Discursos socioculturais sobre o amor em Portugal: Um percurso geracional?
Vários autores (e.g., Hatfield & Rapson, 2005; Sternberg, 2006) indicam que
o fenómeno do amor assume um papel importante na organização da sociedade,
dado que as concepções sobre o amor estabelecem o que é adequado e desejável
nas relações entre os indivíduos. Tem sido reconhecida, também, a dimensão
construída do amor (Dias & Machado, 2011; Neves, 2007; Sternberg, 2006), em
que as concepções, experiência emocional e vivência do amor dependem do período
histórico, contexto social e especificidades culturais subjacentes à
conceptualização do amor (Neves, 2007; Sternberg, 2006). A cultura fornece-nos
grelhas de interpretação sobre o amor, influenciando a forma como o
conceptualizamos e, estas conceptualizações constrangem as experiências de amor
e a forma como as vivenciamos (Hatfield & Rapson, 2005). Assim, o amor não
pode deixar de ser entendido no contexto histórico e cultural das suas
significações (Dias & Machado, 2011; Neves, 2007; Sternberg, 2006), sendo
os discursos e as práticas sociais (histórico e culturalmente construídas) que
possibilitam que o amor exista da forma como existe, que seja sentido da
forma como é sentido e que se expresse de determinadas formas (Dias &
Machado, 2011; Giddens, 1992; Hatfield & Rapson, 2005).
Considerando a importância que as significações sobre o amor têm nas relações
de intimidade, influenciando a forma como os sujeitos o experienciam e o
expressam, a sua análise no contexto português não poderia deixar de ser alvo
de análise. Os estudos em Portugal são poucos e, além disto, focados em
populações muito específicas, como os agressores (Dias, Machado, Gonçalves,
& Manita, submetido para publicação) e as vítimas (e.g., Neves, 2007) de
violência doméstica, os adolescentes (Saavedra, Nogueira, & Magalhães,
2010) ou, ainda, no discurso dos media (e.g., Dias, 2006).
Assim, no presente artigo, assumindo uma perspetiva construcionista social,
procuramos identificar e compreender os significados socioculturais sobre o
amor e sua articulação com as práticas relacionais amorosas. Especificamente,
pretendemos identificar as grelhas interpretativas socioculturalmente
construídas e partilhadas que estão disponíveis para significar o amor e as
relações de intimidade e analisar de que forma os sujeitos de diferentes
contextos (geracionais, género, experiências relacionais) apropriam e adaptam
estas grelhas interpretativas.
Revisão de Literatura
A análise teórica e empírica do fenómeno do amor por parte da psicologia tem
uma história recente, não sendo alvo de interesse até meados do século XX
(Berscheid, 2010) por se considerar que não podia constituir objeto de análise
científica e que deveria ser delegado a outras áreas - como a literatura ou a
filosofia (Weis, 2006). Maslow (1954) foi o primeiro a chamar a atenção para a
necessidade da psicologia atender ao fenómeno, considerando-o central na vida
das pessoas. Harlow (1958) e Bowlby (1969) constituem exceções, sendo os
primeiros teóricos e investigadores na área da psicologia, havendo, também, por
parte da psicologia social, algumas incursões sobre a atração interpessoal mas
que acabaram por abordar muito pouco o fenómeno do amor (Lindzey & Byrne
1968, Berscheid & Walster 1969, citados por Berscheid, 2010).
