O fenómeno da consciência no desenho: na procura da liberdade na experiência do
universal
I. O ato de desenhar no contexto conceptual do fenómeno da consciência em
António Damásio
O sentido de si e o processo de consciencialização através de imagens
António Damásio (2004) refere que no nosso organismo o cérebro produz padrões
neurais nos seus circuitos de células nervosas, que por sua vez são
transformados em padrões mentais explícitos. A estes padrões mentais António
Damásio (2004) chama imagens ' as imagens dos objetos. Os padrões mentais ' as
imagens ' são o resultado de um sistema sensorial qualquer e podem, também,
representar: os aspetos das caraterísticas físicas do objeto; ou o gosto ou
aversão que se pode nutrir por um objeto; os planos que se podem formular para
esse objeto; a teia de relações desse objeto com outros objetos (Damásio,
2004). Essas imagens são, por nossas palavras, a representaçãode algo que ativa
a nossa ação individual no sentido de mantermos a nossa vitalidade no contexto
ambiental (no sentido lato) em que nos inserimos; são, na realidade, a matéria
com que agimos contra ou a favor da nossa liberdade.
Esses objetos são os causadores do sentido de si2, sempre que sejam sujeitos ao
processo de conhecer cujo ator é o si (o eu). Sendo que para nós o sentido de
si é a nossa oscilante conquista de um sentimento de liberdade interna, o que
se prende com o reconhecimento de que somos uma identidade diferente das outras
(deixamos de estar presos à imagem dos outros; criamos a nossa própria imagem).
Mas esse processo de conhecimento só se efetiva quando o ser (o organismo, no
sentido lato) sofre as modificações que são criadas através de relações e
reações (cujo efeito é a construção e reconstrução da imagem genuína de si).
Desta permanente ação-reação, resultam avanços e recuos no referido sentimento
de liberdade (ora nos refugiamos na projeção do Outro, ora reconquistamos o
nosso próprio poder de ação). É neste plano de gestão das relações e reações
que encontramos o ser como proprietário das imagens, de que é espetador,
entendedor, conhecedor, pensador e possível ator (Damásio, 2004), e é com base
nestas que o ser constrói e reconstrói a sua liberdade, na medida em que as
imagens (no sentido lato) sejam manipuladas pelo eu e não o contrário.
As imagens são a representação da modificação que o objeto exerce sobre o
organismo; são o vestígio interno da imagem externa; são a informação que pode
ser utilizada de uma forma tácita quando acontece inconscientemente, ou de uma
forma manifesta quando acontece de uma forma consciente, ou de uma forma
estruturante quando deliberadamente se desenvolve a consciência para além do
aqui e agora. A modificação de que somos alvo é, na realidade, uma abertura na
espiral da consciência e constitui, portanto, uma potenciação da expansão da
nossa liberdade interna. Mas a imagem, retomando o nosso raciocínio, pode ser
acompanhada por uma emoção negativa, de tal forma que esta assume o papel de
ação, não permitindo ação ao eu e, assim, exercendo um contrapoder sobre este.
Portanto, a manipulação do eu pela imagem, acontece, não pela ação desta, mas
pela contra-ação exercida pela emoção. Assim, quando o organismo não sofre
modificações, não se processa a representação da imagem (que contribui para a
libertação), em vez disso, uma imagem arqueológica recoloca-se, gerando uma
retroação em vez de uma pro-ação. Daí que a emoção alapada a uma imagem tenha o
poder de manipulação do eu, isto é, do impedimento da sua ação de liberdade.
A emoção tem um papel basilar no processo de consciência, e este passa, segundo
A. Damásio (2004), por vários níveis do si ' o proto-si, o sinuclear, o si
alargadoe osi autobiográfico', não dispensando o processode conhecimento (o
estar ciente de que existe determinada informação sobre). O autor diz-nos que
quando sentimos o que acontece no momento em que ouvimos, vemos ou tocamos, a
consciência começa o seu processo. Ou seja, estamos sempre a sentir. Portanto,
quer haja uma emoção retardadora, quer haja uma emoção que provoque a pro-ação,
a consciência é permanente, pois o nosso organismo está em permanente contato
com uma incalculável variedade de objetos que lhe provocam o sentimento.
Sentir é para nós, de facto, um sinal de liberdade, pois é através dele que
experimentamos o mundo. Na perspetiva de A. Damásio (2004), nesta experiência
de consciência, numa primeira etapa, os dispositivos de representação do
organismo geram um tipo específico de conhecimento sem palavras, de que o
organismo foi modificado por um objeto (Damásio, 2004). A forma mais simples do
que acontece nesta etapa é o sentimento3, que é aquele que nós temos
individualmente, que nos permite dizer que as imagens são nossas e que nos
permite afirmar que ouvimos, vemos ou tocamos, numa palavra, que nos
proporciona a capacidade de ter as próprias sensações, aquando da relação com
um objeto (Damásio, 2004). Esta possibilidade é aquela que dá a especial
liberdade de ser ao Homem: a de experimentar o Mundo.
Porém, como já foi mencionado, a consciência evolui no sentido da aquisição de
um conhecimento que corresponda ao facto de que o organismo foi modificado por
um objeto. Assim, após o sentimento de que tivemos uma determinada sensação,
após sentirmos que o organismo foi modificado, criam-se condições para produção
de inferências e interpretações que tomam a forma de sentimento de conhecer
(Damásio, 2004). Na relação do indivíduo com o objeto, criam-se condições para
receber e gerar novas informações, mas em ambos os casos existe algo que não é
verbal que é o sentimento, aquela sensação que indica que o nosso organismo
está em contato com nova informação; só depois se pode gerar uma informação
estruturada passível de se traduzir pela linguagem.
O indivíduo caminha para a liberdade, não quando se prende à procura da
verbalização da informação interna relativa ao(s) sentimento(s), mas quando
aceita a nova informação externa para gerar nova informação interna. É aqui que
se compõe a dialéctica subjetivo-objetivo, que propulsiona o fenómeno de
expansão da consciência e o fenómeno de libertação. Sendo que, em termos
absolutos, a objetivação é o que nos permite complexificar a compreensão do
Mundo, pelo que poderíamos inferir que a grande liberdade implica um amplo
domínio sobre a capacidade de verbalizar.
Este fenómeno de consciência poderá proporcionar-se na atividade do desenho, ao
nível do encontro do sentido de si, como resultado do fenómeno de interação de
um conjunto de elementos, pois, como nos diz Ana Leonor Rodrigues, em todo o
processo do desenho, a troca entre a identidade e intenções do autor, e as
características próprias dos elementos e materiais utilizados, bem como dos
códigos escolhidos para o fazer, constrói um sistema fenomenológico complexo e
indivisível cujo sentido existe indissociável dessa integridade (Rodrigues,
2000: 14).Ora, o encontro da integridade e do sentido de si (o único e o
idiossincrático) resulta, precisamente, da interação do subjetivo-objetivo, em
que o indivíduo gera maior informação interna imanente às suas características
un(ic)as, que equivocamente poderiam ser as informações pessoais sobre as
informações externas, mas que são na realidade a consciência mais universal do
sujeito interno através do seu contato com o mundo externo. O subjetivo vale
para o sujeito enquanto sentimento de seus sentimentos, contudo requer-se que o
sujeito utilize o sentimento de seus sentimentos para se transpor para um campo
objetivo em que, através da informação externa, percebe os sentimentos do campo
subjetivo do Outro. Daí a importância do processo de intersubjetividade para o
fenómeno da consciência do eu. O desenho funciona, nesta perspetiva, como
objeto de inter e intra-comunicação; por muito subjetivo que seja o desenho é
inevitavelmente o resultado de uma objetivação, pois é a ideia tornada objeto
(bidimensional).
Das emoções ao conhecimento dos sentimentos das emoções no contexto da
consciência
De facto, a vida é conduzida, de acordo com a tese de António Damásio, pela
procura de emoções agradáveis e pela fuga a emoções desagradáveis. Convém,
assim, neste momento, descrever em que consiste, na sua perspetiva, a emoção:
As emoções são conjuntos complicados de respostas químicas e neurais que formam
um padrão; todas as emoções desempenham um papel regulador que conduz, de uma
forma ou de outra, à criação de circunstâncias vantajosas para o organismo que
manifesta o fenómeno; as emoções dizem respeito à vida de um organismo, mais
precisamente ao seu corpo; a finalidade das emoções é ajudar o organismo a
manter a vida. (Damásio, 2004: 72)
Tal definição renega a hipótese que colocávamos de que a emoção pode ser
retroativa; a emoção é sempre proativa, o que pode acontecer é que a razão não
esteja à altura de a elaborar e de permitir que a mesma aconteça naturalmente
com o seu efeito homeostático. Portanto, a questão da manipulação do eu coloca-
se ao nível da forma como a razão interpreta erradamente a origem da emoção.
Isto é, a emoção negativa exerce um efeito contra libertação, se através da
razão se processar um pensamento fixante, hirto e obsessivamente estanque.
