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EuPTHUHu0003-25732007000400011

EuPTHUHu0003-25732007000400011

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0003-2573
Year2007
Issue0004
Article number00011

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O Roubo das Almas: Salazar, a Igreja e os Totalitarismos (1930-1939) Valentim Alexandre, O Roubo das Almas. Salazar, a Igreja e os Totalitarismos (1930-1939), Lisboa, Dom Quixote, 2006, 464 páginas.

Até relativamente pouco tempo, o nome de Valentim Alexandre surgia sobretudo associado à temática da questão colonial portuguesa, com especial referência para o período oitocentista. O fim do império brasileiro e a reorientação do foco expansionista português para África, as polémicas em torno da abolição do tráfico negreiro, os debates e as correntes ideológicas relacionadas om o surto imperial de finais do século xix, constituíam o seu terreno de investigação preferencial. Obras como Os Sentidos do Império (1993), o Império Africano, 1825-1890(1998), assim como os seus capítulos no 4.º volume da História da Expansão Portuguesa, dirigida por Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (1998), impuseram-se como marcos fundamentais para qualquer estudioso do moderno colonialismo português o mesmo se podendo dizer das suas trocas de argumentos com Pedro Lains e João Pedro Marques em revistas como a Penélope em torno de algumas das problemáticas atrás referidas.

Mais recentemente, Alexandre tem vindo a alargar o âmbito das suas pesquisas ao século xx, designadamente ao estudo da questão colonial durante o Estado Novo.

Foi, por exemplo, um dos primeiros autores a chamar a atenção para o papel da crise colonial na derrocada da I República e na afirmação da supremacia de Salazar no interior da ditadura; por outro lado, é de salientar o seu papel pioneiro na contextualização dos discursos mais marcantes do imaginário colonial português ao longo dos vários regimes políticos do século xx.

Numa época em que as interpretações economicistas do fenómeno colonial começaram a cair em desuso, Alexandre distinguiu-se pela sua especial sensibilidade ao peso dos factores ideológicos, ou, se quisermos, à cultura política dos agentes históricos. Essa dimensão está bem patente nos seus ensaios publicados na década de 90 sobre a influência de figuras como Oliveira Martins, Norton de Matos e Armindo Monteiro na cristalização de uma série de visões, mitos e crenças relativos ao ultramar e à «missão civilizacional» dos portugueses.

O seu mais recente livro está em consonância com esta abordagem. Na realidade, O Roubo das Almas(expressão com que alguma imprensa católica portuguesa aludia às crianças do País Basco levadas para a Inglaterra e a URSS após a tomada daquela província pelas forças franquistas) é muito mais do que um estudo da política externa portuguesa na conjuntura crítica de 1930-1939. Sem investigação empírica original, dificilmente Alexandre teria produzido uma obra inovadora sobre os protagonistas, os processos decisórios e o contexto externo da diplomacia do Estado Novo no período que serviu de antecâmara à segunda guerra mundial. De forma oportuna, o autor optou por conciliar o inevitável registo descritivo da história diplomática mais convencional com uma análise ao contexto cultural e ideológico em que os principais decisores portugueses operavam. Daqui resulta um quadro interpretativo mais sofisticado do que aquele de que até aqui dispúnhamos para este período da política externa portuguesa.

Como o processo decisório do Estado Novo estava altamente concentrado na figura de Salazar, a abordagem do autor incidiu, como não podia deixar de ser, na génese e maturação da sua mundividência desde os tempos do seminário em Viseu à militância no CADC e Centro Católico até ao ingresso nos governos da ditadura militar. A partir dos seus textos doutrinários e discursos políticos, Alexandre procura reconstituir e interpretar o pensamento de Salazar face às principais correntes e sensibilidades católicas do seu tempo tanto em Portugal como na Europa. Identifica como as duas fontes essenciais da sua formação o neotomismo, no plano filosófico e teológico, e a democracia cristã, no plano político e social. Cada uma a seu modo, ambas representaram o esforço empreendido pela Igreja de Roma para se adaptar às transformações geradas pelo liberalismo, pela secularização e pela modernização económica e social das sociedades europeias.

