 a 30% das doentes submetidas
a cirurgia conservadora são reoperadas por margens consideradas insuficientes
7-8, e cerca de 50% destas cirurgias são efectuadas em doentes com margens
negativas, para obter maior margem livre com a esperança de que uma maior
margem reduza o risco de recidiva. Uma meta-análise de 21 estudos
retrospectivos, publicada em 2010, avaliou o efeito da dimensão da margem na
recidiva local em 14.571 doentes submetidas a cirurgia conservadora e
demonstrou que uma margem positiva está associada a um risco relativo de
recidiva de 2.42 (p<0.001), mas não encontrou diferenças com significado
estatístico na taxa de recidiva local associada a margens maiores de 1 mm,
maiores de 2 mm ou maiores de 5 mm 9. Estes resultados não são surpreendentes
porque uma margem negativa não significa ausência absoluta de doença residual
na mama. Mesmo a mastectomia, que em teoria asseguraria as maiores margens de
ressecção, não elimina o risco de recidiva local, o que significa que a carga
tumoral residual não é a única causa determinante da recidiva. A margem deve
ser definida como negativa ou positiva para células malignas e eliminar
arbitrariedades como "margem próxima" ou "margem
insuficiente". Numa revisão de 200 casos de carcinoma ductal in situ,
tratados no IPO Porto entre 2000 e 2005, foram identificadas na margem de
ressecção lesões proliferativas de alto risco, como hiperplasia lobular
atípica, carcinoma lobular atípico e hiperplasia ductal atípica em 26% dos
casos, que se associaram a um maior risco de recidiva local 10. Ainda que não
exista consenso sobre o que fazer com esta informação, se alargar a margem de
ressecção ou efectuar radioterapia ou quimioprevenção, é fundamental uma
mudança na forma como interpretamos a biologia, sendo imprescindível padronizar
a definição de margem adequada, para um uso mais criterioso das reintervenções
para alargamento de margens. O conhecimento da história natural do cancro da
mama aponta para uma complexa interacção entre a recidiva local e o processo
sistémico. Os ensaios clínicos realizados no último meio século demonstraram
que a história natural da doença pode ser alterada por tratamentos eficazes que
reduzem o risco de recidiva local e à distância, e como tal, uma verdadeira
recidiva local não deve ser vista como um evento isolado, mas como reflexo de
um fenómeno sistémico. Numa época em que o tratamento do cancro da mama é
multimodal na maioria dos casos, minimizar a carga tumoral subclínica pode não
ser crítica em determinadas situações. O esvaziamento axilar para doença
micrometastática e doença macrometastática limitada tem vindo a ser abandonado
por muitos cirurgiões. O impacto positivo do esvaziamento axilar na
sobrevivência nunca foi demonstrado, já que foi principalmente usado como
procedimento de estadiamento. No entanto, as suas sequelas a curto e longo
prazo sempre constituíram uma das mais preocupantes causas de morbilidade da
cirurgia do cancro da mama. Por isso a biópsia do gânglio sentinela rapidamente
se tornou parte integrante do tratamento conservador do cancro da mama, ao
evitar o esvaziamento axilar numa grande proporção de doentes, proporcionando
informação suficiente para o orientar o tratamento adjuvante.
A validação da técnica de biópsia do gânglio sentinela no estadiamento
ganglionar está suportada por inúmeros estudos prospectivos randomizados, que
demonstraram resultados equivalentes ao esvaziamento axilar em termos de
sobrevivência global e livre de doença, com uma elevada acuidade, uma baixa
taxa de falsos negativos, a rondar os 7%, e uma taxa de recidiva axilar
surpreendentemente baixa, inferior a 1% 11-12. Paralelamente à expansão da
técnica o método de estudo do gânglio também mudou. Antes da era do gânglio
sentinela cada gânglio era estudado com uma ou duas secções, actualmente o
gânglio é completamente incluído com secções de 2 mm. Como resultado deste
refinamento técnico é frequente a identificação de focos micrometastáticos
(<2mm) ou células tumorais isoladas (ITC) cujo significado prognóstico é
desconhecido. O IBCSG 23-01 foi um estudo de fase 3, especificamente desenhado
para esclarecer se a não realização de esvaziamento axilar não era inferior ao
esvaziamento axilar em doentes com micrometastização do gânglio sentinela.
Depois de um follow-up médio de 5 anos não se observaram diferenças na
sobrevida livre de doença entre o grupo submetido a esvaziamento axilar (84.%)
e o grupo não submetido a esvaziamento (87.8%). A taxa de gânglios não
sentinela positivos no grupo submetido a esvaziamento axilar foi de 13%, mas em
contrapartida a taxa de recidiva axilar no grupo não submetido a esvaziamento
foi inferior a 1% 13. Este estudo confirma definitivamente a impressão de uma
grande parte de cirurgiões, de que o esvaziamento axilar pode ser evitado em
doentes com envolvimento limitado do gânglio sentinela, eliminando as
complicações do esvaziamento, sem impacto na sobrevivência.