Este autor refere que a emoção4 se projeta do interior do sujeito para o seu
exterior, portanto, é pública. Diz-nos também que a emoção usa o corpo como
meio para acontecer e afeta a maneira como numerosos circuitos cerebrais
operam; e, além disso, que as respostas emocionais podem modificar tanto a
paisagem cerebral como a paisagem corporal. A sua asserção é no sentido de
que através do sentimento (dessa emoção), que é privado e se dirige para o
interior, se provoca uma certa influência sobre a mente. Diríamos que o
sentimento é um mecanismo pacificador, até ao momento em que o racionalismo o
trave.
Por fim, alega que esse fenómeno objeto-emoção-sentimento-consciência acontece
sempre num tempo e espaço ' respeitantes, respetivamente, ao momento em que o
nosso organismo se encontra e ao espaço que o mesmo ocupa ' que afetam toda a
experiência. E conclui que esse impacto será durável se o sujeito conhecer o
sentimento5 da emoção. Digamos que a emoção é um mecanismo hoemostático que
resulta da colisão da informação externa com a informação interna, trata-se de
uma reação perante a capacidade do indivíduo se ajustar às informações novas,
que não se coadunam com o seu si-autobiográfico, com os valores que foi
construindo e com a sua persona. O sentimento resultaria, na nossa perspetiva,
como o afeto resultante da interação entre a razão e a emoção.
Remetendo-nos a A. Damásio (2004), a consciência passa por três estados, desde
o contato com o objeto até ao impacto sobre a mente: o estado da emoção(de que
não há consciência), oestado do sentimento(de que ainda não existe consciência)
e o estado de sentimento tornado consciente (em que o organismo, nas
derradeiras fases do processo, conhece o sentimento, ou seja, onde já existe
consciência). Isto é, faz-se um percurso biológico ' onde existem a emoção e o
sentimento ' até um patamar de conhecimento, onde só através da consciência se
influencia efetivamente o sujeito que experimenta a emoção e o sentimento; a
experiência da emoção é sucedida do sentimento da emoção (no entanto, pode-se
ter um sentimento sem que se saiba); e a fase que se segue ao sentimento é ter
conhecimento de que se o tem. Não é suficiente saber que existe informação (das
diferentes naturezas) para que tenhamos consciência delas; é necessário que a
mesma tenha sido interiorizada, consciencializada, compreendida; que tenha, em
suma, alterado o nosso organismo, ao ponto de, a certa altura, conseguirmos
verbalizar o que se tornou consciente em nós. Todos constatamos que existem as
coisas para as quais olhamos, mas só teremos consciência delas, por exemplo, se
as desenharmos, pois, assim, a informação é sentida, conhecida, tratada, retida
e comunicada.
O nosso comportamento desenvolve-se numa espécie de dialética, entre a emoção e
o sentimento, que faz um movimento cíclico. Isto é, como nos diz António
Damásio, o facto gera a emoção6, que dá lugar aos sentimentos ' a representação
da emoção em imagens ' e que, depois de serem conhecidos ' através de uma
experiência mental e privada do sentimento ', são susceptíveis de gerar novas
emoções. Como o conhecimento dos sentimentos, através da consciência, a emoção
também exerce um impacto internamente. Mas este processo de consciência
proporciona, além disso, uma recompensa da emoção sobre o processo do
pensamento7 através do sentimento. O sentimento é a resposta harmoniosa à
emoção, sempre que o pensamento a aceite como fator de reequilíbrio do
organismo. No pensamento flui a informação, seja de que natureza for; mas flui
sentidamente, é por esse motivo que somos Seres Humanos.
António Damásio (2004) propõe algo de especial importância para o entendimento
da sua tese, relativamente à consciência, e que é o facto de que a emoção
destina-se à sobrevivência do organismo e que a consciência se destina também a
esse efeito (Damásio, 2004). E isto terá de ser entendido tendo como base a sua
afirmação de que a homeostasia8 é uma chave para a biologia da consciência
(Damásio, 2004: 60). Nós tornamo-nos capazes de sentir, quando através do nosso
pensamento aceitamos as nossas emoções. Esta aceitação é o que nos projeta para
um futuro de crescente consciencialização e portanto de sobrevivência, de
pulsão de vida.
No que concerne ao desenho, caso este proporcione o fenómeno da consciência, e
se neste fenómeno estão sempre subjacentes as emoções, poder-se-ia pressupor,
por dedução, que o desenho contribui para a estabilidade do organismo. Logo,
coloca-se, neste momento, uma hipótese em aberto que consiste na inferência de
que a nossa procura de um sentido se relaciona com a procura de sobrevivência
do organismo, ou, mais apropriadamente ao nosso tema, com a procura de
equilíbrio. O desenho, nesta perspetiva, é um mecanismo operacional que convoca
a cognição, mas também trabalha a informação imagética com o objetivo de ativar
situações que ora geram instabilidade, ora reestabelecem a estabilidade; sempre
no sentido da homeostasia, da sobrevivência do organismo, da liberdade de viver
com que nascemos potencialmente.
Parece possível que tudo se passe num processo de ação/reação sobre a
informação externa e interna. É com esses comportamentos que o sujeito se pode
aproximar mais dos conteúdos latentes ou mais dos conteúdos manifestos. E, no
que respeita à criação, o sujeito, afetado pela emoção, na procura de um
sentido que o satisfaça, num processo de imaginação ' que se pode concretizar,
por exemplo, no desenho ', poderá encontrar-se uma coabitação entre os
conteúdos latentes e os conteúdos manifestos. E essa coabitação poderá permitir
o afastamento do sentimento de desprazer, mas pode, no fundo, consubstanciar a
expressão dessa procura numa forma representada e descoberta, assim como na
constituição de novas atitudes e tendências, na medida em que a consciência se
alargue.
A imagem obtida pelo sujeito no termo da sua busca ' por vezes mal revelada ao
seu autor ' surge, então, como a expressão de um estado psicológico
preexistente e, também, o que se nos afigura mais importante, como uma reação,
como uma tomada de posição sobre si mesmo. A imagem é um momento, não apenas da
tomada de consciência confusa das tendências e das atitudes, mas também da
constituição destas. No decurso do ato de imaginar, com efeito, as tendências
tomam forma, fixam-se exprimindo-se, por via dos objetos que elas põem a
descoberto. (Malrieu, 1996:116)
Esta consubstanciação da forma talvez resulte num maior equilíbrio emocional,
na medida em que a informação, que é externa e estranha, se coadune com a
informação que é interna e sobre a qual é reservado sempre um (mais ou menos
profundo) sentimento. O percurso para chegar a esse estado proporciona uma
alteração do organismo, muda o estado de sentimento atual, introduzindo novos
sentimentos, próprios das imagens que se manifestam agora, mas que podem ter
origem na memória. Mas as respostas/mensagens que cada emoção constitui
requerem um seu conhecimento no sentido de que tenham um efeito modificador no
organismo, para uma melhor e mais inteligente gestão das emoções que
normalmente agitam a aparente neutralidade do equilíbrio. Após a etapa em que
se sente essa emoção, onde esta se transforma numa representação de imagem, é
necessária a ação na consciência nuclear sobre esse fenómeno e, só depois, se
poderá sentir o sentimento(conhecer o sentimento da emoção). Por ordem do
pensamento, da razão, a emoção foi compreendida e consciencializada, deixou de
ser estranha, permitindo que o sentimento, da informação que gerou a agitação,
restitua a harmonia à força selvagem do instinto de defesa próprio do organismo
animal com que somos constituídos.
Um conjunto de pensamentos, que se sucedem continuamente, pode, na ótica de
António Damásio (2004), induzir um conjunto de emoções que se sucedem
igualmente de forma contínua ' o que se reflete no comportamento humano. Nesta
interação entre o pensamento e a emoção, pode-se gerar um processo mental
dinâmico. É este dinamismo que quebra o neutralismo da razão, é este dinamismo
des/reequilibrador que cria condições e a necessidade de procurar novas
informações novos pensamentos adaptados às emoções do momento. A liberdade
funda-se na capacidade reequilibradora da razão. Mas, sem desequilíbrio não
existiria a necessidade e a possibilidade de um reequilíbrio que só por si é um
manifesto de felicidade. Portanto, é necessária a emoção que agite a fugaz
letargia e é necessária a razão que elabore essa agitação.
Neste processo, incluímos o desenho como seu fator, tendo em conta que talvez
faça emergir emoções, sentimentos e o conhecimento do sentimento dessas
emoções, sempre que esse desenho aconteça no contexto da criação. Na realidade,
sendo o desenho eminentemente improvisador e não premeditado, naturalmente
lança o seu autor para o desconhecido e para o confronto com novas informações
(as do elemento de referência observada e a do próprio desenho que se elabora).