Só a partir da década de 70 é que os estudos da área da psicologia avançaram de
forma mais significativa (cf. Weis, 2006), começando a desenvolver-se escalas e
instrumentos para avaliar o fenómeno. Assim, à medida que o tema foi tendo
maior aceitação pela comunidade científica, a investigação e as teorias
proliferaram, sobretudo nas duas últimas décadas (Weis, 2006). Da análise da
literatura sobre o tema (cf. Dias & Machado, 2011), identificam-se várias
abordagens teóricas e linhas de investigação:
(i) As abordagens inscritas nos paradigmas positivistas e pós-positivistas '
que vão desde as teorias biológicas e evolucionistas (Weis, 2006), que defendem
que o amor é uma componente instintiva da natureza humana e que é regulado por
necessidades de reprodução, segurança e sobrevivência, passando pelas teorias
estruturalistas/funcionalistas, que enfatizam o papel dos processos e
estruturas sociais na formação e expressão das emoções e do amor (Cancian &
Gordon, 1988; Torres, 2001), devendo este ser analisado como expressão das
relações sociais (Torres, 2001), até às teorias taxonómicas, que postulam
tipologias de amor universais recorrendo a metodologias quantitativas
(questionários ou escalas) para medir ou quantificar o fenómeno em termos de
atitudes, crenças, cognições e comportamentos (e.g., Fehr, 2006; Sternberg,
1986, 1988a, 1998b, 1997, 1998a, citados por Sternberg, 2006).
(ii) As abordagens que se inscrevem no paradigma pós-moderno, as perspetivas
críticas e construcionistas, que conceptualizam o fenómeno do amor como
intimamente dependente das práticas e discursos socioculturais, equacionando a
dimensão cultural como constitutiva e indissociável do fenómeno (e.g., Hatfield
& Rapson, 2005; Wetherell, 1995). Estas abordagens recorrem, por um lado, a
estudos socioculturais comparativos (Hatfield & Rapson, 2005; Schmitt,
2006) e, por outro, a estudos qualitativos com amostras mais específicas e
reduzidas (Neves, 2008; Wood, 2001).
De uma forma global, o amor tem suscitado cada vez mais maior interesse por
parte dos investigadores na área da psicologia, nomeadamente, a análise e
determinação do papel do amor nas relações. Assim, assistimos a estudos que
indicam o amor como condição essencial para o estabelecimento de relações de
compromisso, nomeadamente, o casamento (Simpson et al., 1986, citado por
Berscheid, 2010), a ausência ou o declínio do amor como a principal causa
(e.g., Gigy & Kelly, 1992) ou o fator mais preditivo da dissolução das
relações (Gottman & Levenson, 2000) ou ainda a procurarem analisar a
possibilidade de - e em que condições ' o amor permanece em relações a longo
prazo (e.g., Acevedo & Aron, 2009).
Assim, tem havido um investimento na análise do desenvolvimento do fenómeno, de
compreender o seu processo, evolução e trajetórias. Berscheid (2010), por
exemplo, defende a necessidade de novas abordagens no estudo do amor, referindo
que, para uma melhor compreensão do fenómeno, há que atender ao seu processo de
mudança e ao facto das relações serem temporais, sugerindo uma abordagem
temporal do amor através de estudos longitudinais.
Além disto, verifica-se também o interesse pela análise do amor e das relações
amorosas ao longo das várias etapas da vida (e.g., Antonucci, Akiyama, &
Takahashi, 2004). Por exemplo, Akiyama e colaboradores (2004), num estudo
comparativo entre os Estados Unidos e o Japão, com participantes entre os 13 e
os 96 anos, concluíram que em ambos os países as interações positivas nas
relações tendem a manter-se estáveis ao longo da vida, enquanto as interações
negativas tendem a diminuir, referindo que tal se deve ao incremento da
maturidade social, da familiaridade e da frequência dos contactos (citados por
Antonucci et al., 2004).
No entanto, é a fase da adolescência que tem sido alvo de maior investigação,
sendo considerada uma etapa fulcral para o desenvolvimento de competências que
determinarão a qualidade das relações na vida adulta (Haugen, Welsh, &
McNulty, 2008). Assim, investigadores de diferentes tradições metodológicas
têm-se dedicado à análise da dimensão desenvolvimental das relações amorosas -
os processos específicos envolvidos no estabelecimento, desenvolvimento e
qualidade das relações românticas dos/das adolescentes, o seu significado e
funcionamento (e.g., Furman & Shomaker, 2008; Galliher, Enno, & Wright,
2008).
