Xiconhoca, o inimigo: Narrativas de violência sobre a construção da nação em
Moçambique
Introdução
A guerra destrói pessoas, devasta sociedades, física, emocional e mentalmente.
No contexto de Moçambique, a narrativa sobre a experiência da guerra
nacionalista continua a marcar a construção do imaginário nacional. Como este
texto procura discutir, o 'imaginário nacional' idealizado pela
FRELIMO1 transformou-se, ainda durante a luta armada, num projeto ideológico,
cuja visão política e proposta de ação buscavam legitimar a opção política
escolhida pela liderança do movimento. Se durante a guerra nacionalista esta
opção se justificou, pela violência do contexto em que a luta se desenvolvia, o
mesmo já não se aplica após a independência. Em lugar de promover a unidade
nacional, a opção 'quem não está connosco está contra nós', o novo
Estado moçambicano procurou impor-se transcendendo as múltiplas ligações
políticas e as várias lealdades socioculturais presentes. Impondo um projeto
que ambicionava alcançar a unidade ideológica a nível nacional, como base para
o projeto da nação, este projeto desafia radicalmente o reconhecimento e a
integração do pluralismo de posições e a diversidade sociocultural, princípio
básico para ampliar a participação democrática.
Em situações de guerra a figura do inimigo é fulcral aos processos políticos.
No caso de Moçambique, a identificação de 'quem é o inimigo' e o
entendimento da sua forma de atuar teve um papel decisivo, que continua
presente nas disputas entre os vários projetos políticos contemporâneos.
Neste artigo procuro discutir como a FRELIMO, quer como Frente de Libertação de
Moçambique, quer como partido de vanguarda, de orientação marxista, buscou
definir o 'homem novo', a ideia do cidadão do Moçambique
independente, em oposição à figura do 'inimigo' (Frelimo, 1977a;
Machel, 1980a; 1980b). A figura de inimigo estimulou o desenvolvimento de uma
consciência nacional comum. Este projeto nacional apoiou-se na experiência
partilhada da luta contra a opressão colonial, num contexto em que esta luta
era assumida como uma rutura radical: com a história colonial e com as relações
sociais, económicas e políticas herdadas da relação colonial (CEA, 1983: 4).
Porém, uma análise detalhada do projeto de construção da cidadania nacional
revela inúmeras tensões, muitas das quais perduram até aos nossos dias, expondo
a complexidade política de Moçambique. Latente no discurso dos dois principais
partidos políticos moçambicanos herdeiros de um passado de luta armada -
a Frelimo e a Renamo2 - subsiste a ideia de oposição agonística a
qualquer outra força política. Esta posição de olhar a oposição política como
'inimigo', sem possibilidade de qualquer pacto político, é
herdeira, como este artigo busca explorar, de uma ideologia que, em momentos de
paz, deliberava a partir da conceção política autoritária cujas raízes se
encontram na guerra nacionalista, onde 'quem não está connosco está
contra nós'.
Desde inícios da década de 1970 que o projeto de emancipação política proposto
pela FRELIMO combinava uma narrativa gerada pela luta nacionalista, centrada na
denúncia do imperialismo e do seu agente, o colonialismo, e dos seus vícios,
com uma visão nacional de um futuro melhor para os moçambicanos e moçambicanas
(Coelho, 2011: 285). Porém, a empresa nacionalista apelando à igualdade e ao
apagamento da diversidade cultural originou contradições no tecido social
moçambicano, marca de continuidades com mecanismos de dominação modernos que
continuam a impor a sua ação (Meneses, 2006; 2011). Este processo explica
porque, em Moçambique, os estudos de história sobre a luta de libertação têm o
enfoque centrado, em primeiro plano, nas pesquisas e debates sobre a luta
contra o colonialismo português e, em menor escala, nos conflitos que
atravessaram a FRELIMO no final dos anos 60,3 estando quase ausente a análise
de outros movimentos nacionalistas. Este enfoque está patente nos inúmeros
trabalhos de cariz (auto)biográfico que têm sido editados em Moçambique nos
últimos anos,4 embora estes vão desvelando outros conflitos, experiências e
vozes até agora invisibilizadas pela historiografia oficial.5 Para documentar
de uma forma mais ampla a transição política e as formas como o partido Frelimo
liderou a construção do projeto nacional em Moçambique, o presente trabalho
procurou, através do recurso a trabalho de campo, estudo de arquivos e
histórias orais, ampliar as experiências dos que participaram, experimentaram e
testemunharam a luta nacionalista e os primeiros anos da independência. Estas
narrativas, plurais, representam uma arena de disputa sobre possíveis opções
políticas, onde o projeto da nova sociedade se constrói em oposição à figura do
'inimigo' da revolução moçambicana, simbolizado na figura do
Xiconhoca.6
Este artigo procura, num primeiro momento, discutir a criação e a importância
da ideia de inimigo para a FRELIMO, durante a luta armada, explorando várias
das implicações políticas do conceito. Num segundo momento discute a tentativa
da criação do 'homem novo' no Moçambique independente, avaliando a
continuidade da presença da figura do inimigo interno, agora representado pelo
Xiconhoca. Finalmente analisa um tema menos estudado - as reuniões de
busca de verdade e de reconciliação realizadas em 1975 e 1982 para redimir os
que a FRELIMO concebia como traidores ou atores antissociais -,
discutindo em maior detalhe o contexto político-ideológico em que estas
reuniões aconteceram, assim como as suas implicações no contexto da construção
da cidadania e da história oficial de Moçambique. Esta análise procura
contribuir para repensar a violência comunitária e estatal em Moçambique e o
papel de encontros de busca da verdade e de reconciliação nos processos de
descolonização política no país.
1. Em busca de arquivos intangíveis
Entre 2012 e 2014, período que coincide com as comemorações da criação da
FRELIMO, o início da luta armada, e os 40 anos da independência nacional, é
crescente o debate público sobre a centralidade da luta armada para a criação
do projeto nacional em Moçambique. Nos média, inúmeras vozes de protagonistas
da luta de libertação relembraram as razões que levaram ao sucesso da luta
armada do povo moçambicano contra o colonialismo, requerendo que mais estudos
fossem dedicados a esta temática. Mas muitas destas intervenções dão
continuidade à distinção entre os 'bons' moçambicanos, que se
envolveram na luta armada, e os seus inimigos, aqueles que traíram a causa
nacional, seja num primeiro momento por se terem aliado ao regime colonial seja
por, posteriormente, terem criticado e desafiado o projeto político nacional
avançado pela liderança da FRELIMO. A traição e os ódios políticos têm sido
temas que atormentam a história política moçambicana contemporânea. Porém, a
definição do ato de traição, ao refletir posições políticas e sociais cujo
conteúdo se altera com o tempo, desafia a lógica moral que subjaz ao binómio
estabelecido entre revolucionário e reacionário, amigo e inimigo, vítima e
responsável.
O Estado independente moçambicano é exemplo de patrocínio de um projeto
nacional criado a partir de um conjunto de referências memoriais associadas a
uma certa elite política, funcionando como uma estratégia poderosa de afirmação
e legitimação da narrativa oficial. Em contraponto a este projeto, as
lembranças e memorializações coletivas e regionais que não encontram eco neste
projeto constituem-se como importantes espaços de debate, onde se confrontam
várias forças sociais e políticas (Cabrita, 2000; Ncomo, 2003; Coelho, 2011). A
memória é fundamental aos processos identitários, sejam eles individuais ou
coletivos. As identidades, sempre plurais, representam processos instáveis e
fluídos. Destruir ou atrofiar memórias que estão na base de processos
identitários pode redundar na liquidação do passado, das histórias que unem as
pessoas e que as fazem ser quem são. As memórias coletivas, e as particulares,
insistem em desafiar o pacto de silêncio existente, numa combinação de
autocensura e esquecimento formal pelo Estado. Em simultâneo, a(s) memória(s) e
as suas expressões simbólicas (tangíveis ou não) refletem os debates políticos
pelo poder, assim como críticas ao próprio poder. Que aspetos do passado são
lembrados ou esquecidos, o que se esquece ou é propositadamente silenciado,
assim como as relações de poder presentes nestes processos, refletem agendas e
decisões do presente.
Através de uma pesquisa multidisciplinar e multissituada (Marcus, 1995),
combinando a história oral com registos audiovisuais e apoiada no estudo de
jornais e revistas da época, assim como na consulta de arquivos, foi possível
ultrapassar a leitura maniqueísta de uma certa historiografia sobre Moçambique.
O resgatar de vozes e perspetivas silenciadas ajudou a ampliar a narrativa
sobre as ideologias e projetos subjacentes aos processos políticos recentes.
Várias das pessoas que aceitaram relatar as suas experiências face à violência
política vivenciada durante o período histórico abordado neste artigo optaram
pelo anonimato, em virtude das emoções que o tema lembra. Todavia, comum a
todos é o desejo de contribuir para ampliar o debate sobre a história de
Moçambique, para além da narrativa oficial dominante. Muitos e muitas continuam
à espera que lhes seja feita justiça, uma vez que a narrativa histórica
dominante continua a não querer reconhecer a sua participação e os seus
sacrifícios. A pesquisa nos arquivos possibilitou revisitar os quotidianos
locais e nacionais, investigando como era representado o inimigo e as formas de
violências presentes no período entre 1972 e 1982. Os registos audiovisuais
permitiram ampliar esta leitura, ao permitir aceder, quase que
transcendentalmente, ao momento do acontecimento, pelas vozes dos que neles
participaram.
2. A crescente centralidade da narrativa da luta armada
No contexto africano, desde a segunda metade do século xx as histórias
nacionais têm conhecido crescentes controvérsias em torno das narrativas que as
fundam. Um estudo cuidado destas 'novas' histórias nacionais revela
a sua relação profunda com questões políticas internas e com o debate sobre a
identidade nacional. As disputas em torno das narrativas que integram esta
história oficial situam-se muitas vezes próximo daquilo que alguns
historiadores vêm criticamente designando de 'histórias
patrióticas' (Ranger, 2004; Tendi, 2008). Ou seja, a transformação, pela
força política no poder (neste caso, um ex-movimento de libertação), de uma
variante exclusivista da história nacionalista, que define a visão do projeto
de nação, resultando deste processo a marginalização, o silenciamento e mesmo a
exclusão de outros atores e dos projetos políticos que defendiam (estes últimos
frequentemente apresentados como traidores, dissidentes e/ou declarados como
inimigos).