A informação entre o verbal e o não-verbal no fenómeno da consciência através
do desenho
Não se pode abreviar o percurso de consciencialização, que tem origem biológica
e culmina num estádio mental elevado, num mero processo que vai da emoção ao
conhecimento do sentimento da emoção. António Damásio (2004) descreve
detalhadamente esse processo9. O conhecimento, no seu sentido mais complexo, é
consequência direta de um sistema nervoso que, sendo capaz de consciência,
também está equipado com uma memória vasta, com uma poderosa faculdade de
classificar itens na memória, com uma faculdade original de traduzir todo o
espetro do conhecimento sob a forma de linguagem e com uma faculdade realçada
de manter esse conhecimento presente na mente e de o manipular de forma
inteligente (Damásio, 2004: 352). Ou seja, em todo o processo intervêm a
memória, a linguagem10 e a inteligência: três das componentes que o nosso
cérebro potencia, que podem ser desenvolvidas conforme o tipo de atividade que
o sujeito tiver, mas sempre em prol da expansão da vida e da consciência.
Remetendo-nos para o desenho como linguagem11 visual, portanto, não-verbal,
podemos crer que é uma atividade que permite ao sujeito experimentar um certo
tipo de fenómeno de consciência, que modifique a estrutura do pensamento e o
conhecimento anterior ao ato de desenhar. Atentemos a afirmação, no contexto do
desenho, de J. Molina:
A riqueza do léxico que ele gerou está, sobretudo, no que define como
experiência de conhecimento sensível de seu trabalho, no qual determina os
estados de ânimo em que se fixa sua ação, no que estabelecem as operações que
modificam o nosso conhecimento do objeto e a estrutura do nosso pensamento.
(Molina, 2005: 23)
O desenho remete-nos para o conhecimento não-verbal. É um tipo de conhecimento
que poderá suscitar o conhecimento verbal. Mas este não é basilar para o ato de
criar através do desenho; pode, eventualmente, existir apriorioua posteriori,
mas não no próprio ato. Como verificamos na tese deAna Leonor Rodrigues (2003),
o desenho poderá, na sua qualidade de meta-representação, constituir um meio
de comunicação através de conteúdos mais latentes, de tal forma que essa
comunicação se torna pura. O que nos aproxima, de certa forma, das,
designadas por António Damásio (2004), disposições. Prestemos, então, atenção
ao que profere Ana Leonor Rodrigues:
Por outras palavras, quem desenha tem a capacidade de conseguir imprimir
informação vinda de uma área menos consciente e discursiva da mente (o que, no
fundo, é uma manifestação de aspetos latentes nela contidos), e quem vê a
capacidade de sentir essa infra-informação que remete para uma meta-
representação do representado e que constitui afinal um estado puro de
comunicação entre mentes, codificada nas ordens estruturadas da materialidade e
da conceptualidade do desenho de notação rigorosa. (Rodrigues, 2000: 50)
Quando falamos de conhecimento, deve-se especificar a que tipo de conhecimento
nos referimos, sabendo nós que o conhecimento não é só o que se verbaliza e que
se retém sob essa forma potencialmente na nossa memória, como se tratasse de um
acumular de informação descritiva. O que o nosso sentido da visão capta é
informação susceptível de ser percebida; daí a designação de perceção visual. O
que a nossa visão capta é informação à qual podemos associar a verbalização
como meio de a traduzir, tratar e comunicar. O desenho remete-nos para um tipo
de conhecimento que existe autonomamente em relação ao conhecimento
verbalizável, mesmo que se possa anexar a este. No entanto, apesar de se
colocar a hipótese de se dar primazia ao conhecimento que o desenho nos
faculta, não podemos esquecer que o conhecimento no seu sentido lato requer a
complementaridade de conhecimentos de outras naturezas. Isto, partindo da
premissa de que somos um sistema individual e vivemos em sistema coletivo,
algures num sistema universal.
Na verdade, o conhecimento, num nível de desenvolvimento superior, desde o
simples ao complexo, desde a imagética e não-verbal até ao verbal e literário,
depende da capacidade de cartografar aquilo que acontece ao longo do tempo, no
interior do nosso organismo, à volta do nosso organismo, ao nosso organismo e
com o nosso organismo, numa sucessão causal e incessante (Damásio: 2004: 221).
O conhecimento não é senão a cartografia das realidades a que temos acesso.
A consciencialização no ato de desenhar
No que nos diz respeito, contextualizamo-nos na situação em que o organismo tem
contato com um determinado objeto através do sentido da visão12. Nesse
fenómeno, ativa-se o processamento da imagem do objeto (do exterior) ao nível
neuronal ' segundo padrões neuronais ', que responde de acordo com a
especificidade do indutor a que o objeto pertence (o indutor pode reportar-se a
outros objetos em que a experiência provocou um estímulo específico e que pode
condicionar o tipo de emoção desencadeada perante o objeto presente) (Damásio,
2004). Por sua vez, a emoção implica a transmissão de sinais a determinadas
partes do cérebro e do corpo. Relembramos que, na ótica de A. Damásio (2004),
podemos sentir a emoção que se desencadeou e, posteriormente, conhecer esse
sentimento e só nesta última etapa se processou a consciência da modificação
que a emoção poderá ter provocado no nosso organismo no momento em que
interagimos com esse objeto através da nossa perceção visual. Se não
conhecermos, isto é, se não representarmos a relação entre o objeto e o
organismo, não teremos consciência de que as modificações se efetuaram no nosso
próprio organismo e que foram provocadas por esse determinado objeto ' isto,
mesmo que o organismo tenha sido sujeito a ajustamentos motores a que obriga o
prosseguimento da recolha de sinais acerca do objeto, ou impulsionado à
resposta através de emoções.
O ato de desenhar e o ato de conhecer para uma modificação da consciência
No que respeita ao desenho, pode-se conjeturar que é uma atividade que altera o
conhecimento que o autor tinha antes do ato, e que dessa forma a sua relação
com o desenhado será diferente da que tinha anteriormente. De uma forma mais
específica, J. Molina diz-nos que cada representação parece estabelecer uma
relação irreversível com aquilo que denomina, ao estabelecer o conhecimento que
temos dele mesmo, pelo que cada figura se converte num símbolo clarificador e
numa alavanca para o conhecimento possível de uma nova relação (Molina, 2005:
77). Vejamos a afirmação de António Damásio, que nos parece ter uma tese que
nos aproxima à de J. Molina:
O empenho do organismo num dado objeto intensifica a sua capacidade de
processar sensorialmente esse objeto e também aumenta a oportunidade de
envolvimento com outros objetos ' o organismo está pronto para outros contatos
e outras interacções. O resultado global de todo este processo é um estado de
maior alerta, uma focagem mais nítida e uma maior qualidade de processamento de
imagem. (Damásio, 2004: 215)
A atenção e a consciência no ato de desenhar
Relativamente à atenção e à sua relação com a consciência, António Damásio
(2004) diz-nos que uma atenção dirigida a um objeto externo significa,
normalmente, que a consciência está presente. Afirma, também, que se a atenção
se mantiver duradouramente em relação aos objetos que são necessários para um
comportamento adequado a uma determinada situação (Damásio, 2004: 115), pode-
se inferir que a consciência também está presente efetivamente. Do que o autor
conclui que a consciência imanente da atenção requer um período de tempo
prolongado e uma concentração sobre os objetos apropriados. (Damásio, 2004:
115) Mas acrescenta que a consciência também pode estar presente, caso a
atenção seja dirigida a um objeto interno. Na opinião deste autor, a atenção e
a consciência interatuam em forma de espiral ascendente. No que diz respeito à
consciência nuclear, é a atenção elementar que a precede e dá base aos
processos que a geram. Numa outra etapa, a um nível superior, possibilita-se a
geração de uma atenção de alto nível susceptível de ser direcionada para um
estímulo preciso e permanecer aí durante longo tempo (Damásio, 2004).
No desenho, a apreensão do mundo material requer uma atenção acrescida no
momento da observação (sobre o que constitui a referência material do desenho e
sobre o próprio desenho, quer tenha uma referência actual, quer tenha uma
referência com origem na memória). De facto, o desenho obriga a uma
reconstrução do que a visão capta e, nesse sentido, Ana Leonor Rodrigues diz-
nos que o ato de desenhar é então um modo de apreensão do mundo material que
contribui para a consciência de si, para o contato com esse mundo material e
para a construção do que chamamos realidade (Rodrigues, 2000: 65).
Os conteúdos latentes e a intersubjetividade
Relembre-se que, como nos chama a atenção António Damásio (2004), a consciência
nuclear tanto pode ser produzida numa situação em que o organismo interage com
um objeto atual como com um objeto recordado. Nesta última situação, o sujeito
recorre à memória disposicional, que é um espaço em que as memórias
disposicionais contêm registos de conhecimento implícito, com base nos quais
imagens podem ser reconstruídas no recordar, movimentos podem ser gerados e o
fluir mental pode ser facilitado. (Damásio, 2004: 253) Logo, o recordar um
objeto explicita o que antes era implícito nos vários aspetos mencionados
relativamente à reação do organismo ao objeto.
