Barcelona(s)
Cidade dos projectos ou projectos Da cidade?
I. reflexão a partir das recentes Dinâmicas urbanas DE
Barcelona
Em 1994 a Finisterra dedicava um número ao sector terciário em resultado
das transformações económicas e sociais nas aglomerações urbanas a partir das
suas cidades-base: Lisboa e Barcelona (Barata Salgueiro e Carreras, 1994: 1).
A internacionalização das economias, a terciarização e a competição entre cidades e a produção do espaço urbano, resultantes da apropriação do território pelas
pessoas e organizações, eram então um tema inevitável. Atenta ao processo de
terciarização da economia, ao aparecimento de novas formas de comércio, promoção imobiliária, turismo e consumo, a pesquisa geográfica deixava clara a
urgência em compreender a dinâmica da capital da Catalunha no processo de
internacionalização da sua base produtiva, para equacionar as perspectivas que
se colocavam a Lisboa. Dada a abrangência das transformações em curso, as
alterações nos modos de vida e hábitos de consumo estiveram então no centro
das atenções, procurando-se compreender as lógicas do planeamento e das instituições, elementos-chave dos processos de mudança em Barcelona e críticos
para a sua visibilidade no exterior. O notável reconhecimento internacional
daquela cidade, marcadamente sentido nas décadas de 1980 e 1990, bem como
as suas características urbanísticas e geográficas tornaram-se um referencial para
muitas, entre elas, Lisboa.
Esta orientação da investigação geográfica resulta dos processos de
transformação da economia mundial que se observam nos finais do século
passado e se acentuam no século XXI, despoletando fenómenos de metropolização e, com eles, um reforço económico e financeiro dos centros de
“comando mundial” (Sassen, 1991). Neste novo milénio, as cidades europeias
saem de uma longa e intensa fase de crescimento ligado à industrialização do
pós-guerra e procuram responder aos desafios resultantes das modificações profundas do contexto económico, social e ambiental. Por isso as políticas das
cidades tornam-se mais ambiciosas e definem-se estratégias para aumentar a sua
atractividade (Queirós, 2009).
Assim se explica porque, dezasseis anos volvidos, este assunto permanece
central na pesquisa geográfica. Barcelona, como Lisboa, «teve o privilégio de
nascer com miradouros naturais e de ter os pontos cardeais desenhados pela
geografia» (Vásquez Montalbán, 1990: 12). Diz-nos, pois, este autor que a sul,
o Mediterrâneo e os rios Bèsos e Llobregat, e a norte, a barreira de Collserola,
onde se destaca Tibidabo, sinalizam referenciais que Hércules visionou quando
ali chegou, segundo conta a lenda. Os primeiros habitantes destas terras cobertas por pequenas colinas (como Monterols ou a Muntanya Pelada) dominavam
todos os caminhos, por mar ou por terra. Assim como Barcelona reclamou um
olhar de Hércules para nascer, Lisboa buscou Ulisses na lenda das suas fundações.
Cerzindo o horizonte da cidade, as sete colinas a norte (como a de S. Jorge ou
de S. Vicente), e o estuário do Tejo que se funde com o oceano Atlântico, a sul,
revelam uma povoação com uma localização estratégica privilegiada, que culminou num importante porto comercial. Suficientemente bem situadas para se
desenvolverem e beneficiando de condições climáticas suaves, o crescimento
urbano revela a sua evolução que, em ambos os casos, viria a compactar-se pelas
colinas, cobrindo um território onde a natureza e a paisagem seriam fortes aliadas das suas populações.
Busquets (2004) considera Barcelona o protótipo de uma cidade europeia
mediterrânea, em termos de densidade, compacidade e crescimento, características formais e processos de transformação histórica. Em Barcelona percepciona
‑se um tempo solidificado (Busquets, 2004: 18); os seus mais de 2000 anos de
história estão incrustados no tecido urbano, revelando-se certos períodos mais
criativos e inovadores do que outros, com projectos capazes de sobreviver a
várias gerações, como o Eixample de Ildefonso de Cerdà (Busquets, 2004; Capel,
2005; Degen e García, 2008). No plano imaterial, Muñoz (2008b: 165) e Degen
e García (2008: 22) acrescentam o estilo de vida mediterrâneo associado ao
imaginário de mediterraneidade.
Em cada cidade, em cada projecto urbano, encontramos expressões do poder,
riqueza, conflitos e debilidades dos seus mentores e construtores. Descobrimos
também processos específicos da sua evolução e história cívica e outros projec-
tos que são seguidos ou participados por muitas outras cidades. Centrando a
atenção nos períodos mais recentes da história de Barcelona, as estratégias ligadas a grandes projectos mundiais associaram-se a eventos culturais, redefinindo
formas urbanas, impulsionando a economia da cidade e a reflexão sobre um
urbanismo crítico. São exemplos dessa transformação as intervenções na cidade
a propósito das Exposições Universal de 1888 e Mundial de 1929 e, já no
período posterior à restauração da democracia, os Jogos Olímpicos de 1992 e,
em 2004, o Fórum Universal das Culturas. Do conjunto dos grandes eventos, as
olimpíadas possibilitaram prestigiosas realizações, que atestam a capacidade de
renovação da cidade através da recriação de uma imagem atractiva, dinâmica e
competitiva (Capel, 2005; Borja, 2009; Queirós, 2009).
Perante o horizonte dos Jogos Olímpicos de 1992 – de acordo com Capel
(2005), propostos em 1981 –, as transformações ocorridas nos finais dos anos
80 em Barcelona, sob um forte protagonismo da obra pública, reformaram a
cidade e abriram‑na ao mar, completaram a urbanização de Montjuïc, renovaram
estruturas dos serviços subterrâneos e fecharam o anel de “rondas” (Dalt, Litoral), permitindo uma redistribuição do intenso tráfego metropolitano. Esta remodelação uniu o poder público com visão de futuro, capacidade de captação e de
gestão de recursos, com a concepção cultural e arquitectónica adequada, nutrindo
as ideias e projectando o desenho urbano, produzindo uma transformação memorável. Depois dos Jocs Olímpics, o Fórum das Culturas, inaugurado em 2004,
iria ampliar a recuperação da frente litoral, associada ao restabelecimento ambiental de uma zona decadente junto da foz do rio Bèsos, possibilitando a implantação de uma nova marina e edifícios de exposições e congressos (Capel, 2005)
e, mais recentemente, a iniciativa 22@.
Políticos e arquitectos de Barcelona foram os protagonistas das referidas
mudanças (Moix, 2002; Muñoz, 2008b). Com eles, e com o apoio dos poderes
económicos instituídos na Catalunha, deu-se início a uma nova etapa nas dinâmicas socioeconómicas da cidade e da área metropolitana. As actuações de
reordenamento urbanístico permitiram o desenvolvimento do sector dos serviços
e proporcionaram uma crescente internacionalização da base produtiva, postulando-se um modelo económico num novo contexto pós‑industrial. Um contexto
centrado no comércio e nos serviços avançados com elevada produtividade,
evidenciando uma alteração de rumo no trajecto da história da cidade, em direcção a uma economia do conhecimento (Busquets, 2004; Clua e Albet, 2008).
Porém, a estrutura profissional e política que consubstanciou a regeneração de
Barcelona nos anos 90 chegou ao seu termo, tendo a iniciativa pública começado
a diminuir, passando a fazê-lo com evidentes mais-valias para as empresas privadas.