Apesar da conclusão partilhada de que existem especificidades nas interações
românticas dos/das adolescentes comparativamente às outras relações que
estabelecem (e.g., Furman & Shomaker, 2008) e continuidade entre as
experiências relacionais adolescentes e as adultas (Raley, Crissey, &
Muller, 2007), os resultados são díspares: alguns apontam para interações que
se caracterizam pela maior conflitualidade, menor responsividade afetiva face
ao parceiro e menores competências comunicativas (Furman & Shomaker, 2008);
outros indicam interações globalmente positivas e com evitamento de tópicos
potencialmente conflituosos e sentimentos negativos nas suas interações
(Galliher et al., 2008). No entanto, a maioria aponta para uma minimização das
interações negativas e para uma tendência de os/as adolescentes avaliarem
positivamente as suas relações amorosas e os comportamentos do parceiro (Furman
& Shomaker, 2008; Galliher et al., 2008), na tentativa de proteger as
suas relações, principalmente os/as adolescentes mais novos/as (Galliher et
al., 2008).
Também, no estudo do amor e da intimidade, as questões de género têm sido
consideradas relevantes, principalmente no âmbito da análise dos fatores
socioculturais (Dias & Machado, 2008; Santos & Amâncio, 2002; Saavedra
et al., 2010). O género refere-se às expectativas e comportamentos socialmente
aprendidos e construídos que se associam a cada um dos sexos, fornecendo à
mulher e ao homem diferentes guiões de conduta, de normas e de valores que
influenciam as relações que estabelecem (Amâncio, 1998; Neves, 2007; Santos
& Amâncio, 2002). Assim, as construções socioculturais de género
influenciam a forma como a mulher e o homem significam e vivem as relações de
intimidade que, como vários estudos indicam (e.g., Alferes, 1997; Santos, 2004;
Santos & Amâncio, 2002), é marcadamente desigual. A investigação, neste
âmbito, indica que os papéis e os estereótipos tradicionais de género têm
sustentado manifestações de intimidade assimétricas e diferenciadas, em que as
relações são pautadas por um duplo padrão moral e sexual que diferencia os
comportamentos femininos e os masculinos: incentivam-se, permitem-se ou
toleram-se determinados comportamentos no homem (pró-atividade nas relações,
iniciação sexual precoce, dissociação entre sexo e amor, vários relacionamentos
e relações pré-matrimoniais) que, por sua vez, são proibidos, negados ou
censurados na mulher (Alferes, 1997; Pais, 1998; Saavedra et al., 2010).
Procedendo a uma análise transversal dos estudos, apesar da vasta investigação,
consideramos que o estudo do fenómeno, em si, tem sido negligenciado. Como
vimos, há estudos que se centram na formalização do amor, analisando-o no
contexto da constituição, manutenção, sucesso/insucesso e qualidade das
relações, principalmente as maritais (no caso dos adultos) e as de namoro (no
caso dos adolescentes) ' o amor é apenas considerado como variável que leva à
união/casamento ou cuja diminuição/ ausência acarreta a dissolução das
relações/divórcio. Além disso, mesmo quando se procura analisar o fenómeno ao
longo das várias etapas da vida ou se focam fases específicas (como a
adolescência), a dimensão sociocultural do fenómeno tem sido obscurecida ' os
poucos estudos existentes (e.g., Furman et al., 2008; Galliher et al., 2008)
procedem a uma abordagem comparativa ou referem especificidades mas, na sua
maioria, sem uma análise aprofundada do seu enquadramento cultural que
contribui para as diferenças ou especificidades encontradas.