A primeira sancionou uma atitude de maior abertura aos avanços da ciência e do pensamento contemporâneos, arejando um pouco a atmosfera calafetada dos estabelecimentos de ensino católicos (uma circunstância de que Salazar pôde beneficiar enquanto seminarista); a segunda incitou os católicos a uma participação política e cívica mais intensa, no âmbito da estratégia de ralliement gizada por Leão XIII em finais do século xix, ao mesmo tempo que procurava dar resposta aos desafios suscitados pela chamada «questão social» (o pauperismo e a atracção das massas trabalhadoras urbanas pelo socialismo).

Como se traduziu o impacto destas influências na mente e na praxispolítica de Salazar? De acordo com Alexandre, a marca do neotomismo pode ser descortinada em vários textos em que o ainda jovem quadro católico definia o «bem comum, distinto da soma dos bens individuais, enquanto fim do Estado», acatava o princípio da «obediência necessária aos poderes constituídos legítimos» e postulava uma «diferenciação e hierarquização dos poderes espiritual e temporal» (p. 18); quanto à influência da democracia cristã, ela é patente tanto nas modalidades de que se revestiu a militância política de Salazar durante a I República como na sua procura, enquanto governante, de uma conciliação entre os conceitos de «democracia orgânica» e organização corporativa. No que ao nacionalismo concerne outra faceta crucial na mundividência de Salazar , ele terá sido assimilado sobretudo através da leitura dos pensadores integristas católicos que entre finais do século xix e inícios do século xx se esforçaram por forjar «um elo, real ou imaginário, entre a religião católica e a identidade nacional, abrindo a porta à simbiose entre a crença religiosa e o culto da pátria» (p. 41).

A singularidade de Salazar reside talvez no facto de ter conseguido harmonizar estas influências com os compromissos próprios do exercício do poder. Nesse sentido, a dicotomia estadista clerical/governante regalista torna-se uma falsa questão. Enquanto governante, Salazar não nunca foi um peão da Igreja, como revelou sempre um extremo cuidado em não ofender a sensibilidade laicizante da maioria do establishment militar. A Concordata, negociada com a Santa entre 1937 e 1940, embora concedendo um tratamento «deferencial e privilegiado à Igreja» (no dizer de Braga da Cruz), veio confirmar o princípio da separação herdado da I República. «Globalmente», conclui Alexandre, «a situação aproximava-se do modelo teorizado pelo tomismo, reconhecendo o Estado a soberania da Igreja no domínio espiritual e o seu poder indirecto no domínio temporal, nomeadamente na regulação dos costumes» (p. 46).

Por outro lado, e em linha com a orientação prevalecente no Vaticano nos anos 30, Salazar preferiu cooptar as elites católicas para o regime por via da sua integração no aparelho de Estado, liquidando assim as hipóteses de um partido confessional em Portugal. No entanto, tal não significa, segundo Alexandre, que o elemento religioso deva ser subestimado numa avaliação do salazarismo. Se este foi alheio a muitas das características associadas aos regimes totalitários de entre guerras (mobilização de massas, culto da violência, expansionismo militar, etc.), , no entanto, uma dimensão peculiar que lhe foi injectada pelo projecto regenerador do catolicismo integrista. Segundo o autor, «a tentação totalitária, com a intromissão policial na vida privada, o desrespeito pelas hierarquias sociais e pelas `instituições naturais', não teve seguimento [...] Mas, em parte por pressão da Igreja, criou-se um regime caracterizado por um tipo específico de repressão, relativamente incruento, mas fortemente opressivo, visando a conformação dos costumes e a supressão das inovações, que cobriu o país como uma capa de chumbo» (p. 189).