Lisboa viveu um momento análogo e oportunidades e debilidades comparáveis. Na década de 1990, no limite oriental da cidade, junto ao Tejo, uma área
urbana em degradação crescente foi alvo de um conjunto de operações económicas e intervenções urbanísticas, sob o pretexto de alojar uma exposição internacional, a Expo’98. Este evento simboliza em Portugal um momento
memorável de regeneração urbana, recuperação ambiental e paisagística e um
motivo de orgulho nacional. Sob o pretexto de um evento internacional, Lisboa
mostrou vitalidade cultural e apresentou ao mundo a capacidade da arquitectura,
desenho, engenharia e construção nacionais, no edificado estruturado que ergueu
num terreno industrial decadente. Melhorando uma parte do estuário do Tejo,
um importante património para o futuro foi reciclado, recompondo a dinâmica
metropolitana da capital (Gaspar, 2008).
Depois deste evento, na década de 2000, inicia-se uma outra história, que
a renovada imagem, as novas infra-estruturas e acessibilidades e as sinergias
iniciadas, facilitaram. A cidade conheceria uma nova trajectória de operações de
renovação, através de inúmeros projectos – previstos e em curso – de intervenção urbanística, de valorização e requalificação de edifícios e de áreas emblemáticas da cidade, como a Frente Ribeirinha da Baixa Pombalina, a Matinha, a
Ribeira das Naus, o terminal de Cruzeiros, o desnivelamento do nó de Alcântara,
o Capitólio do Parque Mayer, o projecto de instalação do centro cultural dedicado
à arte africana contemporânea (Africa.Cont), o novo Museu dos Coches, a Fundação Champalimaud… Este conjunto de intervenções tem como objectivo
recuperar o papel histórico e simbólico de certos sectores da cidade, restituir
aos cidadãos espaços públicos de qualidade e criar uma “marca cosmopolita”
(www.frentetejo.pt/; www.cm-lisboa.pt/). Esta dinâmica comporta assumidamente
a valorização arquitectónica, ambiental e paisagística, a promoção da cultura e
a dinamização turística de Lisboa (www.frentetejo.pt/; www.cm-lisboa.pt/).
De forma similar à vivida em Barcelona nos anos 80-90, os projectos em
curso em Lisboa retratam o bom entendimento entre a política, a arquitectura e
a cultura. Também em Lisboa, após o impulso da última exposição mundial do
século XX, o colectivo – mormente representado por políticos e arquitectos – abre
de novo os limites fechados da capital para o rio, a área metropolitana, o país e
o mundo. Este novo relacionamento é uma consequência da deslocalização
industrial e da decadência das funções portuárias: finalmente, as grandes obras
públicas vão centrar‑se na recuperação do património, na eliminação das barreiras que separam os cidadãos do rio, devolvendo qualidade ao espaço público,
procurando desenvolver o turismo, abrindo a cidade aos visitantes e associando‑a
a eventos culturais. Esta viragem é acompanhada pelo fortalecimento de Lisboa
na sua relação com a Europa e o mundo, sobretudo com o “Sul global”.
Assim como sugere o tema central da Expo’98, sobre os oceanos, a diversidade e função essencial de Lisboa no equilíbrio planetário, os projectos em
curso (e a iniciar), que se estendem do centro histórico à frente ribeirinha
oriental, sul e ocidental, traduzem-se em operações de regeneração urbanística,
no resgate do património e no relançamento da economia urbana, procurando
uma imagem equilibrada e diversificada da cidade, uma projecção internacional
e a sua devolução à população. Estas ideias estratégicas são acentuadas no novo
Plano Director Municipal de Lisboa, que aposta na valorização da frente ribeirinha como expoente da imagem da cidade, o seu ex-libris (Expresso, 17/07/2010).
O campeonato europeu de futebol em 2004, a entrada de Lisboa no destino das
companhias de aviação low cost e uma oferta hoteleira ampliada, converteram
a capital na principal atracção turística do país. Ao pacote de eventos internacionais de que Lisboa tem sido palco, junta-se a assinatura do Tratado de
Lisboa, a Cimeira UE-África em 2007, a cimeira Luso‑Brasileira em 2010 e a
cimeira da NATO, bem como a Volvo Ocean Race com a regeneração da doca
de Pedrouços.
A dinâmica económica do período “pós-Expo” perdeu, todavia, o seu fulgor
nos finais de 2000 o que obrigou, tal como aconteceu em Barcelona, a renovadas
e engenhosas parcerias público-privadas. É precisamente porque nos encontramos
num momento de crise económica, de endividamento e de níveis elevados de
desemprego que existe o risco do “fecho” das perspectivas de expansão e de
regeneração da cidade, ou do condicionamento dos poderes públicos perante os
interesses privados; por isso, importa olhar de novo para Barcelona e procurar
aprender com a sua experiência. Como diria Busquets (2004), aprender na perspectiva das oportunidades e das debilidades, alertando para as circunstâncias
históricas singulares da experiência de Barcelona correspondentes à recuperação
da democracia, ao importante papel das associações de “vizinhos”, à relação
frutuosa entre políticos, arquitectos e engenheiros e à dimensão operativa do
urbanismo; ou, como previne Capel (2005), aprender na perspectiva optimista e
realista. Quer com isto dizer o autor que é possível mudar uma situação de
grandes défices urbanísticos, ou seja, «há sempre solução para os problemas das
grandes cidades, mas isso exige tempo e determinadas condições sociais, económicas e políticas» (Capel, 2005: 21).
Busquets e Capel são unânimes em afirmar que não há modelos gerais e,
portanto, «o que se passou em Barcelona não serve para copiar para fora da
cidade» (Capel, 2005: 25). No entanto, a experiência de Barcelona deve ser
conhecida porque, e resumindo Busquets (2004: 352-354), neste caso as actuações se caracterizaram por uma alteração da escala de intervenção dos projectos
(assente em grandes projectos urbanos), que passaram a ser integrados (sectorial
e territorialmente), e pelo facto da liderança das intervenções, apesar de pública,
surgir em parceria com o sector privado. Esta mudança de regime de actuação
engloba aspectos tão diversos como: um desempenho que implica a participação
popular e a coesão social; a capacitação que a melhoria do espaço público traz
no processo de desenvolvimento social e económico; a descentralização municipal com a cooperação da administração pública, universidades e empresas
privadas; e a gestão integrada da mobilidade e o planeamento estratégico, entre
outras dimensões.
Ao interpretar Barcelona como um laboratório urbano e social, fruto de
um urbanismo entendido como projecto, estamos perante um referencial empírico, integrado, e centrípeto (Montaner, 2004), onde a renovação, iniciada nos
finais dos anos 1980 e durante os anos 90, produziu um salto qualitativo derivado do talento dos técnicos municipais, gestores e políticos que nela intervieram. Este argumento forte explica que o referido laboratório seja um objecto
de estudo apaixonante. Tendo‑se tornado um ícone dos processos complexos
de planeamento e de construção continuada de uma cidade, serve de lição para
outras cidades que, do ponto de vista do método e da gestão, muito podem
aprender – mesmo que o modelo não seja perfeito, já que o debate intelectual
e as críticas recorrentes apontam para um défice de discussão aberta com os
actores sociais, uma carência de componentes para um “urbanismo verde”, e
os limites da fórmula barcelonesa, muito centrada na cidade municipal esquecida da Barcelona metropolitana (Monclús, 2003; Trenc, Cebollada e MirallesGuasch, 2008).
Este laboratório (a cidade) coloca a descoberto um tema igualmente importante, já que ela surge como “actor político”, o que significa que estão a aparecer novas formas de fazer política de cidades. Com a globalização, essas
políticas sofreram uma transformação nos seus objectivos, descurando o bem‑estar e a política social, para se concentrarem em temas como a estratégia económica e a competitividade o que lhes permite manterem-se na cena global (Degen
e García, 2008).