Mesmo os estudos feministas sobre o amor (e.g., Jackson, 2001; Neves, 2007;
Towns & Adams, 2000; Wood, 2001) - de carácter narrativo e que exploram
mais a dimensão construída e sociocultural do fenómeno ' são, maioritariamente,
desenvolvidos no âmbito da violência na intimidade e acabam por abordar a
questão cultural de forma muito circunscrita: limitam-se à exemplificação de
determinados ideais de romantismo e aos papéis de género associados, reduzindo
a dimensão cultural à estrutura social genderizada pelo foco exclusivo nas
desigualdades de género e nas relações de poder (e.g., Jackson, 2001).
No entanto, são os estudos e análises culturais que mais sustentam a leitura
construcionista social do fenómeno do amor, nomeadamente a sua especificidade
histórica e cultural: de que a experiência do amor é modelada pelos padrões
culturais, pelo que não deve ser aceite como algo intrínseco, natural ou
predeterminado, mas que deve ser alvo de análise crítica e desconstrução.
Assim, conceptualizamos o amor como construção social através das práticas e
discursos culturais (Jackson, 2001; Towns & Adams, 2002; Wetherell, 1995)
e, assumindo uma perspetiva construcionista social, procuramos analisar
discursivamente o fenómeno do amor, de modo a conseguir apreender a sua
dimensão sociocultural e construída. Neste sentido, a análise do discurso
sobre o amor e as experiências amorosas permite-nos compreender como aqueles
fenómenos são construídos e reproduzidos através da linguagem, sendo a
metodologia qualitativa mais congruente com a perspectiva construcionista
social (Holt, 2011; Wiggins & Riley, 2011), a qual postula as seguintes
premissas (Burr, 2003; Wiggins & Riley, 2011):
(i) Como toda a vida social, o amor e as relações amorosas são feitos no
discurso, ou seja, o discurso é fundamental no modo como vivemos o amor e
experienciamos as relações amorosas; as ações ou práticas amorosas que
executamos devem ser entendidas sob os conhecimentos e as interações prévias
que foram produzidas através do discurso.
(ii) O discurso sobre o amor é performativo, faz o fenómeno. Aqui, a linguagem
é fundamental: não é uma forma neutra de descrever o amor, mas uma forma de,
ativamente, o construir em interação (Burr, 2003; Holt, 2011); a linguagem é
entendida não no sentido linguístico (com foco na gramática, pontuação ou
aspetos técnicos do sistema da linguagem) (Wiggins & Riley, 2011) mas no
sentido da significação - como elemento construtor de significados, em que as
palavras que são usadas para construir os pensamentos e as ideias sobre o amor
estão embebidas e assentam em valores sociais, culturalmente partilhados e
construídos.
(iii) O amor é múltiplo, ou seja, há várias formas de compreender o amor e não
apenas uma, pelo que o amor pode ser descrito sob diferentes versões para dar
sentido ao fenómeno e às experiências amorosas. Assim, é a possibilidade de
podermos construir diferentes versões sobre o mesmo fenómeno que se torna
particularmente relevante, fazendo-nos questionar o porquê de determinada
versão e não outra e, mais ainda, quais são as consequências de usar
determinada versão em detrimento de outra (Wiggins & Riley, 2011;
Wetherell, 1998).
Deste modo, conceptualizamos o amor como um sistema de significados que se
constrói e organiza continuamente através dos discursos e interações sociais,
tendo repercussões nas práticas relacionais (Wetherell, 1995; Wood, 2001;
Jackson, 2001). Nesta lógica, o conceito que nos parece melhor para
operacionalizar a articulação entre cultura e subjetividade, e que utilizaremos
neste estudo, é o de repertório interpretativo (Potter & Wetherell, 1987;
Wetherell & Potter, 1988) - tendo sido utilizado noutros domínios
conceptuais, como o racismo (e.g., van Dijck, 1995), os discursos científicos
(e.g., McKinlay & Potter, 1987), etc. Potter e Wetherell (1987, pág. 138)
descrevem os repertórios interpretativos como building blocks speakers use for
constructing versions of actions, cognitive processes, and other phenomena ( )
basically a lexicon or register of terms and metaphors drawn upon to
characterise and evaluate actions and events. Assim, tratam-se de recursos
culturalmente disponíveis e partilhados que permitem aos sujeitos fazerem
sentido dos fenómenos e das experiências, pelo que adoptamos esta componente de
análise.