Uma leitura crítica da narrativa dominante sobre as raízes do nacionalismo
moçambicano sugere que o projeto produzido a partir das experiências da luta
armada não terá sido o melhor substrato para o desenvolvimento de um sistema de
governação democrática, após a conquista da independência. Como se verá de
seguida, uma série de 'limpezas' nas narrativas e memórias sobre a
guerra de libertação está na origem de um conjunto de 'novas'
tradições em que tem assentado a legitimidade política que procura manter o
partido FRELIMO no poder, situação que não é exclusiva de Moçambique (Meneses,
2012).
Escrevendo sobre o sentido nacional, Renan (1996 [1882]: 41-42) definiu-o como
o "princípio espiritual"7 transferido de um passado supostamente
comum, sob a forma de uma "rica herança de memórias" partilhadas no
presente, e que se expressa como o consentimento, a vontade de viver em
conjunto, o desejo de perpetuar o valor de uma herança que foi recebida de
forma indivisível. Como este autor sugere, o passado épico, onde predominam
sofrimentos partilhados e inimigos comuns, dá forma e consentimento a um
presente coeso, ao núcleo fundador da comunidade nacional. Mas, como Renan
realça, se as memórias comuns do passado podem cimentar a unidade de uma nação,
também podem contribuir para criar múltiplas fraturas. Por estas razões, e como
Bhabha (1990: 292) destaca, qualquer projeto nacional carrega o fardo da
construção de uma memória política coletiva, geradora de múltiplos
silenciamentos, esquecimentos de atores e de processos políticos.
Consequentemente, qualquer visão da nação, ao assentar numa politização do
passado e das lutas atuais, encerra sempre inúmeras ambiguidades.
Em Moçambique, se o lembrar da opressão e exploração colonial teve um papel
determinante na produção de uma visão identitária nacional coerente, o
esquecimento - e a violência que este acarreta - desempenharam
igualmente um papel fundamental.
A FRELIMO constitui-se em 1962, fruto da união de várias organizações
nacionalistas, com o objetivo de agregar forças na luta pela independência
nacional, forjando uma frente comum para liquidar o colonialismo português e
todos os vestígios do imperialismo.8 Nas palavras de Eduardo Mondlane, primeiro
presidente do movimento, esta tomada de consciência refletia o crescendo
nacionalista, que se caracterizava
[…] pelo desenvolvimento de atitudes, atividades e programas mais ou
menos estruturados com vista à mobilização de forças para conseguir a
autodeterminação e a independência. No caso específico de Moçambique,
estas atitudes, atividades e programas estruturados, […] têm que
incluir a organização de planos militares ou paramilitares para a
luta final antes de a independência poder ser assegurada. (apud
Bragança e Wallerstein, 1978 [1964]: 33-34)
A inevitabilidade da luta armada para alcançar a independência estava presente
no horizonte político do movimento. A aposta política de Portugal perseguia um
rumo diferente das opções seguidas pelo Reino Unido ou a França em relação à
descolonização em África,9 defendendo, até ao final, que as suas colónias eram
parte integrante de Portugal pluricontinental.
Antecipando a questão colonial, e como forma de ultrapassar a exigência do
direito à autodeterminação dos povos, consagrado na Carta das Nações Unidas,
Portugal havia, entretanto, transformado as colónias (territórios não
autónomos, para a ONU) em províncias ultramarinas e, como tal, parte integrante
de um Portugal multicontinental (Nogueira, 1961: 41). As alternativas que os
movimentos nacionalistas identificavam cingiam-se a "continuar
indefinidamente a viver debaixo de um regime imperial e repressivo ou encontrar
forma de empregar a força que fosse suficientemente eficaz para prejudicar
Portugal sem provocar a nossa própria ruína" (Mondlane, 1985 [1969]:
103). Isto explica a opção pela luta armada, em finais de 1964, luta que se
iniciou no norte de Moçambique.
A insurreição geral armada pela independência, proclamada em nome do povo
Moçambicano pela FRELIMO,10 identificava como inimigo principal o colonialismo
português.
A palavra do camarada Presidente Mondlane foi: "o vosso inimigo
é o sistema colonial português, se a tropa portuguesa ficar
desarmada, façam o favor não matar". […] Deixaram-nos essa
grande recomendação: "Cuidado, não façam como os nossos
camaradas angolanos fizeram, mataram crianças, mataram mulheres,
mataram velhos porque são brancos".11
A exposição do colonialismo como o principal inimigo (Machel, 1980c: 29)
espelha uma análise política sofisticada. Nos documentos então produzidos, a
natureza exploradora, discriminadora e opressiva do Estado colonial era exposta
pela apresentação da lógica exploradora do sistema económico, das estruturas de
opressão política e de dominação cultural (Mondlane, 1985 [1969]). A leitura
das resoluções adotadas durante o I Congresso da FRELIMO (1962) identifica a
produção simbólica do inimigo - o colonialismo e todas as ameaças à
unidade do movimento - como um dos pilares do seu projeto ideológico.12
Comos os materiais de arquivo revelam, as fraturas internas no movimento foram
fruto das opções tomadas quanto à natureza e forma da luta. Uma das primeiras
divergências gerou-se em torno da orientação da guerra: estratégias a adotar e
natureza do Exército (Souto, 2007: 208). Para preservar a unidade, a educação
política tornou-se num dos pilares da preparação ideológica do movimento
(Zawangoni, 2007). Com espírito militar, combatia-se o tribalismo, o racismo, a
discriminação contra a mulher, etc., ao mesmo tempo que se ampliava o debate
sobre as razões e a natureza da luta (Machel, 1974a; Machel, 1980c: 40-42;
Mondlane, 1982a).
Associada à organização da luta armada, a FRELIMO buscou, quer na frente
diplomática, quer na da informação, divulgar as razões da sua luta e ampliar os
apoios e a solidariedade para a causa da luta do povo moçambicano.
A luta contra o colonial-fascismo português não é diferente, na sua
essência, da luta contra o fascismo e nazismo como aconteceu na
Europa. Os povos europeus, que sofreram milhões de mortos no
holocausto perante as fantasias de dominação de raças superiores,
compreendem perfeitamente a nossa luta contra este cancro no nosso
país. […] Neste contexto, a solidariedade não é um ato de caridade,
mas a ajuda mútua entre forças que lutam pelo mesmo objetivo. A
liquidação do sistema colonial-fascista português significa a
destruição de um dos principais bastiões atuais do fascismo, que
estimula o crescimento das forças fascistas na Europa. (Machel,
1974a: 13)
No final da década de 1960, com o avançar da guerra e a emergência de zonas
semilibertadas, a FRELIMO conheceu um agudizar das contradições -
políticas, militares e administrativas - de que resultou a morte de
vários dos seus líderes, incluindo a de Eduardo Mondlane. Refletindo sobre as
divergências internas, que tinham dado origem a dois projetos divergentes
- quer quanto à condução da luta, quer dos projetos a desenvolver após a
independência -, o Comité Central da FRELIMO afirmaria: "Estas
divergências refletem-se, por exemplo, na definição de quem é o inimigo, na
opção da decisão sobre qual a linha estratégica a seguir (uma guerra popular
prolongada), sobre a importância dada à luta armada em relação a outras formas
de luta, etc." (FRELIMO, 1982a [1969]: 122). Ou seja, a dualidade de
poderes opondo as lideranças tradicionais, vistas como reacionárias, e os
revolucionários, estruturados em torno do projeto político-militar, explicam a
divisão no seio do movimento. Estas linhas, claramente definidas durante o II
Congresso da FRELIMO (1968), refletiam propostas distintas quanto às
estratégias que o movimento devia perseguir.13 Este agudizar das contradições
internas no seio da liderança da Frente levou Uria Simango, então seu vice-
presidente, a publicar um panfleto14 onde, por um lado, criticava a
radicalização da revolução e, por outro, expunha abertamente os conflitos que a
FRELIMO atravessava. Simango defendia: "ainda não somos suficientemente
fortes para combater os portugueses e seus aliados e simultaneamente travar uma
guerra contra uma classe burguesa nacional". Em paralelo, e questionando
o espírito de "deixa andar" que imperava no Comité Central,
denunciava a presença de uma hegemonia 'sulista' na liderança da
FRELIMO, que urgia remover.
Esta tomada pública de posição por Simango foi interpretada por um setor
(militar) da liderança da FRELIMO como sendo a voz do inimigo interno, ao
serviço dos interesses do colonialismo e do imperialismo português. Acusado de
traição pela linha que se lhe opunha na liderança da Frente, Uria Simango foi
afastado da FRELIMO.15 As razões avançadas pelo Comité Central do movimento
para justificar este afastamento incluíam acusações de oportunismo, corrupção e
irresponsabilidade, apontando este comportamento como uma ameaça à legitimidade
e à continuidade da luta (FRELIMO, 1977a: 140-142). Em paralelo, defendia-se a
defesa dos interesses das massas deserdadas de Moçambique articulada à luta
contra "novos exploradores" presentes no seio da própria FRELIMO
(Bragança, 1980: xx).
