A arte xávega na Praia da Vieira: Histórias e imagens
FRANCISCO ONETO NUNES
A ARTE XÁVEGA NA PRAIA DA VIEIRA. HISTÓRIAS E IMAGENS
Vieira de Leiria, Junta de Freguesia de Vieira de Leiria, 2004.
Este livro de Francisco Oneto Nunes é como que um voo de baixa altitude sobre a
Praia da Vieira, que nos possibilita ver, simultaneamente, detalhes e momentos
pretéritos (as fotografias que os fixaram) e o seu enquadramento num todo maior
(os textos que agora as situam). Isto, através duma janela temporal que à
cronologia e à sucessão dos factos sobrepõe a percepção do devir da arte
xávega.
Em 1993, Francisco Oneto Nunes publicava uma extensa monografia de Vieira de
Leiria (Vieira de Leiria, a História, o Trabalho, a Cultura
). A praia não era o seu objecto central, no entanto a arte xávega e as suas
gentes assumiam posições que, no texto, denunciavam o interesse do autor agora
evidenciado neste volume de grande beleza estética e síntese rigorosa.
O autor sugere quatro momentos para uma leitura histórica da Praia da Vieira e
da arte: Antecedentes, a colonização dos areais da praia que não terá
começado muito antes dos finais do século XVIII (pp. 19-35); O Tempo dos
Senhorios, a lógica capitalista que concentrava a propriedade das companhas
nas mãos de alguns senhorios e reproduzia a pobreza (pp. 36-53); O Tempo das
Sociedades, o corporativismo do Estado Novo e a distribuição do risco
económico por um colectivo de sócios (pp. 54-153); O Tempo da Resistência, a
progressiva desintegração das grandes companhas e a persistência de alguns
homens no uso da arte (pp. 154-163).
As fotografias de Vergílio Guerra Pedrosa, advogado, pedagogo e fotógrafo
amador vieirense nascido em 1895, ilustram o tempo dos senhorios que o autor
situa, sensivelmente, no período que se estende de 1880 a 1940. Nesta época, à
semelhança de outras povoações piscatórias, a Praia da Vieira vê o seu
contingente crescer rapidamente graças aos movimentos migratórios dos mais
pobres que fugiam de lugares onde não tinham nem habitação nem trabalho para
outros onde a posse da terra era desconhecida ou incerta e a exploração dos
recursos era livre, i.e. os areais e o mar, respectivamente. Contudo, é também
neste período que se dá ( ) o apogeu do capitalismo na indústria da pesca e a
concomitante proletarização da população vieirense. (...) [Desenhando-se],
assim, os contornos dos insidiosos mecanismos produtores de pobreza que estão
na origem da criação de um verdadeiro exército de reserva capaz de encher os
bolsos a alguns particulares temporariamente bem sucedidos ( ) e pagar impostos
ao Estado ( ) (p. 38).
Dora Landau, professora de língua e literatura alemãs nascida em Viena em 1898
e refugiada em Portugal a partir de 1934, fixou os momentos que nos permitem
visualizar o tempo das sociedades. São fotografias de inegável beleza estética
e valor etnográfico que contribuem para o conhecimento de ( ) uma nova fase ao
nível da organização do trabalho [arte xávega], no que se afigura como um
notável testemunho sociológico da plasticidade adaptativa das companhas de
pesca e das relações laborais que as constituem ( ) (p. 58), bem como doutras
actividades de que se ocupavam as gentes da praia. São fotografias que nos
mostram também as duas últimas grandes companhas da praia, a alvorada do
turismo e a ocupação gradual das dunas com construções mais resistentes às
condições naturais adversas que há muito se procuravam controlar (cf. pp. 20-
35). As fotografias de Dora Landau constituem o núcleo do conjunto reunido por
Francisco O. Nunes. Parafraseando o autor do texto, são testemunho ( ) [dum]
modo de vida moldado pelo mar, pelas dunas e pelos pinhais ( ) (p. 12).
O tempo da resistência é ilustrado com fotografias do próprio Francisco O.