Em síntese, é na dimensão construída do amor que reside a sua dimensão
sociocultural, não se podendo compreender a experiência humana do amor sem
considerar o sistema social, histórico, cultural e político onde se insere
(Dias & Machado, 2011; Giddens, 1992). Assim, partindo do princípio teórico
de que os sujeitos constroem as suas versões do mundo a partir da seleção do
leque de grelhas interpretativas disponíveis na cultura (Sasson, 1995, p.10),
o principal objetivo do estudo prende-se com a identificação e compreensão das
grelhas interpretativas culturalmente disponíveis para conferir significado ao
amor e às experiências amorosas.
Sendo os discursos simultaneamente constitutivos e construídos dentro das
práticas sociais (Burr, 2003; Holt, 2011; Potter, Edwards & Wetherell,
1993), o segundo objetivo pretende identificar de que forma as grelhas
interpretativas são aprofundadas e transformadas pelos/as diferentes
participantes e de que forma tais significações se relacionam ou constrangem as
suas experiências de amor. Para tal, procederemos à contrastação do discurso
dos/das jovens atuais com o discurso dos/das adultos/as de diferentes contextos
geracionais, considerando, também, os diferentes estados civis/estados
relacionais e o sexo dos/das participantes.
Finalmente, dado que acreditamos que o discurso tem um papel constitutivo da
realidade, sendo performativo (Holt, 2011; Sasson, 1995), pretendemos
refletir criticamente sobre as implicações da construção sociocultural dos
discursos sobre o amor na vivência da intimidade dos diferentes grupos de
participantes.
Para uma melhor definição do âmbito e foco do presente estudo, procedemos à
formulação das questões mais específicas que orientaram a análise dos dados.
Questões orientadoras:
1. Quais os repertórios interpretativos sobre o amor que os/as jovens e
adultos/as utilizam para significar a experiência do amor e das relações de
intimidade? Podemos identificar diferenças entre a população juvenil e a
população adulta? O estado civil dos/das participantes adultos/as, constrange o
seu discurso? Se sim, em que sentido ' aproxima-o ou distancia-o do discurso
dos/das jovens?
2. Podemos identificar diferenças geracionais específicas entre a população
adulta? Se sim, em que gerações e em que consistem essas diferenças? Aproximam
ou distanciam os discursos dos da população juvenil?
3. Podemos identificar diferenças entre os discursos apresentados pelos homens
e pelas mulheres? Existindo discursos significativamente diferentes entre os
homens e as mulheres, são transversais em termos de gerações ou variam?
De uma forma global, pretendemos compreender se existe multiplicidade de
construções discursivas sobre o amor e as relações de intimidade e, a existir,
o que diverge nas construções e se há pontos de consenso; ou, pelo contrário,
se existe marcadamente uma construção discursiva consensual.
Metodologia
Participantes
Como já foi referido, no presente estudo interessa-nos compreender os discursos
socioculturais sobre o amor, considerando o contexto histórico, sociocultural e
político onde se inserem/desenvolvem. Para tal, o foco central é a análise em
profundidade dos discursos dos/das participantes que passaram por períodos
histórico, sociais e políticos distintos em Portugal sem, no entanto,
desconsiderar outras características importantes, tais como o género e as
experiências relacionais (estado civil) dos participantes (ver Tabela_1).
Assim, tivemos em consideração os seguintes critérios de inclusão:
(i) Considerando que a adolescência/juventude tem sido apontada como uma etapa
fulcral onde se iniciam e desenvolvem as primeiras interações e interesses
românticos (Haugen, Welsh & McNulty, 2008), definimos como principal
critério para o processo de seleção dos/das participantes o contexto histórico
e social em que os/as participantes vivenciaram esta fase, procurando abranger
as diferentes fases significativas do recente percurso histórico e político de
Portugal e consequentes transformações nas práticas e discursos culturais.
