O Roubo das Almas: Salazar, a Igreja e os Totalitarismos (1930-1939)
Valentim Alexandre, O Roubo das Almas. Salazar, a Igreja e os Totalitarismos
(1930-1939), Lisboa, Dom Quixote, 2006, 464 páginas.
Até há relativamente pouco tempo, o nome de Valentim Alexandre surgia sobretudo
associado à temática da questão colonial portuguesa, com especial referência
para o período oitocentista. O fim do império brasileiro e a reorientação do
foco expansionista português para África, as polémicas em torno da abolição do
tráfico negreiro, os debates e as correntes ideológicas relacionadas om o surto
imperial de finais do século xix, constituíam o seu terreno de investigação
preferencial. Obras como Os Sentidos do Império (1993), o Império Africano,
1825-1890(1998), assim como os seus capítulos no 4.º volume da História da
Expansão Portuguesa, dirigida por Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri
(1998), impuseram-se como marcos fundamentais para qualquer estudioso do
moderno colonialismo português o mesmo se podendo dizer das suas trocas de
argumentos com Pedro Lains e João Pedro Marques em revistas como a Penélope em
torno de algumas das problemáticas atrás referidas.
Mais recentemente, Alexandre tem vindo a alargar o âmbito das suas pesquisas ao
século xx, designadamente ao estudo da questão colonial durante o Estado Novo.
Foi, por exemplo, um dos primeiros autores a chamar a atenção para o papel da
crise colonial na derrocada da I República e na afirmação da supremacia de
Salazar no interior da ditadura; por outro lado, é de salientar o seu papel
pioneiro na contextualização dos discursos mais marcantes do imaginário
colonial português ao longo dos vários regimes políticos do século xx.
Numa época em que as interpretações economicistas do fenómeno colonial
começaram a cair em desuso, Alexandre distinguiu-se pela sua especial
sensibilidade ao peso dos factores ideológicos, ou, se quisermos, à cultura
política dos agentes históricos. Essa dimensão está bem patente nos seus
ensaios publicados na década de 90 sobre a influência de figuras como Oliveira
Martins, Norton de Matos e Armindo Monteiro na cristalização de uma série de
visões, mitos e crenças relativos ao ultramar e à «missão civilizacional» dos
portugueses.
O seu mais recente livro está em consonância com esta abordagem. Na realidade,
O Roubo das Almas(expressão com que alguma imprensa católica portuguesa aludia
às crianças do País Basco levadas para a Inglaterra e a URSS após a tomada
daquela província pelas forças franquistas) é muito mais do que um estudo da
política externa portuguesa na conjuntura crítica de 1930-1939. Sem
investigação empírica original, dificilmente Alexandre teria produzido uma obra
inovadora sobre os protagonistas, os processos decisórios e o contexto externo
da diplomacia do Estado Novo no período que serviu de antecâmara à segunda
guerra mundial. De forma oportuna, o autor optou por conciliar o inevitável
registo descritivo da história diplomática mais convencional com uma análise ao
contexto cultural e ideológico em que os principais decisores portugueses
operavam. Daqui resulta um quadro interpretativo mais sofisticado do que aquele
de que até aqui dispúnhamos para este período da política externa portuguesa.
Como o processo decisório do Estado Novo estava altamente concentrado na figura
de Salazar, a abordagem do autor incidiu, como não podia deixar de ser, na
génese e maturação da sua mundividência desde os tempos do seminário em Viseu à
militância no CADC e Centro Católico até ao ingresso nos governos da ditadura
militar. A partir dos seus textos doutrinários e discursos políticos, Alexandre
procura reconstituir e interpretar o pensamento de Salazar face às principais
correntes e sensibilidades católicas do seu tempo tanto em Portugal como na
Europa. Identifica como as duas fontes essenciais da sua formação o neotomismo,
no plano filosófico e teológico, e a democracia cristã, no plano político e
social. Cada uma a seu modo, ambas representaram o esforço empreendido pela
Igreja de Roma para se adaptar às transformações geradas pelo liberalismo, pela
secularização e pela modernização económica e social das sociedades europeias.