A crise de 1968-69 é reflexo do confronto aberto entre duas linhas políticas no
comando político-militar da FRELIMO. A tensão entre o nacionalismo anticolonial
e os projetos sobre o futuro da luta de libertação condensavam-se, no interior
do movimento, em propostas políticas distintas, especialmente desde o
surgimento de zonas (semi)libertadas. Nestes territórios, vistos como "o
laboratório científico" do futuro Moçambique independente (Bragança,
1980: xxii), as contradições eram de natureza económica e política, entre os
que pretendiam manter o sistema económico colonial em funcionamento,
africanizando-o, e os que queriam radicalizar a revolução, redefinindo-a a
partir do poder das bases, do povo. Para os adeptos da linha revolucionária, as
zonas libertadas representavam
[…] uma forma embrionária do Estado Popular, defensor dos interesses
das classes mais exploradas e oprimidas da sociedade. Os novos
organismos de Poder continham os princípios da democracia, da
participação ampla das massas, dos militantes e dos combatentes na
resolução dos problemas da guerra, da produção, do comércio, da
educação, da saúde, em suma, da organização da vida coletiva em cada
região. (Machel, 1978a [1970]: 144)
As razões da evolução e radicalização do projeto nacionalista, assumido
crescentemente como socialista, revolucionário e progressista, derivavam da
própria realidade vivida em Moçambique, onde "as condições de vida em
Moçambique e o tipo do inimigo que temos não admitem qualquer outra
alternativa" (Mondlane, 1982b [1968]: 121). Com a radicalização da luta,
a compreensão sociopolítica do inimigo privilegiava progressivamente uma
leitura de classe, que permitia identificar a presença de interesses de classe
diferentes e antagónicos nas zonas libertadas (Machel, 1980c: 35). A liderança
da FRELIMO, na década de 1970, considerava fundamental a identificação de uma
'linha política certa', garante do desenvolvimento de um projeto de
sociedade distinta da realidade colonial. E, no centro do novo projeto
político, as zonas libertadas representavam uma proposta "político-moral
estratégica" (Hall e Young, 1997: 54) para o Moçambique independente,
enquadradas no projeto proposto pela FRELIMO:
A característica fundamental das zonas libertadas é que as massas
cumprem as palavras-chave, são mobilizadas e publicamente organizadas
por nós, e seguem a nossa linha [política] nas suas atividades
diárias. É assim que a libertação da exploração, a eliminação do
tribalismo e o nascimento da nação acontecem juntamente com o
estabelecimento prático do poder popular a nível das estruturas
políticas, económicas e sociais. […] As zonas libertadas são centros
de difusão da nossa ideologia, da vida nova que estamos a criar.
(Machel, 1974a: 11)
Esta radicalização política da FRELIMO refletia uma proposta específica para
obter a autodeterminação, e conjugava, a partir das experiências presentes no
terreno, "a análise crítica dos clássicos modernos da guerra popular e o
resumo das experiências de inspiração marxista de 'países
irmãos'" (Bragança, 1980: xxii). Esta inspiração revolucionária
almejava transformar radicalmente a realidade gerada pelo sistema de exploração
colonial. O movimento nacionalista, como Joaquim Chissano explica, então à
frente das relações exteriores do movimento, apostava numa proposta democrática
radical.
A FRELIMO quer criar um Moçambique unido e democrático, isto é, onde o povo
possa escolher o seu governo, participar nele e tomar parte na discussão dos
assuntos do país. Por outro lado, a FRELIMO quer criar um sistema económico
onde não exista a exploração do homem pelo homem. […] Posso acrescentar que
defendemos o socialismo como sendo a via de desenvolvimento que conduz o homem
à dignidade. (Chissano, 1982: 103)
Nos anos 70, com o estender da luta para sul (Tete, Manica e Sofala), o projeto
político foi-se consolidando, expresso agora como uma revolução democrática
popular, cujo objetivo central era o estabelecimento de uma ordem social mais
justa e igualitária (Machel, 1977a: 113). A conceptualização de inimigo
conheceu um aprofundamento analítico, integrando não apenas o colonialismo, mas
todas as formas de dominação e exploração que se erguiam contra o projeto de
Estado popular. Na frente interna, a luta pela melhoria das condições de vida
do povo, contra a corrupção, contra os desertores que traíam a luta, foi
ganhando referência na identificação do 'inimigo' do 'homem
novo' que emergia em Moçambique. Este inimigo interno revelava-se
crescentemente complexo, atuando, sob múltiplos disfarces, em várias frentes
(militar, política e económica), como desvelam os documentos consultados e as
informações recolhidas em entrevistas. Na frente externa, gradualmente, o
inimigo passa a ser identificado como o imperialismo, integrando, além de
Portugal, países cujos capitais apoiavam o prolongamento da presença do regime
colonial em Moçambique (Frelimo, 1977a)
3. Os inimigos do 'homem novo'
Não sem conflitos, nas zonas libertadas emergia o embrião do futuro partido-
estado que encabeçava o projeto nacional em Moçambique, projeto que se ia
cimentando à medida que a luta se estendia a novas regiões do país.
A denúncia das violências experimentadas e das vitórias alcançadas na
construção do 'Moçambique novo' está presente no que se veio a
chamar 'literatura de combate' (FRELIMO, 1979/80; Mendonça, 1988).
Esta literatura, nas palavras de Franz Fanon, "convoca todo um povo à
luta pela existência como nação" (1961: 179), sendo reveladora da
emergência de uma consciência nacional, forjada na luta. Esta luta, que se
estendia do norte de Moçambique para o centro, nas zonas libertadas
predominantemente habitadas por população camponesa e guerrilheiros, vai
modelar a visão do 'homem novo' (Machel, 1977a: 97). A discussão
política e o trabalho pela libertação surgiam como os elementos dinamizadores
de uma nova cultura que caracterizava este 'homem novo'. Como
documentos da época acentuam, e educação do 'homem novo' procurava
"destruir as ideias e hábitos corruptos herdados do passado; desenvolver
o espírito científico para eliminar a superstição; promover a emergência de uma
cultura nacional, liquidar o individualismo e o elitismo" (FRELIMO, 1982b
[1969]: 196).
Em 1971, num discurso sobre o papel dos serviços de saúde, Samora Machel, líder
do movimento, denunciava os agressores da revolução moçambicana como sendo
"o inimigo direto, o inimigo indireto e o inimigo que se esconde no nosso
seio" (Machel, 1974a: 50). O colonialismo era apontado como o inimigo
direto, simbolizado pelo Exército, que atacava o povo diretamente, com armas de
guerra. Mais perigosos, porque mais verosímeis que o colonialismo eram os
aliados de Portugal, que combatiam a FRELIMO, garantindo apoios militares,
financeiros e políticos indiretos a Portugal. Mas o inimigo mais ardiloso
revelava-se o inimigo direto ou indireto, que se socorria dos apoios que
possuía entre as forças da FRELIMO. É esta "a força decisiva que nos pode
derrotar, o inimigo oculto no nosso meio, aquele que ergue alto a bandeira da
FRELIMO connosco para destruir a FRELIMO mais facilmente" (ibidem). E
Machel concluía, espelhando a oposição binária do movimento, que contrapunha a
moralidade colonial a uma nova moralidade revolucionária, base ideológica do
projeto nacional em construção:
Sem unidade nacional seríamos derrotados pelos colonialistas. Sem
unidade, os operários e camponeses seriam dominados pelos
exploradores. […] O espírito colectivo obriga-nos a estudar todos os
problemas, todas as situações, como se fossem nossas. […] O poder
pertence-nos e por isso não nos podemos sentar de braços cruzados
quando uma dada situação é um obstáculo ao nosso progresso. (ibidem:
56)
Como várias entrevistas enfatizaram, o sentido de unidade era fulcral para o
sucesso da guerrilha e para a sobrevivência das comunidades camponesas, apoio
fundamental da frente interna de luta do movimento nacionalista. O delinear da
proposta do 'homem novo', como se procura aqui analisar, era a
resposta da FRELIMO ao projeto colonial.
Quando nos levantamos com armas para desafiar a velha ordem, sentimos
a necessidade de criar uma nova sociedade, forte, saudável e
próspera, onde os homens livres de toda a exploração cooperem para o
progresso de todos. No decurso da nossa luta, em momentos difíceis
tivemos de nos confrontar com elementos reaccionários; nesta luta
compreendemos melhor os objectivos da nossa luta. Sentimos
especialmente que a luta para criar novas estruturas fracassaria sem
a criação de uma nova mentalidade. (ibidem: 39)
Por exemplo, lutando contra as diferenças étnico-tribais, a FRELIMO16 procurava
organizar os seus destacamentos militares juntando, preferencialmente, pessoas
oriundas de diferentes regiões do país, reforçando o interconhecimento e a
solidariedade. Desta forma, através da prática da guerra, ampliava-se a
experiência comum das várias lutas que integravam a luta nacional, denunciando
os vários inimigos também comuns.
Em oposição ao individualismo, o projeto político da FRELIMO contrapunha a
ideia de uma sociedade assente na partilha conjunta; contra o elitismo, o
projeto da FRELIMO advogava a colaboração, a camaradagem. Em detrimento da
mulher vista como apoiante da luta, a FRELIMO apoiava a emancipação da mulher,
parceira de luta, etc. Neste contexto, o 'homem novo', apesar da
referência masculina e militar, afirmava, de forma radical, um perfil em
contraposição ao conceito que o inimigo (a ideologia colonial) havia criado
sobre os moçambicanos.
A análise dos contornos da luta contra o colonialismo, e do projeto de luta
popular, governada pela FRELIMO, sugere que a traição e o ódio são fundamentais
à definição moral da soberania. A figura de inimigo, que se vai opor à proposta
do 'homem novo', ajuda a compreender os problemas associados à
construção do referencial nacional em Moçambique, uma situação comum a várias
outras realidades no mundo. Desenvolvido a partir de uma perspetiva marxista,
este processo identitário transformador acontecia pela prática social, pela
transformação das relações sociais de produção existentes sob o colonialismo
(Bragança, 1980: xx). A radicalização da luta acontecia num cenário em que a
guerra, alastrando para sul, se ia internacionalizando, contando Portugal com o
apoio crescente das forças militares sul-africanas e rodesianas, assim como dos
seus aliados militares (Souto, 2007; Meneses e Martins, 2013). Como Machel
denunciava na altura, "de guerra colonial o combate inimigo transformou-
se já em guerra imperialista de agressão" (1977a: 113).
Embora a FRELIMO almejasse ser reconhecida como a única força nacionalista em
Moçambique, no início da década de 1970 o contexto político revelava-se muito
mais complexo. Na frente política, o colonialismo português procurava cativar
os moçambicanos com promessas de mudanças paulatinas, mais integracionistas.
Uma das implicações deste processo foi a consolidação de uma pequena burguesia
negra que havia emergido em contexto urbano, especialmente na Beira e em
Lourenço Marques.17 Vários destes elementos afirmaram a sua posição
nacionalista, apesar de não terem aderido à FRELIMO (Peixoto e Meneses, 2013).