Assim, os/as participantes foram selecionados/as de acordo com os seguintes
parâmetros: participantes que vivenciaram a juventude na época ditatorial,
antes de abril de 1974 (faixa etária 53 anos ou mais2); participantes que
vivenciaram a juventude na época pós-ditatorial, no período de transição (de
1975 a finais de anos 80, faixa etária 40-523); participantes que vivenciaram a
adolescência nos anos 90, época de grandes e rápidas transformações sociais e
culturais (faixa etária 26-394) e os/as jovens atuais (faixa etária 15-255),
numa época ainda de transformação e de grande multiplicidade e, até,
ambiguidade nos discursos e práticas.
(ii) Para conseguirmos uma estrutura de participantes mais equilibrada em
termos de sexo, dado que as questões de género têm sido consideradas relevantes
no estudo dos discursos e mudanças culturais (Dias & Machado, 2008),
incluímos o mesmo número de homens e mulheres em cada grupo etário
estabelecido.
(iii) Por outro lado ainda, tratando-se de um estudo qualitativo, cuja seleção
dos/das participantes não se baseia nos critérios da representatividade mas que
é feita de acordo com critérios que possam gerar novas ideais e perspetivas,
procurámos a maior diversidade possível em termos de experiências relacionais,
pelo que considerámos os diferentes estados civis dos/das participantes
adultos/as (casados/as ou em união de facto, divorciados/as e solteiros/as) e
os diferentes estados relacionais dos/das jovens (numa relação de namoro,
saíram de uma relação de namoro, sem história de relação).
Material/Instrumento
Utilizou-se a entrevista semiestruturada A história de amor da sua vida
(Machado & Dias, 2007), adaptada do guião da entrevista The Life Story
Interview. de McAdams (1995). Através deste instrumento, onde era pedido que
identificassem e contassem a história de amor da sua vida, obtivemos as suas
narrativas sobre o amor e as relações de intimidade, focando os vários tópicos:
resumo da história, capítulos da história, momentos importantes (e.g., momento
alto, momento baixo, ponto de viragem), desafios, futuro (o melhor futuro
possível, o pior futuro possível) e ideologia pessoal (valores e crenças
pessoais).
Apesar desta estrutura prévia, as questões foram formuladas de forma a permitir
que as narrativas fluíssem de acordo com os interesses dos/das participantes
(e.g., E o que é que pensa sobre o que acabou de me contar?;Como se sentiu
face a isso?), explorando-se os pensamentos, os comportamentos, as emoções e
os contextos situacionais dos relatos. Assim, apesar de se aplicar todos os
tópicos do guião, a ordem e organização do material varia de entrevista para
entrevista.
Procedimentos
Para aceder aos participantes, procedeu-se à divulgação do estudo na zona Norte
e Centro do País em Juntas de Freguesia, em Associações (e.g., sociedades
recreativas, musicais) e em Centros de Formação, bem como se fez uso de
contactos informais e da técnica snowballing, considerando as diferentes
características dos/das participantes que pretendíamos (idade, estado civil,
sexo). As entrevistas foram realizadas nas instalações disponibilizadas pelas
instituições que encaminharam voluntários/as para o estudo e nas instalações do
Serviço de Consulta da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Foi
redigido o consentimento informado, dando a conhecer os objectivos do estudo e
todos os procedimentos seguintes (gravação, transcrição, análise e divulgação
dos resultados), garantindo o anonimato dos/das participantes. Não houve casos
de desistência ou recusa. Todas as entrevistas foram conduzidas pela
investigadora responsável pelo estudo, variando o tempo de duração entre os
quarenta e cinco minutos e as duas horas e meia. As entrevistas foram gravadas
e transcritas na íntegra, no sentido de preservar a integridade dos relatos.