II. A CULTURA “DO PROJECTO URBANO” eM Barcelona como
motor dE governança
Importa fazer uma reflexão sobre a importância da estratégia territorial nas
transformações recentes em Barcelona; com efeito, o planeamento estratégico
constituiu o dispositivo organizador das actuações, inicialmente da cidade e
depois da área metropolitana. Barcelona é hoje o centro nevrálgico de uma rede
de cidades. A sua economia de serviços está em processo de expansão, embora
ainda com forte representação da indústria, a base económica tradicional da
cidade e da sua envolvente metropolitana.
A constatação da realidade metropolitana induziu a necessidade de planear
um território que vai muito além das fronteiras administrativas da cidade (Neves,
1996; www.cideu.org). Assim, em 1988 constituiu-se a associação do plano
estratégico de Barcelona, em 1990 dava-se início ao primeiro Plano Estratégico
de Barcelona (PEB) seguido, em 1994, pelo segundo PEB e, em 1999, pelo
terceiro PEB, marcando uma fase de actuação abrangendo exclusivamente a
cidade de Barcelona. Numa segunda fase, o PEB alarga a sua área de acção,
incluindo nela o território metropolitano e, em 2003, era aprovado o primeiro
Plano Estratégico Metropolitano de Barcelona (PEMB); este foi revisto em 2007
e desde 2008 está em vigor um Novo Modelo de Desenvolvimento da AMB
(www.bcn2000.es).
Actualmente, o PEMB é feito por uma associação privada sem fins lucrativos promovida pelo Ajuntament de Barcelona (Câmara Municipal de Barcelona),
integrando os 36 municípios da área metropolitana. Congrega os interesses de
mais de 300 instituições públicas e privadas, que actuam na área metropolitana:
Câmara de Comércio, Círculo de Economia, União Geral dos Trabalhadores da
Catalunha, Universidade de Barcelona, Feira de Barcelona, Consórcio da Zona
Franca de Barcelona, Porto de Barcelona, Governo Regional Autónomo da Catalunha, Conselhos Comarcais, Entidade Metropolitana de Transportes e de
Ambiente,… (www.cideu.org). O PEMB constitui um documento orientador dos
investimentos estratégicos de desenvolvimento (infra-estruturas; comunicação;
ambiente; urbanismo; investigação; etc.), da cidade e da região envolvente,
orientados por um modelo e uma visão para um horizonte alargado (2020), que
se prevê concretizar através de cinco eixos (governança e redes; referência global;
qualidade social; infra‑estruturas; sustentabilidade). Os consensos surgem em sede
de um fórum, onde se debatem ideias e políticas. Na actualidade, estão em curso
cerca de 80 projectos estratégicos metropolitanos classificados por “blocos” (em
sintonia com os eixos): conhecimento; mobilidade e acessibilidade; promoção de
sectores estratégicos, infra‑estruturas e equipamentos de impacto urbano; sustentabilidade e ambiente; urbanismo e coesão social (www.bcn2000.es). A metodologia de trabalho da associação (municípios e outras instituições públicas e
privadas) baseia-se em consensos, na liderança partilhada e na cooperação entre
os actores que participam no desenho das estratégias.
Igualmente interessante é verificar que desde o primeiro PEB «a atribuição
de recursos se orientou a partir dos projectos e não dos planos» (Muñoz, 2008b:
153). Monclús (2003) afirma que a cultura do projecto urbano se manifesta logo
nas primeiras publicações do Ajuntament, nos anos 1980. A actuação por projecto,
também apontada como característica da política urbana daquela época por
Muñoz (2008b), baseou‑se em coligações entre os sectores público e privado,
como um reconhecimento mútuo da importância da vontade política no estímulo
à esfera económica da cidade, desenvolvendo uma cultura de confiança e catalisando o envolvimento dos cidadãos. Estes consensos facilitaram, por sua vez,
o planeamento estratégico. Segundo Degen e García (2008), o modelo em que
todos se reconheceram ficou estabelecido no terceiro Plano Estratégico de Barcelona (PEB) sendo a cumplicidade entre actores essencial, como se verificou
nos acordos entre a câmara do comércio, os sindicatos e as entidades patronais,
para a implementação de diversos projectos de infra-estruturas de transportes.
Na qualidade de presidente da Fundación Ciudadania y Buen Gobierno e
director das Estratégies de Qualitat Urbana, Pascual i Esteve (2007: 93) define o
planeamento estratégico de Barcelona como uma operação específica centrada no
desenvolvimento socioeconómico que se inscreve num contexto de uma nova forma
de governar a cidade e o município, e que aprofunda a democracia, assente na
sustentabilidade ambiental, equidade social e crescimento económico. Na sua
perspectiva, uma das grandes inovações do planeamento de Barcelona é o carácter
integrador da actuação urbanística – transversal e territorial – resultante da cooperação institucional pública e privada e da participação cidadã (Pascual i Esteve,
2007). Esta concepção de plano estratégico constitui uma das formas de desencadear a governança territorial, através de um novo tipo de modelo de gestão do
território: a gestão relacional ou de redes. Para que esta fosse possível foi necessária a identificação dos projectos estruturantes da transformação urbana, na perspectiva de construção colectiva do território e com amplo reconhecimento social.
Mais notável ainda na experiência do planeamento estratégico de Barcelona,
é um trabalho de desenho e recuperação arquitectónica e urbanística, que se
desenvolveu num processo concomitante e consecutivo em diferentes escalas,
que Busquets (2004: 350-411) identifica e agrupa segundo três blocos de actua
ção: reabilitação urbana, associada a actuações de menor escala e que reflectem,
quer uma intervenção em espaços urbanos, livres e espaços verdes, quer uma
actuação por partes; a reestruturação urbana, que implica estratégias de maior
alcance, relacionadas com a rede viária e a as áreas de novas centralidades; por
fim, as chaves estruturais da forma urbana de Barcelona.
De acordo com Busquets (2004), no primeiro bloco, são exemplos materiais,
o parque urbano el Clot, a praça Salvador Allende, ou a avenida de Gaudí. Merece
ainda uma especial referência a recuperação da Rambla de Poblenou e da Ciutat
Vella (El Raval, Santa Caterina e Barceloneta2). No segundo bloco incluem-se
as transformações relacionadas com projectos viários, conhecidos por nó da
Trinitat, Rambla de Prim, Moll de la Fusta, Via Júlia, Praça das Glories e as
Rondas, bem como, na posição de centros, a Rambla e a Via Llaietana, a praça
de Sant Jaume, e também o “quadrilátero” plurifuncional (Montaner, 2004)
formado nas extremidades pelas áreas olímpicas (o Anel Olímpico na parte alta
de Montjuïc, a Vila Olímpica junto da cidadela – Ciutadella) e que avança em
cunha para a frente de água da cidade, o Vall d’Hebrón no norte da cidade e a
Área Diagonal que sistematiza os espaços circundantes da área desportiva privada
da cidade; na área metropolitana foram feitas, entre outras, intervenções nas
cidades de Sabadell e Badalona. No terceiro bloco, cabem por exemplo, obras
de grande repercussão para a imagem da cidade, como a construção da Vila
Olímpica ou a abertura da Diagonal até ao mar, favorecendo a reorganização de
extensas áreas anteriormente industriais (Oliva, 2003).
Daqui redunda uma outra característica do planeamento estratégico que
Busquets (2004) assinala, ao considerar que todas as intervenções resultaram de
um processo de actuação em diversas escalas que, de certo modo, se sobrepuseram e se sucederam. Completar a forma da cidade resolvendo as suas defi
ciências, configurar o quadrado urbano (área olímpica) segundo uma lógica
simultaneamente multifuncional e de especialização urbana (mas que no futuro
se converteria em áreas de serviços de toda a cidade), planear vias de conexão,
renovar elementos aglutinadores, bem como conceber as “áreas de nova centralidade” (segundo Montaner, 2004, ideia promovida por Joan Busquets em 1987)
foram as intervenções essenciais em Barcelona até às olimpíadas, seguindo uma
gestão multiescalar e multiactores.
