Risco da exposição à radiação ionizante durante procedimentos endovasculares
Introdução
É difícil imaginar a Medicina do século XXI sem a utilização de Raio X. De
facto, desde a sua descoberta em 1895 a sua aplicação diversificou-se por
inúmeras técnicas de diagnóstico e de terapêutica que abrangeram todas as áreas
do conhecimento da Medicina. A Cirurgia Vascular em particular, que cedo
usufruiu desta radiação para a execução de exames angiográficos de diagnóstico,
intensificou nas ultimas duas décadas essa utilização, fruto da generalização
do uso da radiação em exames de diagnóstico a que se associou a capacidade de
tratamento endovascular. Tal intensificação na utilização da radiação X, pode
acarretar efeitos nefastos para a saúde dos profissionais se medidas de
proteção individual não forem consideradas1. Pretende-se com este trabalho,
determinar a quantidade de radiação dispersa emitida por um aparelho de
radioscopia portátil durante a sua utilização no bloco operatório, avaliando a
sua distribuição pelos elementos da equipa, quer quanto à sua posição na mesa
operatória, quer quanto à zona corporal envolvida. Por fim, pretendeu-se
determinar o impacto dos meios de proteção radiológica individual na quantidade
de radiação absorvida.
Material e métodos
A determinação da taxa de dose de exposição à radiação dispersa foi efectuada
em sala do bloco operatório reproduzindo as condições habituais em que decorrem
os procedimentos endovasculares. O aparelho de radioscopia portátil utilizado
foi um Siemens Arcadis Advantic. As medições foram realizadas utilizando um
fantoma para simular um doente padrão posicionado sobre uma marquesa de bloco
operatório convencional, radiotransparente, que permite a realização de
procedimentos endovasculares. O aparelho de radioscopia foi posicionado com a
ampola de raios X debaixo da marquesa. O fantoma é um bloco cilíndrico
constituído por PMMA com 15 cm de espessura e 32 cm de diâmetro, utilizado
habitualmente na avaliação dosimétrica do doente. Por baixo do fantoma foi
colocado um detetor RaySafe Xi R/F para avaliação da radiação incidente no
doente, com o objectivo de medir a taxa de dose de exposição na superfície de
entrada da pele. A radiação dispersa foi avaliada para as posições de
cirurgião, ajudante, anestesista e enfermeira instrumentista. As distâncias do
centro do fantoma ao monitor de radiação dispersa são de 50, 80, 80 e 100 cm
respectivamente. Para cada posição foi medida a taxa de dose de exposição aos
24, 50, 75, 100, 120, 150 e 165 cm de altura ao solo. Para estas determinações
correspondem as distâncias de 75 cm e de 165 cm, à posição das gónadas e do
cristalino, respectivamente, num adulto com 170 cm de altura. A avaliação foi
feita com o monitor de radiação portátil RaySafe Xi Survey Detector com
incerteza na medição da taxa de dose até 10%. O registo da dose foi efectuado
em folha de cálculo Excel, através de software informático próprio que conecta
o detector a um computador portátil. Os modos de fluoroscopia avaliados foram a
fluoroscopia pulsada a 4 qps, a subtração digital e o modo de roadmap. Para o
cálculo do efeito dos meios de proteção individual foi utilizado uma espessura
de 0,5 mm de proteção plumbífera para o avental e de 0,75 mm de proteção
plumbífera para os óculos de proteção.
Resultados e Discussão
A análise dos dados recolhidos permitiu determinar a distribuição da radiação
dispersa pela equipa assistente, constatando-se como nível máximo de radiação
dispersa, a altura ao solo de 24 cm e de 120 cm, a que correspondem num adulto
com 170 cm à altura calculada para as pernas e para o tórax. Se considerarmos a
taxa de dose de exposição à radiação dispersa aos 100 cm de altura como 100%,
no modo de fluoroscopia 4 qps, aos 24 cm e aos 120 cm, cons tatamos valores
quase duplicados de exposição, com 182% e 170% respectivamente (fig._1). Com a
utilização de meios de proteção individual como o avental plumbífero com 0,5 mm
de Pb e óculos de proteção com 0,75 mm de Pb, os valores descem para 2,3% aos
120 cm e 0,3% aos 165 cm, ao nível do cristalino.
A distribuição da radiação incidente no doente que dispersa pela equipa,
durante o modo de Fluoroscopia a 4 qps, traduz valores de exposição com 0,39%
para o cirurgião, 0,26% para o cirurgião ajudante, 0,17% para o anestesista e
0,11% para a enfermeira instrumentista. No modo de subtração digital ou roadmap
a distribuição é de 0,47% para o cirurgião, 0,32% para o cirurgião ajudante,
0,21% para o anestesista, e 0,13% para a enfermeira instrumentista (fig._2).
Embora as percentagens de distribuição se mantenham sensivelmente sobreponíveis
nos dois modos de fluoroscopia, a apreciação dos valores de taxa de dose de
exposição revelam que esta é cerca de cinco vezes superior quando são
utilizados os modos de Roadmap e subtração digital, com consequente aumento
proporcional da exposição por cada elemento da equipa. Também é de notar que,
embora o cirurgião ajudante e o anestesista se encontrem à mesma distância
relativamente ao centro do fantoma, as suas doses de exposição diferem. Este
fato pode dever-se à assimetria do nosso dispositivo experimental tendo em
conta o alinhamento do feixe de raios X com o fantoma, ou ainda, devido ao
efeito anódico presente na ampola de raios X.
