Currículo e manuais escolares em contexto de flexibilidade curricular: Estudo
de processos de recontextualização
Introdução
No contexto da reorganização curricular do sistema educativo português do
ensino básico, que teve início no ano escolar de 2001/2002 (Decreto-Lei 6/
2001), foram elaborados dois documentos curriculares orientadores do processo
de ensino/aprendizagem: Competências Essenciais (Departamento de Educação
Básica [DEB], 2001), que define um conjunto de competências consideradas
essenciais no âmbito do desenvolvimento do currículo nacional para o ensino
básico, e Orientações Curriculares (DEB, 2002), cujo texto orienta a gestão dos
conhecimentos e a implementação de experiências educativas, estando estruturado
em torno de quatro temas organizadores: "Terra no Espaço", "Terra em
Transformação", "Sustentabilidade na Terra" e "Viver melhor na Terra".
Estes documentos surgem num contexto de flexibilidade curricular dando "a
possibilidade de cada escola, dentro dos limites do currículo nacional,
organizar e gerir autonomamente todo o processo de ensino/aprendizagem [que]
deverá adequar-se às necessidades diferenciadas de cada contexto escolar,
podendo contemplar a introdução no currículo de componentes locais e regionais"
(DEB, 1999, p. 7). Neste contexto, existe então um espaço privilegiado para a
autonomia das escolas e dos professores, que passam a ter um papel fundamental
na construção do currículo (Flores & Flores, 2000).
No desenvolvimento do seu trabalho, o professor não tem por hábito contactar
directamente com os documentos curriculares, recorrendo usualmente ao manual
escolar (Pacheco, 2001; Santos, 2001). O manual constitui, assim, o principal
mediador curricular, desempenhando um papel fundamental já que comporta e
estrutura um conjunto de informações formais para o contexto de transmissão/
aquisição, determinando os conhecimentos que são discutidos na sala de aula e a
forma como são ensinados. Os manuais têm um forte impacto no que se passa nas
salas de aula: para os alunos representam as próprias disciplinas e para os
professores e pais representam um referencial estável, duradouro das matérias
escolares (Valverde, Bianchi, Wolfe, Schmidt, & Houang, 2002).
Uma vez que os professores tendem a seguir os manuais de forma "obediente"
(Squire, 1992), o currículo construído' pelo professor tende a reflectir mais
a mensagem do manual escolar adoptado na escola do que a mensagem dos
documentos curriculares oficiais. Por sua vez, os manuais escolares tendem a
ser elaborados, principalmente, com base nas directrizes curriculares
específicas da respectiva disciplina (Neves & Morais, 2006).
Tendo presente o grau de autonomia dos vários agentes envolvidos no processo de
ensino/aprendizagem (entre os quais, autores de manuais escolares e
professores), torna-se necessário compreender as transformações que ocorrem na
mensagem dos vários documentos orientadores daquele processo (documentos
curriculares, manuais), uma vez que diferentes concepções sobre o que valorizar
no ensino das ciências poderão conduzir "à construção' de uma diversidade de
programas que, no pior dos cenários, corresponderão a textos com maior ou menor
qualidade' consoante os públicos a que se destinam e a competência dos vários
professores" (Neves & Morais, 2006, p. 88).
O estudo a que se refere este artigo integra uma investigação mais ampla
(Calado, 2007) que envolveu a análise do discurso pedagógico veiculado no
currículo de Ciências Naturais do 3º Ciclo do Ensino Básico e em manuais
escolares de Ciências Naturais, relativamente ao tema organizador "Viver melhor
na Terra", e ainda a análise dos processos de recontextualização que ocorrem
entre estes níveis de desenvolvimento curricular. Estas análises tiveram como
foco quatro características pedagógicas que têm sido apontadas por alguns
estudos (e.g. McComas & Olson, 1998; Morais & Miranda, 1995; Morais
& Neves, 2009; Pires, Morais, & Neves, 2004) como promotoras do
desenvolvimento da literacia científica, nomeadamente a necessidade de, no
ensino das ciências, ser abordado o processo de construção da ciência, serem
estabelecidas relações intradisciplinares (intradisciplinaridade), o nível de
exigência conceptual ser elevado e os critérios de avaliação serem explícitos.
Este artigo foca-se na análise do discurso pedagógico expresso em dois manuais
escolares de Ciências Naturais do 3º Ciclo do Ensino Básico, relativamente às
quatro características pedagógicas anteriormente mencionadas e, através desta
análise, discutem-se os processos de recontextualização que ocorrem na
elaboração de manuais escolares e que transformam, em maior ou em menor grau, a
mensagem contida no discurso pedagógico oficial. Pretende-se investigar o
seguinte problema: Em contexto de flexibilidade curricular, que
recontextualização ocorre na mensagem dos documentos oficiais referentes ao
ensino das ciências quando ela é traduzida na mensagem expressa em manuais
escolares?
Com base neste problema, estabeleceram-se os seguintes objectivos: a) analisar
a mensagem de manuais escolares relativamente às quatro características
pedagógicas seleccionadas; b) caracterizar a extensão e o sentido da
recontextualização presente nos manuais escolares em relação aos documentos
curriculares; e c) reflectir sobre as consequências da recontextualização do
discurso pedagógico na aprendizagem científica de todos os alunos em contexto
de flexibilidade curricular.
A Figura 1 apresenta as relações analisadas: estão presentes os campos de
recontextualização oficial e pedagógica onde têm lugar, respectivamente, a
produção dos documentos curriculares (discurso pedagógico oficial ' DPO) e de
manuais escolares (discurso pedagógico de reprodução ' DPR).
Figura 1
Esquema geral das relações analisadas
Fundamentação teórica
Epistemologicamente, o presente estudo baseia-se no modelo da construção da
ciência de Ziman (1984), que considera cinco dimensões metacientíficas:
filosófica, histórica, psicológica, sociológica interna e sociológica externa.
A dimensão filosófica da ciência refere-se aos aspectos metodológicos usados na
investigação científica. Já a dimensão histórica realça o carácter de arquivo
da ciência e confere-lhe uma perspectiva de actividade dinâmica, que progride
ao longo do tempo. A dimensão psicológica da ciência diz respeito às
características pessoais dos cientistas, relevantes no trabalho que estes
desenvolvem. Quanto à dimensão sociológica interna, está relacionada com as
relações sociais que se estabelecem e que se desenvolvem entre os cientistas,
no seio da comunidade científica, onde se expressam interesses, criam-se
expectativas, ocorrem tensões e conflitos. Por fim, a dimensão sociológica
externa reflecte os efeitos sociais dos avanços da ciência, como os dilemas, os
interesses, as limitações e, segundo Ziman (1984), integra a relação biunívoca
entre a ciência, a tecnologia e a sociedade.
Numa vertente psicológica, o estudo tem em consideração as ideias de Vygotsky
(1978), nomeadamente, sobre a importância do processo de ensino/aprendizagem
estar estruturado de forma a promover um elevado nível de exigência conceptual.
Em termos sociológicos, o estudo baseia-se no modelo do discurso pedagógico de
Bernstein (1990, 2000), o qual constituiu a principal estrutura conceptual
desta investigação. Este modelo possibilita a análise do discurso pedagógico
veiculado em textos produzidos nos vários níveis do sistema educativo, bem como
a análise dos processos de recontextualização que ocorrem entre esses níveis.