Conforme Pascual i Esteve (2007) e Degen e García (2008), na base do
planeamento deste tipo de operações especiais, a cidade é equacionada, por um
lado, como “uma empresa” (a cidade empresarial de Asher, 1995), já que os
gastos públicos e particularmente os municipais são desacelerados, dando origem
ao new management como estratégia central da administração pública (criando
uma visão, partilhando o poder, construindo redes de relações, liderando as
acções,…). Por outro lado, surge dominante uma cultura de projecto centrada
nas infra-estruturas e serviços de comunicação e de informação (na economia
do conhecimento), tidos como os motores do desenvolvimento social e económico.
A cultura de projecto associa-se, como referido, a um modelo relacional de
gestão urbana.
Convém lembrar que o papel tradicional da administração pública enquanto
garante do bem-estar, provedora de recursos, equipamentos e serviços públicos
se alterou nos anos 1980, ao surgirem unidades de gestão municipal mais autónomas, dotadas de objectivos específicos e de pressupostos de descentralização
territorial dos processos de decisão. Na década seguinte, emergem mais alterações,
com a introdução de critérios de gestão empresarial dos assuntos públicos e, em
especial, de empresas privadas na gestão dos serviços públicos, criando-se mercados para alguns dos serviços municipais (Queirós, 2002; Pascual i Esteve,
2007). Em resultado, actualmente, na maioria dos municípios, quer em Espanha
quer em Portugal, são práticas comuns a contratação externa de serviços municipais, a cooperação das administrações públicas municipais com a iniciativa
privada, bem como a cultura da competitividade dos serviços públicos orientados
para a eficiência, a qualidade e a prestação de contas ao cidadão, numa lógica
de proximidade. A empresarialização dos serviços públicos associa-se a entidades de capital de risco ou capital de semente, com um modelo de financiamento
misto de grandes infra‑estruturas e equipamentos públicos (Pascual i Esteve,
2007). O planeamento estratégico, iniciado em Barcelona há mais de 20 anos,
é assim o fruto das alterações que se observam na “nova” gestão pública, no
exercício das suas funções – promotora e organizadora – de construção colectiva
do território.
Por tudo o que ficou exposto, a cultura de projecto e o processo de planificação estratégica iniciado com o primeiro PEB foram eleitas “boas práticas”
para aplicar nas cidades latinas, americanas e europeias (Moix, 2002; Busquets,
2004; Capel, 2005; Pascual i Esteve, 2007). Segundo Pascual i Esteve (2007:
101), a transformação liderada pelo Ajuntament conseguiu «converter uma cidade
pouco conhecida numa cidade de vanguarda ao nível mundial»; o modelo de
gestão das transformações desta cidade é motivo de estudo por parte de outras
que almejam o mesmo protagonismo. Tal como Capel e Busquets, também Pascul i Esteve adverte que o que deve ser copiado é a capacidade para adoptar
uma metodologia própria e adequada à situação económica e social de cada
cidade.
Merecem ainda reflexão alguns aspectos singulares que estimulam a cultura
de projecto, que se observa em Barcelona: crescimento económico e recursos
próprios, forte dinamismo populacional com acentuada imigração nacional e de
países terceiros, emergência da sociedade de informação, projecto de futuro e
de internacionalização e competências históricas da Câmara Municipal com
grande protagonismo e tradição reconhecida de planeamento urbano (existe desde
1974 um Plano Geral Metropolitano, PGM) e marketing. «A reinvenção de
Barcelona não tem nada de novo» já que no historial da cidade existe um vasto
acervo de acontecimentos culturais de desenvolvimento da paisagem urbana
(Degen e García, 2008: 11). A grande transformação ocorre porque a cidade
deixa de ser um centro de produção para se converter num pólo de consumo.
As autoras afirmam que a comercialização de Barcelona girou em torno do
desenho, arquitectura e forma de vida associada ao “estilo mediterrâneo”. Muñoz
(2008a e 2008b) chamou‑lhe processo de “brandificação”, um arquétipo do
modelo de cidade mediterrânea, “pós‑moderna”, eficiente, tecnológica, sustentável, social e culturalmente avançada. Uma outra das suas particularidades é a
capacidade dos seus actores encetarem projectos adaptados ao contexto na economia global (Queirós, 2009). Barcelona tem procurado que as estratégias de
transformação territorial, como se afirma no mais recente PEMB, assentem em
lógicas «desde los proyectos y la acción estratégica» (www.bcn2000.es).
O PGM de 1974 pressupunha uma ordem territorial a partir da regulação
dos espaços públicos, em particular, visando melhorar o sistema de transportes
e as zonas verdes; graças à sua qualidade, e apesar de modificações sucessivas,
a sua essência não foi alterada (Degen e García, 2008). Com ele financiaram-se
pequenos e grandes projectos, como a qualificação de bairros ou os jogos olímpicos. Um outro aspecto marcante do planeamento em Barcelona é que atendendo
aos recursos limitados, as reformas foram feitas com o auxílio dos Planos Especiais de Reforma Interna (PERI) que permitiram, na maioria dos casos, a participação de associações de moradores no desenho das áreas afectadas, estimulando
as identidades de bairro. Já no que se refere ao projecto olímpico, planeou-se
uma dupla estratégia de ampliação do papel da cidade na economia global, e na
afirmação da vocação de liderança metropolitana, ao mesmo tempo que se implementaram projectos transversais e integrados, como o que se verificou em toda
a frente marítima.
O êxito do projecto integrador da construção da vila olímpica, ou o da
regeneração da Ciutat Vella (e muitas outras intervenções já referidas), deve-se
ao facto de serem projectos que, segundo Cohen (1998), se fundaram numa
ruptura consciente com o planeamento funcionalista (fig. 1). Assim, os projectos
em Barcelona passaram a estar centrados em praças, ruas e bairros, em vez de
em espaços públicos, de circulação e zonas de habitação; em seu entender,
Barcelona tornou-se num “cemitério” para os conceitos simplificadores do urbanismo da Carta de Atenas. Cohen (1998) chama ainda a atenção para outro
detalhe: o “tempo” dos projectos de Barcelona é outra das suas características
singulares por escaparem aos ciclos políticos dos mandatos eleitorais, integrando
temporalidades bem maiores. Cohen, concretizando e antecipando Busquets,
Capel e Pascul i Esteve, conclui que as fórmulas utilizadas em Barcelona podem
ser repetidas e as estratégias urbanas reproduzidas; o que não é transportável é
esta integração entre a cultura arquitectónica e a identidade colectiva. Estamos,
por isso, perante uma experiência colectiva, um modelo não formal ancorado na
democracia urbana local, capaz de reajustamentos recíprocos e sem renúncia às
competências respectivas.
Retomando Pascual i Esteve (2007), o processo de planeamento estratégico em Barcelona é feito em colaboração, o que constitui uma sólida base
para o desenvolvimento da governança urbana. Assim, Barcelona – entre
diferentes entendimentos e perspectivas sobre a cidade, construindo e consolidando pontes (Seixas, 2008) – dispõe de prática em gestão de redes de
actores e de projectos complexos, bem como experiências de relacionamento
com a sociedade civil organizada. A par de um planeamento estratégico
integrado, ainda se desenvolveram planos estratégicos sectoriais, como o
plano da cultura, o projecto educativo para a cidade, o plano de desporto, o
plano de serviços sociais e o plano de turismo, revelando a capacidade para
multiplicar instrumentos de planeamento. E os planos estratégicos foram
postos em prática e associaram-se a entidades para elaborar e gerir as estratégias urbanas; estas instituições alargaram o leque de representantes nos
processos de decisão e, em contrapartida, impulsionaram a gestão estratégica
no governo da cidade. Porém, necessitaram de um forte reconhecimento das
administrações públicas e ganharam legitimidade, à medida que nas estratégias de desenvolvimento da cidade também participaram os cidadãos – se
bem que nem sempre com grande fluidez e encapsulando tensões sociais
(Cruz-Gallach, 2008).