Poderá a criatividade ser um motor de estímulos para que essas disposições
emirjam, e poderá o desenho acentuar esse processo no sentido que vejamos o que
anteriormente não víamos ' ou não conhecíamos, simplesmente porque o objeto não
tinha interagido com o nosso organismo, e, portanto, este não terá sofrido
nenhuma alteração com origem nesse objeto. A atividade do desenho não é uma
constatação do real, ela torna o mundo cognoscível, na medida em que
desenhamos e vemos ou desenhamos para ver. (Copón, 2005: 533) A nossa
consciência alarga-se na medida em que se cria o mundo, como totalidade
referencial de signos (Copón, 2005: 533) pois ele é um artifício (Copón,
2005: 533), é o que a nossa mente consiga construir cognitivamente e que se
pode proporcionar com a ativação do pensamento através do desenho na sua
qualidade de representação e meio de criação.
Convém relembrar o que afirma António Damásio relativamente aos conteúdos
mentais (onde se incluem os da perceção visual): todos os conteúdos mentais
são subjetivos e a força da ciência provém da capacidade de verificar a
consistência de muitas subjetividades individuais (Damásio, 2004: 106). Logo,
apesar de o desenho, que resulta da perceção visual de um autor, traduzir uma
representação a que atribuímos uma identificação objetiva, requer uma
verificação de sua consistência13. O que se prende com uma
intersubjetividade, ou seja, de considerar que com a possibilidade de entrar,
pelo diálogo nomeadamente, numa relação com o outro onde as posições sejam ao
mesmo tempo diferentes e intermutáveis é o que dá ao mundo a sua espessura, já
que ele se enriquece de pontos de vista diferentes do meu, mas também a sua
objetividade, pelo menos a título de exigência ideal de um mundo comum
(Clément, 1999: 203). Dessa forma, contribui-se para um enriquecimento de
perspetivas, e no seu cruzamento obtém-se uma objetividade tendencialmente
maior.
A memória dos conhecimentos implícitos interessa-nos particularmente, porque
nos indica que existem disposições cuja ativação se reflete a vários níveis, a
que nós associamos uma potencialidade para agir seja no recurso à memória, no
recurso aos movimentos ou no recurso ao mental (no sentido lato). Isto é
possível pelo facto de, segundo António Damásio (2004), as disposições
reservarem ao nível da memória imagens que se apreenderam com experiências
passadas e que facilitarão a reconstrução de uma imagem semelhante a partir da
memória; além disso, ainda segundo o raciocínio do autor, as disposições podem
facilitar o processamento de imagens que se apreendam no presente. Esta
perspetiva dirige-nos para o campo da intuição no ato da criação e da
representação.
António Damásio (2004) considera que existem conteúdos da memória
autobiográfica que se mantêm inconscientes. Eles podem ficar sempre neste nível
ou então podem ser reconstruídos, mas de uma forma diferente da originária.
Apesar disso, podem funcionar, a esse nível, promotores da emergência, ao nível
consciente, de outros conteúdos, sob a forma de factos ou emoções (Damásio,
2004). A relação14 entre estes conteúdos e os que existem de facto no presente
ao nível consciente pode não ser compreensível à partida. No entanto, segundo
este autor, as relações podem ter a ver com experiências do passado ou com uma
experiência inconsciente do presente (Damásio, 2004).
De facto, António Damásio (2004) não nos diz que pelos processos de imaginação
ou criação os conteúdos implícitos possam vir a ser conhecidos, mas podemos
presumir que isso aconteça com alguns deles, apesar de não podermos descrever
de que forma isso poderá acontecer. Relativamente aos conteúdos desconhecidos,
verifiquemos, para concluir, o que Philippe Malrieu afirma:
As obras de arte têm como função realizar, no sentido forte do termo, aquilo
que no sonho não passava de uma aparência e, no mito, nada mais era do que
significação. A imaginação põe a descoberto um real oculto e desconhecido,
escondido sob o real conhecido, «natural». Ela faz com que vejamos, escutemos e
pensemos que existem, a um nível mais profundo, outras realidades a que não
estamos habituados. (Malrieu, 1996: 81)
As imagens (mentais) no contexto (para além) da consciência
Segundo a tese de António Damásio (2004), considera-se a mente como o meio onde
se produzem as imagens que correspondem às percepções externas ou às percepções
de que nos recordamos. O autor alega, ainda, que a mente resulta nessas imagens
quando acrescidas da presença do eu.
O desenho não nos remete para um fenómeno de consciência só quando o autor está
perante o objeto (que pode ser o próprio desenho-objeto) do qual capta uma
imagem, mas também quando o desenho se processa ao nível da imaginação.
Diríamos, também, que, numa e noutra situação, o desenho não se cinge à
utilização cognitiva dos mecanismos de representação, envolve a emoção e
estados mentais e físicos, quer seja in loco ou através da memória, conforme
nos diz António Damásio: a reconstrução desse conjunto de acomodações do
organismo ao objeto recordado gera uma situação similar à que ocorre quando se
percebe um objeto externo diretamente (Damásio, 2004: 216) . O autor,
inclusive, ressalva que, apesar do tipo de estímulo ser diferente, a
consciência é igual.
Assim, as imagens podem ser construídas do exterior do cérebro para o interior
(todo o objeto que é percebido, o que tem a ver com qualquer modalidade
sensorial, portanto não são só da ordem do visual, pode inclusive ser somato-
sensorial); ou do interior para o exterior (quando se trate de reconstruir os
objetos com base na memória) (Damásio, 2004). O que nos remete para J.
Bronckart, quando refere que imagem mental é:
Representação interiorizada e estruturada de um objeto ou de um acontecimento,
anteriormente percebida e construída pelo sujeito. Da sua interação com o meio,
o organismo conserva traços internos, efémeros ou permanentes; a sua presença
torna possíveis os processos de identificação, de discriminação, de evocação e
de antecipação.15
Desenhar para criar tem como base essas potencialidades. O desenho-processo
para a criação permite aprender algo mais sobre si (autor dos desenhos) numa
conjuntura de processamento de imagens, em que estas são discriminadas e/ou
evocadas e/ou antecipadas. Mais concretamente, abordamos aqui o desenho para a
criação no contexto do processo de imaginação, entendida aqui, num sentido
lato, como aptidão para formar e para ativar imagens mentais, na ausência de
qualquer modelo percebido; como capacidade de combinar imagens em quadros ou em
sucessões; (na imaginação criadora) como evocação de acontecimentos potenciais,
mas que nunca foram percebidos pelo sujeito.16
Quando aplicamos a designação de imagem mental à imaginação (no sentido lato,
como faculdade de ter imagens mentais), seguimos a definição de Louis-Marie
Morfaux, que diz que consiste na capacidade de representar, com maior ou menor
riqueza ou precisão, seres ou coisas, de maneira análoga a perceção traduz o
aspeto sensorial do conteúdo, mas, distintamente desta, a representação obtém-
se por um processo interno, subjetivo, sem excitação de órgãos sensoriais.17
Sugerimos que se o desenho envolve a imaginação entendida como o resultado do
cruzamento e complementaridade destas definições. O desenho proporciona ao
autor a emergência de imagens, quer sejam meramente neuronais, quer tenham
origem na memória, quer sejam provocadas pela perceção sensorial, quer sejam
inventadas. O desenho para a criação tanto pode potenciar a imaginação ao nível
das imagens mentais, que se encontram na memória, como ao nível inventivo, em
que se criam imagens novas, como, ainda, ao nível da imaginação criadora, em
que se inventam representações mentais de aspeto sensorial. A imaginação pode
ser um processo em que se criam imagens novas, que resultem da relação eu '
não-eu, ou de uma relação entre a nossa consciência e o que ainda não está
consciente. Numa palavra, o desenho acontece num processo em que atuam as
imagens inconscientes, aquelas que agem sobre o nosso organismo ao nível
perceptual e aquelas que se encontram numa memória mais acessível.
Podemos, assim, entender melhor o que diz Philipe Malrieu, quando se refere ao
imaginário18, e que nós entendemos que se relaciona com o facto de que o
conhecimento de nós próprios pode ser proporcionado pela consciencialização e
materialização das imagens, quer tenham origem interna quer tenham origem
externa.