Por outro lado, o facto da metastização axilar estar limitada apenas ao gânglio
sentinela em 60 a 70% dos casos, paralelamente à constatação da baixa
incidência de recidiva axilar em doentes submetidas apenas a biópsia da do
gânglio sentinela, comparada com o número presumível dos casos com doença
axilar não ressecada, baseada na taxa de falsos negativos, indica que uma
proporção significativa de casos não progridem para doença clinicamente
relevante. Neste contexto, o American College of Surgeons promoveu um ensaio de
não-inferioridade, prospectivo randomizado, denominado ACOSOG Z11, para
confirmar se o esvaziamento axilar tinha impacto na sobrevivência global em
doentes com gânglio sentinela positivo, submetidas a cirurgia conservadora e
radioterapia14. Os resultados foram impressionantes e considerados o detonador
de uma anunciada mudança de paradigma, e por isso geraram uma enorme
controvérsia. Um cenário similar aos resultados dos primeiros ensaios
prospectivos randomizados que na década de 80 demonstraram que a cirurgia
conservadora era segura. Depois de um follow-up médio de 6,3 anos a taxa de
recidiva ganglionar no ramo que efectuou apenas biopsia de gânglio sentinela
foi de 0.9%, comparada com 0.4% no ramo que efectuou esvaziamento axilar, sem
diferenças na sobrevivência livre de doença ou global. Várias fragilidades
metodológicas foram apontadas ao estudo por sectores mais críticos e ainda que
estes resultados não permitam uma mudança radical da prática clínica, uma vez
que não são aplicáveis a doentes submetidas quimioterapia neoadjuvante, ou
submetidas a mastectomia sem radioterapia, será sensato ponderar se a decisão
de efectuar ou não esvaziamento axilar a doentes com gânglio sentinela positivo
deva estar baseada em impressões individuais ou nomogramas derivados de estudos
retrospectivos, ou em evidencias proporcionadas por estudos prospectivos
randomizados.
O reconhecimento de que o cancro da mama constitui um grupo de doenças
geneticamente diferentes alterou profundamente a abordagem da terapêutica
sistémica, com o status hormonal e o status HER2 a surgirem como os primeiros
determinantes do tratamento, independentemente da carga tumoral, o que supôs
uma verdadeira mudança de paradigma. No entanto, o subtipo molecular de cancro
da mama não é habitualmente considerado no processo de decisão do tratamento
cirúrgico e os critérios de selecção continuam a estar baseados
fundamentalmente na extensão da doença - tamanho do tumor; margens de
ressecção; multicentricidade etc. Sabemos que as doentes com tumores com
receptores de estrogénio (RE) positivos são habitualmente mais velhas e têm
menor probabilidade de apresentar tumores de alto grau de malignidade e que as
doentes com tumores com sobreexpressão de HER2 têm maior probabilidade de
multifocalidade e apresentar tumores com um componente intraductal extenso. Os
tumores triplos negativos têm menor probabilidade de metastização ganglionar
que os tumores com RE positivos. Pelo contrário, os tumores HER2 positivos com
receptores hormonais negativos têm maior probabilidade de apresentar mais de 4
gânglios metastizados16.
Uma crescente evidência científica indica que o risco de recidiva local também
depende do subtipo molecular 17-20. As doentes com tumores do tipo luminal A
(RE e/ou RP positivos, HER2 negativos) têm um menor risco de recidiva local,
enquanto o maior risco é apresentado pelos tumores triplo negativos e HER2
positivos na ausência de tratamento com trastuzumab. Estes achados poderiam
sugerir que estas doentes beneficiariam se fossem tratadas com mastectomia, no
entanto as doentes com tumores triplo negativos e HER2 positivos também
apresentam o maior risco de recidiva local depois de mastectomia e este padrão
persiste mesmo depois de efectuada radioterapia. De facto, o estudo que incluiu
o maior número de doentes com tumores tripo negativos e analisou o risco de
recidiva em função tipo de cirurgia, foi publicado em 2011 e demonstrou que as
doentes com tumores T1 e T2 N0 triplo negativos tratadas com mastectomia
radical modificada tinham um risco aumentado de recidiva local, quando
comparadas com as doentes submetidas a cirurgia conservadora, sem diferenças na
sobrevivência global 21.
O tratamento das doentes com cancro da mama sofreu extraordinários avanços
científicos nas últimas décadas, com uma sucessiva queda de mitos, graças a uma
mudança qualitativa na compreensão da biologia do cancro. A cirurgia tem vindo
a tornar-se mais individualizada com a percepção de que os resultados não são
comprometidos com intervenções menos invasivas, mas o desafio, no futuro
próximo, passa por incorporar no processo de decisão do tipo de tratamento
cirúrgico biomarcadores que orientem terapêuticas mais eficazes e
personalizadas. Se continuarmos a tratar a doença baseados em pressupostos do
passado, sem a criatividade e a inovação necessárias para mudar alguns
paradigmas, poderemos não ver respondidas algumas das controvérsias da
actualidade.