III. DESAFIOS POSTERIORES AOS JOGOS OLÍMPICOS de barcelona
O projecto “especial” dos Jogos Olímpicos de Barcelona surgiu ainda nos
anos 1980, como uma oportunidade de renovação, um esforço de cooperação
entre sectores, tendo-se encetado novas formas de gestão urbanística (por exemplo, criação de órgãos específicos) com atributos de uma organização mais eficiente. Barcelona tornou-se um destino turístico e um enclave cultural de
referência (Garcia-Ramón e Albet, 2000). Todavia, no contexto pós‑olímpico,
em meados dos anos 1990, a posição de Barcelona, como centro da economia
financeira e de serviços no ranking de cidades era frágil (Degen e García, 2008).
Alguns autores são de opinião que o modelo seguido até ao culminar das olimpíadas veria terminados os seus dias na década de 2000, perdendo a sua homogeneidade, coerência e equilíbrio territorial, atributos baseados nos elementos
conceptuais de renovação do desenho, arquitectura e urbanismo da cidade; nas
palavras de Montaner (2004), perdeu‑se a anterior capacidade para interpretar e
gerir a cidade o que remete para a questão que se refere aos “limites” do modelo
(Casellas, 2006).
Nos anos 80, a actuação em cada área específica transformou a cidade,
cosendo os limites entre os fragmentos urbanos, obtendo-se uma «continuidade
urbana, sem que se tenha elaborado um plano urbanístico a priori» (Muñoz,
2008b: 153). Porém, aos poucos, os objectivos fixados pelas políticas urbanas
na transição democrática foram sendo substituídos por processos de regeneração
de grandes sectores urbanos. Em lugar da intervenção assente na “sutura” entre
bairros, surgem os projectos temáticos de grande escala para criação de centralidades urbanas, dando lugar ao que Muñoz (2008b) identifica como mudança
de ciclo no que respeita ao pensar e intervir na cidade.
Desde então, as intervenções efectuadas em Barcelona são apontadas como
objectos sem relacionamento entre si, efeito de decisões e intervenções opacas,
porque não resultam do consenso e do debate público. Montaner (2004) associa
esta fase a um urbanismo difuso, fragmentado, inacabado e inexplicável. Vai
mais longe na crítica, ao esclarecer que a tendência que se observa nas intervenções do Ajuntament é a de privilegiar a grande escala de implicação, associada
a operações controladas por grandes empresas privadas, revelando a incapacidade
de se impor e escutar as reivindicações dos movimentos sociais. Na sua opinião,
a excepção a este urbanismo obscuro salpicado por objectos isolados é o plano
22@, em Poblenou (que à frente se apresentará), que se implementa de forma
flexível e se adapta à morfologia existente e ao passado industrial e social do
bairro (Montaner e Muxí, 2002; Montaner, 2004).
Mas o expoente máximo da alteração de direcção do “modelo Barcelona”
é – também apontado por Capel (2005) – conotado com o Fórum das Culturas,
em 2004. Montaner e Muxí (2002: 264) estabelecem uma analogia que por si
explica a crítica: de uma «cuidadosa acupunctura num tecido urbano para uma
metodologia de aplicação de prótese de proveniência estranha». A área de
intervenção que corresponde ao referido projecto encontra-se no limite oriental da cidade, numa frente marítima, de 180 ha perto da foz do rio Bèsos, onde
também se localizam uma estação de águas residuais, duas centrais termoeléctricas, uma incineradora de resíduos urbanos e um bairro crítico pelo seu
isolamento e marginalidade social, conhecido por la Mina. Nesta área do edifício do Fórum encontram-se actualmente o Centro de Convenções e de Congressos de Barcelona (com capacidade para 20 mil congressistas), o centro
comercial Diagonal Mar, e edifícios (arranha‑céus) de hotéis, escritórios e
habitação de luxo (fig. 2).
Com este projecto pretendia-se encerrar algo iniciado com as olimpíadas,
dando‑lhe uma vocação cultural e integrando ao mesmo tempo equipamentos
ambientais situados no limite da cidade. Esta intervenção não sutura partes
fragmentadas da cidade, pois altera profundamente a paisagem e os usos. Para
Muñoz (2008b) trata-se de uma operação de “terciarização intensiva”, destinada
a segmentos com poder de compra, recordando modelos de urbanização do tipo
resort (como Miami) e excluindo toda a ideia de cidade integradora, quer do
ponto de vista social, quer urbanístico.
A controvérsia gerada com o urbanismo, que aqui se implementou, demonstra que não corresponde ao “modelo Barcelona”, pois resulta ele próprio de uma
importação dos modelos norte‑americanos. Com efeito, o Ajuntament não tinha
mais soluções nem capacidade financeira – de acordo com Montaner (2004),
apresentava uma enorme dívida – para dar continuidade ao modelo que culminou
com os Jogos Olímpicos. A mudança de rumo será simbolicamente marcada pela
exposição Barcelona New Projects; a partir daqui o município sucumbe aos
grandes grupos imobiliários privados (como aconteceu com o grupo Hines). Uma
observação atenta revela que a Câmara Municipal deixa a descoberto a sua
enorme debilidade face ao projecto de desenvolvimento “Diagonal Mar”, que se
desenhou para a área do Fórum, onde hoje encontramos a Illa del Mare e a Illa
de la Llum, que correspondem a duas das cinco fases residenciais deste mega‑projecto, a Illa del Cel, que é um hotel e um complexo de apartamentos, e a Torre
Diagonal Mar, um complexo de escritórios junto da frente marítima. À parte da
remodelação da Rambla de la Mina, o bairro continua sem melhorias substanciais
nas condições de habitabilidade (carência de equipamentos, insegurança, imagem
negativa do bairro…).
A área tem como principal aspecto positivo o facto de ter mantido equipamentos problemáticos (incineradora de resíduos e estação de tratamento de águas
residuais), e de procurar albergar áreas de lazer – projectos de náutica, zoo
marítimo e um campus universitário. Apesar da contrapartida materializada na
valorização de uma área com problemas ambientais, o efeito do investimento
estrangeiro aqui realizado foi perverso: o seu resultado na emoção e no comportamento é o oposto ao previsto. A paisagem resultante é asséptica, elitista,
deserta de vida local, uma porção de cidade descartável, “sem alma”, em tudo
se parecendo com qualquer espaço urbano norte-americano, revelando uma
verdade trágica que é a da banalização da cidade de Barcelona (Queirós, 2009).
Contrariando toda a lógica de regeneração de Barcelona, assente em morfologia
e volumetria próprias, bem como o conceito de espaço público usado até então,
esta intervenção não condiz com o imaginário de “mediterraneidade”, antes se
impõe com um skyline nada habitual nesta cidade, que poderia encontrar-se em
qualquer cidade nos EUA.