De acordo com o modelo do discurso pedagógico de Bernstein (1990, 2000), na
produção e reprodução do discurso pedagógico são considerados três níveis de
análise ' o de geração, o de recontextualização e o de transmissão ' em que nos
dois primeiros níveis ocorre a produção do discurso pedagógico e no terceiro
ocorre a sua reprodução. É no nível de recontextualização, no campo de
recontextualização oficial, onde se inclui o Ministério de Educação, que é
produzido o discurso pedagógico oficial (DPO) que se encontra expresso em
vários textos, como o Currículo Nacional veiculado nas Competências Essenciais
e nas Orientações Curriculares para o 3º Ciclo do Ensino Básico. Este discurso
entra no campo de recontextualização pedagógica, onde se incluem, por exemplo,
departamentos de educação, escolas de formação de professores e instituições de
produção de materiais pedagógicos, como manuais escolares. Através de novos
processos de recontextualização, é produzido o discurso que é veiculado nos
manuais escolares, o discurso pedagógico de reprodução (DPR)1. O discurso
pedagógico é reproduzido ao nível da sala de aula, podendo ainda ser sujeito a
novas recontextualizações que dependem do contexto específico da escola e da
prática do professor.
Consoante a recontextualização do discurso pedagógico ao nível dos campos de
recontextualização oficial e pedagógica, aquele discurso irá veicular uma
determinada mensagem caracterizada por relações de poder e de controlo entre
várias categorias, nomeadamente discursos (e.g. relações intradisciplinares e
interdisciplinares), espaços (e.g. professor/aluno) e sujeitos (e.g. Ministério
de Educação/autores de manuais e professores, professor/aluno). Para
caracterizar as diversas formas de poder e de controlo são usados os conceitos
de classificação e de enquadramento, respectivamente (Bernstein, 1990).
No âmbito de uma análise curricular, a relação entre sujeitos pode ser
referente às relações de poder e de controlo entre o Ministério da Educação e
os autores de manuais escolares/professores, bem como entre os autores de
manuais escolares e os professores. Nestas relações, o Ministério da Educação
apresenta um estatuto sempre mais elevado que os autores de manuais escolares/
professores, ocorrendo fronteiras nítidas entre o transmissor (Ministério da
Educação) e os aquisidores (autores de manuais escolares/professores), isto é,
valores fortes de classificação. Esta tendência é igualmente verificada na
relação entre os autores de manuais escolares e os professores. No entanto,
podem-se constatar diferentes valores de enquadramento, sendo que os valores
fortes ocorrem quando as categorias de maior estatuto (Ministério da Educação
ou autores de manuais escolares consoante a relação considerada) assumem o
controlo da relação. Os valores fracos registam-se quando as categorias de
menor estatuto (autores de manuais ou professores consoante a relação
considerada) detêm algum controlo.
O texto dos manuais escolares (DPR), através dos componentes constituintes e da
sua organização, veicula então uma determinada mensagem sociológica para o
professor/aluno. Tal como os manuais escolares reflectem as interpretações que
os respectivos autores fazem dos documentos curriculares, também os professores
tomam decisões e fazem interpretações da mensagem dos manuais escolares, e dos
próprios documentos curriculares, de acordo com as suas concepções pedagógicas/
ideológicas e sob influências externas (económicas, ideológicas e académicas).
Ou seja, um manual pode incorporar uma mensagem diferente da mensagem dos
documentos curriculares, ou mesmo diferente daquela que os autores se propunham
passar, e os professores podem desenvolver um contexto de ensino/aprendizagem
diferente daquele que os manuais preconizam. Neste sentido, é importante que os
autores de manuais escolares (em geral, professores), ao elaborarem os textos,
considerem que as aprendizagens que aqueles veiculam poderão traduzir-se em
determinadas relações sociais e que essas aprendizagens resultam de relações
sociais reguladas pelos documentos curriculares.
Num contexto de flexibilidade curricular, em que a escola tem mais autonomia,
os autores de manuais escolares e professores dispõem de mais controlo sobre
várias opções para o contexto de ensino/aprendizagem ' por exemplo, o controlo
sobre a selecção e a sequência dos conhecimentos a leccionar. Esta situação
favorece o aparecimento de um potencial espaço de mudança que será tanto maior
quanto maior for o grau de recontextualização sofrido pelo discurso pedagógico.
Este espaço de mudança permite ao professor, por exemplo, a implementação de
várias modalidades de prática pedagógica que, por sua vez, podem provocar
alterações no padrão diferencial do sucesso escolar dos alunos. Com efeito, num
contexto de flexibilidade curricular, a maior autonomia da escola/professor
pode representar potencialidades, mas também limitações, para uma efectiva
alfabetização científica de todos os alunos.
Considerando que, em Portugal, para um mesmo programa é editada uma variedade
de manuais de diferentes autores, vão surgir manuais com diferentes mensagens
sociológicas, com diferentes relações sociais de poder e de controlo. A
selecção de manuais pelos professores (isto é, a selecção de uma mensagem)
poderá traduzir diferentes concepções pedagógicas/ ideológicas dos professores,
que, por sua vez, poderão induzir desigualdades na aprendizagem dos alunos
(Neves, 1991). O uso do manual escolar tem sido uma prática recorrente no
ensino das ciências (Santos, 2001), sendo que o modo como os professores o
valorizam influencia a forma como os alunos perspectivam a natureza da ciência
(Castro & Cachapuz, 2005).
De um ponto de vista de desenvolvimento curricular, Pacheco (2001) salienta
alguns aspectos positivos e outros negativos sobre o papel dos manuais
escolares. Como aspectos positivos refere a diversificação de actividades, a
motivação dos alunos com o aspecto gráfico e icónico e a oferta de um guia de
estudos, com possibilidades de utilização autónoma. Em termos de aspectos
negativos, destaca o facto de os manuais criarem hábitos de rotinização de
práticas lectivas, de levarem à uniformização curricular e a um controlo
implícito sobre os professores. Também Santos (2001), tendo a percepção da
posição de destaque deste material curricular no ensino das ciências, refere
algumas influências daquele, das quais se destacam: a selecção e sequência dos
conhecimentos que, ao serem entendidos como "naturais", oferecem poucas
oportunidades de abertura a outras vias; a lacuna de um quadro conceptual de
referência, que poderá conduzir a um saber em mosaico e ao recurso a
simplificações excessivas que contribuem para a fragmentação do saber; a
aceitação da resposta certa' tal como aparece no manual; e a atribuição de um
estatuto periférico e pouco claro às interacções entre ciência, tecnologia e
sociedade.
Neste estudo, a análise das aprendizagens que são privilegiadas no discurso
pedagógico veiculado em manuais escolares incidiu sobre o grau de complexidade
das competências (metacientíficas e científicas) e dos conhecimentos
(metacientíficos e científicos), sobre o grau de intradisciplinaridade (entre
conhecimentos científicos e metacientíficos e entre diferentes conhecimentos
científicos) e sobre o grau de explicitação dos critérios de avaliação (quanto
aos conhecimentos metacientíficos e quanto às relações intradisciplinares),
quando se considera a relação entre autores de manuais escolares e professores.
De acordo com McComas, Clough, e Almazroa (1998), um objectivo central no
ensino das ciências deverá ser levar os alunos a compreender a natureza da
ciência, os seus pressupostos, valores, finalidades e limitações. A abordagem à
natureza da ciência ' processo de construção da ciência ' no ensino das
ciências aponta para um ensino que motiva os alunos para a aprendizagem
científica, desenvolve o pensamento crítico, esbate as fronteiras entre as
ciências e as metaciências, analisa questões de cariz político, económico,
ético e social da ciência e da tecnologia, e promove a alfabetização científica
de todos para que possam exigir dos diferentes poderes decisões fundamentadas
(Fontes & Silva, 2004).