A magnificação electrónica, disponível em três modos de intensidade no aparelho
utilizado, permite a ampliação da imagem e é cada vez mais útil à medida que o
tratamento endo vascular envolve vasos de menor calibre. Com a análise dos
dados constatou-se uma diminuição progressiva da exposição à radiação dispersa
em função do aumento da magnificação electrónica. No modo de fluoroscopia
pulsada a 120 cm, com magnificação de Mag 1, 2 e 3, as taxas de dose de
exposição são de 77%, 61% e 43%, respectivamente, do obtido para a mesma altura
sem magnificação em modo de fluoroscopia 4 qps (fig._3). Inversamente a
exposição à superfície de entrada do doente aumenta cerca de três vezes na
fluoroscopia 4 qps e cerca de duas vezes na subtração digital e roadmap, com a
utilização de magnificação Mag3, quando comparada ao mesmo modo de
fluoroscopia, sem magnificação (fig._4).
Se assumirmos que durante um ano o cirurgião realiza cerca de 100 procedimentos
endovasculares, com 25 minutos de fluoroscopia cada, 80% da qual em modo
fluoroscopia 4 qps e 20% em modo de subtração digital, a sua dose anual de
corpo inteiro devido à exposição à radiação dispersa, sem protecção individual,
é estimada em 34,6 mGy. A dose equivalente anual no cristalino sem óculos de
protecção seria estimada em 12,1 mGy.
Com base na lei do inverso do quadrado da distância é possível estimar a dose
de exposição acumulada na mão, ao longo dos mesmos procedimentos. Embora esta
lei não seja respeitada para fontes dispersas de radiação a curtas distâncias,
esta permite obter um valor subestimado da exposição. Definindo uma distância
de 15 cm da mão ao centro do volume de exposição do doente, estima-se a sua
dose anual de exposição à radiação dispersa na mão em 384,4 mGy.
Conclusões
A utilização prolongada de radiação tem efeitos nefastos comprovados na saúde.
A percepção do risco pode influenciar o comportamento na utilização dos
aparelhos de radioscopia e de proteção individual. Segundo as reco mendações da
International Commission on Radiation Protection2,3 os limites de dose
equivalente para o cristalino e para as mãos são de 20 mSv/ano e de 500 mSv/
ano, respetivamente.
Ainda segundo estas recomendações, a avaliação anual do dosímetro de corpo
inteiro permite uma dose efetiva de 6 mSv/ano para o trabalhador categoria B e
de 20 mSv/ano para o trabalhador categoria A.
Da análise dos resultados obtidos determinou-se que, globalmente, os valores de
exposição à radiação dispersa pela equipa são aceitáveis e diminutos se forem
utilizados meios de proteção individual. Em maior risco determinaram-se as
extremidades inferiores, fruto da ausência de cortinas de chumbo na marquesa,
as mãos pela proximidade à ampola e ao campo de exposição e o cristalino, pela
ausência frequente de utilização de óculos de proteção com chumbo. Efectuaram-
se cálculos, tendo em conta hipotéticos modos conjugados de fluoroscopia,
variação da duração e do número de procedimentos. Os valores de dose de
exposição registados encontram-se dentro dos parâmetros aceitáveis, para uma
utilização regular, semelhante à que é usual nos serviços de Cirurgia Vascular.
A dose na mão do cirurgião não foi determinada, por se tratar de um elemento
móvel durante a cirurgia, cuja dose de exposição à radiação pode ser avaliada
com maior precisão através de um dosímetro de extremidade. Contudo a simulação
apresentada permite inferir que é um órgão alvo de dose de radiação não
desprezível, sobretudo em procedimentos longos e que requerem proximidade do
campo de exposição do doente, podendo em casos extre mos, atingir o limite de
dose anual aceitável de radiação. A utilização de luvas com proteção de chumbo
permite uma redução significativa do risco.
O cérebro, enquanto órgão não protegido da radiação, continua sob investigação,
preocupações recentes foram levantadas quanto ao risco de aparecimento de
tumores cerebrais em profissionais com elevada exposição à radiação durante
procedimento endovasculares4.
Se em relação à equipa cirúrgica o risco pode ser minimizado com a utilização
de meios de proteção radiológica, especial preocupação deve ser tida com o
doente.
Procedimentos prolongados, com utilização de magnificação electrónica ou de
subtração digital e roadmap, podem condicionar queimaduras na pele do doente5.
Como meio para diminuir a quantidade de radiação incidente no doente e
consequente radiação dispersa, preconiza-se a aproximação do intensificador de
imagem ao doente e o controlo eficaz do tempo, modo de fluoroscopia e
magnificação.
Só uma monitorização dos valores de radiação e da adequação dos meios de
proteção radiológica pode permitir condições de segurança para a equipa médica
e para o doente.
Os autores reconhecem como limitação do estudo o fato das doses avaliadas de
radiação dispersa se referirem a posições estáticas da equipa assistente e por
conseguinte estarem subvalorizadas se ocorrer aproximação do elemento à ampola
de raio X. A utilização da ampola durante procedimentos endovasculares em
doentes produzirá doses de radiação dispersa variáveis consoante o tipo de
tecidos ou órgãos envolvidos, que podem divergir dos valores obtidos com a
utilização de um fantoma.
Deve ser reconhecida que a utilização de magnificação electrónica e de modos de
subtração digital e roadmap aumentam consideravelmente a taxa de dose de
radiação incidente no doente. A ampliação da imagem, recorrendo à magnificação
electrónica, aumenta a taxa de dose de exposição na superfície de entrada da
pele do doente e reduz a radiação dispersa pela equipa assistente. Sempre que
possível, deve ser dada preferência à utilização da fluoroscopia pulsada pois
permite reduzir a taxa de dose de exposição na superfície de entrada da pele do
doente e consequentemente a radiação dispersa pela equipa assistente.