As grandes diferenças entre os projectos em torno das olimpíadas e outros
mais recentes – como o do Fórum – residem nos objectivos das políticas do
município que parecem ter‑se reduzido a facilitadoras do investimento das empresas privadas e na aceleração de certos processos de mercantilização crescente e
que correspondem, no entender de Montcús (2003), a um urbanismo “globalizado”
ou, no de Muñoz (2008b: 169), a um processo de «brandificación urbana». Agora
a justificação da transformação urbana passou a ser a iniciativa cultural: com o
objectivo de fomentar a interculturalidade, o Fórum das Culturas teve até o apoio
da Unesco. Mas a diversidade e inclusão parou por aqui, pois o desenho do
projecto e a sua programação não foram discutidos pela sociedade civil. Esta
“segunda abertura” para o mar foi planeada de forma muito diferente da dos
Jogos Olímpicos: promoveu‑se mais o consumo da cultura e esqueceu‑se a
construção activa de uma cultura urbana (Degen e García, 2008). Capel (2005:
82) refere que «no projecto Diagonal Mar se previa a presença de sectores de
residência popular». Este objectivo não foi cumprido, pois não se construiu
habitação social e «permitiu-se que empresas imobiliárias se apropriassem das
mais-valias geradas». Com a agravante de ter havido destruição das identidades
históricas, alteração do tecido social, banalização da paisagem – «no se trata
solo de modernidad; el problema puede verse desde otro prisma: la presión
inmobiliaria lo arrasa todo» (Capel, 2005: 83).
Os críticos mais ferozes deste urbanismo de Barcelona são unânimes em
afirmar que, por enquanto, este ambicioso projecto não facultou à cidade uma
“nova centralidade” porque o espaço gerado privilegiou certos segmentos populacionais e se esqueceu que o verdadeiro sucesso de uma cidade reside no facto
de criar praças, ruas e edifícios plurais e multifuncionais e com adequada escala
humana.
A excepção a esta fórmula de intervenção está no projecto de transformação urbana conhecido por “22@” para o bairro de Poblenou – outrora a alavanca
industrial da Catalunha. O seu longo passado industrial está patente na concentração espacial de antigas fábricas (têxtil, química…), hoje visível pela quantidade
de chaminés que se assinalam na paisagem urbana (Queirós, 2009). O bairro de
Poblenou situa-se no sector sul de Barcelona, “encravado” entre a Vila Olímpica
(agora conhecida por Nova Icária) e o Fórum 2004, e encontra-se, desde 2000,
em processo de transformação urbana (Anuari Territorial de Catalunya, 2007).
A ideia matriz do Ajuntament foi promover um think-thank (que juntou um
grupo de políticos, arquitectos, urbanistas, sociólogos, geógrafos, etc.), do qual
resultou o embrião do 22@ (um projecto de transformação do bairro de Poblenou orientado para a sociedade do conhecimento); um primeiro documento seria
elaborado pelo gabinete de estudos urbanísticos da Câmara Municipal de Barcelona, em meados dos anos 1990 (Oliva, 2003). Como Poblenou tinha sido uma
área dedicada à actividade produtiva, era necessário dar‑lhe um novo impulso,
criando instrumentos de revitalização económica; a sua localização, muito central na cidade, seria certamente motivadora de uma intervenção apelativa para o
mercado (Pareja‑Eastaway et al., 2008). Assim, surge a ideia de transformação
deste antigo sector industrial, já em decadência, num novo “distrito” digital,
capaz de dotar a cidade de actividades orientadas para a economia do conhecimento, consolidar as actividades criativas e culturais já existentes e atrair novas
indústrias criativas (fig. 3).
Nasce então o Plano 22@bcn, que tomaria forma no terceiro PEB, propondo
a transformação dos quase 200 ha de solos já degradados e desqualificados, que
albergavam o remanescente dos solos e das naves industriais (solos classificados
por “22a” pelo Plano Geral Metropolitano, PGM), num novo distrito altamente
qualificado e tecnológico (engenhosamente redenominado de 22@ já que usa a
classificação do PGM para os solos industriais), um espaço produtivo assente
no conhecimento, criatividade, talento e inovação, com a novidade de prometer
a coabitação com a função residencial e dotado de equipamentos sociais (Queirós, 2009).
A renovação das áreas industriais de Poblenou criaria novos espaços produtivos, procuraria aumentar o emprego, edificaria novas residências de protecção social, novos equipamentos e zonas verdes. A aposta no 22@ corresponde
a uma concepção da geografia económica da cidade, que se perfila como um
dos aspectos mais inovadores de Barcelona; 22@, uma concepção que, segundo
Borja (2009), facilita a passagem da velha indústria à nova economia, e se
tornou o ícone das operações urbanísticas de regeneração da cidade da década
de 2000, resultantes de parcerias público‑privadas para investimentos em infraestruturas físicas, e das apostas em novas actividades e emprego associados à
sociedade do conhecimento. Hoje em Poblenou aposta-se na atracção, por exemplo, dos new media, das TIC, das energias renováveis…
Enquanto plano de renovação urbana, o 22@ delimita no seu interior seis
âmbitos territoriais (Llull Pujades Llevant, Perú-Pere IV, Campus Audiovisual,
Parc Central, Eix Llacuna e Llul Pujades Ponennt) e com o exterior procura a
articulação com outras áreas da cidade: por isso, encontra-se associado a importantes realizações a norte do bairro, como é o caso de Sant Andreu‑Sagrera,
onde chegará o comboio de alta velocidade, e as intervenções de qualificação
urbana na praça das Glories, tudo isto formando uma “triangulação” com o
Fórum das Culturas 2004 (22@barcelona, 2005). Através do plano 22@, o bairro
ganha densidade com o aumento da edificabilidade, vê melhorada a qualidade
do espaço urbano, já que ganha novas zonas verdes, infra‑estruturas e equipamentos, e beneficia de um uso mais eficiente do solo urbano. Todo o processo
é delineado pelo Ajuntament de Barcelona, que cria uma empresa de capital
100% público, mas com gestão privada, a 22@bcn, encarregue de orientar todo
o processo de desenvolvimento.
A “filosofia” de desenvolvimento do 22@ pressupõe que na sua base se
combinem muito frequentemente acções da administração pública, universidades,
centros tecnológicos e de investigação, com as de empresas privadas, formando
assim uma “tripla hélice” (Etzkowitz, 2002). Actualmente, em Poblenou estão
instaladas áreas científicas e de investigação em crescimento, pertencentes a
universidades conceituadas que promovem cursos relacionados com a economia
do conhecimento (Jordi Adriá, entrevista Maio 2009).
Como é um sector da cidade ainda em transformação, a diversidade de
situações urbanísticas abunda: património industrial abandonado, habitação da
classe média, social e de luxo, espaços devolutos, etc. (Queirós, 2009). Mas nem
tudo nesta operação de desenvolvimento urbanístico e económico correu bem.
A eliminação de uma parte substancial da arquitectura industrial de Poblenou
(prevista e executada) é algo que o Ajuntament teve dificuldade em explicar aos
habitantes, tendo sido “obrigado” a fazer concessões. Com efeito, as longas e
duras negociações entre o Ajuntament e plataformas associativas locais (que
trabalharam em concertação com a população local e investigadores universitários), preocupadas com a preservação do património industrial (Salvador Clarós,
entrevistas Março e Maio, 20093), resultaram no acréscimo de 68 novos elementos do património industrial de Poblenou ao catálogo do património industrial
da cidade.
Hoje o distrito de inovação 22@ ainda convive com o que restou do património industrial do bairro, graças à aprovação do Plano de Protecção do Património Industrial. Este deve-se à referida acção reivindicativa, concertada e
persistente, a partir de um movimento social urbano (Associação dos Vizinhos
de Poblenou – AVPN; Grupo do Património Industrial do Forum Ribera Bèsos,
etc.), que germinou desde o início do projecto (Mercedes Tatjer, entrevista Março
20094) e cuja milestone decorre com a intervenção associada ao Eix Llacuna.