Em 1973, inclusive, surgiria o GUMO - Grupo Unido de Moçambique, uma
associação que lutava legalmente pela crescente autonomia política de
Moçambique.18 No exterior continuavam a atuar, com limitado impacto político,
agrupamentos como o COREMO19 (Zâmbia), o FUMO20 (Quénia), etc. (Opello, 1974).
No campo militar, a ação da psicossocial portuguesa resultava em várias ações
divisionistas cujo resultado se saldou no aumento de deserções na FRELIMO.21 Em
paralelo, o Exército português realizava ações militares provocatórias, através
de 'elementos infiltrados', contra alvos civis portugueses (Machel,
1977a: 107).22 No Exército colonial, o contingente de tropas negras ia
aumentando (Coelho, 2003).23 A ofensiva ideológica da FRELIMO procurava, quer
interna, quer externamente, explorar esta situação, afirmando a sua diferença
face ao inimigo, ao projeto colonial:
O inimigo pode usar as mesmas fardas e equipamento, pode usar a mesma
linguagem, falar a mesma língua, pode ser do mesmo grupo étnico, pode
ser da mesma cor que nós. Mas há uma coisa que ele nunca pode ser,
nem poderá fazer: viver o nosso comportamento, viver a nossa linha de
servir o Povo. É aí que ele se desmascara, é aí que não se pode
camuflar. Tudo o que ele faz é para explorar o Povo, dividir o Povo,
afastar o Povo da luta, agredir o Povo. Tudo o que nós [FRELIMO]
fazemos é para libertar o Povo, unir o Povo, mobilizar o Povo, servir
o Povo. (Machel, 1977a: 117)
Em 1974, o grande ano de mudanças, a FRELIMO assumia-se já, interna e
internacionalmente, como a 'organização dirigente' do povo
moçambicano (Machel, 1974b: 16), cuja unidade neutralizava qualquer tentativa
tribalista, racista, regionalista. Um só povo confirmava-se crescentemente como
um projeto moderno hegemónico, defendido pela FRELIMO, que o via como a
confirmação da justeza da luta.
É este o contexto em que acontece o golpe de Estado em Portugal, a 25 de abril
de 1974. Tomando posição sobre o golpe, a FRELIMO, que se assumia como o único
movimento representante do povo, afirmava ser este evento fruto, também, da
luta vitoriosa do povo moçambicano (Machel, 1974b: 15-16). Em paralelo, porém,
a FRELIMO separa a luta antifascista do povo português, que inspirou os
projetos políticos defendidos pelos militares de abril, da luta nacionalista em
curso em Moçambique:
O golpe de estado teve lugar em Portugal: as transformações a que ele
dará lugar poderão conduzir ao estabelecimento da democracia em
Portugal. Nós consideramos esse facto uma vitória para o povo
português, vitória com a qual nos alegramos, pois a nossa luta nunca
foi dirigida contra o povo português que estava ele próprio oprimido
pelo fascismo. Em Moçambique, porém, o colonialismo continua, e
enquanto ele continuar o povo moçambicano continuará oprimido. Só o
derrubamento do colonialismo português poderá dar ao nosso povo
moçambicano os seus direitos, pois só a independência permite
realizar a libertação completa e a afirmação da nossa personalidade
moçambicana. (Machel, 1974: 17)
Para a FRELIMO, o inimigo continuaria a ser a relação colonial, e a guerra
terminaria apenas com o fim do colonialismo, e com a independência a ser
assegurada ao principal movimento que havia liderado a luta contra o colonial-
fascismo. Com o Governo português de então a mostrar uma posição bastante
ambígua quanto ao futuro das colónias africanas, a resposta da FRELIMO foi
intensificar o combate político e militar. Crescentemente, a FRELIMO
identificava o 'inimigo' como os 'que estavam contra
nós', assumindo-se como o único representante da luta nacionalista.
Porém, a abertura democrática gerada pelo golpe de Estado tornou possível a
emergência de vários partidos e grupos políticos. Estes grupos, cujo espetro
político se estende da extrema-direita à esquerda,24 vão ser denunciados pela
FRELIMO e organizações que a apoiam25 como "grupos fantoches
colaboracionistas ao serviço do colonialismo" (ibidem: 19), por porem em
causa a centralidade da FRELIMO na luta nacionalista.26 A frente inimiga
incluía também "tropas fantoches tais como os GE, GEP, Companhias de
Comandos de Moçambique, Flechas e OPV que serão engajados na repressão de forma
crescente a fim de mascarar a agressão estrangeira e apresentá-la como guerra
civil entre moçambicanos" (ibidem). Finalmente, o 'inimigo'
integrava igualmente todas as forças que, internacionalmente, procuravam também
desacreditar a FRELIMO, apresentando-a como belicista e intransigente.27
A fragilidade política do governo interino português, que se confrontava com a
ameaça de um desastre militar (Couto, 1911), forçou Portugal a abrir a frente
das negociações, de que resultaram os acordos de 7 de setembro28 que encetaram
o caminho para a independência de Moçambique, em 1975.
As duas tentativas violentas de inviabilizar esta transição, quer pelos
acontecimentos do 7 de setembro29 em Lourenço Marques (e noutras cidades de
Moçambique), quer do 21 de outubro, foram interpretadas como ações
protagonizadas pela "burguesia colonial que queria manter os seus
privilégios, prosseguindo com a exploração das classes trabalhadoras
moçambicanas".30 Estas ações, cujos objetivos parecem ter sido forçar um
confronto racial, desacreditar os acordos de transição e depreciar a capacidade
do governo de transição em manter a ordem e a proteção de vidas e de bens de
toda a população, foram entendidas pela FRELIMO como um dos últimos episódios
de agressão armada do colonial-fascismo português em Moçambique. No contexto
altamente volátil do período de transição, estes acontecimentos vão contribuir
para aumentar a desconfiança da FRELIMO em relação aos que 'não estavam
com eles'. A participação em ações políticas percebidas como contrárias à
linha da FRELIMO durante o processo de transição leva a que uma larga franja de
personalidades políticas venha a ser identificada como 'traidora' à
causa da revolução moçambicana.
No grupo dos colonizadores e seus apoiantes, identificados pela FRELIMO como
traidores da causa do povo, incluíam-se os que haviam desertado da FRELIMO, os
que se haviam oposto à sua proposta política, quer interna, quer externamente,
e que haviam desafiado a FRELIMO na frente militar, como o COREMO, ou ainda os
vários partidos e movimentos que se opunham à centralidade da FRELIMO (Ncomo,
2003).31 De entre estes destacava-se o Partido da Coligação Nacional (PCN),
constituído em agosto de 1974.32 O PCN, que integrava vários nacionalistas
africanos, defendia no seu manifesto político que organização alguma podia
reclamar o direito a ser a única representante da população de Moçambique.33
Procurando contestar a centralidade da FRELIMO nos processos negociais para a
independência, vários elementos do PCN envolver-se-iam, perifericamente, na
tentativa de golpe de 7 de Setembro (Cardoso, 2014).
Alguns dias depois, na sequência do fracasso deste movimento golpista de
setembro e do empossar do governo de transição, mais de 300 moçambicanos que
haviam participado diretamente em ações de oposição declarada à liderança da
FRELIMO foram detidos e enviados para Nachingwea.34 Neste campo, e
identificados como 'inimigos' da revolução moçambicana, foram
sujeitos a um julgamento 'revolucionário e popular', presidido por
Samora Machel, entre março e maio de 1975. Na sequência deste julgamento, foram
considerados traidores e condenados ao internamento em centros de reeducação.35
Como Machel afirmou durante este julgamento, a reeducação pelo povo dos
transgressores era uma prática da FRELIMO, processo fundamental para os
reintegrar na sociedade, como cidadãos de pleno direito.
A prática da reeducação pretendia, como referiram vários entrevistados,36
transformar os 'transgressores', os inimigos. Esta prática, criada
para potenciar "os contactos com a vida do Povo, com os hábitos do Povo,
com o trabalho do Povo", tinha por objetivo libertar o transgressor, pelo
envolvimento na prática do trabalho com o povo, das influências que o haviam
levado a "cometer o crime ou a desencadear o conflito". Associado
ao trabalho, desempenhavam também um papel relevante "a crítica e
autocrítica políticas […] e o estudo político". (Machel, 1978a [1970]:
155). Por isso, Samora Machel explicaria aos jornalistas, numa das sessões dos
julgamentos populares de Nachingwea, a 12 de maio de 1975, na presença dos
Presidentes Kaunda, da Zâmbia, e Nyerere, da Tanzânia: "Prendemos! Não
matamos! Porque são inimigos políticos! A nossa política é de clemência. Irão
cultivar em Moçambique e aprender dos camponeses".37 Interrogado sobre as
razões desta opção, Machel declararia: "o trabalho político, o trabalho
ideológico, achamos que este é o instrumento fundamental para transformar o
homem. Porque todo o homem se transforma, não é preciso prisão [ou] paredes.38
Assumindo-se como único representante do povo, e assumindo a necessidade da
manutenção de uma frente unida para a transformação de Moçambique, a FRELIMO
declarava total intolerância face a qualquer tentativa de oposição, que era
vista como ação inimiga:
O colonialismo não tem raça, o capitalismo não tem cor, o
imperialismo não conhece pátrias. A nossa luta é a luta dos oprimidos
contra os opressores, dos explorados contra os exploradores. A nossa
luta é para edificarmos o poder popular democrático no nosso
Moçambique independente.39
4. Xiconhoca: o inimigo da nação moçambicana
Em setembro de 1974, durante uma conferência de imprensa, Samora Machel
destacaria a unidade como "a arma principal da nossa vitória",
reafirmando a centralidade da FRELIMO como representante do povo. Como
sublinhou na altura, "as massas engajadas fizeram da FRELIMO o povo em
armas", condição que tornou possível a unidade nacional.40 E foi esta
FRELIMO, robustecida na luta, e militarmente vitoriosa, que assumiu a liderança
de Moçambique desde a transição para a independência.41
Evitando debater as diferenças culturais e políticas presentes em Moçambique,
em 1974-75, no período da transição, a FRELIMO procurou estender a todo o
Moçambique a visão de nação assente na grande narrativa gerada pela luta
anticolonial, centrada na denúncia do colonialismo e dos seus vícios. Este
projeto envolvia uma proposta identitária, combinando alguma negociação da
diferença (por exemplo, o género) com a eliminação das diferenças (raça, etnia,
opções políticas, etc.).