A primeira sancionou uma atitude de maior abertura aos avanços da ciência e do
pensamento contemporâneos, arejando um pouco a atmosfera calafetada dos
estabelecimentos de ensino católicos (uma circunstância de que Salazar pôde já
beneficiar enquanto seminarista); a segunda incitou os católicos a uma
participação política e cívica mais intensa, no âmbito da estratégia de
ralliement gizada por Leão XIII em finais do século xix, ao mesmo tempo que
procurava dar resposta aos desafios suscitados pela chamada «questão social» (o
pauperismo e a atracção das massas trabalhadoras urbanas pelo socialismo).
Como se traduziu o impacto destas influências na mente e na praxispolítica de
Salazar? De acordo com Alexandre, a marca do neotomismo pode ser descortinada
em vários textos em que o ainda jovem quadro católico definia o «bem comum,
distinto da soma dos bens individuais, enquanto fim do Estado», acatava o
princípio da «obediência necessária aos poderes constituídos legítimos» e
postulava uma «diferenciação e hierarquização dos poderes espiritual e
temporal» (p. 18); quanto à influência da democracia cristã, ela é patente
tanto nas modalidades de que se revestiu a militância política de Salazar
durante a I República como na sua procura, já enquanto governante, de uma
conciliação entre os conceitos de «democracia orgânica» e organização
corporativa. No que ao nacionalismo concerne outra faceta crucial na
mundividência de Salazar , ele terá sido assimilado sobretudo através da
leitura dos pensadores integristas católicos que entre finais do século xix e
inícios do século xx se esforçaram por forjar «um elo, real ou imaginário,
entre a religião católica e a identidade nacional, abrindo a porta à simbiose
entre a crença religiosa e o culto da pátria» (p. 41).
A singularidade de Salazar reside talvez no facto de ter conseguido harmonizar
estas influências com os compromissos próprios do exercício do poder. Nesse
sentido, a dicotomia estadista clerical/governante regalista torna-se uma falsa
questão. Enquanto governante, Salazar não só nunca foi um peão da Igreja, como
revelou sempre um extremo cuidado em não ofender a sensibilidade laicizante da
maioria do establishment militar. A Concordata, negociada com a Santa Sé entre
1937 e 1940, embora concedendo um tratamento «deferencial e privilegiado à
Igreja» (no dizer de Braga da Cruz), veio confirmar o princípio da separação
herdado da I República. «Globalmente», conclui Alexandre, «a situação
aproximava-se do modelo teorizado pelo tomismo, reconhecendo o Estado a
soberania da Igreja no domínio espiritual e o seu poder indirecto no domínio
temporal, nomeadamente na regulação dos costumes» (p. 46).
Por outro lado, e em linha com a orientação prevalecente no Vaticano nos anos
30, Salazar preferiu cooptar as elites católicas para o regime por via da sua
integração no aparelho de Estado, liquidando assim as hipóteses de um partido
confessional em Portugal. No entanto, tal não significa, segundo Alexandre, que
o elemento religioso deva ser subestimado numa avaliação do salazarismo. Se
este foi alheio a muitas das características associadas aos regimes
totalitários de entre guerras (mobilização de massas, culto da violência,
expansionismo militar, etc.), há, no entanto, uma dimensão peculiar que lhe foi
injectada pelo projecto regenerador do catolicismo integrista. Segundo o autor,
«a tentação totalitária, com a intromissão policial na vida privada, o
desrespeito pelas hierarquias sociais e pelas `instituições naturais', não teve
seguimento [...] Mas, em parte por pressão da Igreja, criou-se um regime
caracterizado por um tipo específico de repressão, relativamente incruento, mas
fortemente opressivo, visando a conformação dos costumes e a supressão das
inovações, que cobriu o país como uma capa de chumbo» (p. 189).