O sujeito que imagina não procura deixar os acontecimentos ' percepcionados ou
memorizados ' lado a lado; o que ele pretende não é tanto que eles sejam apenas
classificados, mas sim que graças às redes nas quais irão situar-se, lhe
permitam aprender algo sobre si mesmo. (Malrieu, 1996: 238)
O desenho medeia, necessariamente, o interno e o externo, na medida em que o
desenhador-autor concentra a sua atenção (a partir da sua mente, que é o
interno) ao objeto visível (externo). Trata-se de uma interação que envolve
também imagens mentais e imagens percecionadas. O objeto visível pode ser
eventualmente algo que a visão alcança (como imagem percepcionada) para que
possa desenhar analogicamente, mas é, além disso, sempre, o desenho-objeto (ele
próprio um objeto externo). O organismo interage com esse objeto, com o qual
processa uma imagem da qual fica ciente, a partir da qual terá a possibilidade
de criar novos objetos/imagens. O que não só potencia a capacidade criadora do
indivíduo como lhe proporcionará um entendimento maior de outros objetos. Tais
competências devem-se ao fenómeno da consciência, que, segundo António Damásio,
resulta num estado de vigília realçado e numa atenção dirigida, sendo que
ambas melhoram o processamento das imagens e permitem optimizar tanto reações
imediatas como o planeamento de reações futuras (Damásio, 2004: 214-215).
O sentido de pertença das imagens é, no fundo, o conhecimento de que as imagens
foram incorporadas e já fazem parte da estrutura mental do sujeito. Este
processo19 será potenciado se o sujeito agir com base no raciocínio e na
memória. O desenho, por sua vez, é um processo que permite ao desenhador
constituir-se como proprietário das imagens, e, dessa forma, atuar sobre elas.
Mas só é proprietário, se atingir o estado de consciência em que pode ser
espetador, entendedor, conhecedor, pensador e possível ator (Damásio, 2004)
dessas imagens (representadas a partir das modificações que a interação
organismo-objeto provocaram). É na gestão de relações e reações do contato do
organismo com um objeto, que encontramos a mais-valia do desenho na medida em
que desenhar é um processo de precisão mediante o qual se evidenciam elementos
que até então não eram reconhecidos como unidades pertinentes de algum
conhecimento. (Molina, 2005: 78) Ou seja, o conhecimento amplia-se e, por
consequência, também a consciência.
O ser holístico no desenho-processo
Claro que podemos considerar que existem atividades que tendem a utilizar mais
determinados grupos de áreas do cérebro em detrimento de outros; no entanto, é
importante ter sempre presente que a atividade cerebral é uma atividade
holística, não podendo assim separar ver' de pensar, raciocinar de sentir, e
assim por diante, devendo entender o ato de ver como uma situação dinâmica e
mobilizadora do cérebro e não como um registo passivo daquilo sobre que o olhar
passa. Para ver é necessário usar a consciência, e vê-se, realmente, quando se
sabe que se vê. (Rodrigues, 2000:75)
Esta afirmação e a análise que vimos fazendo permitem-nos reforçar a ideia de
que o desenho não é uma área de ação que se limite a uma técnica de
representação com base na captação de informação visual. A individualidade do
autor, como um todo, é projetada na exploração do desenho através da expressão
e da criação, pois envolve várias facetas, potencialidades de diferentes
naturezas, uma intencionalidade de inovar e de criar algo de novo nesse
processo fenomenológico. Nas palavras de Ana Leonor Rodrigues, o objeto de
desenho não existe anterior a nós, ele é um resultado quer da nossa relação
espacial e fenomenal com o mundo, quer um resultado direto da nossa vontade e
capacidade de ação. (Rodrigues, 2003: 65) A novidade que se gera no fenómeno
do desenho-processo não se reduz à criação de algo que simplesmente não existia
sob o ponto de vista formal. A inovação traduz algo de novo que se gerou ao
nível psíquico do autor, por um lado, a modificação da sua consciência, por
outro lado, as caraterísticas que refletem a individualidade desse autor.
Supomos que essa individualidade que o desenho transparece é de facto o
encontro de uma identidade20, que o desenho concentra em si. O que na
experiência total do autor constitui uma sua projeção holística, que se
traduzirá num desenho-objeto individualizado.
A partir daquele que desenha e das variedades de personalidade, imaginação,
talento, estado de espírito ou saúde, sensibilidade, habilidade manual, que o
podem caraterizar, estas vão imprimir ao resultado do fazer um cunho pessoal
que o individualiza, não apenas no seu sentido, mas na própria forma que cada
elemento adquire. (Rodrigues, 2003: 65)
O registo expressivo da emotividade do autor do desenho não tem só a ver com o
vigor do traço, com a espessura ou outras marcas, tem também a ver com as
prioridades pelas quais se optou, seja ao nível de expressão, seja ao nível de
organização, seja ao nível do tema, seja ao nível da técnica, e o tipo de
representação. A emotividade do autor é revelada pela expressão do desenho. Mas
o sentimento é revelado pela escolha do que representa e que tipos de
associação se fizeram. Se na revelação da emotividade observamos o facto de o
autor ter dado prioridade a um determinado gesto em detrimento de outros, ou
ter dado prioridade à expressão da mancha de um pormenor em detrimento de
outros; por outro lado, a opção que adotamos pelo agrupamento de um objeto a
outros, segundo a afinidade pessoal que incutimos nesse desenho, revela a
prioridade que demos a determinadas imagens, secundarizando outras que
recusámos porque o sentimento em relação a elas as tornou menos importantes. Ou
seja, interferiu nas escolhas o nosso juízo de valores. Assim, o desenho-
processo obedece à faculdade da razão e pode percorrer o reduto das emoções
mais profundas, ou até, nas palavra de Ana Leonor Rodrigues (2003), ser o
vestígio das características vegetativas.
Consideramos ser difícil verificar a que corresponde a manifestação explícita
do consciente de um desenho e a manifestação inconsciente nesse mesmo desenho.
No entanto, existem conteúdos inconscientes que influenciam o eu na forma como
atua manipulando os elementos expressivos do desenho. Sendo que estes, ao serem
materializados, tornam o desenho susceptível de uma leitura com base na
interpretação de sentidos e sensibilidade estética que constituem um simulacro
das motivações do autor no seu total. Ou, pelas palavras de Ana Leonor
Rodrigues, o ato de desenhar seria um acontecimento cuja leitura pode existir
plena de sentidos e possibilidades estéticas (Rodrigues, 2003: 17).
No sentido de verificar a asserção de se o desenho é um simulacro do autor na
sua realidade holística, atentemos a que o conhecimento que nos permite ter uma
consciência das coisas que nos envolvem, se apoia, segundo Copón, numa pesquisa
em que se relaciona a estruturação da linguagem com as possibilidades de
mediação e mudança sobre o real que nos oferece (Copón, 2003: 430). Trata-se
de um percurso que, segundo o nosso livre-arbítrio e em função das nossas
intencionalidades, proporciona uma interação com o meio com o recurso ao
desenho como forma de conhecimento através da representação. Mas é uma forma de
conhecimento que não se reduz ao mero processo de representação, trata-se de
algo a que Copón (2003) se refere como uma tentativa de captar a fluência do
vital como conexão (Copón, 2003: 430) ou compreender mediante o mapa que
traçamos ao representar a lei de escalas e conexões da vivência (Copón, 2003:
430).
O desenho faz parte, na sua concepção mental, de um sistema, ou melhor, da
realidade sistémica do ser, onde prepondera a visão como o encontro, como numa
encruzilhada, de todos os aspectos do Ser (Merleau-Ponty, 2004: 68). O
conhecimento talvez não se remeta só ao intelecto, ou só à razão, isso seria
remetermo-nos a uma parte do sistema, ao cogito cartesiano. O conhecimento é
produto de um todo na relação sistémica entre as realidades internas e as
realidades externas. Sugerimos que o desenho será um contributo para que esse
todo seja mais expandido. E essa expansão tem a ver com uma dialética entre a
perceção e o ato de descrever através da representação, ou, usando os termos de
J. Molina, um diálogo, uma disposição para ver as possibilidades de
compreensão, iluminação do mundo através da análise plástica. (Molina, 2005:
43) A perceção completa-se com a descrição e vice-versa. De facto, ver não é
suficiente para que a perceção seja efetivada. O exercício de descrever aquilo
que se vê será um fator de consciencialização da visão de algo, no ato de
perceção visual. Sublinhe-se que o desenho é aqui entendido como técnica
acessível e estimulante que poderá proporcionar, conforme o indivíduo se ajuste
ao processo, circunstâncias facilitadoras de uma expansão da consciência
alargada. De facto, uma vez que o desenho envolve o corpo, a cognição, a
sensação, a emoção, o sentimento, a razão e a intuição, poderá ser uma
atividade que pela sua abrangência nos facilite o percurso em direcção ao ser
integral.
Sendo o pensamento resultado da atividade da mente, é um processo complexo que
mobiliza todo o sujeito pensante na sua unicidade inteligível, afetiva,
corpórea e social. Um pensamento, por mais claro e linear que apareça, não tem
uma existência pura, resulta sempre da mobilização total dessa unicidade do
sujeito. (Rodrigues, 2000:191)
O desenho inclui as duas faces distantes do ser do sujeito, a sensibilidade e a
razão. Desenhar pode, na opinião de J. Molina (2003), usando o número de uma
forma intuitiva (presumimos), mediar a experiência sensível e o que é emanado
das leis puras do pensamento. Trata-se de uma correspondência entre a relação
entre dimensões, que o pensamento nos faculta, e a sua corporização através do
registo gráfico e redutivo do desenho.