As histórias de violência que Moçambique tem conhecido marcam, numa lógica
dialética, as ideologias e mentalidades quer dos colonizadores quer dos
colonizados, como Fanon sublinhou (1961). Estas heranças continuam a ter
efeitos nas mentalidades políticas e na estrutura sociocultural contemporânea,
apontando para a necessidade de desafiar os mitos e tabus fundacionais da
narrativa libertadora que marca a conceção da moçambicanidade. A opção política
avançada pela historiografia oficial da Frelimo apoiou-se, desde cedo, na
oposição entre os projetos revolucionário e reacionário.
A inclusão da história nos debates políticos sobre o futuro de Moçambique
procurou transformar-se, no contexto da luta nacionalista, num projeto
emancipatório que combinava a análise crítica dos vários saberes fundados na
experiência da luta, centrais para apreender e constituir um mundo livre da
exploração. Mas, como Aquino de Bragança e Jacques Depelchin (1986)
identificariam, esta oposição refletia uma relação ambígua entre a história
nacionalista, de libertação, e a história da Frelimo, onde o projeto
nacionalista surgia sempre inequivocamente triunfal. Alerta para esta situação,
Samora Machel analisaria, num discurso que pronunciou em 1974, já após o golpe
de Estado do 25 de Abril, as razões da luta armada, da vitória da FRELIMO,
anunciando as escolhas políticas que se avizinhavam.
O nosso objectivo final de luta não é içar uma bandeira diferente da
portuguesa, fazer eleições mais ou menos honestas em que pretos e não
os brancos são eleitos, ou ter no Palácio da Ponta Vermelha em
Lourenço Marques um Presidente preto, em vez dum governador branco.
Nós dizemos que o nosso objectivo é conquistar a independência
completa, instalar um Poder Popular, construir uma Sociedade Nova sem
exploração, para benefício de todos aqueles que se sentem
moçambicanos. (Machel, 1974b: 73-74)
A mística da experiência da luta armada e da vitória sobre o colonialismo
conjugou-se com o uso oficial do português, numa combinatória que legitimava a
opção política tomada sobre o projeto de unidade nacional. Mas os debates
identitários que se sucederam refletiam as fraturas do tecido social
moçambicano. Com a independência, a construção da identidade política nacional
funcionou em íntima ligação ao projeto da moçambicanidade, imposto e assegurado
pela autoridade política da FRELIMO e pelas suas instituições legais e
administrativas.
Se o período colonial foi marcado, para a maioria dos moçambicanos, pela
construção de uma referência identitária assente na pertença étnica, o projeto
político dominante no país agora independente, defendido pela FRELIMO, exigia a
igualdade jurídica de todos os cidadãos, independentemente das suas raízes
étnicas. "Matar a tribo para construir a nação" (Machel, 1974a: 39)
- uma das frases de ordem em voga no período revolucionário -
refletia este projeto, que gerou um Moçambique cuja identidade política está
refém do reconhecer das suas múltiplas identidades
Funcionando num contexto militarmente explosivo e que promovia o isolamento
económico do país, com a independência este país conheceu o reforço da oposição
política entre os defensores da revolução e os seus inimigos. Atravessando este
período complexo, o discurso autoritário e maniqueísta que marcou a retórica
nacionalista combinava a exaltação das razões da luta com a vitimização do
sujeito moçambicano pelo colonialismo, num exercício que acentuava a
desumanização do inimigo.
Para assegurar o controlo do poder, as estruturas desenvolvidas nas zonas
libertadas - e as formas autoritárias de governação que lhe estavam
associadas - estenderam-se a todo o país (Machel, 1978b). A esta opção
associaram-se várias outras medidas por parte do Governo. Em 1975, mas ainda
durante o período de transição, o assunto dos 'colaboradores' com a
situação colonial foi objeto de análise do Conselho de Ministros. Como os
documentos da época reproduzem, uma das opções tomadas foi no sentido de se
destruírem as estruturas herdadas do colonialismo, uma condição para o triunfo
da revolução (FRELIMO, 1976). Na sequência desta diretiva, as lideranças locais
e as estruturas de poder associadas à administração colonial conheceram forte
ostracismo e as múltiplas práticas descritas como tradicionais foram banidas da
esfera pública, a exemplo do que tinha acontecido nalguns países vizinhos
(Meneses, 2009; Meneses e Santos, 2009). Consequentemente, nos primeiros anos
da revolução moçambicana, o governo da Frelimo baniu as autoridades
tradicionais e religiosas, vistas como comprometidas com o
'inimigo', numa tentativa de mudar radicalmente a estrutura
governativa herdada da época colonial. Em sua substituição foram introduzidas
novas estruturas de poder, como as assembleias populares, os grupos
dinamizadores,42 os tribunais populares, etc., apresentados como mecanismos que
permitiam "levar as massas trabalhadoras, desde a localidade, a
participar activamente na direcção do Estado" (Machel, 1978a [1970]:
144).
Considerados embriões de novas formas de poder popular a partir da base,43 o
acesso a estes órgãos estava vedado a todos os que fossem identificados como
aliados ou apoiantes da presença colonial portuguesa, os 'comprometidos
com o colonial-fascismo' (o que excluía, pelo menos formalmente, a
possibilidade de acesso a uma cidadania plena aos régulos, ex-militares do
Exército português, membros da antiga ANP,44 entre outros, transformados em
'cidadãos de segunda'). Como discutirei mais adiante, as acusações
de traição desempenharam um papel importante na manutenção da ordem social e do
projeto político da Frelimo. Ao denunciar o 'outro' moçambicano
como inimigo interno, a Frelimo manteve a lógica binária de construção de
unidade: ao grupo dos revolucionários e seus aliados de classe (os operários e
camponeses), opunham-se os reacionários.45 Deste modo a Frelimo definia as
condições do seu poder, procurando estabelecer e controlar as condições
políticas de participação plena no projeto nacional, assim como as
possibilidades de 'reeducação' e 'purificação' dos
traidores.
O autoritarismo na implementação dos projetos que visavam o progresso social e
económico de Moçambique tiveram um profundo e prolongado efeito. A Frelimo
apostou na imposição da sua versão da 'verdade política' como uma
ortodoxia oficial, aplicando o modelo estabelecido nas zonas libertadas, onde
"o Partido é a força dirigente do Estado e da sociedade" (Machel,
1978a [1970]: 144). Qualquer dissidência deste projeto era vista como
subversiva e perigosa, beirando a traição, segundo o critério ideológico das
autoridades. A violência verbal e física foram tomando conta da sociedade, num
ambiente de crescente hostilidade entre 'os corretos' e os
'errados', entre os inimigos da revolução e o homem novo, ambiente
onde crescentemente se sentia a falta de valores, de ética e da moral,
referências relevantes para a responsabilidade individual e coletiva de
proteger a vida humana.
No exterior, os antigos inimigos - a Rodésia e a África do Sul do
apartheid e os seus aliados - mantinham-se fortes no desafio à opção
revolucionária do jovem país, obrigando o antigo exército guerrilheiro a
transformar-se num exército convencional, para procurar fazer face às inúmeras
provocações (Moiane, 2009). Na frente interna, Samora Machel, em inúmeros
discursos, fustigava a persistência dos efeitos do colonialismo português
(criticando abertamente os vícios dos 'assimilados' e as
expectativas da burguesia nacional, especialmente nos centros urbanos).46 Como
consequência, sob os moçambicanos pesava uma permanente avaliação política
moralizante, que os dividia em duas macrocategorias: os revolucionários e os
reacionários, estes últimos vistos como defensores do projeto colonial (Machel,
1980b: 65), a quem o partido no poder prometia uma luta sem tréguas: "O
inimigo é o mesmo! Pode ter cor preta, amarela, branca, o inimigo é o inimigo,
o inimigo precisa do mesmo tratamento" (ibidem: 85).
Porém, como sublinhou José Luís Cabaço, o discurso do 'homem novo',
do sujeito do poder popular, "teve legitimidade enquanto subsistiu a
condição de confrontação armada direta com o inimigo, durante a luta pela
libertação nacional".47 Com a independência, e no curto período de
euforia libertadora que o país conheceu na sua sequência, a figura do inimigo
tornou-se abstrata e distante. O próprio discurso sobre o 'homem
novo' acontecia agora em contextos mais diversos, como eram as cidades
onde o poder era realizado, que diferiam bastante dos ambientes que a FRELIMO
controlara durante guerra. Porém, a força política da referência ao
'homem novo' manteve-se. Em 1978 foi publicado na Revista Tempo, um
importante órgão noticioso no país, um discurso de Sérgio Vieira, dirigente da
Frelimo, intitulado "O homem novo é um processo".48 Para Sérgio
Vieira, a construção do 'homem novo' era uma condição central da
revolução em curso em Moçambique: "a revolução triunfa ou fracassa na
medida em que emerge ou não emerge o homem novo" (1978: 27).
Crescentemente moralista e prescritivo, este e vários outros discursos
sinalizavam uma realidade que não encontrava espelho nem no campo, nem na
cidade. E o regime ia adquirindo um caráter crescentemente autoritário,
exatamente pela incapacidade, por um lado, de transformar qualitativamente as
relações socioeconómicas presentes e, por outro, de gerir as novas e
diversificadas dinâmicas socioculturais que se lhe deparam. As resistências ao
projeto político da revolução popular avolumam-se, ecoando, nos média oficiais,
associadas a uma figura que materializava em si todos os aspetos negativos que
desafiavam os projetos do Estado e da nação: Xiconhoca, o inimigo.49 A figura
do Xiconhoca, criado pelo Departamento de Informação e Propaganda da FRELIMO,
simbolizava o arquétipo do moçambicano imoral e corrupto.50 Esta figura, que
rapidamente se popularizou, representava "todos estes males deixados pelo
colonialismo, e que o Povo moçambicano está a combater".51
No seu conjunto, as mensagens éticas e políticas que esta figura emblemática do
inimigo' encerrava transformaram-se rapidamente na marca dos
comportamentos a evitar, sob risco de se ser penalizado pela mão implacável da
justiça popular, que punia os "moçambicanos que pelas suas ideias, pelo
seu comportamento, pela sua actuação, servem objectivamente os interesses do
inimigo imperialista e comprometem o desenvolvimento do processo revolucionário
no nosso País" (Frelimo, 1979: 2), como alguns exemplos expõem.