Outros estudos (e.g. Domingos, 1989; Morais & Neves, 2003; Pires, Morais,
& Neves, 2004) têm revelado que, para a promoção da literacia científica de
todos os alunos, o contexto de ensino/aprendizagem deve basear-se, entre outras
características, numa forte intradisciplinaridade, num elevado nível de
exigência conceptual e em critérios de avaliação explícitos. A necessidade do
processo de ensino/aprendizagem promover um elevado nível de exigência
conceptual é também explicada pelo trabalho de Vygotsky (1978), ao referir que
a instrução deverá ir mais além do nível de desenvolvimento cognitivo dos
alunos, no sentido de proporcionar o desenvolvimento de processos mentais
elevados. O elevado nível de exigência conceptual no contexto de ensino/
aprendizagem pode ser estabelecido através da articulação entre conhecimentos,
a qual leva a uma compreensão de conceitos de ordem elevada, com maior poder de
descrição, explicação, previsão e transferência (Morais, 2002). Por sua vez, um
grau elevado de intradisciplinaridade contribui para que o ensino das ciências
se desenvolva conforme a integração que caracteriza a estrutura hierárquica do
conhecimento científico2 (Bernstein, 1999).
Num contexto de elevado nível de exigência conceptual, é igualmente fundamental
tornar os critérios de avaliação explícitos para todos os alunos, ou seja,
explicitar o texto pretendido, de forma a promover uma efectiva alfabetização
científica. Tal como Morais e Miranda (1995) referem:
Os critérios tornam o aquisidor capaz de compreender o que é uma
comunicação, uma relação social e uma posição legítima ou ilegítima.
Admite-se então, na medida em que a compreensão desses critérios
contribui para a produção do texto legítimo, que a aquisição dos
critérios de avaliação é um factor que influencia o aproveitamento
diferencial dos alunos (p. 40).
Neste sentido, na prática pedagógica do professor, assim como nos manuais
escolares, deve estar explícito o que se pretende no processo de ensino/
aprendizagem.
Metodologia
Aspectos gerais
Neste estudo procedeu-se a uma análise documental, enquadrada numa abordagem
metodológica com características de uma metodologia mista de investigação (e.g.
Tashakkori & Creswell, 2007; Morais & Neves, 2007). A orientação
metodológica geral deste estudo foi de índole racionalista (mais associada a
metodologias quantitativas) pelo facto de se ter recorrido a um quadro teórico
de referência, nomeadamente a teoria de Bernstein, para orientar a
investigação. Além disso, para a construção dos instrumentos de análise dos
documentos estabeleceram-se, a priori, com base em elementos teóricos, as
categorias e os indicadores de análise relacionados com as características
pedagógicas seleccionadas. No entanto, para o estabelecimento dos descritivos
foram considerados os dados empíricos obtidos nos estudos exploratórios
efectuados nos documentos (característica mais associada às metodologias
qualitativas), procurando-se assim construir categorias mais apropriadas ao
contexto da análise. Ao nível da análise dos dados, seguiram-se procedimentos
metodológicos fundamentalmente de natureza qualitativa, tendo-se procedido a
uma análise interpretativa.
A dialéctica entre o teórico e o empírico que se manteve no estudo conduziu à
construção de instrumentos de análise baseados na realidade em estudo e no
quadro teórico de suporte. A manutenção desta dialéctica foi possível dado o
rigor conceptual da teoria de Bernstein que, com uma linguagem de descrição
interna possuidora de gramáticas fortes, permite o desenvolvimento de
linguagens de descrição externa que, por sua vez, possibilitam a orientação de
análises empíricas mais sistematizadas. Tal como Morais e Neves (2007)
defendem:
Rejeita-se quer a análise do empírico sem uma base teórica, quer a
utilização de teoria que não permita a sua transformação com base no
empírico (p. 78).
Para este estudo foram escolhidos os dois manuais escolares (MA e MB) mais
seleccionados no ano escolar 2004/20053 quanto ao tema organizador "Viver
melhor na Terra" de Ciências Naturais do 3º Ciclo do Ensino Básico e, no âmbito
deste tema organizador, foi estudado o tópico programático "Organismo humano em
equilíbrio". A escolha do tema organizador tem inerente o facto de, na
reorganização curricular de 2001, ressurgir a atribuição de carga horária para
a disciplina de Ciências Naturais ao nível do 9º ano de escolaridade, sendo que
o tema "Viver melhor na Terra" é o que tem sido desenvolvido a esse nível, isto
é, no último ano de escolaridade do 3º Ciclo do Ensino Básico. A selecção do
tópico "Organismo humano em equilíbrio" teve a ver com o facto de constituir um
dos tópicos com maior representatividade nos manuais seleccionados.
Em termos da organização do texto dos manuais, estabeleceram-se quatro secções
que permitiram categorizar toda a informação destes (conhecimentos,
finalidades, orientações metodológicas e avaliação). Procedeu-se à fragmentação
do texto dos manuais em partes analisáveis ' as unidades de análise (UA)4 ',
determinando-se que uma unidade de análise corresponde a um excerto do texto
que, no seu conjunto, tem um determinado significado semântico.
Tal como referido anteriormente, a dialéctica constante entre o teórico e o
empírico sustentou reformulações nas UA e nos instrumentos de análise
construídos, conduzindo a uma maior consistência entre os objectivos da
investigação e a recolha de dados. Por outro lado, também os resultados da
análise foram aferidos, independentemente, por outra investigadora,
familiarizada com o enquadramento teórico do estudo.
Instrumentos de análise de manuais escolares
A análise de manuais escolares (DPR) teve como objectivos verificar, em termos
das quatro características pedagógicas em estudo ' construção da ciência,
intradisciplinaridade, nível de exigência conceptualecritérios de avaliação ',
qual a mensagem que aqueles veiculam e caracterizar os processos de
recontextualização que ocorrem no DPR relativamente ao currículo (DPO). Assim,
foi necessário proceder-se, numa primeira fase do estudo, à elaboração,
pilotagem e aplicação de instrumentos5 para a análise da mensagem sociológica
veiculada no currículo (DPO)6, expresso nos documentos Competências Essenciais
e Orientações Curriculares. Estes instrumentos foram adaptados para serem
aplicados ao contexto dos manuais escolares e, assim, proceder-se à
caracterização dos processos de recontextualização que ocorrem entre os dois
níveis de análise. Os ajustamentos feitos nos instrumentos permitiram a
comparação entre as duas mensagens, em que os descritivos dos instrumentos
mantiveram a conceptualização equivalente aos vários graus considerados.
Os instrumentos usados no estudo das características pedagógicas em foco foram
elaborados com base em instrumentos desenvolvidos em investigações anteriores
(e.g. Castro, 2006; Neves & Morais, 2001). Para a caracterização do
processo de construção da ciência foram elaborados dois instrumentos: um com
uma especificação de conhecimentos e de competências metacientíficos que serviu
de complemento a um outro destinado a avaliar o nível de conceptualização do
domínio metacientífico. Para o estudo da intradisciplinaridade foram também
construídos dois instrumentos: um de avaliação do grau de relação entre
conhecimentos científicos e metacientíficos e outro de avaliação do grau de
relação entre diferentes conhecimentos científicos. A caracterização do nível
de exigência conceptual foi feita com base no cálculo de um índice compósito
que integrou três parâmetros: grau de complexidade de competências cognitivas
científicas; grau de complexidade de conhecimentos científicos; e grau de
intradisciplinaridade entre diferentes conhecimentos científicos. Neste
sentido, foi necessário elaborar mais dois instrumentos: um para a
caracterização do grau de complexidade das competências e outro para a
caracterização do grau de complexidade dos conhecimentos. Por fim, para a
análise do grau de explicitação dos critérios de avaliação, foram elaborados
três instrumentos: um de avaliação do grau de explicitação dos conhecimentos
metacientíficos e dois de avaliação do grau de explicitação das relações
intradisciplinares supracitadas.