O número, a linguagem verbal e a imagem são realidades presentes no desenho, as
primeiras de forma implícita, a terceira explicitamente. Se tratamos de escala,
de proporção e de quantidade, não prescindimos do número; se desenhamos as
realidades a que naturalmente atribuímos definições e nomeações, não
prescindimos da linguagem verbal; o facto de o desenho ser imagem, não nos
permite atribuir-lhe uma outra forma de se manifestar. As três realidades são
parte de um sistema que tem origem na mente do Homem no seu caráter holístico.
Ora, o eu e sua consciência existem, na medida em que o consciente estabelece
contacto com o não-eu, o ainda não consciente. É a facilitação dessa relação
que move o ato de desenhar.
O desenho-objeto é um registo que se insere num contexto da história pessoal do
seu autor, mas, além disso, insere-se no seu contexto sociocultural. O desenho
pode, mesmo, refletir o modo de ser das pessoas de uma determinada época
(Molina, 2003). Será difícil perceber as circunstâncias psicológicas do autor,
pela distância em relação à noção do que pensa ou sente esse autor. Todavia, o
desenhador-autor é o reflexo de uma sociedade. Sendo o desenho, indiretamente,
uma projeção da sociedade, não pode deixar de ser também a projeção do
desenhador-autor, pois o que seja uma referência à sociedade é-o sempre
conforme a visão que o autor tem da mesma. Esta visão é influída pela
consciência que o autor tem de si. Inclusive, poderá haver uma correlação entre
a consciência de si do sujeito e a consciência que tem do mundo. A consciência
de si seria, nesta ótica, um fator de uma consciência mais alargada do mundo.
Assim sendo, entende-se por que um desenho-processo, absorvendo todo o ser do
autor21, pode ser uma visão do mundo que o envolve. Mas, tratando-se do plano
individual, o ato de desenhar, sendo holístico, concentra no desenho-objeto,
segundo Miguel Copón, uma qualidade energética que provém da quantidade de
informação que é capaz de capturar e apresentar com sentido e que dependerá
da implicação vital do autor com o objeto, com a linguagem que lhe serve de
mediação (Copón, 2003: 431).
Poderemos socorrer-nos de uma base científica ao nível do funcionamento
cerebral para perceber melhor o holismo em que fundamos o fenómeno do desenho,
e apoiamo-nos, por exemplo, no que Juan Mendonça nos diz, relativamente a duas
tendências que o nosso cérebro pode ter, mais racional ou mais intuitiva, ou
seja, mais analítica ou mais holística, respetivamente.
Coloca-se então a questão da correspondência entre estas duas formas de
linguagem (digital/analógica) e os dois modos de tratamento da informação
(analítico/holístico) atribuídos aos dois hemisférios cerebrais. Ela pode-se
exprimir sob a forma de uma hipótese a verificar: o hemisfério esquerdo
representaria o «cérebro digital», cérebro da reflexão, do raciocínio e da
lógica; e o hemisfério direito, o «cérebro analógico», o da intuição e da
imaginação, da fantasia e do sonho. (Mendonça, 1998: 115)
Do ponto de vista do processo do desenho, a tendência parece-nos ser oscilante
e dialética. A nossa abordagem centra-se no desenho para a criação, por isso,
ao nível do tratamento de informação, cremos que a situação se carateriza,
também a este nível, de forma mais holística. Não faz muito sentido que no
desenho se proceda à aprendizagem da análise das formas unicamente segundo a
respetiva acuidade da perceção visual. Presumivelmente, também não faz muito
sentido criar segundo um propósito meramente analítico. Será mais coerente
passar pela primeira fase, da análise e depois permitir que a intuição conduza
à gestão das aprendizagens anteriores (alegadamente da responsabilidade do
hemisfério esquerdo, segundo uma orientação analítica) por vias holísticas,
mais libertas da referência objetiva e da deliberação consciente.
Reiterando ainda a ideia de identidade, como projeção do eu holístico, frisamos
que nem só pensamento, nem só físico, nem só perceção, nem só mental, nem só
sensorial, nem só emocional, nem só afetivo, nem só sentimental; mas sim tudo
em conjunto, num processo dinâmico. A nossa asserção acerca do desenho pode ter
como referência o que José Bettencourt diz acerca da pintura, com referência ao
pensamento de Maurice Merleau-Ponty:
Reunimos os elementos necessários para explicitarmos que em pintura se não
verifica um problema da profundidade, um problema da linha, um problema da cor
e um problema do movimento, mas sim um único grande problema: o da expressão do
mundo, o de um modo de abertura ao Ser sem o conceito que não será apanágio da
pintura, mas em que ela se funda, que ela especialmente celebra. (Câmara, 1996:
44)
A procura de sentido na projeção de todo o ser através do desenho
O desenho, para além do registo de um movimento, é o registo de conceitos
inter-relacionados. Não existe o desenho sem sentido, porque a sua realização é
a procura e o encontro de sentidos. Sem tais desígnios, haveria uma ação sem
intencionalidade, ou seja, não aconteceria o desenho. É possível que, quando a
destreza adquire uma especial acuidade, o desenhador perca a sua atenção à
manualidade ' que passará ao domínio da intuição ' e se prenda com construção
mental fluente: a criatividade. Eis a razão pela qual é indispensável o
exercício continuado do desenho, isto é, de adquirir um tal domínio das suas
competências que permita, numa fase elevada, a criação livre e consciente
segundo uma intencionalidade e eficácia que ultrapasse a inércia física ou
incompetências, em que se ultrapassou a procura de sentido na representação
formal e se passa a procurar um sentido ao nível espiritual22.
Temos em conta nesta análise que o desenho como técnica de representação da
forma nos remete para a perícia, sempre que esteja em causa a capacidade de
fidelizar a imagem à sua referência. Esta situação coincide com a possibilidade
de poder verbalizar o processo de realização de um desenho: cada procedimento
tem uma função, cada registo tem uma razão de ser. Mas aqui nós abordamos o
desenho como instrumento de concretização de um processo criativo, logo, à
perícia acrescentamos a intuição. Isto é, ao sistema deliberado acrescentamos
inevitavelmente o sistema tácito. O primeiro recorre ao pensamento analítico e
o segundo ao pensamento sintético. Na dialéctica entre os dois temos uma
complementaridade que promove o encontro de sentido do desenhador-autor.
A ação de desenhar representa-nos a nós próprios na ação de representar,
clarifica os itinerários da nossa consciência, tornando-se evidente perante nós
próprios. (Molina, 2003:49)
Talvez seja este o sentido que se procura na criação pelo desenho. Contudo,
dessa procura não se dissocia a intuição desenvolvida pela imaginação. Trata-se
de um desenvolvimento numa condição de intuição total, sem que haja a
preocupação da validação. Porém, apesar de a imaginação não nos ligar ao
objetivo e ao científico, presta-se a uma produção de pensamento com sentido. A
imaginação, mesmo que não faça sentido no contexto real, é produto da procura
de sentido. No fundo, a imaginação direciona o nosso pensamento segundo a
procura de coerência a partir de um contexto incoerente e inválido na
realidade.
As duas realidades perfazem o mental na sua totalidade do desenhador-autor. O
seu funcionamento na plenitude não está, alegadamente, ao nosso alcance, mas
podemos desejar tomar essa direção, apesar de para isso termos de ultrapassar
barreiras de várias ordens. Daí resulta a evolução do ser. O desejo de evoluir
relaciona-se com a necessidade de ultrapassar essas barreiras que impedem a
sensação de liberdade.
II.Expansão da liberdade a partir do alargamento da consciência no contexto do
ato de desenhar
O desenho para um alargamento da realidade
O ato de desenhar exige uma atividade corporal que, por sua vez, envolve a
atividade da mente, o que parece óbvio. No entanto, deseja-se saber se a ação
da mente no ato de desenhar é ou não completamente deliberada e se, nessa
dialética corpo-mente, não se proporcionará o fenómeno de consciencialização,
na medida em que o desenhador-autor procura um sentido que culmine nesse maior
conhecimento de si e do meio.
A vitalidade do ser humano acontece num processo contínuo de trocas de
informação que lhe permitem adquirir consciência do mundo. Mas também acontece
um processo em que as novas informações interagem com o conhecimento que a sua
memória reteve. De tudo isto resulta a possibilidade de formular novas
considerações acerca do mundo, além de permitir ao sujeito que se adapte ao
mundo (Mendonça, 1998).
O nosso organismo está constantemente a processar informação de várias
naturezas, de forma automática e através dos sistemas e subsistemas do interior
do nosso corpo, sem que tenhamos consciência desse processamento (Hogarth,
2002). Mas existe informação que não se processa dessa forma automática que é
aquela que se processa ao nível consciente (Hogarth, 2002). Sobre esta
exercemos uma intencionalidade segundo um sistema deliberado. O que nos dirige
para a asserção de que a consciência implica, necessariamente, um sistema
deliberado como resultado de um processo de conhecimento.