No Moçambique recém-independente o risco de fraturas de classe, étnico-
regionais ou raciais era enorme. Neste contexto, as declarações sobre a
natureza do inimigo contribuíam para delinear com precisão as fronteiras morais
do Estado e do povo. A figura do Xiconhoca revela que a relação entre o povo
- o coletivo dos 'novos' cidadãos - e a Frelimo, que o
liderava, assentou no delinear de uma configuração de pertença e exclusão
assertiva, procurando ultrapassar os problemas herdados do tempo colonial. Como
Alice Dinerman sublinha, na análise da denúncia que esta personagem
simbolizava, a Frelimo buscou ampliar o seu apoio popular, denunciando
características identitárias negativas específicas, como o racismo, o
tribalismo ou o regionalismo, ou ainda contra ideologias mistificadoras que
desafiavam a proposta da Frelimo, como o liberalismo, o populismo, ou o
esquerdismo (2006: 70). Na primeira década da independência, era praticamente
impossível falar de diferenças sociais para além das diferenças óbvias entre
colonizadores e povos oprimidos, entre ricos e pobres, etc. Referências a
outras formas de diferença - fossem de natureza cultural ou mesmo étnica
- eram condenadas como promotoras de regionalismo e de ações tribalistas,
como ameaças à integridade da nação.
Num ambiente em que se procurava instaurar uma nova ordem política, assente no
trabalho com e para o povo, o burocrata representava a tentativa tecnocrata de
controlar a vontade e as decisões populares. O 'homem novo'
procurava fazer medrar novas formas de organização administrativa, fortalecer
as raízes do novo Estado, processo que era contrariado pelas práticas
burocráticas. Como consequência, a produção não fluía e o país conhecia um
momento de extrema confusão, aqui denunciada pela figura do Xiconhoca
burocraticamente indiferente.
A reforma do Estado, proposta pela Frelimo a partir das experiências de
democratização participativa das zonas libertadas, contrastava com o peso das
representações burocráticas coloniais. O III Congresso da Frelimo (1977)
constitui uma afirmação importante quanto às orientações relativas à
administração do território e à natureza do Estado. Estabelecida a necessidade
imperiosa de combater os resquícios das mentalidades coloniais, as decisões do
congresso incluíam a "necessidade de completar a destruição do aparelho
de Estado colonial-capitalista […] acelerando a criação de novos órgãos do
Poder estatal a nível do distrito e da localidade" (Frelimo, 1977b).
A emancipação da mulher foi um dos grandes objetivos da luta nacional, tão
importante como a libertação da terra. Desenvolvendo uma análise política
sofisticada, a I Conferência da Organização da Mulher Moçambicana (OMM), em
1973, sublinhou a dupla opressão e exploração a que as mulheres estavam
submetidas: exploradas pelos homens e oprimidas pelo colonialismo. Se para a
Frelimo a libertação da mulher era assumida "como uma necessidade
fundamental da Revolução, a garantia da sua continuidade e a precondição da sua
vitória" (Machel, 1974a: 24), parte importante da sociedade moçambicana
continuava a evocar um lugar subalterno, 'tradicionalmente
legítimo', para a mulher (Arthur, 1998).
A luta pela cultura dos grupos que integravam Moçambique foi um dos objetivos
centrais da luta de libertação. Apesar de vários elementos das culturas
'tradicionais' serem vistos como obscurantistas e identificados
como resquícios do 'mundo tribal',52 a exaltação da autêntica
cultura, expressa nas danças, línguas e heróis nacionais era uma das apostas do
Estado moçambicano; já para o Xiconhoca, a 'verdadeira' cultura era
a europeia, exemplo de aculturação colonial. No novo Moçambique, as
intervenções culturais não autênticas eram vistas com suspeita, como uma
intervenção do inimigo que colocava em causa os alcances da libertação. Como
consequência, vários jovens, acusados de terem um comportamento não adequado ao
processo revolucionário, por terem, ao assimilar a cultura burguesa, desprezado
as suas raízes, foram enviados para campos de reeducação.53
Se o Xiconhoca simbolizava o inimigo interno, a presença dos regimes de minoria
branca na então Rodésia do Sul e na África do Sul resultava numa profunda
instabilidade política e permanente tensão militar na região. Dando
continuidade ao apoio às forças políticas que lutavam pelo fim dos regimes
minoritários racistas na região, Moçambique sofreu múltiplas incursões
militares, assim como bloqueios económicos.54 A colaboração com as provocações
militares operadas pelos regimes vigentes nos países vizinhos com governos
minoritários contra Moçambique eram uma das faces do Xiconhoca, radicalizando a
situação política.55
No campo interno, o inimigo permanecia ativo, como vários textos da altura
alertavam. Procurando mudar radicalmente as condições económicas de exclusão a
que a maioria da população estava sujeita, o projeto revolucionário da Frelimo
tinha como um dos seus principais objetivos a transformação radical do sistema
económico herdado da colonização. A preguiça, o espírito do "deixa
andar", o descuido pelas coisas públicas serão ações classificadas como
heranças do espírito colonial, atos de sabotagem inimiga e alvo de intervenção
da justiça.56
Num plano mais amplo, os jornais da altura denunciavam as situações de
especulação de produtos básicos alimentares, desmascarando igualmente situações
de açambarcamento. Não é de estranhar que as imagens do Xiconhoca se
associassem, nos média, a peças jornalísticas que denunciavam a realidade de
uma economia paralela, que desafiava o projeto económico que promovia a
(re)produção do 'homem novo'. As tentativas de fuga a um regime de
preços fixados pelo Governo, a falta de alimentos fruto da fraca produção,
associada às carências resultantes do bloqueio económico regional geraram uma
economia paralela, que o regime punia com mão forte, incluindo penas físicas
(chicotadas) ou mesmo a pena de morte.57
Como já referido, o partido-estado da Frelimo encetou um conjunto de amplas
medidas políticas contra os múltiplos inimigos, antigos e presentes. Em 1977,
num discurso, Machel apontava o dedo ao grupo que acusava de propagar a
mentalidade do inimigo. Urgia, tal como no tempo da luta e como tinha
acontecido com os antigos traidores, reeducar este grupo de
'sabotadores' e 'reacionários' (Machel, 1977b). Na
sequência desta orientação, o país conheceu múltiplas atividades de denúncia,
que incluíam a afixação pública das fotos e biografias dos que haviam
pertencido às estruturas ideológico-repressivas do aparelho de Estado colonial,
de ex-membros de partidos políticos que haviam emergido em 1973-74, de ex-
militares do Exército colonial, madrinhas de guerra, etc. Esta exposição visava
apresentar ao povo "os que foram preparados pelo colonialismo para os
substituir, que ficaram cá como minas retardadas para explodir a longo
termo" (Machel, 1980a: 44). Estas medidas, associadas à radicalização da
justiça militar, procuravam fazer face à desestruturação que afetava
Moçambique.
Com o adensar dos conflitos e contradições no país, a Frelimo avançaria com uma
proposta radical: a "Ofensiva Política e Organizacional". Apelando
à continuação do combate para construir uma nova sociedade, com nova
mentalidade, avançada pelo 'homem novo' (Machel, 1980a: 18), esta
convocação reafirmava a legitimidade destas medidas pela Frelimo enquanto
representante do povo (ibidem: 50). Machel prevenia, analisando a radiografia
dos inimigos que afetavam Moçambique:
Mas haverá traidores e vacilantes. […] A purificação permanente das
nossas fileiras não é apenas uma questão de princípios, é uma
exigência do combate, uma condição para a vitória. […] sairemos desta
batalha mais fortes e revigorados, depois de nos libertarmos da carga
impura. (ibidem: 72)
O apelo moral à união ideológica opõe a pureza das razões da luta às ações do
inimigo. Gradualmente, a figura do Xiconhoca vai assumindo o papel histórico da
alteridade como 'inimigo' no processo de afirmação da identidade
nacional, que se irá exacerbar no período da divisão interna de Moçambique
durante a guerra que opôs o governo da Frelimo à Renamo.58
5. Confrontando o passado?
Dois outros episódios são fundamentais para compreender a existência de um
debate sobre o passado nacional moçambicano: a reunião com os moçambicanos ex-
presos políticos, em 1978, e a reunião com os moçambicanos considerados
'comprometidos' com a herança colonial. Juntamente com os
'julgamentos de Nachingwea', estes dois outros eventos, inovadores,
embora inevitavelmente incompletos, permitiram no seu conjunto lidar, na longa
transição política, com a herança política da violência colonial. Estes três
eventos constituem episódios de 'justiça de transição', cujos
impactos se fizeram sentir nas esferas da participação democrática e da
reconciliação, da ampliação da cidadania, e da justiça.59
A frente de luta nacionalista incluiu, para além da luta armada, uma ampla
frente de resistência (Peixoto e Meneses, 2013). Procurando eliminar esta
oposição, o regime colonial construiu um sofisticado aparelho de repressão
direta, recorrendo à polícia política e à pública, a várias organizações de
milícias, como, por exemplo, a OPVDC,60 a tribunais especiais, bem como a uma
ampla legislação penal que sancionava uma série de arbitrariedades. Por altura
do 25 de Abril, no resultado das ações de luta contra a
'subversão', alguns milhares de nacionalistas estavam presos em
Moçambique. Para muitos destes, a cadeia, os campos de trabalho, vieram a ser a
verdadeira 'escola nacionalista', o local onde, em contacto com
outros presos políticos, se construiu e reforçou uma consciência política
nacionalista e militante (Mboa, 2009; Mateus e Mateus, 2010; Langa, 2011). Foi
na cadeia que, em contacto com militantes da FRELIMO, vieram a conhecer o
movimento e os objetivos da sua luta (Magaia, 1998). Porém, nem todos os presos
políticos chegaram a ter consciência política. Muitos foram detidos sem
conhecer a FRELIMO, mas acusados de a apoiar ou fazer parte dela. Se na cadeia
muitos aprenderam o sentido político do projeto nacionalista, outros
permaneceram desidentificados com o projeto emancipador.