A caracterização do processo de construção da ciência baseou-se em conceitos
relativos às cinco dimensões da construção da ciência do modelo de Ziman
(1984): filosófica, histórica, psicológica, sociológica interna e externa.
Neste âmbito, consideraram-se graus de complexidade de conhecimentos
metacientíficos, relativos a cada dimensão da construção da ciência
(conhecimentos de ordem simples e de ordem complexa), e considerou-se a
presença/ausência de competências cognitivas metacientíficas referentes a cada
uma das cinco dimensões, sem, contudo, estarem comprometidas com os respectivos
conceitos (isto porque verificou-se que, geralmente, as competências são
exploradas sem estar prevista a sua relação com a construção da ciência). Para
cada dimensão estabeleceu-se uma escala de quatro graus (G1, G2, G3 e G4) de
complexidade crescente7.
Segue-se um excerto do instrumento de caracterização do nível de
conceptualização do domínio metacientífico, quando se considera a dimensão
filosófica (Tabela I), e duas unidades de análise classificadas de acordo com a
escala deste instrumento.
Tabela I
Excerto do instrumento de caracterização da construção da ciência (dimensão
filosófica)
Unidades de análise
A renovação do ar nos pulmões ou a ventilação pulmonar compreende a
inspiração e a expiração (Manual B. Secção Conhecimentos) ' Grau 1.
Decorrente da abordagem efectuada fica a opção de, neste momento ou
posteriormente, ser efectuada a observação/dissecação de órgãos do
sistema nervoso central (Manual B. Secção Orientações metodológicas)
' Grau 2.
A primeira unidade não faz referência a conhecimentos metacientíficos, apenas
apresentando conhecimentos científicos. Na segunda unidade há referência a
competências associadas à dimensão filosófica (e.g. observação) sem que seja
estabelecida qualquer relação com o processo de construção da ciência.
Na análise da intradisciplinaridade, foram considerados fundamentos teóricos
sobre o significado das relações intradisciplinares em função do conceito de
classificação' da teoria de Bernstein (1990). Através destes pressupostos
teóricos, estabeleceu-se uma escala de quatro graus de classificação (C++, C+,
C- e C--) e construíram-se descritivos, relativos a cada secção dos manuais,
sendo que valores fortes de classificação correspondem a fronteiras bem
definidas e valores fracos traduzem-se no esbatimento das fronteiras entre
discursos. Para a caracterização do grau de intradisciplinaridade entre
conhecimentos científicos e metacientíficosconsiderou-se a ocorrência, ou não,
de relação entre estes dois domínios do conhecimento. Foi também considerada,
para as situações em que ocorre relação, a ocorrência, ou não, da predominância
do conhecimento científico sobre o metacientífico. Para a análise da
intradisciplinaridade entre diferentes conhecimentos científicos teve-se em
consideração vários factores: a ocorrência ou não de relação; o nível de
complexidade dos conhecimentos envolvidos (simples ou complexos); o tema a que
se referem os conhecimentos (ao mesmo ou a temas diferentes); e a omissão de
conhecimentos necessários para a compreensão das relações intradisciplinares.
Neste instrumento, estipulou-se que o nível de complexidade dos conhecimentos
envolvidos na relação assumia uma maior importância para o estabelecimento do
grau de intradisciplinaridade do que o facto de esta ocorrer dentro do mesmo
tema ou entre temas diferentes.
Segue-se um excerto de cada um dos instrumentos de caracterização do grau de
intradisciplinaridade (Tabelas II e III) e unidades de análise classificadas de
acordo com a escala destes instrumentos.
Tabela_II
Excerto do instrumento de caracterização do grau de intradisciplinaridade entre
conhecimentos científicos e metacientíficos
Tabela_III
Excerto do instrumento de caracterização do grau de intradisciplinaridade entre
diferentes conhecimentos científicos
Unidades de análise
Geralmente os alimentos são misturas complexas de várias substâncias
(Manual B. Secção Conhecimentos) ' Grau C++.
Efectua uma pesquisa sobre o trabalho de alguns cientistas que
contribuíram para o conhecimento da circulação sanguínea. Sugerimos-
te, por exemplo, que te debruces sobre os trabalhos de William
Harvey, procurando compreender algumas características da
investigação científica (Manual B. Secção Orientações metodológicas)
' Grau C--.
Na primeira unidade apenas estão presentes conhecimentos científicos (ausência
de relação). Na segunda unidade de análise há uma sugestão de trabalho, que
apela a um esbatimento das fronteiras entre os dois domínios do conhecimento,
havendo referência à relação entre conhecimentos científicos e metacientíficos
(dimensões filosófica e histórica), sendo conferido igual estatuto aos dois
domínios de conhecimento.
Unidades de análise
Relacionar a estrutura e função dos diferentes vasos sanguíneos
(Manual B. Secção Orientações metodológicas) ' Grau C++.
Explicar o fenómeno de hematose pulmonar (Manual A. Secção
Finalidades) ' Grau C-.
Na primeira unidade estão contempladas relações entre conhecimentos de ordem
simples alusivos ao tema sistema circulatório'. Já na segunda unidade estão
contempladas relações entre conhecimentos de ordem mais complexa, pertencentes
ao tema sistema cárdio-respiratório'.
Como referido anteriormente, o estudo do nível de exigência conceptual fez-se
com base no cálculo de um índice compósito que integrou os parâmetros: grau de
complexidade de competências cognitivas científicas e de conhecimentos
científicos e grau de intradisciplinaridade entre diferentes conhecimentos
científicos8.
A análise do grau de complexidade de competências científicas foi feita com
base na versão revista da taxonomia de objectivos educacionais de Bloom
(Krathwohl, 2002), tendo-se considerado quatro níveis de complexidade das
competências cognitivas científicas de acordo com os diferentes processos
psicológicos envolvidos: competências simples de nível baixo; competências
simples de nível elevado; competências complexas de nível baixo; e competências
complexas de nível elevado. Com base nos quatro níveis de complexidade de
competências científicas estabeleceu-se, para cada secção dos manuais, uma
escala de quatro graus (G1, G2, G3 e G4) de complexidade crescente.
Segue-se um excerto do instrumento de caracterização do grau de complexidade
das competências científicas (Tabela IV) e duas unidades de análise
classificadas de acordo com a escala deste instrumento.
Tabela IV
Excerto do instrumento de caracterização do grau de complexidade das
competências cognitivas científicas
Unidades de análise
A circulação do sangue é assegurada pelas contracções do miocárdio
(Manual B. Secção Conhecimentos) ' Grau 1.
Informa-te das normas implementadas pelos poderes públicos, no
sentido de reduzir o consumo do tabaco; verifica se essas normas são
cumpridas nos meios que frequentas; faz uma pesquisa relativamente ao
uso do tabaco na tua escola. Organiza os dados recolhidos e procura
divulgá-los. Planeia uma campanha contra o consumo do tabaco que
possa ser posta em prática junto da tua família, dos teus amigos e
mesmo da tua escola (Manual B. Secção Orientações metodológicas) '
Grau 4.
A primeira unidade de análise apela à memorização, isto é, a competências com
um baixo nível de abstracção. Já a segunda unidade refere-se a uma actividade
que envolve a mobilização de competências complexas, como a análise e a
síntese.
A análise do grau de complexidade dos conhecimentos científicos teve em
consideração diferentes ordens de complexidade dos conhecimentos, tal como
definidos por Cantu e Herron (1978). Os conhecimentos podem ser classificados
como sendo de ordem simples, envolvendo factos generalizados e conceitos de
primeira ordem, e conhecimentos de ordem complexa, onde se incluem conceitos de
segunda e terceira ordens. A categorização dos conceitos em várias ordens
resulta de uma hierarquia estabelecida entre níveis de abstracção e de
percepção. Com base nestes princípios estabeleceu-se uma escala de três graus
(G1, G2 e G3) de complexidade crescente.