O organismo funciona segundo os ' referidos por R. Hogarth (2002) ' sistema
deliberativo e sistema tácito. Um e outro condicionam a relação do organismo
com o exterior, e é nessa dualidade que a consciência se processa. Um e outro
funcionam em termos de informação ' permutando informação de várias naturezas,
como já foi referido. Ao nível orgânico, a informação gera-se entre as células,
ao nível visceral, etc. Se, por um lado, ao nível do organismo, a transmissão
de informação é automática, especificamente ao nível mental uma parte dessa
transmissão depende da intencionalidade do sujeito. Isto, na medida em que a
parte da mente que diz respeito à consciência não funciona aleatoriamente, mas
segundo uma vontade que vai para além da ação instintiva do corpo animal.
O Homem tem uma noção retrospetiva (do passado), uma noção reflexiva (do
presente ou do passado) e uma noção prospetiva do futuro; temos uma cultura que
proporciona valores, uma moral, uma ética e uma noção de liberdade na
coexistência dos sujeitos dentro de uma sociedade. Tudo isso proporciona à
nossa individualidade um funcionamento que ultrapassa o carácter biológico;
existe, também, um funcionamento de caráter social, em que a troca de
informação é quase que estrutural. Estes mecanismos de inter-relação (ao nível
social) com base numa intra-relação (ao nível individual consciente/
inconsciente23) permitem criar circunstâncias de evolução e progresso que
afetam a nossa relação de seres naturais e biológicos com o meio natural e o
meio artificial que nós próprios criamos ' onde se inclui a própria cultura.
Numa palavra, toda a nossa vida é um processamento de informação ao nível
interpessoal e ao nível intrapessoal. Num e noutro circuito, esse
processamento pode ser emitido ou recebido ao nível da consciência ou da
inconsciência. De facto, como nos diz R. Hogarth (2002), os próprios genes
proporcionam informação que nos nossos corpos permitem ao nosso sistema a
regulação do crescimento físico. Podíamos dizer que o fluxo de informação tem o
sentido de reequilíbrio constante, de carácter hoemostático.
O desenho no contexto do fluxo de informação
O desenho, na nossa opinião, não é separável do fluxo de informação, ao nível
interno e externo (respetivamente, intrapessoal e interpessoal). Seria essa
ordem de devir que constituiria uma necessidade de reequilíbrio entre a
informação que é emitida e que é conhecida e a informação que é recebida e
desconhecida. Esta última pode ser susceptível de se desejar que se torne
consciente. Adquirir consciência do que até determinado momento não se tinha
consciência poderá consubstanciar nesse encontro de sentido que cremos que o
desenho proporciona.
O desenho: ativador da dialética entre o sistema tácito e o sistema deliberado
Desenhando, agimos sobre a matéria, sobre o visível, sobre o exterior; mas
também sobre o imatérico, o invisível e o interior. Esta ação tem como
propósitos primordiais o ajustamento do nosso interior e a procura de um
sentido, à medida que se vai descobrindo algo de novo interno e externo (ambos,
até então, inconscientes). Numa interação entre o exterior, o consciente, o
pré-consciente, o inconsciente, procuramos dar sentido àquilo que afeta o nosso
comportamento e que não está sob o nosso controlo, mas que pela materialização
e pela consciencialização passa a ser suscetível do nosso controlo mental. Na
verdade, procuramos ordenar e organizar o nosso interior através da ordenação e
organização do nosso exterior, incluindo a informação percetiva sensitiva, a
formas bidimensionais e tridimensionais, os seres naturais. A nossa organização
mental existe, quando a informação que captamos se compatibiliza com o estado
da organização psíquica do momento que experienciamos atualmente. Consideramos
que o ato de desenhar o meio, entre outros, facilita este fenómeno.
Numa primeira abordagem, remetendo-nos ao autor R. Hogarth (2002), vamos
considerar que qualquer estímulo (seja de natureza interna, por exemplo, um
pensamento que provoca outro pensamento; seja de natureza externa, por exemplo,
algo que se vê, ouve ou sente), não se dirige diretamente à consciência
(Hogarth, 2002). Existe um mediador, o pré-consciente, que determina
automaticamente se esse estímulo é ou não conduzido para a consciência, ou, por
outras palavras, se se torna consciente. Isto é um processo de decisão
intuitivo, independentemente de refletir uma tendência inata ou uma tendência
apreendida (Hogarth, 2002). Trata-se de um processo ordenador tendo em vista o
equilíbrio de caráter orgânico que necessitamos para sobreviver e para
conseguirmos nos adaptar ao meio e ao decurso natural do envelhecimento. Mais
precisamente, e utilizando as expressões de R. Hogarth (2002), existe uma
dialética entre o sistema tácito e o sistema deliberado. Não existe só uma ação
do sistema deliberado sobre certos sistemas tácitos, mas pode acontecer o
contrário, na perspetiva de R. Hogarth (2002), na medida em que, além do
sistema de processamento de informação neural, sensorial e motriz, também o
sistema cognitivo, os afetos podem afetar o sistema tácito (Hogarth, 2002). O
desenho é, de facto, um mecanismo que implica todas estas realidades num só
fenómeno.
O Ser Humano é informação e o meio que o envolve também o é. Temos de
considerar que a informação com origem no indivíduo ou no meio, que veicula um
conjunto de estímulos que agem sobre a mente, pode ou não tornar-se consciente,
na medida em que pode ficar a um nível latente (sem que tenhamos consciência
dessa informação), pode impulsionar uma ação (apesar de só termos consciência
dela a posteriori) e podem dar lugar a uma ação premeditada (de que se tem
consciência a priori) (Hogarth, 2002). No processo criativo pode haver uma
oscilação onde se pende ora para a primeira situação, ora para a segunda ou
para a terceira. Nesta dinâmica o desenho tem o papel de determinar qual o tipo
de pendor predominante.
Portanto, a informação, que é o desenho como sua referência, age sempre sobre a
mente, ou segundo um sistema tácito ou segundo um sistema deliberado; mas, em
qualquer uma das situações, a informação tanto pode contribuir para o
equilíbrio como para o desequilíbrio. Precisamente, a nossa tendência nata para
a gestão homeostática, com maior ou menor inteligência (seja de que natureza
for), é o que nos vai levar a adotar a informação com um fim utilitário ou
recusá-la dada a ameaça ou a inutilidade da mesma.
O desenho como descoberta (da liberdade)
Com base nessa gestão da informação no fenómeno da consciência, na dialéctica
do que é exterior (e ainda não consciente) e do que é interior (que é
consciente ou se situa a um nível pré-consciente), tentaremos entender de que
forma se processa o fenómeno da consciência no contexto do desenhador-autor.
Pois, como nos diz Ana Leonor Rodrigues, a ideia de desenhar como sendo um
vestígio desencadeia imediatamente uma outra constatação da consciência de si
através da identificação do Outro (Rodrigues, 2003: 68). Logo à partida, esta
afirmação remete-nos para a ideia que no processo de gestão de informação, como
é o caso do desenho, o indivíduo procura a adaptação ao meio, mas, por sua vez,
procura através disto conhecer o que de comum existe entre ele e os indivíduos
que compõem parte do meio.
O desenho-processo permite que o seu autor comunique através da imagem que
produz. Mas esta imagem não se dissocia da consciência do autor, uma vez que o
corpo, protagonizado pela mão, só produz a imagem como efeito de um processo
mental. Daí resultando que o autor tem uma prova de que existe, pois trata-se
de um produto da sua mente. Essa prova é o desenho-objeto baseado num
referente24 a que este reporte, uma memória ou simplesmente algo com origem na
imaginação. Quando na sequência da produção do desenho-objeto a consciência do
autor sofra uma modificação. Ou, melhor, que se torne mais alargada (Damásio,
2004), e, por consequência, mais adaptável ao meio, na medida em que conhece
maior diversidade de informação que compõe o universo (humano, animal, físico,
químico, etc.).
Ao observarmos o processo de desenho, percebemos diretamente a informação dos
registos que traduzem o efeito da nossa mente sobre o nosso corpo. Conseguimos
tal proeza, porque existiu uma inter-aprendizagem, existiu um mercado de
informação que nos permitiu aproximarmo-nos do estágio de equilíbrio, no
contexto da Natureza de que fazemos parte, em que o que nos é exterior não é
uma ameaça; é, sim, uma ligação do indivíduo aos outros indivíduos, gerando o
coletivo, ou melhor, o universal.
Não se pode, contudo, confundir tradução do desenho somente com o processo da
consciência, pois a mente é um sistema onde se incluem também conteúdos
inconscientes. Mas o universal é uno, e o consciente e o inconsciente fazem
parte dum todo indiferenciadamente vital para o Ser Humano. Os próprios
registos podem ter sido o efeito de conteúdos de que não somos conscientes. A
consciência pode atingir níveis mais elevados da mente, como poderemos
verificar mais à frente. O que pretende o Ser Humano é procurar a sua
liberdade, sendo que esta existe quando se atingir o máximo da consciência,
coisa que não está ao nosso alcance, por esse motivo nunca nos sentimos total e
definitivamente livres.