A leitura que Alexandre aqui nos deixa afasta-se, pois, de algumas das
interpretações mais recentes acerca da forma como o catolicismo estruturou a
acção governativa de Salazar, as quais tendem a enfatizar os inúmeros momentos
de tensão entre Lisboa e o Vaticano ao longo do Estado Novo para ilustrar a
primazia do nacionalismo e da raison d'État nas opções do ditador (v., a este
respeito, o livro de Bruno Cardoso Reis, Salazar e o Vaticano,publicado também
em 2006). Ou seja, o prisma das relações externas não será o melhor ângulo para
se proceder a uma caracterização rigorosa do salazarismo.
Embora um exímio praticante da realpolitik, Salazar não se encaixaria
exactamente no perfil do estadista despido de motivações ideológicas, guiado
apenas por uma certa concepção do «interesse nacional». Em parte, é a sua
fidelidade às perspectivas do catolicismo integrista do início do século que
poderá explicar a sucessão de crises e desentendimentos que após a segunda
guerra mundial não mais deixariam de ensombrar as relações entre o regime e a
Santa Sé. Foi por não se conformar às adaptações realizadas pelo Vaticano ao
novo contexto global do pós-guerra (o seu esforço de ir ao encontro das
aspirações nacionalistas no mundo colonial, por exemplo) e, sobretudo, ao
aggiornamento promovido pelos papas João XXIII e Paulo II que os conflitos de
Salazar com certos sectores do catolicismo se tornaram mais frequentes.
As secções de O Roubo das Almas dedicadas à questão de Espanha demonstram, por
outro lado, que o factor ideológico nunca esteve arredado das opções de Salazar
em matéria de política externa. Contrariando aquela que até aí havia sido a
postura tradicional da diplomacia portuguesa a não ingerência nos assuntos
internos do país vizinho , Salazar jogou uma das cartadas mais fortes da sua
governação no Verão de 1936, ao apoiar abertamente os generais insurrectos. Com
isso ligava de forma inexorável os seus destinos aos de Franco numa altura em
que a vitória deste estava longe de ser um dado adquirido e introduzia um foco
de potencial perturbação nas relações com a Grã-Bretanha, a potência-chave nos
alinhamentos externos de Portugal. O desfecho dessa jogada foi, como se sabe,
decisivo para a consolidação do estado Novo.
O enorme destaque dado à dramatização das perseguições políticas e das
manifestações de violência anti-religiosa na zona republicana o «terror
vermelho» permitiu ao regime integrar ou neutralizar parte das classes médias
e chamar a si «sectores afins mas concorrentes (integralistas e nacional-
sindicalistas)». E, em termos diplomáticos, a aproximação dos britânicos ao
regime de Franco garantia-lhe que a aliança com Londres não seria beliscada
pelo aparente ascendente dos simpatizantes do Eixo em Madrid.
Embora concebidas com grande rigor, estas secções acabam por ser as menos
originais do livro. Trata-se de um terreno já muito pisado pela historiografia
das relações externas portuguesas, e a narrativa de Alexandre acrescenta pouco
às obras «clássicas» de César Oliveira, Iva Delgado ou Hipólito de la Torre
Gómez. Para os iniciados, porém, a obra tem a vantagem de se basear numa
bibliografia mais actualizada, tanto nacional como internacional, e de ser
servida por uma prosa clara e elegante. Um reparo final. Apesar de a
centralidade de Salazar nos processos decisórios associados à política externa
ser indiscutível, Alexandre destaca e bem a influência discreta mas
preponderante do todo-poderoso secretário-geral do MNE, Luís Teixeira de
Sampayo, na formulação e execução dessa política. Contudo, a sua personalidade
merecia uma análise mais densa do que aquela que lhe é dedicada aqui. Embora
isso exigisse um esforço de investigação original (e não necessariamente fácil,
tendo em vista a dispersão dos seus papéis), esta teria sido uma excelente
ocasião para projectar um pouco mais de luz sobre o seu estatuto ímpar no
aparato diplomático português.
Em suma, pelas perspectivas inovadoras que nos proporciona e pelo rigor e
erudição que a sustentam, não podemos senão saudar esta incursão de Valentim
Alexandre no domínio da história das relações externas portuguesas e esperar
que o seu interesse por esta área de estudos continue a dar frutos.
Pedro Aires Oliveira