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EuPTHUHu0874-13362009000200002

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National varietyEu
Year2009
SourceScielo

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O encanto da criança em Homero

Não é frequente os autores clássicos greco­‑latinos tomarem a criança e as suas manifestações como tema. Mas a primeira obra literária conhecida da literatura ocidental, os poemas homéricos, deixaram­‑nos alguns trechos emocionantes sobre as reacções infantis, que continuam actuais, passados cerca de vinte e oito séculos sobre a data provável da composição dos referidos poemas[1].

Um dos trechos mais célebres é o da Canto VI da Ilíada (vv. 466­‑493), a despedida de Heitor, o mais célebre guerreiro troiano, e da sua mulher Andrómaca, quando o guerreiro parte para o combate de onde se pensa que não regressará.

São várias as traduções parciais dos poemas para a língua portuguesa que privilegiam este trecho, além das traduções completas desde o séc. XIX ao séc.

XXI. A primeira tradução parcial de que tenho conhecimento é a de António Ribeiro dos Santos que usou o pseudónimo literário de Elpino Duriense[2]. Foi notável historiador e ilustre tradutor de autores gregos e latinos. Exerceu altos cargos culturais e políticos. No primeiro volume das suas Poesias, podemos encontrar 26 versos, traduzidos do canto VI da Ilíada, com o citado trecho[3].

Busto de Homero, datando do Período Helenístico (Museu Capitolino, Roma)

Do séc. XIX restam­‑nos ainda, que eu saiba, mais duas traduções parciais do referido episódio. Uma delas é a de António Maria do Couto, publicada no semanário Beija­‑Flor, (1838, pp. 133­‑134).

Frontispício do incunábulo florentino de 1488-89 com as obras de Homero, Ilíada e Odisseia, na oficina de Demétrios Damilas, onde os caracteres procuram reproduzir a elegância da letra grega manuscrita

António Maria do Couto, que morreu em 1843, foi professor de grego em vários estabelecimentos de ensino, entre os quais o Liceu Nacional de Lisboa, de que foi nomeado Reitor. Publicou numerosas obras sobre os acontecimentos do seu tempo e várias sobre autores clássicos greco­‑latinos[4].

Outra tradução parcial, também do séc. XIX, é a de António José Viale, que se publicou nas Memórias da Academia Real das Sciências (nova série), classe 2, tomo 1, parte 2.ª[5].

António José Viale, além de Professor do Curso Superior de Letras e membro da Academia das Ciências, foi mestre de grego do Rei D. Pedro V[6].

Das traduções parciais do séc. XX, citaremos um trecho da Hélade, Antologia de Cultura Grega. Ed. Asa, 8.ª ed., 1994, pp. 25­‑26. A autora é a Professora Maria Helena da Rocha Pereira. É justamente este curto texto da eminente filóloga de Coimbra que peço licença para citar, pela exactidão da tradução, que nos transmite o encanto da criança, conhecido, como disse, cerca de 28 séculos.

Depois que assim falou, o ilustre Heitor estendeu os braços ao filho.

Logo a criança se voltou aos gritos, para o seio da ama de bela cintura, assustado com o aspecto do seu amado pai, com medo do bronze e do penacho de crinas de cavalo, que via tremer, assustador, no alto do capacete.

Desatou a rir o pai querido e a mãe venerável.

Logo o ilustre Heitor retirou o capacete da cabeça e pousou no solo, todo resplandecente.

Depois que beijou o caro filho, e o embalou nos braços, dirigiu esta prece a Zeus e aos outros deuses: Zeus e demais deuses, concedei­‑me que este meu filho venha a ser como eu, se distinga entre os Troianos, seja assim forte e governe Ílion com o seu poder.

E que alguém diga: É bem mais valente que o pai.

Quando regressar do combate, que traga os despojos sangrentos do inimigo que abateu, para gáudio de sua mãe.

Dito isto, pôs nos braços da esposa o filhinho; ela recebeu­‑o no seio perfumado, entre risos e lágrimas; condoeu­‑se o marido ao vê­‑la, acariciou­‑a, e dirigiu­‑lhe estas palavras, chamando­‑a pelo nome:

Louca, não te aflijas assim no teu coração.

Ninguém me lançará no Hades contra as ordens do Destino.

Garanto­‑te que nunca homem algum, bom ou mau, escapou ao seu Destino, desde que nasceu.

Vai para casa tratar dos teus trabalhos, o tear e a roca, e ordem às tuas aias de fazer o seu serviço; a guerra diz respeito aos homens, a quantos nasceram em Ílion, e a mim mais que a nenhum.

Quanto às traduções completas dos poemas, são conhecidas, do séc. XIX, a de Odorico Mendes e a de João Félix Pereira, mencionados por mim em comunicação à Academia de História (em 15 de Fevereiro de 2006). Do séc. XX, varias traduções completas em língua portuguesa. Das traduzidas do original grego, podemos citar a de Manuel Alves Correia e de Eusébio Dias Palmeira (1.ª ed. da Costa, Lisboa, 1938), reeditadas em 1944­‑45.