Parte-se da premissa, então, de que o desenho se pratica enquanto meio de
procura da liberdade. Sendo um processo que acontece ao nível mental e que se
concretiza através da motorização do nosso corpo, talvez não se possa enquadrar
numa lógico-dedutiva, pois, diz-nos J. Molina, que o desenho permite um
percurso de descoberta em que o representar o inefável ou penetrar no caminho
insondável do eu mais íntimo obriga a caminhar no território das revelações;
submeter-se a imagens que não podem ser deduzidas mas sim descobertas (Molina:
2003: 50). A dedução, de certa forma, pode fechar, por se tratar de um
logicismo; portanto, é necessário que a imaginação, que abre, se acople à
lógica.
Desenho é a procura da descoberta (da liberdade). Sugeríamos, então, que o
desenho permite descobrir o que de inconsciente ou latente se vai produzindo na
nossa mente, mas também o que os nossos sentidos captam do mundo, que quando
submetidos ao processo de consciência passam a estar descobertos do manto da
inexistência. Associar-se-ia o desenho, nesta medida, a um processo indutivo,
em que se fazem inferências conjeturais da realidade que se vê, em que se parte
do particular para o geral, mas num sentido em que a descoberta não é
definitiva nem determinada. Abertura é universalizar. Procura-se, assim,
alargar a consciência do/sobre o Mundo, em direcção ao universal: percurso
infinito. Uns procuram esse infinito no Desenho, outros na dança, outros na
música. Quem pratica a arte procura uma felicidade espiritual, aquela que na
realidade ultrapassa o material (possível de circunscrever), o universal
(impossível de circunscrever). A felicidade é, numa palavra, aquele(s) momento
(s) em que sentimos o universo, em que toda a informação de que temos alcance
se equilibra, em que a homeostasia, por momentos, atinge um estádio culminante,
de satisfação total de todas as necessidades do organismo.
Para que o sujeito tenha consciência do não-eu (toda a informação de que ainda
não tem consciência e que lhe é exterior), para que o descubra, ter-se-ia de
criar uma distância entre o conhecido e o desconhecido, isto é, permitir que o
sujeito se separe do mundo reduzido, quando o indivíduo se isola, e se aproxime
do mundo expandido, quando o indivíduo se partilha. E a mediação entre o
indivíduo e o mundo, mais do que ser feita através da linguagem, sê-lo-ia com
recurso às analogias, em que se procuram pontes entre o que é distante, (mais
do que pelo pensamento convergente) pelo pensamento divergente.
Ter consciência do / ou descobrir o não-eu implicará que nos distanciemos dele,
pois se tal não acontece, se estivermos diluídos nele, a subjetividade
sobrepor-se-á à objetividade. O que não se deseja, pois tem de haver um
equilíbrio entre estes dois pólos.
No sentido de que o cérebro veja de uma forma menos subjetiva, o desenho poderá
ser trabalhado para mobilizar a mente e «ensinar» o cérebro a ver e utilizar
essa capacidade de modos específicos e úteis a uma área vasta de ações
(Rodrigues, 2003: 10). Portanto, para mergulhar no universo, temos de nos
distanciar da nossa subjetividade individual, procurando compreender a
individualidade dos outros seres; é a sua diversidade que nos facultará a
compreensão do universo em que habitamos, ou que nos habita.
A transformação da consciência através do desenho-processo (o conhecido e o
ainda não conhecido)
A transformação da consciência é o produto de modificações norteadas pela
mente, em que existe, reiteramos, um permanente diálogo do interno com o
externo, do ainda não incorporado com o já incorporado, do inconsciente com o
consciente; onde se pode incluir o desenho para a criação como um dos grandes
agentes transformadores da consciência.
Parar de se ser crítico na atividade do desenho criativo resultaria num produto
folclórico e sem inovação, pois de nada serviria no processo de alargamento da
consciência; apenas daria a ilusória felicidade ao autor dada a segurança que
lhe daria a rotina reprodutora da imagem (o que acontece em qualquer tipo de
atividade reprodutora, incluindo o artesanato). Mais, deixar-nos-íamos conduzir
pelo instinto e menos pela liberdade da razão. Não é concebível, portanto, que
um desenhador-autor se prive de um permanente juízo crítico, sob pena de, num
extremo, produzir um desenho esquizofrénico. Para que isso não aconteça,
supomos haver a necessidade de que o desenhador-autor siga uma intensa procura
do conhecimento (de si), dos seus afetos, para poder interagir com o Outro
através de uma inter-partilha de afeto. Um percurso que se orienta pela
aproximação aos bons afetos, tentando perceber o que nos distancia deles e nos
impede de ser livres de ser afetuosos. A resignação com o que o indivíduo
conhece (de si), sem querer evoluir, seria um fator de estagnação na escalada
da liberdade. Sugerimos que o desenho só existe se, a cada momento, se combater
essa estagnação, questionando sempre o adquirido, e se o desenho tiver como fim
a transformação da consciência do autor, em que, compreendendo a razão dos maus
afetos, expande o sentido livre de existência. O que é possível sempre que
transpusermos as fronteiras que vão aparecendo (que muitas vezes se auto-
repõem). Procura-se, por isso, no desenho, quebrar constantes barreiras que
limitam as fronteiras entre o adquirido e o que se deseja adquirir, entre a
segurança do que se conhece e a insegurança do que ainda não se conhece.
O desenho de representação induz um observador leigo a uma sua receção
interpretando-o tendo como uma referência que normalmente tem a ver com o
conhecido. Em contrapartida, o trabalho que o desenhador-autor faz no sentido
de uma interrogação exige uma pesquisa interior, com maior profundidade, do que
é em si desconhecido, transportando o observador para uma inquietação. A
diferença coloca-se na grandeza da luta contra as barreiras que se interpõem,
conforme a fronteira separe uma realidade mais ou menos profunda (mais ou menos
inconsciente) No âmbito da criação pelo desenho, as vias de condução a esse fim
remetem-nos para a produção artística e para a perceção e pensamento (Molina,
2003). Nessa relação dinâmica entre o conhecido e o que se quer conhecer, ao
nível interno e externo, existem esses processos (a produção artística, a
perceção e o pensamento) que interatuam, influenciando-se reciprocamente. A
liberdade conquista-se no contexto sistémico. Portanto, não faz sentido
compartimentar áreas de fenómeno; é mais correto dizer que todas interatuam
inevitavelmente e em sistema(s).
Como nos diz Copón (2003: 430), a perceção não é objetiva nem ingénua, opera
mediante interesses, afinidades, ressonâncias entre o percebido e o
[perceptor] e, acrescenta mais à frente, neste sistema de separação, que
funda o conhecimento como desejo, estabelece-se, por sua vez, uma correlação
entre as aparências que damos ao real com o autoconhecimento das nossas
possibilidades internas. Estas ideias permitem-nos confluir no sentido de que
o saber-ser25 (que se adquire com a experiência de vida, mas que pensamos ter
como fator importante da criação) será o resultado da dialéctica entre o
pensamento, a perceção e a criação (artística), que são realidades com que o
desenho trabalha quando utilizado para criar. Mais precisamente, o saber-ser
será a elevação progressiva do indivíduo desenvolver os alicerces que potenciam
a expansão da sua liberdade num todo sistémico e holístico.
O desenho inclui todos os tipos de saber ' saber, saber-fazer e saber-ser ',
sem os quais não o é na totalidade, pois ele mobiliza todos os sistemas de
relação que usamos para existir, com uma ênfase particular na observação e nos
afetos (Rodrigues, 2003: 70-71). Por essa razão, não dissociamos o desenho do
âmbito da criação, pois esta atividade mobiliza outras competências, outros
níveis da consciência, que a mera tradução do real talvez não mobilize (apesar
de ambas implicarem os afetos).
O desenho é saber, pois exige uma aprendizagem onde se requer saber comparar
proporções, definir volumes (são noções que, apesar de não serem
necessariamente explicadas segundo teorias científicas, são explicáveis de
forma lógica); ele é saber-fazer, pois é preciso saber traduzir esses dados
graficamente; ele é, por fim, saber-ser, pois implica que o desenhador seja
autor, e para ser autor tem de transmitir a sua idiossincrasia e a sua
capacidade de ser livre das amarras do instinto, do inconsciente e do
desconhecido; tem de, numa palavra, traduzir a sua conquista de uma parcela de
maior consciência (de si e do mundo). Supondo que a consciência é o resultado
da conjugação dos diferentes saberes, o desenho poderá bem ser um meio que,
ativando, também, os mesmos saberes em conjunto, poderá contribuir para o
fenómeno da consciência, no sentido de transformar o indivíduo num ser mais
livre.