Após o 25 de Abril, vários ex-presos políticos e ex-militares do Exército
português envolveram-se profundamente na gestão do país, militando no reforço e
ampliação das estruturas de base da FRELIMO (Mboa, 2009; Langa, 2011). A sua
participação foi fundamental, por exemplo, na organização de uma ampla defesa,
nos bairros da então 'periferia negra' da cidade de Lourenço
Marques, contra as intentonas do 7 de setembro e do 21 de outubro. Como
afirmaram vários entrevistados, foi graças à sua participação ativa que se
evitaram mais pilhagens aos estabelecimentos produtivos e comerciais, e se
impediu uma desordem ainda maior.61
Todavia, a posição da Frelimo em relação aos antigos presos políticos combinava
um misto de reconhecimento, desconfiança e um espírito de 'ajuste de
contas'. A suspeita sobre possíveis traições na cadeia, por parte dos
presos políticos, levou a direção da Frelimo a realizar, em 1978, uma série de
encontros com antigos presos políticos com o objetivo de descobrir
"traições na FRELIMO".62 Jorge Rebelo detalhou as razões destes
encontros, que se estenderam por 3 meses:
Facto é que alguns [dos presos políticos] se revelaram de facto
patriotas e não deram informações sobre a FRELIMO, sobre as redes,
não traíram. Mas outros deram. E nós [Frelimo] não estamos
esclarecidos sobre quem traiu e quem não traiu. Assim, como vocês
[presos] se conhecem e se conheciam muito bem, vamos fazer uma
reunião para, através duma troca de informações, saber exactamente
quem é quem e o que é que fez durante o período em que esteve preso
[…] (Rebelo apud Mateus, 2006: 397)
A diferença entre a justeza da causa dos nacionalistas ex-presos políticos e os
antigos guerrilheiros derivava, como Rebelo acentuaria, na experiência da luta
armada, a verdadeira escola do 'homem novo', do que não trairia a
causa da revolução. Já em relação aos ex-presos políticos, a dúvida mantinha-
se, o que os transformava em nacionalistas de segunda categoria.
A luta armada foi uma escola. Não era só disparar. Foi luta política
e militar. Em relação aos que participaram na luta armada sabemos
quem é quem, dão garantias de que aquilo que estamos a construir
depois da independência vai ser assumido por eles. Quanto a vocês [ex
presos], não passaram por esta escola, portanto a equiparação não
pode ser feita assim, automaticamente. (ibidem: 398)
Para a FRELIMO, um guerrilheiro em qualquer circunstância não trai, não vacila
sequer. E tinha havido vários momentos em que os presos haviam
'colaborado' com as autoridades prisionais; era preciso purificar
esta massa humana que havia apoiado a luta. Se os 'comprometidos',
a exemplo de outras situações de transição, podiam ser detidos e enviados para
a reeducação de forma inescrupulosa, para com os presos políticos a estratégia
teria de ser distinta: havia que denunciar e castigar os que haviam
'traído a causa da luta', mas também importava
'recuperar' os vacilantes e consagrar os heróis.63 Assim, os presos
políticos que haviam traído foram 'condenados a campos de
reeducação', onde se deveriam 'purificar', trabalhando com o
povo. Já os que haviam vacilado (a maioria) tiveram de transformar-se em
'verdadeiros combatentes', conhecendo, durante dois meses, a
preparação político-militar. Esta terminaria em julho de 1978, num encontro em
que vários dirigentes da Frelimo estiveram presentes. Machel na altura
sublinhou:
Vocês eram um terreno que o inimigo tinha fertilizado e que estava
pronto a receber a semente que ele quisesse deitar. Hoje são uma zona
libertada, onde o inimigo não vai encontrar a cumplicidade
voluntária, nem aquela a que vos poderia obrigar, com a ameaça de
revelar o vosso passado.64
Para Marcelino dos Santos, um dos dirigentes históricos da Frelimo, este
processo justificou-se pela necessidade de transformar os antigos presos
políticos em "homens livres, que se tinham libertado a si próprios dos
comportamentos errados que tinham tido na prisão" (Santos apud Mateus,
2006: 477). Esta era uma condição necessária "à sua libertação, porque as
pessoas andavam na rua e […] sabiam que tinham colaborado" (ibidem: 478).
O alerta para esta situação havia surgido ainda antes da independência. Numa
das reuniões preparatórias da organização dos grupos dinamizadores (GD),
realizada ainda durante o governo de transição, em fevereiro de 1975, o então
Primeiro-Ministro, Joaquim Chissano, refletia que, derrotado militarmente, o
inimigo havia adotado novas táticas para assegurar a perpetuação da
"exploração do homem pelo homem e a continuação da opressão do povo
moçambicano".65 O extenso relatório deste encontro inclui uma lista
detalhada dos que, por serem considerados suspeitos, não podiam integrar os
GDs. Esta lista é encabeçada pelos 'comprometidos com o capitalismo
colonial' (ex-PIDEs, ANPs, GEs, GEPs, Comandos, OPVDCs, etc.), abarcando
também os membros das chamadas 'organizações fantoches' (partidos
surgidos após o 25 de Abril e banidos depois de 20 de setembro), e os
'antissociais e adeptos de tendências erradas': os polígamos, as
prostitutas, os burgueses, etc. Como o relatório determinava, os elementos
considerados comprometidos de forma alguma poderiam integrar qualquer das
estruturas da FRELIMO, mesmo que se apresentassem voluntariamente e se
declarassem arrependidos do seu envolvimento com as organizações e instituições
coloniais.
Muitas pessoas que haviam entretanto aderido à Frelimo, especialmente durante o
processo de preparação do III Congresso, foram identificados como
'comprometidos' e expulsos do partido; a nível do aparelho de
Estado e de várias empresas intervencionadas, aconteceram purgas semelhantes.
Em muitos casos, estes elementos foram presos e/ou enviados para a reeducação,
acusados de serem 'agentes do inimigo infiltrados nas estruturas do poder
popular', dando origem a uma ampla campanha de 'reestruturação do
partido'. Em finais de 1978, associado a este evento, e com o aumento da
instabilidade política e militar em Moçambique,66 a direção política da Frelimo
emitiu um comunicado de violento conteúdo. Neste, afirmando-se "a
necessidade de vigilância sobre todos os elementos que estiveram comprometidos
com organizações do colonial-fascismo", estabelecia-se a necessidade de
afixar nos locais de trabalho e de residência listas com os nomes e fotografias
pessoais dos 'comprometidos'. Esta medida visava, de acordo com o
comunicado,
[…] permitir que todo o povo exerça uma vigilância rigorosa e eficaz sobre
estes elementos, muitos dos quais, ainda hoje, levam a cabo acções contra as
nossas conquistas revolucionárias. Só conhecendo, controlando e acompanhando de
perto a vida destes elementos estaremos em condições de libertá-los do
compromisso com o inimigo e reintegrá-los na nossa sociedade.67
Procurando ultrapassar a separação criada entre os que identificava como
'comprometidos' com o processo colonial e a 'população
moçambicana', a estratégia adotada pela Frelimo procurou lidar com a
memória destas ligações coloniais, combinando a punição (apresentação pública
da traição) com processos de purificação (2003: 191). Esta
'purificação' acontecia a dois momentos: através da apresentação,
por escrito, das biografias individuais dos comprometidos, e, posteriormente,
através da demonstração pública do seu arrependimento, chave para a sua
libertação de potenciais chantagens face ao seu passado, agora incómodo, já em
1982.
O último episódio deste processo dá-se nos inícios da década de 1980, durante
uma série de encontros de dirigentes da Frelimo com os
'comprometidos', em vários locais do país. Porque o Governo de
Moçambique não havia optado pela realização de Comissões de Verdade e
Reconciliação, Samora Machel foi abordando esta temática ao longo de vários
discursos, os quais culminaram com a realização de um grande encontro em maio
de 1982, em Maputo. Este encontro, que conheceu ampla divulgação nos média,
ficou conhecido como a 'Reunião com os comprometidos'. O grupo dos
comprometidos, bastante grande e extremamente heterogéneo, incluía todos os que
não 'cabiam' na epopeia histórica do fabrico do homem novo, do
projeto do 'novo homem moçambicano'. No encontro orientado
pessoalmente por Machel, realizado em Maputo, participaram igualmente
importantes figuras da direção do partido-estado. Estes encontros, e o processo
de 'integração' destes comprometidos, podem ser vistos como um
projeto não oficial de busca da verdade, que procurou elucidar, clarificar e
dar a conhecer a complexidade do percurso histórico destes moçambicanos que
haviam traído a causa da luta nacional. Importava refazer o percurso da
memória, tinha de se reeducar a memória pelo esquecimento, e foi o que se
procurou fazer.
Foram convocados para o encontro, que se estendeu por vários dias, todos os que
tinham tido a sua imagem afixada nos locais de trabalho e/ou residência. No
discurso de abertura Samora Machel afirmou,
Só revendo o passado conheceremos o presente. Só conhecendo o
presente faremos a perspetiva do futuro. São três elementos
fundamentais na sociedade: o passado, o presente e o futuro. São
histórias... são páginas marcadas pela história. Não podemos ir
contra elas. História é história! […] Vocês foram peças da máquina do
colonialismo. Vocês completavam para o correto funcionamento dessa
máquina. As vossas tarefas e ações eram complementares, concorriam
para o mesmo objetivo. Qual? Impedir a independência, negar
Moçambique. […] Mandámos colocar as vossas fotografias nas vitrinas.