De todas as edições completas, a mais notável parece­‑me a de Frederico Lourenço, do séc. XXI (Edições Cotovia, 2001 e 2005, várias vezes reeditadas). 

Um outro busto de Homero

Às outras traduções portuguesas integrais, do séc. XX e XXI, não farei referência expressa porque os tradutores respectivos não dão informação sobre se traduziram do original ou de um texto traduzido em qualquer língua ocidental.

Além do episódio da despedida de Heitor e de Andrómaca, encontramos nos poemas homéricos algumas outras referências ao comportamento infantil, que nos despertam sorrisos pela sua naturalidade e actualidade.

Na Ilíada, Canto VIII, vv. 267­‑272, uma manobra de Teucro, guerreiro grego, que, abrigado sob o escudo de Ájax, faz pontaria ao inimigo com as flechas sugere ao poeta uma comparação com a criança que se refugia ao da mãe.

Ouçamos o poeta:

Posicionou­‑se debaixo do escudo de Ájax Telamónio e Ájax moveu o escudo por cima dele. O herói aguardava até que com o disparo atingisse alguém na multidão: tombava então esse homem e perdia a vida, ao que Teucro de novo recuava como a criança para junto da mãe, neste caso para junto de Ájax, que o cobria com o escudo luzente.

E ouçamos agora uma evocação da vida caseira e da alimentação infantil, expressa pela boca do preceptor de Aquiles, como se fosse uma ceia de um dia de hoje num infantário (Ilíada, IX, 485­‑491):

E fui eu que te fiz assim, ó Aquiles semelhante aos deuses, amando­‑te do coração. Pois com nenhum outro querias tu ir ao festim, nem banquetear­‑te no palácio, antes que eu te tivesse sentado ao meu colo e cortado uma lasca de carne e dado um gole de vinho. Muitas vezes a túnica sobre o meu peito molhaste de vinho, engasgando­‑te na tua pobre criancice!

E, como um flash sobre uma cena actual, o poeta descreve­‑nos as construções na areia que as crianças fazem na praia (Ilíada, XV, 301­‑366):

(Apolo) Deitou abaixo a muralha dos Aqueus com a facilidade do menino que espalha a areia na praia, junto do mar quando nela constrói brincadeiras infantis e logo de seguida com as mãos e os pés a espalha, brincando.

Foi assim que tu, ó Febo archeiro, derrubaste o longo trabalho e o esforço dos Argivos, lançando contra eles a debandada.

Nem as atitudes do menino que pede colo escapam ao olhar do poeta (Ilíada, XVI, 7­‑10):       

Por que razão choras, ó Pátroclo, como uma rapariga, uma menina que corre para a mãe a pedir colo e, puxando­‑lhe pelo vestido, impede­‑a de andar, fitando­‑a chorosa até que a mãe pegue nela ao colo?

E aquele mesmo Astíanax, que se assustara com o elmo do pai, é invocado, na sua tenra idade, pela mãe, que chora a morte de Heitor (Ilíada, XXII, 500­‑504):

Astíanax, que anteriormente nos joelhos do pai comia o tutano e a rica gordura das ovelhas, e quando sobrevinha o sono e parava de brincar, dormitava no leito, nos braços da sua ama, numa cama macia, seu coração saciado de coisas boas.

Esta evocação da criança, a quem a morte do pai irá privar do conforto e dos mimos de que gozava, proporciona­‑nos informações sobre alimentação infantil, composta de produtos macios e facilmente mastigáveis. Proporciona­‑nos ainda o quadro da criança a cair de sono, embriagada de brincadeira, como hoje.

O comportamento da criança, sobretudo na primeira infância, pouco modelada ainda pela mentalidade da época, sugere­‑nos que a criança é um produto da natureza, sempre igual a si mesma através dos milénios, como nos informam estes instantâneos do primeiro poeta da literatura ocidental.

A mentalidade e o comportamento do adulto é que mudaram através do tempo.

Notas [1]     Sobre a tão falada «questão homérica» consultar: Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História de CulturaClássica, I vol. Cultura Grega. Fundação Calouste Gulbenkian, 9.ª ed., 2003.

[2]     Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, tomo VI, p. 98: Fragmentos de versões de Homero Metrificadas em Língua Portuguesa. A edição citada é a do séc. XIX.

[3]     As poesias foram publicadas em 1812 (tomos 1.º e 2.º) e em 1817 (tomo 3.º), na Imprensa Régia, Ver: I. F. da Silva, DBP.

[4]     As poesias foram publicadas em 1812 (tomos 1.º e 2.º) e em 1817 (tomo 3.º), na Imprensa Régia, Ver: I. F. da Silva, DBP.

[5]     Sobre a sua bibliografia consultar, além do citado DBP, A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. VII, Editora Enciclopédia, Lda.

Lisboa ­ Rio de Janeiro [6]     Ver também a obra intitulada «Miscelânea Hellénico­‑Literária oferecida aos Estudantes do Curso Superior de Letras de Lisboa pelo professor da mesma Instituição, António José Viale, do conselho de Sua Majestade, Sócio da Academia Real das Sciências, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.

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