Segue-se um excerto do instrumento de caracterização do grau de complexidade
dos conhecimentos científicos (Tabela V) e duas unidades de análise
classificadas de acordo com a escala deste instrumento.
Tabela V
Excerto do instrumento de caracterização do grau de complexidade dos
conhecimentos científicos
Unidades de análise
Conhecer a constituição do sistema respiratório (Manual A. Secção
Finalidades) ' Grau 1.
Complementando conhecimentos adquiridos, pretende-se que a abordagem
deste subtema conduza à compreensão integrada das interacções dos
diferentes órgãos em funcionamento (Manual B. Secção Orientações
metodológicas) ' Grau 3.
Na primeira unidade são referidos conhecimentos com um baixo nível de
abstracção. A segunda unidade faz referência a um tema integrador '
funcionamento do organismo como um todo ' relativamente ao tópico "Organismo
humano em equilíbrio".
Para a análise dos critérios de avaliação, na relação autores de manuais
escolares-professores, foram apenas consideradas as unidades de análise
referentes a indicações para o professor, visto que é nesse espaço que se torna
mais evidente o grau de explicitação dos autores dos manuais escolares
relativamente à mensagem que pretendem transmitir. Nos instrumentos de análise
foram considerados fundamentos teóricos sobre o significado dos critérios de
avaliação em função do conceito de enquadramento' da teoria de Bernstein
(1990). Com base nestes pressupostos teóricos, estabeleceu-se uma escala de
quatro graus de enquadramento (E++, E+, E- e E--) e construíram-se descritivos
relativos a cada secção dos manuais. Os valores fortes de enquadramento
correspondem a uma clara explicitação do texto pretendido e os valores fracos
traduzem-se numa fraca explicitação daquele.
Na análise do grau de explicitação do processo de construção da ciência,
considerou-se a ocorrência de referência (mais ou menos genérica) a
conhecimentos metacientíficos e a ocorrência da explicação dos conhecimentos no
âmbito do ensino/aprendizagem da metaciência, ao nível do ensino das ciências
ou na perspectiva do currículo.
Na análise do grau de explicitação das relações intradisciplinares, quer entre
conhecimentos científicos e metacientíficos, quer entre diferentes
conhecimentos científicos, teve-se em consideração a ocorrência de referência
(mais ou menos genérica) às relações a estabelecer e a ocorrência da explicação
(mais ou menos pormenorizada) do significado das relações a estabelecer.
Segue-se um excerto de cada um dos instrumentos de caracterização do grau de
explicitação dos critérios de avaliação (Tabelas VI, VII e VIII) e unidades de
análise classificadas de acordo com a escala destes instrumentos. Em nenhuma
das unidades de análise foram atribuídos os graus mais elevados da escala de
enquadramento, o que mostra, desde logo, um baixo nível de explicitação do
texto veiculado nos manuais.
Tabela VI
Excerto do instrumento de caracterização do grau de explicitação dos critérios
de avaliação relativamente a conhecimentos de ordem simples (grau 2) relativos
a dimensões da construção da ciência
Tabela VII
Excerto do instrumento de caracterização do grau de explicitação dos critérios
de avaliação relativamente à intradisciplinaridade entre conhecimentos
científicos e metacientíficos (graus C- e C-- do instrumento da Tabela_II)
Tabela VIII
Excerto do instrumento de caracterização do grau de explicitação dos critérios
de avaliação relativamente à intradisciplinaridade entre diferentes
conhecimentos científicos (grau C- da Tabela_III)
Unidade de análise
Sugere-se a referência ao médico português Egas Moniz (29-11-1874 a
13-12-1955). Após cuidadoso estudo experimental, fez em 1927 a
primeira angiografia cerebral no Homem. Dada a confiança no valor
científico deste investigador, a sua iniciativa foi rapidamente
aceite e praticada nas principais clínicas neurológicas e
psiquiátricas do mundo. Em 1949 foi-lhe concedido o Prémio Nobel
(Manual B. Secção Orientações metodológicas) ' Grau E--.
Nesta unidade de análise estão contemplados conhecimentos de ordem simples
relativos às dimensões filosófica, sociológica interna e externa, mas em que os
conhecimentos são referidos de uma forma muito genérica. Em ambos os manuais
não se registaram unidades atribuídas com o valor de enquadramento E-.
Unidades de análise
Sugere-se a referência ao médico português Egas Moniz (29-11-1874 a 13-12-
1955). Após cuidadoso estudo experimental, fez em 1927 a primeira angiografia
cerebral no Homem. Dada a confiança no valor científico deste investigador, a
sua iniciativa foi rapidamente aceite e praticada nas principais clínicas
neurológicas e psiquiátricas do mundo. Em 1949 foi-lhe concedido o Prémio Nobel
(Manual B. Secção Orientações metodológicas) ' Grau E-.
Devem ser privilegiadas as doenças e as técnicas sobre as quais os alunos
demonstraram maior curiosidade durante a abordagem dos sistemas (Manual A.
Secção Orientações metodológicas) ' Grau E--.
Na primeira unidade de análise, é estabelecida a relação entre conhecimentos
científicos (técnicas de observação do sistema nervoso) e metacientíficos
(dimensões filosófica, sociológica interna e externa), mas em que essa relação
não é explicada. Na segunda unidade de análise, a relação entre os
conhecimentos científico e o metacientífico, na vertente Tecnologia-Sociedade
(dimensão sociológica externa), é referida de forma muito genérica.
Unidades de análise
Nesta altura, pode mais uma vez explorar com os alunos a função das válvulas do
coração, salientando o papel que estas têm no percurso unidireccional da
circulação do sangue. Deve alertar para os perigos que estão associados ao mau
funcionamento destas, tais como o retrocesso do sangue, o que leva a uma
sobrecarga do fluxo sanguíneo nas zonas anteriores à lesão, acompanhado,
geralmente, por um défice às zonas posteriores da lesão (necrose celular)
(Manual A. Secção Conhecimentos) ' Grau E-.
Consideramos que o conceito de enzima é fundamental para a relação que os
alunos devem estabelecer entre a função do sistema digestivo e o fenómeno da
digestão (Manual A. Secção Conhecimentos) ' Grau E--.
Na primeira unidade de análise, é especificada a relação a estabelecer entre
conhecimentos de ordem complexa e entre estes e conhecimentos de ordem simples,
em termos da estrutura e funcionamento do órgão coração. Na segunda unidade de
análise, apesar da referência ao conceito de enzima, há apenas uma menção à
relação a estabelecer entre o sistema digestivo e o fenómeno da digestão.
Apresentação e análise dos resultados
Processo de construção da ciência
Os resultados da análise das dimensões do processo de construção da ciência
presentes nos dois manuais escolares em estudo (MA, MB) encontram-se expressos
na Figura 2, a par dos resultados da análise dessas dimensões nos documentos
curriculares (CE, OC). Para cada dimensão, calculou-se a frequência de excertos
analisados (expressa em percentagem relativa) de acordo com a escala de quatro
graus dos respectivos instrumentos.
Figura 2
Processos de recontextualização entre a mensagem dos manuais (MA e MB) e a
mensagem do currículo (CE e OC) relativamente ao processo de construção da
ciência (DF ' dimensão filosófica; DH ' dimensão histórica; DP ' dimensão
psicológica; DSI ' dimensão sociológica interna; DSE ' dimensão sociológica
externa)
Constata-se que em ambos os manuais escolares o processo de construção da
ciência não é valorizado. De facto, quando se consideraram todas as referências
ao domínio metacientífico, independentemente da dimensão, verificou-se que 94%
do texto do manual A e 84% do manual B não mencionam nem conhecimentos, nem
competências metacientíficos.