Exigimos as vossas biografias. Fizemo-lo para denunciar o vosso
compromisso, fizemo-lo para que cada cidadão vos pudesse identificar
e conhecer. Fizemo-lo, para que o povo pudesse exercer vigilância
sobre vocês! Foi um ato de justiça!... justiça revolucionária. Nos
outros países teriam sido arrastados para os tribunais. Noutros
países, onde triunfa uma revolução, teriam vos fuzilado. […] Mas,
fizemo-lo também para impedir que tivessem uma vida dupla, para
permitir que se libertassem. Quando expusemos publicamente o vosso
compromisso com organizações e forças repressivas do colonialismo,
destruímos o segredo que vos ligava ao inimigo. Vocês constituíam
reservatório para a qualquer altura o inimigo fazer chantagem com
vocês. […] A libertação é aí mesmo - narração dos sofrimentos.
[…] Hoje, em Moçambique independente, são hoje cidadãos de um país
independente e soberano, respeitado na comunidade internacional!
Libertámos o nosso país para que fossem os moçambicanos a decidir e
determinar sempre os seus destinos.68
Durante o encontro vários outros dirigentes da Frelimo interpelaram vários
moçambicanos envolvidos com a vigência colonial e que, em conversas mais ou
menos espontâneas, iam expondo a razão de terem sido considerados
'comprometidos'. Estes traidores, descritos como as
'minas' deixadas pelo colonialismo, seriam considerados, depois de
reconhecerem a sua culpa, cidadãos plenos. "Já não há PIDEs, já não há
GEs, só há moçambicanos", engajados na reconstrução nacional, afirmou
Machel no final do encontro.69
Este processo de 'recobro' da verdade revela que as contradições
resultantes da tentativa de governar Moçambique assentavam num projeto
desenvolvido nas zonas libertadas por um pequeno grupo de 'puros',
que assumia deter a legitimidade para decidir um 'futuro melhor'
para todos os moçambicanos. A transição de um movimento de guerrilha para um
partido que liderava o poder do Estado moçambicano, como esta análise mostra,
revelou-se muito difícil na capacidade de se 'purificar' de
elementos reacionários que ameaçavam a linha justa da luta. Apesar de
violentas, as opções políticas tomadas durante a guerra nacionalista e nos
primeiros anos da independência tornaram possível a sobrevivência do país e os
que habitavam esse mosaico sociocultural. Quando a lei e as instituições que a
aplicam são vistas pelas novas forças políticas com suspeita, outras formas de
legalidade, revolucionária, impõem-se para a governação desses territórios, nos
novos contextos políticos. O problema surge quando as lideranças políticas do
Estado se alienam profundamente da sua base de apoio, insistindo em
transformar, tal como antes, todos os que não subscrevem o seu projeto político
em inimigos. Confrontados com esta situação, quando uma força política
reivindica uma centralidade omnipresente, como foi o caso da Frelimo, os
cidadãos são obrigados a imaginar o potencial do Estado para controlar e
definir os limites de sua subjetividade e identidade pública.
Como a história recente de Moçambique revela, a luta armada de libertação
nacional não é a única narrativa fundadora da unicidade moçambicana. Houve
outros processos políticos que fizeram avançar a luta e definir as condições
para o seu sucesso (Cabrita, 2000; Peixoto e Meneses, 2013).70 A evolução da
luta nacionalista só pode ser entendida na sua profundidade se, aos fatores e
contradições internas que a influenciaram, se juntarem aqueles que resultaram
do confronto com o poder colonial.
Conclusão
Os discursos políticos oficiais têm refletido, no Moçambique independente, uma
continuidade com muitos elementos desenvolvidos durante a Guerra de Libertação.
A figura do 'inimigo', conhecendo várias metamorfoses, permanece
central à definição do projeto moral subjacente à construção do Estado-nação.
As heranças históricas, como é o caso da questão colonial, são geradoras de
relações (por vezes bastantes conflituais) entre os seus vários potenciais
herdeiros: dividindo e relacionando as partes em simultâneo. Como este texto
analisa, o conjunto das memórias que constituem o Moçambique contemporâneo
integra um universo extremamente amplo, que ultrapassa as memórias do projeto
nacionalista avançado pela direção da Frelimo. E só através da convocação de
todas as memórias - nacionalistas e coloniais - se pode compreender
as múltiplas ruturas e conflitos acontecidos e o seu contributo para a
construção da moçambicanidade.
O estudo dos passados presentes atua, neste contexto, como um idioma crítico
que procura refletir sobre os processos de descolonização nas zonas geradas
pela violência do encontro colonial (Meneses, 2012). Este questionamento
crítico não é um fim em si mesmo, mas um estímulo a uma compreensão mais ampla
das várias tentativas e dos múltiplos processos políticos no país, questionando
a sua ontologia. Porém, a política de construção nacional, associada a
múltiplos esquecimentos, torna difícil questionar as posições autoritárias
adotadas pelo partido no poder, especialmente a partir de 1977-78. Até então,
porque a FRELIMO necessitava de ampliar a sua base de apoio para assegurar a
legitimidade do seu poder, o movimento foi-se ampliando. O processo que
desembocou no III Congresso sugere a implantação de novas regras. A dinâmica
anterior, que funcionava do campo para a cidade, de forma popular e
desorganizada, conhecia uma mudança de sentido inverso: uma Frelimo moderna que
administrava o país a partir da cidade. Era um grupo de 'puros'
que, em torno da figura carismática, autoritária e criadora de Samora Machel,
impunha as regras a partir do topo e exigia que a realidade a eles se
conformasse. Num contexto de monopartidarismo político, a narrativa proposta
pela Frelimo sobre a noção de moçambicanidade revolucionária construiu-se como
a única fonte de autoridade sobre a produção e disseminação de conhecimento
sobre o passado do país. Esta aliança íntima entre política e história foi
geradora de uma narrativa oficial sobre a luta nacionalista, transformando-se
num instrumento que não apenas legitimou a autoridade do partido-estado, como a
transformou numa narrativa praticamente inquestionável.71
Como este texto destaca, a impossibilidade de coexistência e partilha do poder
político entre os movimentos transformados em partidos, explica, no contexto
moçambicano, a perpetuação e proliferação de discursos de ódio contra secções
da comunidade nacional. Estes discursos, e as práticas políticas que motivam,
continuam a ameaçar qualquer política de reconciliação e as tentativas de
construção de um projeto nacional multicultural. Apesar disto, ao longo dos
últimos anos tem-se assistido a uma demanda tímida, mas persistente -
feita por várias pessoas, grupos e movimentos - para que os atos de
violência cometidos no passado recente em Moçambique sejam reconhecidos como
erros históricos, e que os agressores ofereçam desculpas por tais ações. Neste
contexto importa recuperar experiência de processos políticos recentes, em que
todos os cidadãos - vítimas, agressores e espectadores - se
enfrentaram como sobreviventes. A violência colonial gerou vítimas, privou
milhares de pessoas da sua dignidade. A busca da verdade sobre o papel dos
'comprometidos' - repleta ela própria de violentos episódios
- foi uma das formas adotada em Moçambique para lidar com os traumas do
passado colonial.
Em simultâneo, a análise destas acusações de colaboracionismo e traição revelam
a importância deste processo de busca de verdade e de reconciliação na altura.
Nos primeiros anos da independência, estes encontros e as narrativas aí
discutidas ajudaram a gerar uma narrativa credível sobre o sentido da
experiência política em curso, ajudando a manter a ordem social e a reforçar a
autoridade política da FRELIMO. Através da leitura das acusações que pesavam
sobre o grupo significativo dos 'comprometidos' aconteceram
negociações e reivindicações de poder, num ambiente em que as filiações
políticas estavam no centro das disputas. A engenharia social aplicada em
diferentes momentos para lidar com os considerados 'inimigos
íntimos' permitiram um "descolonizar das suas
mentalidades",72 reflexo de processos sociais delicados que contribuíram
para restaurar a dignidade das pessoas envolvidas, aceites como plenamente
moçambicanas. Porém, o projeto nacional, em lugar de promover um sentimento de
pertença a um certo tipo de comunidade territorialmente concentrada,
intergeracional, onde cada cidadão se revê e cuja sobrevivência e prosperidade
este valoriza (Callan, 2006: 533), transformou-se num regime ideológico, que
procurou impor-se hegemonicamente a toda a sociedade moçambicana. O resultado
desta opção são as inúmeras lutas políticas, que refletem narrativas históricas
rivais que procuram descrever e representar o povo, apresentando-se cada
entidade política como o garante da democracia e da defesa dos interesses do
povo. Estes autoritarismos resultam de uma liberalização política, que não é
acompanhada pela democratização das instituições políticas e das regras do jogo
político. O repto atual implica alargar a imaginação sobre a construção de uma
sociedade política e de uma estrutura política capazes de dar aos cidadãos uma
visão coerente dos seus múltiplos passados. Esta exigência prova que a justiça
passa pela reescrita da história, um ato que permite aos grupos marginalizados
e subalternizados ter orgulho nas suas histórias, justificando que a luta
continua pela democratização do acesso ao passado recente. Esta abordagem
remete-nos do passado para o futuro, das lutas pela afirmação do direito à
autodeterminação para a esperança de um futuro de reconhecimento recíproco, de
uma nova estética de partilha (Said, 1977: 353).
Ocultar ou aniquilar a diversidade implica sempre o retorno da exclusão. Este é
um dos desafios que a grande maioria das sociedades ainda não conseguiu
resolver. Ouvir histórias silenciadas, recuperar memórias, é perseguir o
projeto de libertação, alargando-o ao campo analítico das ciências sociais e
das humanidades. Os intelectuais críticos comprometidos têm de ter a coragem de
assumir posições públicas, e esta coragem de contribuir para reforçar a sua
autoridade. Sublinhando a importância deste tema, Thandika Mkandawire (2004)
tem vindo a incitar os intelectuais africanos a assumirem um papel mais
central, como agentes de mudança política no continente. Este texto mostra que
a história pode ter uma experiência vivida pública, num contexto onde o passado
é um tema de luta do quotidiano. A força dos intelectuais é imprescindível para
apoiar a reescrita, no plural, e em contenda, da história política que
identifica os moçambicanos. O direito às histórias, em debate, implica ir muito
além do projeto político nacional, das memórias oficiais do Estado; implica
recuperar outras memórias e experiências, amplificando imaginários geradores de
novas relações e sujeitos, como forma de atrair ao cânone outros momentos,
outras narrativas, ecoando o apelo de Aimé Césaire (1955) a uma democratização
da História.