De acordo com o El Periodico (14/03/2009), o balanço dos resultados do
projecto 22@, em finais de 2008, era muito positivo: num universo de 1441
empresas instaladas, 986 (68,4% das empresas instaladas) relacionavam-se com
alguma actividade dos cinco sectores/eixos temáticos. O emprego criado ascendia a 42 mil trabalhadores e quase 50% desta nova economia não existia ali
anteriormente. Em 2010 as informações do site www.22.barcelona.com actualizam aquela informação para Dezembro de 2009: do conjunto de 1502 empresas
que então estavam em processo de instalação, ou já instaladas no 22@ desde
2001, mais de 69% pertencem a um dos cinco sectores estratégicos (media, TIC,
TecMed, energia e design) e dos 44.600 novos trabalhadores locais, metade
possui formação universitária.
Clua e Albet (2008) alertam para o carácter inovador, complexo e dinâmico
do projecto que, até à data, foi suficientemente flexível para a sua sobrevivência.
O 22@ foi possibilitado por profissionais e seus conselheiros, que defenderam
a necessidade de promover actividades produtivas associadas às TIC. O incentivo
trazido por mais uma grande intervenção urbanística em Barcelona abriu as
portas à participação de proprietários e promotores do plano. Os movimentos
sociais completam a lista dos actores envolvidos neste projecto. Para Clua e
Albet (2008) o processo demonstra simultaneamente a importância da iniciativa
pública e a falta de liderança política e de participação popular no processo de
planeamento, constituindo estes últimos sérios obstáculos a um adequado desenvolvimento do plano.
Em 2007, por todo o mundo, anunciava-se o fim da prosperidade económica
que possibilitou novas áreas de transformação da cidade de Barcelona desde os
últimos anos da década de 80 e o início da de 90 (Memòria Estratégica, 2008).
No contexto de crise financeira do novo milénio, como se poderá dar continuidade
ao movimento de transformação da cidade e, em algumas situações, continuar
a obra iniciada com as olimpíadas? O distrito da inovação 22@ dá esperança
para responder a esta difícil questão. Os investidores abrandaram, e o crescimento
empresarial do 22@ também baixou o seu ritmo mas não estagnou. Possivelmente
porque no seu conjunto corresponde a uma boa aposta, territorial e integrada
sectorialmente, apesar dos seus problemas de governança. Por isso, talvez seja
benéfico que aqui se aplique o que diz Montaner (2003): a cidade constrói-se
lentamente, discutindo e melhorando cada projecto e deixando que a cidade
evolua e que o debate não termine.
IV. O DEBATE CONTINUA
O que se vem apresentando com base na experiência de Barcelona diz
respeito a certas mudanças ocorridas nos 36 anos após a instalação da democracia, em 1974. Transformações da geografia, economia, cultura e sociedade que,
por sua vez, correspondem a processos de modernização desta cidade.
Há ainda a ponderar os limites da fórmula barcelonesa, sobretudo se atendermos, não à Barcelona-cidade, mas à Barcelona-metropolitana. Monclús (2003)
adverte para o facto de a dimensão metropolitana ser aquela que é comparável
com outras metrópoles europeias, com mais de 4 milhões de habitantes e um
território de mais de 3000 km2 (www.cideu.org/).
Na presunção de que o “modelo Barcelona” se formula como uma alterna-
tiva do Sul da Europa ao sprawl urbano, como se explica então a existência de
um intenso processo de suburbanização, acentuada segregação de usos do solo
e acrescida dependência do automóvel, fenómenos que ocorrem na área metropolitana nos últimos 20 anos? Apesar de todo o leque de intervenções, desde os
anos 1980, para uma “cidade compacta”, estaremos perante o paradoxo de uma
convergência progressiva com o urban sprawl?
Segundo Capel (2004), o modelo Barcelona foi promovido como o de uma
cidade compacta nos anos 1980-90. O autor afirma ainda que a densidade a que
o modelo se refere é a que respeita à cidade-município, já que estudos (e estatísticas) demonstram que a aglomeração barcelonesa avançou de forma considerável, correspondendo a uma urbanização dispersa, com tipologias de habitação
de baixa densidade, concluindo que a realidade ultrapassou os ideais dos técnicos e políticos responsáveis. Perfilhando esta crítica, Muñoz (2008b) afirma que
durante o período em que se exaltou o “modelo Barcelona”, o processo de
crescimento e expansão da região metropolitana de Barcelona foi tão intenso
que deu lugar a um território disperso, completamente distante da imagem de
cidade compacta mediterrânea, aquela que possibilitou a atribuição à cidade de
Barcelona, de um prémio do Royal Institute of British Architects, em 1999
(McNeill, 2003).
É precisamente sobre o espaço metropolitano que se tem vindo a expandir com base em baixas densidades e em padrões de especialização funcional
e de estandardização da paisagem urbana, que trata o artigo de Cebollada e
Miralles‑Guasch no presente número. Observando a desigual estrutura territorial derivada da utilização intensiva do transporte individual, os autores analisam as diferenças entre o espaço central de Barcelona e a periferia
metropolitana. Concluem que as áreas de subúrbio registam uma carência de
multifuncionalidade nos seus quotidianos, e que tal é fruto da inaptidão das
políticas públicas para inverter estes processos urbanísticos pouco sustentáveis.
A mobilidade sustentável é assim um problema por resolver na Barcelona
metropolitana, assim como a segregação social decorrente das desigualdades
associadas às mobilidades.
Uma crítica em sintonia com a anterior é a que se pode ler no artigo de
Díaz‑Cortés e Garcia‑Ramón (presente volume) na análise dos quotidianos nos
usos dos espaços públicos na região metropolitana de Barcelona. Os autores
procuram enquadrar o conceito de espaço público de acordo com diversas perspectivas científicas; de entre as diversas visões do que é (ou poderia ser) o espaço
público referem o seu importante papel na integração e coesão social, mas alertam para a discriminação e marginalidade que neles pode ocorrer.
É justamente nesta perspectiva que Díaz-Cortés e Garcia-Ramón estudam
um espaço público, a Praça de Ca n’Anglada, situada na cidade de Terrassa, na
área metropolitana de Barcelona. O ponto de partida reside no desenho e planificação da praça que corresponde a uma organização “sexista”, ligada ao masculino, mas, por oposição, mais utilizada por mulheres, uso derivado do papel
que a sociedade patriarcal lhes reservou. A abordagem insere-se nos estudos da
geografia feminista e cultural que tem dado importantes contributos para a construção das geografias do quotidiano e da memória, e tem um forte cunho empirista e de trabalho de campo. Este estudo constitui um marco inovador da análise
dos espaços públicos já que contribui para relançar o tema e estimular uma
reflexão sobre a sua reformulação conceptual e a investigação das relações sociais
nos quotidianos e o papel que neles assume o espaço público.
Preocupações com as intervenções sociais, o dia-a-dia das famílias e uma
sensibilidade especial ao quotidiano das mulheres, revelam-se nos primeiros
passos do arquitecto catalão, Ricardo Bofill. É sobre uma polémica obra sua que
se desenvolve o artigo de André e Rousselle neste número, partindo do argumento
de que este projecto representa uma “estratégia social criativa” no contexto de
uma metrópole reconhecida como meio inovador. Conscientes das oportunidades
que Barcelona faculta à inovação social, bem como a sua forte imagem cultural,
artística e criativa, André e Rousselle confrontam‑nos com um caso de estudo
em Sant Just Desvern (não muito distante da Ronda de Dalt, na área metropolitana de Barcelona), que se estrutura em torno de um edifício residencial, o
Walden‑7, um projecto colectivo e idealista inspirado na natureza, simbolizando
uma “cidade-jardim no espaço”. As autoras associam-no a uma “utopia realizada”,
um ícone e um monumento ao subúrbio. Um desígnio tão belo que, todavia,
conhece contrariedades inimagináveis, sobretudo a partir de 1980. André e
Rousselle demonstram que a crise do Walden-7 representa algo mais profundo:
a crise de valores sociais. Mas o Walden e os seus residentes ultrapassaram as
diversas vicissitudes com muito sentido de solidariedade e forte intervenção
pública e hoje é considerado um edifício flagship de Barcelona.