Não ocorre, em qualquer dos manuais, alusão à dimensão psicológica da
construção da ciência e a abordagem às dimensões histórica e sociológica
interna é muito pouco expressiva. As dimensões filosófica e sociológica externa
são as mais focadas e, mesmo assim, numa diminuta percentagem ao nível do grau
2, o que significa que elas são abordadas em termos das competências que lhes
estão associadas ou de conhecimentos de ordem simples. Estas competências são
indicadas, sobretudo, ao nível das actividades de aprendizagem, referindo-se,
maioritariamente, a capacidades de observação e interpretação de dados
experimentais e de interpretação de representações gráficas. A dimensão
sociológica externa é explorada sobretudo ao nível dos conhecimentos de ordem
simples, os quais focam, maioritariamente, a relação entre os avanços
tecnológicos e os diagnósticos de doenças e avaliação da condição física,
explorando de uma forma mais directa a relação entre a tecnologia e a
sociedade. Comparativamente, o manual B apresenta uma maior expressão da
metaciência, com mais referências a competências metacientíficas referentes à
dimensão filosófica. No entanto, essas competências não são explicitamente
relacionadas com a construção da ciência, não havendo assim um contributo para
a compreensão desta. Em termos dos processos de recontextualização, que têm
lugar na passagem dos documentos curriculares para os manuais escolares, os
resultados mostram que eles se traduzem, em geral, numa diminuição acentuada do
grau de expressão da construção da ciência nos manuais. Este facto é
particularmente evidente ao nível da dimensão sociológica externa, nomeadamente
quando se compara a mensagem dos manuais com a mensagem expressa no documento
Competências Essenciais.
Intradisciplinaridade entre os conhecimentos científico e metacientífico e
entre diferentes conhecimentos científicos
A Figura 3 expressa os resultados obtidos na análise da intradisciplinaridade
entre conhecimentos científicos e metacientíficos (Intra C-M) e entre
diferentes conhecimentos científicos (Intra C-C), ao nível dos manuais (MA, MB)
e dos documentos curriculares (CE, OC).
Figura_3
Intradisciplinaridade entre conhecimentos científicos e metacientíficos (Intra
C-M) e entre diferentes conhecimentos científicos (Intra C-C) nos manuais
escolares (MA e MB) e nos documentos curriculares (CE e OC)
No que concerne à análise da intradisciplinaridade entre conhecimentos
científicos e metacientíficos, é visível, em ambos os manuais, uma elevada
percentagem do texto que refere apenas conhecimento científico sem qualquer
relação com o conhecimento metacientífico (grau C++): 94% do texto no manual A
e 94.5% no manual B. Verifica-se, assim, que em ambos os manuais predominam
valores fortes de classificação que se traduzem em fronteiras bem definidas
entre conhecimento científico e metacientífico. No entanto, observa-se que,
quando ocorre relação entre estes dois domínios do conhecimento, prevalece o
grau de intradisciplinaridade em que o conhecimento científico assume maior
estatuto (grau C-), ou seja, a situação considerada mais favorável para o
ensino das ciências. No manual A é na secção conhecimentos que prevalecem
relações dessa natureza e no manual B é na secção orientações metodológicas.
Em termos dos processos de recontextualização, é visível que estes se traduzem
numa diminuição de referências a relações intradisciplinares entre conhecimento
científico e metacientífico ao nível da mensagem dos manuais, sendo que os
documentos curriculares já veiculam uma mensagem com uma baixa referência ao
estabelecimento de relações a este nível.
A análise da intradisciplinaridade entre diferentes conhecimentos científicos
revela que em ambos os manuais, principalmente no manual A, prevalecem valores
fortes de classificação (77% dos graus C++ e C+ no manual A e 66% no manual B),
ou seja, dominam as relações entre conhecimentos de ordem simples. Cálculos
efectuados a partir dos dados recolhidos mostram que uma percentagem
considerável de indicações nem sequer contempla a intradisciplinaridade entre
diferentes conhecimentos científicos (32% no manual A e 28% no manual B).
Contudo, destaca-se o manual B por ser aquele que mais fomenta o
estabelecimento de relações entre conhecimentos científicos de ordem complexa
(graus C- e C--), contribuindo, de alguma forma, para uma compreensão mais
abrangente dos conhecimentos científicos. Quando se considera a análise ao
nível das secções, constata-se que, em termos dos objectivos de aprendizagem, o
manual A dá algum destaque às relações entre conhecimentos de ordem complexa
(36% do grau C- ao nível das finalidades); no entanto, estas finalidades não se
traduzem nos conhecimentos explorados, nas actividades de aprendizagem
propostas e nas actividades de avaliação, pois a este nível predominam relações
entre conhecimentos de ordem simples, aqueles que, conceptualmente, envolvem um
menor número de relações, sendo por isso menos abrangentes. No manual B é a
secção avaliação que foca uma maior intradisciplinaridade entre conhecimentos
complexos (48% graus C- e C--).
Quanto aos processos de recontextualização, constata-se que estes se expressam
numa mensagem dos manuais escolares menos eficiente na articulação de ideias e,
por conseguinte, menos eficiente na promoção de uma compreensão mais abrangente
da ciência, já que ambos os manuais apresentam uma menor referência à relação
entre conhecimentos de ordem complexa (graus C- e C--) comparativamente com os
documentos curriculares. A transformação da mensagem torna-se mais evidente
entre as Competências Essenciais e o manual A.
Na análise da intradisciplinaridade entre diferentes conhecimentos científicos,
importa salientar as considerações que se tomaram relativamente à ausência de
conhecimentos considerados necessários para o estabelecimento de relações entre
conhecimentos científicos e a compreensão de conceitos mais abrangentes. Assim,
considerou-se que para as aprendizagens, de final do 3º Ciclo do Ensino Básico,
do tópico "Organismo humano em equilíbrio", seria relevante explicitar a
importância da compreensão de que o organismo tem a capacidade de, dentro de
certos limites, regular o seu meio interno ' conceito de homeostasia (exemplos
como a variação da temperatura em determinadas situações poderiam ser
apresentados). Indicações desta natureza contribuiriam para um entendimento
mais abrangente das relações que se estabelecem entre os vários sistemas do
organismo e orientariam as aprendizagens dos alunos.
Nível de exigência conceptual
No estudo do nível de exigência conceptual, foi calculado o índice compósito
com base em três parâmetros: intradisciplinaridade entre diferentes
conhecimentos científicos, grau de complexidade de competências cognitivas e
grau de complexidade de conhecimentos científicos. Na Figura 4 apresentam-se os
resultados referentes à análise do grau de complexidade das competências e dos
conhecimentos científicos ao nível dos manuais e dos documentos oficiais (a
análise da intradisicplinaridade foi discutida anteriormente, com base na
Figura_3).
Figura 4
Grau de complexidade das competências cognitivas e dos conhecimentos
científicos* nos manuais escolares (MA e MB) e nos documentos curriculares (CE
e OC)
* A escala usada na análise do grau de complexidade dos conhecimentos
científicos apenas contempla três graus (G1, G2 e G3).
Os resultados apresentados na Figura 4 revelam que nos manuais predominam
competências de grau de complexidade baixo (G1 e G2 ' 80% no manual A e 69% no
manual B) e referências a factos generalizados e conceitos simples de 1ª ordem
(G1) ' 73.9% no manual A e 62% no manual B. Chega-se mesmo a verificar que, em
termos de conhecimentos científicos, nos manuais escolares, não são
praticamente referidos temas integradores, constatando-se uma acentuada lacuna
ao nível dos conceitos mais abrangentes que unificam e consolidam as
aprendizagens realizadas. Ora, tratando-se do último ano de escolaridade do
ensino básico, seria de esperar um nível de conceptualização das aprendizagens
mais elevado, já que o tema organizador "Viver melhor na Terra" "constitui o
culminar do desenvolvimento das aprendizagens anteriores e tem como finalidade
capacitar o aluno para a importância da sua intervenção individual e colectiva
no equilíbrio da Terra (...)" (DEB, 2001, p. 146).