Nunes, de Ana Cláudia Filipe e do Arquivo da Câmara Municipal da Marinha
Grande. Falam-nos de um tempo contemporâneo (a partir de 1980), para o qual
concorrem, simultaneamente, directivas estatais que dificultam enormemente a
pesca artesanal, a escassez de peixe e onde ( ) pequenos barquitos das
companhas da Praia da Vieira, com uma tripulação de apenas três homens, teimam
ainda em enfrentar as ondas e, assim, safra após safra, vão resistindo à morte
anunciada da arte xávega, mantendo viva nesta terra uma tradição haliêutica com
cerca de dois séculos (p. 159). Afinal, e ainda nas palavras de Francisco O.
Nunes, ( ) a atracção e o fascínio pelo mar e pela pesca ultrapassam
largamente a esfera das necessidades básicas da sobrevivência, ainda que nelas
mergulhem dura e dolorosamente as suas raízes (p. 16).
O uso da fotografia em ciências sociais traz consigo questões que, não sendo
objecto procurado por Francisco Oneto para este seu livro, merecem aqui alguma
reflexão. Assim, se podemos reconhecer validade histórica, etnográfica,
documental e até estética às fotos seleccionadas para esta obra, não podemos
deixar de questionar os atributos para essa mesma validação e/ou, por outro
lado e porventura, encontrar outros textos que contribuam para este mesmo
objectivo.
A já referida monografia de Francisco Oneto sobre Vieira de Leiria (cap. VI, em
particular) será o texto escrito no qual podemos encontrar outras legendas
para os i nstantâneos do livro em recensão. Legendas essas que contribuem
significativamente para uma reconsideração do uso da fotografia enquanto
documento cultural. É bom recordar que esta última obra de Francisco Oneto, em
jeito de álbum fotográfico, é rara na antropologia portuguesa. Ao olhar do
fotógrafo que cristaliza, objectifica e isola um momento; ao olhar do leitor
que centrado no momento esquece a vastidão daquilo ficou fora do
enquadramento, justapõe-se um outro texto que, simultaneamente, amplia e abre o
que o fotógrafo quis retratar. Deste modo, podemos acrescentar à classificação
de, por exemplo, Sarah Pink para os elementos intervenientes no momento
fotografado a subjectividade do fotógrafo; a câmara; o fotografado (cf. Pink
Excursiones Socio-visuales en el Mundo del Toreo, em García Alonso et al.
(eds.), Antropologíade los Sentidos, 1996: 125-138) este outro, o
enquadramento, a reflexão proposta ao leitor por um autor que não o das
fotografias. Será neste cruzamento de olhares, nesta sobreposição de textos que
mais facilmente poderemos encontrar justificação para o uso da fotografia
enquanto forma de representação /tradução /interpretação cultural. Dito doutro
modo, se, por um lado, há muito sabemos que a fixação de um momento num
instantâneo fotográfico diz quase sempre mais sobre o fotógrafo do que sobre o
fotografado e que a sua neutralidade é só aparente, por outro, também há muito
sabemos que a justaposição de diferentes métodos de tradução cultural (para a
fotografia, o texto escrito em especial, ainda que também ele sempre reflexivo
e não neutro) é a melhor resposta aos problemas colocados pela não neutralidade
do olhar. Principalmente, porque esta justaposição permite ao leitor diferentes
formas de incursão, logo diferentes perspectivas e abordagens, na representação
de dada realidade.
Contudo, na leitura de um livro como este carregado de fotografias sobre um
tempo passado, a fruição estética e até o espanto parecem sobrepor-se a
qualquer outra tentativa de abordagem. Não somente por causa da eventual
qualidade técnica e estética das fotografias, mas também como resultado da
inevitável comparação entre o como imaginamos ou conhecemos a ocupação daquele
espaço hoje e o como ele (a)parece ocupado tão diferentemente nas fotografias.
Se o preto e branco das mesmas contribui para esta comparação (outro elemento
que podemos acrescentar à classificação de S. Pink, a técnica aplicada na
fotografia), muito do que nelas figura a indumentária dos sujeitos
retratados, as casas, as ruas, etc. remete-nos imediatamente para um outro
tempo. Tempo esse que parece ser, afinal, o objecto deste livro de Francisco
Oneto. As fotografias de Dora Landau, Vergílio G. Pedroso e outros parecem ser
mais o motivo desta obra do que o seu objecto. Afinal, o subtítulo da obra é
História e Imagens .
Paulo Mendes
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Miranda do Douro