A leitura que Alexandre aqui nos deixa afasta-se, pois, de algumas das interpretações mais recentes acerca da forma como o catolicismo estruturou a acção governativa de Salazar, as quais tendem a enfatizar os inúmeros momentos de tensão entre Lisboa e o Vaticano ao longo do Estado Novo para ilustrar a primazia do nacionalismo e da raison d'État nas opções do ditador (v., a este respeito, o livro de Bruno Cardoso Reis, Salazar e o Vaticano,publicado também em 2006). Ou seja, o prisma das relações externas não será o melhor ângulo para se proceder a uma caracterização rigorosa do salazarismo.

Embora um exímio praticante da realpolitik, Salazar não se encaixaria exactamente no perfil do estadista despido de motivações ideológicas, guiado apenas por uma certa concepção do «interesse nacional». Em parte, é a sua fidelidade às perspectivas do catolicismo integrista do início do século que poderá explicar a sucessão de crises e desentendimentos que após a segunda guerra mundial não mais deixariam de ensombrar as relações entre o regime e a Santa . Foi por não se conformar às adaptações realizadas pelo Vaticano ao novo contexto global do pós-guerra (o seu esforço de ir ao encontro das aspirações nacionalistas no mundo colonial, por exemplo) e, sobretudo, ao aggiornamento promovido pelos papas João XXIII e Paulo II que os conflitos de Salazar com certos sectores do catolicismo se tornaram mais frequentes.

As secções de O Roubo das Almas dedicadas à questão de Espanha demonstram, por outro lado, que o factor ideológico nunca esteve arredado das opções de Salazar em matéria de política externa. Contrariando aquela que até havia sido a postura tradicional da diplomacia portuguesa a não ingerência nos assuntos internos do país vizinho , Salazar jogou uma das cartadas mais fortes da sua governação no Verão de 1936, ao apoiar abertamente os generais insurrectos. Com isso ligava de forma inexorável os seus destinos aos de Franco numa altura em que a vitória deste estava longe de ser um dado adquirido e introduzia um foco de potencial perturbação nas relações com a Grã-Bretanha, a potência-chave nos alinhamentos externos de Portugal. O desfecho dessa jogada foi, como se sabe, decisivo para a consolidação do estado Novo.

O enorme destaque dado à dramatização das perseguições políticas e das manifestações de violência anti-religiosa na zona republicana o «terror vermelho» permitiu ao regime integrar ou neutralizar parte das classes médias e chamar a si «sectores afins mas concorrentes (integralistas e nacional- sindicalistas)». E, em termos diplomáticos, a aproximação dos britânicos ao regime de Franco garantia-lhe que a aliança com Londres não seria beliscada pelo aparente ascendente dos simpatizantes do Eixo em Madrid.

Embora concebidas com grande rigor, estas secções acabam por ser as menos originais do livro. Trata-se de um terreno muito pisado pela historiografia das relações externas portuguesas, e a narrativa de Alexandre acrescenta pouco às obras «clássicas» de César Oliveira, Iva Delgado ou Hipólito de la Torre Gómez. Para os iniciados, porém, a obra tem a vantagem de se basear numa bibliografia mais actualizada, tanto nacional como internacional, e de ser servida por uma prosa clara e elegante. Um reparo final. Apesar de a centralidade de Salazar nos processos decisórios associados à política externa ser indiscutível, Alexandre destaca e bem a influência discreta mas preponderante do todo-poderoso secretário-geral do MNE, Luís Teixeira de Sampayo, na formulação e execução dessa política. Contudo, a sua personalidade merecia uma análise mais densa do que aquela que lhe é dedicada aqui. Embora isso exigisse um esforço de investigação original (e não necessariamente fácil, tendo em vista a dispersão dos seus papéis), esta teria sido uma excelente ocasião para projectar um pouco mais de luz sobre o seu estatuto ímpar no aparato diplomático português.

Em suma, pelas perspectivas inovadoras que nos proporciona e pelo rigor e erudição que a sustentam, não podemos senão saudar esta incursão de Valentim Alexandre no domínio da história das relações externas portuguesas e esperar que o seu interesse por esta área de estudos continue a dar frutos.

Pedro Aires Oliveira


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