No que concerne aos processos de recontextualização que transformam a mensagem
dos manuais a partir da mensagem dos documentos oficiais, constata-se que estes
ocorrem no sentido de uma diminuição das referências que contemplam
competências e conceitos com um grau de complexidade alto. Verifica-se ainda
que o grau de recontextualização é maior entre as mensagens do manual A e do
documento Competências Essenciais.
Através do cálculo do índice compósito (com base nos três parâmetros atrás
mencionados) obteve-se o nível de exigência conceptual veiculado nos manuais e
nos documentos oficiais (Figura 5).
Figura 5
Processos de recontextualização ao nível da mensagem dos manuais (MA e MB)
relativamente à mensagem do currículo (CE e OC), quanto ao nível de exigência
conceptual no domínio científico
A partir do cálculo do índice compósito registou-se um valor de 0.39 no manual
A e 0.45 no manual B. São valores baixos, indicativos de uma mensagem que
orienta o contexto de transmissão/aquisição para um grau de conceptualização
baixo, sobretudo a mensagem do manual A. Como seria de esperar, face à análise
efectuada aos parâmetros usados no cálculo do índice compósito, os processos de
recontextualização que ocorrem entre os documentos curriculares e os manuais
escolares traduzem alterações bastante evidentes nestes últimos, conduzindo a
uma diminuição da conceptualização das aprendizagens, a qual é mais acentuada
entre a mensagem das Competências Essenciais e a do manual A. Com efeito,
embora os dois manuais promovam, principalmente, a memorização (MA) e a
compreensão a um nível simples (MB), o manual B é o que mais fomenta o
desenvolvimento de competências complexas. Por outro lado, o manual B contempla
mais conhecimentos de ordem complexa (38% de G2 e G3) do que o manual A (26.1%
de G2 e G3). Como tal, o nível de exigência conceptual é ligeiramente maior no
manual B.
Critérios de avaliação
A análise do grau de explicitação da mensagem dos manuais escolares incidiu
apenas sobre as indicações, para o professor, referentes ao processo de
construção da ciência e às relações intradisciplinares a estabelecer entre
conhecimentos científicos e metacientíficos e entre diferentes conhecimentos
científicos. No entanto, constatou-se um número muito reduzido de unidades para
a análise pretendida (e.g. apenas 14 unidades de análise referentes a
indicações para o professor mencionam conhecimentos metacientíficos), tornando-
a pouco significativa. Paralelamente, verificou-se que todas as indicações para
o professor referentes a conhecimentos metacientíficos e à
intradisciplinaridade entre conhecimentos científicos e metacientíficos e entre
diferentes conhecimentos científicos não são explícitas ' apenas têm expressão
os graus mais fracos da escala de enquadramento (E-- e E-).
Ao proceder-se à análise dos critérios de avaliação dos mesmos parâmetros ao
nível dos documentos oficiais, verificou-se que, também naquele contexto, a
análise estava confinada a um baixo número de unidades de análise e que a
mensagem dos documentos oficiais é pouco explícita nos parâmetros em causa.
Perante este resultado, coloca-se a hipótese de a fraca explicitação das
aprendizagens, que se verifica ao nível dos documentos curriculares, constituir
uma razão para a fraca explicitação dessas aprendizagens ao nível de manuais
escolares. Estes resultados sugerem que a recontextualização da mensagem dos
documentos curriculares para os manuais escolares pode depender do grau de
explicitação da mensagem daqueles.
Conclusões
Este estudo incidiu sobre a análise do discurso pedagógico veiculado em dois
manuais escolares de Ciências Naturais do 3º Ciclo do Ensino Básico, referentes
ao tema organizador "Viver melhor na Terra", tendo como foco quatro
características pedagógicas centrais no ensino das ciências: processo de
construção da ciência;relações intradisciplinares;nível de exigência
conceptual;e critérios de avaliação. Pretendeu-se também caracterizar os
processos de recontextualização que ocorrem na mensagem do currículo quando
esta é traduzida na mensagem dos manuais escolares, tendo-se, para tal,
procedido, num estudo mais amplo, a uma análise da mensagem dos documentos
curriculares Competências Essenciais e Orientações Curriculares relativamente
àquelas características pedagógicas (Calado, 2007).
Em termos de relevância desta investigação, salientam-se dois aspectos: 1) o
contributo para o corpo de resultados da investigação educacional no domínio da
análise curricular baseados num modelo teórico com uma forte estrutura
conceptual e um forte poder explicativo ' o modelo do discurso pedagógico de
Bernstein (1990, 2000); e 2) a caracterização das (des)continuidades entre as
intenções sobre a aprendizagem científica veiculadas em documentos curriculares
e o modo como essas são expressas em manuais escolares. Com efeito, os
resultados vão ao encontro de outros obtidos em estudos anteriores (e.g.
Santos, 2001; Knain, 2001) que apontam para o facto de existir, nos manuais,
uma discrepância entre a imagem escolar da ciência e o mundo da ciência real,
de estes continuarem a valorizar um ensino transmissivo, contendo textos pouco
reflexivos, focando-se nos produtos da ciência e privilegiando o conhecimento
factual. Esta tendência poderá reflectir a dificuldade dos autores dos manuais
em traduzir os princípios gerais para o contexto mais específico dos manuais
escolares.
No que concerne ao primeiro objectivo proposto neste estudo ' "analisar a
mensagem de manuais escolares relativamente às quatro características
pedagógicas seleccionada" ', verificou-se que a mensagem dos manuais escolares
analisados praticamente não valoriza o processo de construção da ciência, nem a
relação entre o conhecimento científico e a forma como este é construído'
(conhecimento metacientífico). De facto, praticamente só as dimensões
filosófica e sociológica externa apresentam expressão ao nível dos manuais.
Acresce o facto de as referências a metodologias científicas e à relação C-T-S
(Ciência, Tecnologia e Sociedade) se basearem, principalmente, em competências
associadas a estas dimensões, sem que seja estabelecida uma ligação com a
construção da ciência, ou sem se explorarem conhecimentos com um grau de
complexidade elevado. Este resultado revela um afastamento entre a mensagem dos
manuais analisados e um dos actuais objectivos centrais no ensino das ciências:
a compreensão de como se constrói o conhecimento científico.
O estudo também revelou um baixo grau de intradisciplinaridade entre diferentes
conhecimentos científicos, condição que favorece o predomínio de conceitos
científicos menos abrangentes e que envolvem menos relações entre diferentes
conceitos, em detrimento do foco em temas integradores.
Em ambos os manuais ocorre um maior enfoque em competências cognitivas de grau
simples, destacando-se a memorização e a compreensão a um nível simples. Mais
ainda, constatou-se que é ao nível do manual mais seleccionado pelos
professores que ocorre uma menor incidência em competências cognitivas
complexas.
Face ao maior enfoque em competências e conhecimentos de ordem simples e ao
insuficiente estabelecimento de relações intradisciplinares, pode afirmar-se
que o nível de conceptualização das aprendizagens, tal como expresso na
mensagem dos manuais analisados, é baixo.