A propósito do tema das identidades sócio-territoriais, Mendizàbal (neste
volume), oferece uma visão apaixonada da formação da identidade do bairro
de Gràcia, outrora uma vila nas proximidades de Barcelona. Mendizàbal insere
esta reflexão no âmbito dos estudos culturais em Geografia e remete para a
discussão de importantes e recorrentes conceitos, como identidade, lugar e
territorialidade. No contexto de Barcelona, o autor destaca a história e a especificidade da formação deste bairro, como um exemplo da manutenção de uma
identidade peculiar dentro de uma grande metrópole. Discorrendo sobre o
desenvolvimento da cidade de Barcelona, o seu processo de industrialização e
de densificação populacional, Mendizàbal oferece uma lição de geografia, cultural, social e histórica, e demonstra como a tradição operária e catalanista de
Gràcia é um exemplo da grande diversidade da composição actual dos habitantes da cidade de Barcelona.
Uma visão crítica ao urbanismo recente de Barcelona manifesta-se no artigo
de Gallach e Martì‑Costa (no presente número). Os autores apontam, por um
lado, para a falta de sensibilidade social da administração pública, e a pouca
atenção às necessidades e reivindicações dos residentes e, por outro, para a
tendência recorrente de adaptação do território às necessidades do capital, esquecendo o património industrial e identitário da cidade. O planeamento estratégico
conduzido pelos poderes públicos em Barcelona tem os seus défices, encontrando
por isso obstáculos que ecoam através das plataformas de mobilização cidadã.
Estamos, assim, perante conflitos sócio‑territoriais que Gallach e Martì-Costa
muito bem ilustram, através de uma situação conhecida por “Salvem Can Ricart”
(uma acção cidadã de defesa do património industrial contra o plano 22@ – o
recinto Can Ricart, situado em Poblenou era um antigo espaço ocupado por naves
industriais). Os autores concluem que “Salvem Can Ricart” demonstra como o
futuro da cidade não foi suficientemente debatido e a administração actuou de
uma maneira individualizada, o que não é vantajoso para a governança e o futuro
da cidade. Atendendo ao conceito apresentado por André e Rousselle neste
número, as estratégias apresentadas por Gallach e Martì-Costa constituem igualmente “estratégias sociais criativas” que merecem uma maior atenção por parte
da investigação dos geógrafos.
Barcelona associa-se facilmente a noções como criatividade e cultura,
constituindo estes traços uma bagagem distintiva e peculiar, fazendo dela uma
cidade diferente. Pareja-Eastaway (neste volume), reconhece que muitos já a
apelidaram de cidade dos prodígios, cidade das mil faces, cidade dos arquitectos…
E que elementos–chave estão a converter Barcelona numa “cidade criativa”?
Referindo-se a conceitos relacionados com a cidade criativa, divulgados por
académicos conhecidos, como Landry e Florida, Pareja-Eastaway sugere que o
conhecimento e o capital humano são também factores essenciais para o desenvolvimento das cidades criativas. Isto significa que o trabalhador criativo, com
talento e elevadas qualificações, deve ser uma peça essencial na transformação
económica das cidades e, portando, da sua competitividade. Para além da procura
de talento associado aos sectores criativos, como forma de aceder à economia
do conhecimento, Barcelona apostou na cultura, no entender de Pareja-Eastaway,
outro eixo central do crescimento económico e competitividade da cidade. Aliás,
a cidade apresenta-se como uma “marca” e um produto cultural. Inúmeros indicadores a demonstrá-lo são identificados pela autora.
Num registo complementar ao de Pareja-Eastaway, Casellas, Jutgla e Pallares‑Barbera analisam, neste número, o crescimento económico de Barcelona
baseado na produção de uma economia de serviços avançados, na qual as estratégias de marketing de políticas de comunicação e de promoção do turismo jogaram um papel primordial. Os autores enfatizam o impacto económico do turismo
e do lazer para a cidade no período de 1990-2010 e concluem com uma reflexão
em torno das implicações desfavoráveis para os habitantes de Barcelona e o espaço
público. Casellas, Jutgla e Pallares‑Barbera, abordam as estratégias que, desde os
anos 1980, as cidades em competição usam para “vender um espaço”, criar visibilidade exterior e manter uma imagem atractiva. Apontam o turismo como motor
da economia local de Barcelona, pelo menos desde os Jogos Olímpicos. No entanto,
e em sintonia com a orientação do artigo de Gallach e Martì-Costa deste número,
os autores referem a existência de apreciações críticas ao crescimento da indústria
turística, apontando os efeitos “colaterais” relacionados com o aumento de valor
económico dos solos urbanos e o consequente menor acesso das populações,
sobretudo nos finais de 2000, o que levou à elaboração de um novo plano estratégico de turismo que introduz a componente da cidadania.
Remetendo para a questão inicial que reproduz a preocupação de Casellas
et al., termina esta introdução ao volume XLV (número 90) sabendo que, longe
de dar resposta a esta interrogação, o seu objectivo é discutir os processos de
transformação de uma metrópole inovadora, cujo modelo de desenvolvimento
terá que forçosamente de se reinventar. Até aos nossos dias esta cidade tem
demonstrado ser capaz de derrubar todos os obstáculos. O desafio maior será o
de suturar e de integrar o território metropolitano: encontrar formas de suceder
ao sprawl mediterrâneo e «recombinar a densidade construtiva com a diversidade
social e a complexidade urbana» (Muñoz, 2008b: 171).
O último texto deste número, de Horácio Capel, alerta para a “prepotência”
das atitudes do Ayuntamiento na construção da cidade e apela para a necessidade
de encontrar um outro modelo de urbanismo, assente em novas formas de
desenvolvimento económico e de organização social. Do que Barcelona necessita,
em sua opinião, é de “novas atitudes políticas e renovados marcos teóricos de
actuação territorial”.
Barcelona encerra um mundo de histórias e paradoxos em cenários construídos – pelos seus políticos, profissionais e grupos de cidadãos organizados
– com muita criatividade. Juntou-se aqui um extenso conhecimento sobre os
processos de (re)construção da cidade e abordou-se a diversidade de escalas
sobre as quais podemos “ver” Barcelona. Por isso, é praticamente impossível
abarcar todas as mensagens destes artigos numa única leitura, tal a diversidade
de horizontes que estes constroem, difíceis de ser absorvidos de um só fôlego.
Não é difícil entender porquê. Barcelona é um leque de possibilidades, por isso
este número foi intitulado BARCELONA(S). Existe a Barcelona turística, a
Barcelona cultural, a Barcelona histórica, a Barcelona monumental, a Barcelona
industrial, a Barcelona dos espaços públicos, a Barcelona dos bairros, a Barcelona da cidadania, a Barcelona criativa, a Barcelona‑município e a Barcelona‑metropolitana, que são todas elas as minhas favoritas Barcelona(s). Esta é uma
cidade que se descobre pela primeira vez, depois novamente e de novo se redescobre, vezes sem conta.
Cidade dos projectos ou projectos de cidade? Ambas, porque por um lado,
a política de regeneração urbana se tem pautado pela multiplicidade de projectos,
pela cultura urbana e participação social. Por outro lado, como dizem Clua e
Albet (2008), não pode deixar de estar nos projectos desta cidade o acompanhamento do processo de globalização (Barcelona na economia e sociedade do
conhecimento e da informação). É no entanto, chegado o momento de equacionar a proporção exacta entre os benefícios imediatos dos projectos insuficientemente amadurecidos pela sociedade e os ganhos dos projectos de longo horizonte
delineados através de um planeamento estratégico urbano impulsionador do
consenso social.