Quanto ao objectivo "caracterizar a extensão e o sentido da recontextualização
presente nos manuais escolares em relação aos documentos curriculares",
constata-se que os manuais analisados incorporam um elevado grau de
recontextualização das mensagens dos documentos oficiais Competências
Essenciais e Orientações Curriculares, sobretudo das Competências Essenciais,
no sentido de uma menor expressão e menor conceptualização das características
pedagógicas em análise. Constatou-se também que, de um modo geral, a mensagem
de um dos manuais ' o mais seleccionado no ano escolar 2004/05 ' é mais
distante da mensagem dos documentos curriculares do que a mensagem do outro
manual, traduzindo, assim, um grau de recontextualização mais elevado.
Dado que em análises comparativas dos dois documentos curriculares, quanto aos
temas organizadores "Viver melhor na Terra" (Alves, 2007; Calado, 2007) e
"Sustentabilidade na Terra" (Ferreira, 2007; Ferreira & Morais, 2010), se
verificaram processos de recontextualização também traduzidos numa diminuição
da expressão e da conceptualização das características em estudo, pode-se
deduzir que a tendência encontrada é a ocorrência de um decréscimo da expressão
e do grau de conceptualização dessas características quando um texto é
transferido de um contexto para outro. Mais ainda, é de salientar que, nesses
estudos, se constatou que a mensagem dos documentos curriculares já traduz um
grau de conceptualização consideravelmente baixo em ambos os temas
organizadores.
Uma possível hipótese para explicar esta tendência pode estar relacionada com o
baixo grau de explicitação das aprendizagens observado nos documentos
curriculares analisados. Com efeito, os estudos anteriormente citados (Alves,
2007; Calado, 2007; Ferreira, 2007) verificaram que os documentos curriculares
são pouco explícitos relativamente ao processo de construção da ciência e à
intradisciplinaridade entre conhecimentos científicos e metacientíficos e entre
diferentes conhecimentos científicos. Tal significa que os documentos
curriculares, sobretudo as Orientações Curriculares, não explicitam o texto que
valorizam, permitindo um maior controlo aos autores dos manuais escolares e
professores na abordagem do domínio metacientífico e no estabelecimento de
relações intradisciplinares.
Verifica-se, com o presente estudo, que este maior controlo resultou, nos
manuais escolares, num baixo grau de expressão do processo da construção da
ciência e num baixo grau de intradisciplinaridade que, consequentemente,
contribui para um baixo nível de conceptualização das aprendizagens
(maioritariamente, ao nível do manual mais seleccionado). É interessante
verificar que esta tendência foi também constatada por um outro estudo (Alves,
2007), que procedeu à análise das mesmas características pedagógicas que
constituem o foco do presente estudo, em software didáctico relativo ao ensino
das ciências.
Relativamente ao último objectivo do estudo ' "reflectir sobre as consequências
da recontextualização do discurso pedagógico na aprendizagem científica de
todos os alunos em contexto de flexibilidade curricular" ', os resultados
encontrados assumem relevância quando se considera que os autores de manuais
escolares recorrem, sobretudo, às orientações específicas da disciplina
(Orientações Curriculares) para elaborarem os textos dos manuais e que os
professores têm como prática orientar o processo de ensino-aprendizagem pelos
manuais escolares (Neves & Morais, 2006). Ora, os resultados sugerem uma
relação entre o grau de explicitação das aprendizagens e o sentido dos
processos de recontextualização entre os vários documentos e, se se verificou
que estes ocorrem no sentido de uma menor expressão e conceptualização do
processo de construção da ciência, da intradisciplinaridade, das competências e
dos conhecimentos científicos, é legítimo problematizar a inclusão dessas
características no ensino das ciências. Com efeito, num contexto de
flexibilidade curricular, os autores de manuais escolares e os professores,
sobretudo os que revelam lacunas ao nível de formação científica e pedagógica,
poderão não ser capazes de construir' um currículo que tenha em consideração
os resultados de investigação sobre a importância de determinadas
características pedagógicas na aprendizagem dos alunos. Tal como Neves e Morais
(2006) referem:
Uma compreensão distinta dos professores/escolas (e dos autores de
manuais escolares) do que significa uma aprendizagem eficiente, em
termos das especificidades dos alunos, escolas e seus contextos
geográficos, pode restringir, num contexto de flexibilidade
curricular, o sucesso da reforma no que diz respeito ao sucesso de
todos os alunos (p. 17).
Por outro lado, quando os professores adequam o currículo que constroem' às
especificidades dos alunos e escolas poderão promover um processo de ensino/
aprendizagem com diferentes níveis de exigência conceptual, ficando
comprometido o sucesso de uma alfabetização científica de nível elevado para
todos os alunos. De facto, verifica-se que os professores tendem a variar o
nível de exigência conceptual do contexto de ensino/aprendizagem de acordo com
o contexto social onde se inserem, contribuindo, deste modo, para aumentar o
fosso entre alunos de origens sócio-económicas diferentes relativamente à
alfabetização científica (Morais, 1991).
Face ao exposto, consideram-se necessários, nos manuais escolares (e no
currículo), critérios de avaliação explícitos pelo menos ao nível dos
conhecimentos e competências a serem desenvolvidos e da articulação conceptual
entre conhecimentos (intradisciplinaridade), para que os professores promovam
uma aprendizagem científica eficiente. De acordo com Neves e Morais (2006):
[para que] a qualidade de educação exista para todos os alunos,
tornar o currículo flexível não significa deixar para professores/
escolas (e autores de manuais escolares) a selecção dos conceitos,
competências e objectivos a serem desenvolvidos mas a selecção, em
termos de especificidades dos alunos, de actividades que permitam que
todos eles tenham acesso aos mesmos conceitos e a competências de
níveis semelhantes de complexidade (p. 17).
Este estudo realça a importância do papel que os autores de manuais escolares
(e os professores) podem desempenhar no grau e sentido da recontextualização da
mensagem pedagógica contida nos documentos curriculares oficiais. Com a maior
autonomia de que dispõem, os autores de manuais (e os professores) poderão
recontextualizar a mensagem dos documentos curriculares (e dos manuais) no
sentido de veicular uma mensagem que promova uma compreensão mais aprofundada
de conhecimentos relacionados com a construção da ciência e sua relação com os
conhecimentos científicos. Neste sentido, o estudo aponta para a importância da
formação de professores, para que a maior autonomia de que dispõem lhes permita
uma recontextualização dos princípios orientadores dos documentos curriculares
e manuais escolares, de modo a que todos os alunos tenham acesso a uma educação
que promova uma alfabetização científica de nível elevado.
A importância da formação de professores assume outra relevância quando
pensamos que a equipa de autores de manuais escolares é constituída, também,
por professores, funcionando estes como agentes que operacionalizam os
processos de recontextualização ao nível do campo de recontextualização
pedagógica.
Ainda no âmbito da formação de professores, há um último aspecto que importa
mencionar e que se prende com o facto de os manuais analisados neste estudo
terem sido os mais seleccionados pelos professores no ano escolar em que a
actual reorganização curricular entrou em vigor (2004/05). Dado o facto de se
verificar uma preferência diferencial dos professores pelos manuais disponíveis
no mercado e de a prática pedagógica a que estes podem induzir ter implicações
na socialização dos alunos, torna-se "crucial que o professor tome consciência
do espaço de autonomia que ele pode ter na selecção dos livros" (Neves, 1991,
p. 96) e na transformação da mensagem que estes veiculam (particularmente da
mensagem dos manuais alvo deste estudo). Castro e Cachapuz (2005) destacam o
papel do professor na articulação manual-aluno e reforçam a necessidade de
formação (inicial e contínua) dos professores no que concerne à selecção e
utilização deste material curricular. Mais, acrescentam que uma boa utilização
do manual escolar passa por encará-lo como uma fonte de sugestões ou de
consulta, sendo uma das estratégias de sala de aula possíveis, entre tantas
outras.