Estratégia analítica
Após a transcrição, todas as entrevistas foram codificadas individualmente,
codificando-se todo o material recolhido. A unidade de análise é o argumento,
ou seja, o conjunto de ideias, significados ou imagens que os participantes
pretendem apresentar através das palavras num determinado extrato, não se
limitando à frase ou ao parágrafo (Wiggins & Riley, 2011). Na primeira fase
da codificação, procedeu-se à categorização dos relatos por temas: Amor e
relações amorosas e Outros temas contingentes( e.g., filhos, trabalho,
escola, etc.). Seguidamente, o foco de análise dirigiu-se para o relato
categorizado no tema Amor e relações amorosas e, no sentido de manter o foco,
conduzimos a análise de acordo com as nossas questões de investigação. Tendo em
conta o background teórico, descrito na revisão da literatura, a identificação
e análise de repertórios interpretativos é a principal componente metodológica
da análise do discurso a que precedemos (Wetherell, 1998), seguindo os
procedimentos indicados por Potter e Wetherell (1987) e Wiggins e Riley (2011).
Recorremos ao software NVivo 9.0 (QSR, 2010) para o processo de organização,
codificação e análise dos dados. Este instrumento foi concebido para organizar
e gerir os dados, permitindo-nos importar todas as entrevistas para o programa,
associar os atributos ou características dos/das participantes (e.g., sexo,
idade, estado civil, etc.), categorizar o conteúdo e criar hierarquias de
significados e auxiliar o processo de exploração e análise. O uso de algumas
das suas funcionalidades, auxiliou-nos na busca e identificação de padrões ou
ligações entre os dados, na identificação de similaridades e diferenças, na
contrastação entre os diferentes grupos de participantes, na identificação das
categorias mais salientes, etc. Além disto, permitiu-nos movimentar mais
facilmente entre os vários níveis de análise, desde a leitura dos dados,
passando pelas categorias, até à classificações mais conceptual dos
repertórios.
Resultados
No sentido de facilitar a leitura e compreensão dos resultados, procedemos, em
primeiro lugar, à descrição global dos repertórios interpretativos e, de
seguida, passaremos à descrição e discussão dos resultados, seguindo as
questões orientadoras, anteriormente definidas. Recorreremos a extractos dos
relatos dos/das participantes para ilustrar a análise e discussão.
Repertórios Interpretativos sobre o Amor e Temas associados
Nas entrevistas selecionou-se todo o discurso dos participantes referente ao
amor e às relações de intimidade, identificando-se cinco Repertórios
Interpretativos: 39.27%6 do discurso sobre o amor remete para o Amor
Companheiro, 29.47% para o Amor Romântico, 18.94% para o Amor Pragmático, 6.99%
para o Amor Apaixonado e 5.32% para o amor Game-Playing. Procedendo a uma
análise global, verificamos que o repertório amor companheiro é o mais
utilizado, seguindo-se o amor romântico.
O repertório amor companheiro associa o amor às noções da amizade (Uma relação
tem que ter uma forte componente de amizade, as pessoas têm que ser amigas e
respeitar os valores da amizade.) e do companheirismo (Acho que o
companheirismo entre os dois. O amor pode ter muita força mas sem o
companheirismo ),em que a relação assenta na cumplicidade (A relação de amor
é uma relação de cumplicidade, é uma relação de solidariedade, é uma relação de
honestidade, é uma relação que nos faz sentir bem, que nos sentir
confortáveis.),na afinidade (Conseguir estar muito próximos e ter uma
afinidade muito boa um com o outro.), na ajuda e compreensão mútuas (Cada um
deve estar para ajudar o outro; Além do amor, acho que tem de haver
compreensão e ajuda mútua, é indispensável.), na aceitação e na procura de
entendimento através do diálogo (Respeitar a opinião, mesmo não concordando
mas temos que respeitar. Respeitar em todas as situações, deixar falar, saber
ouvir, dialogar). Enfatiza a importância da comunicação, do conhecimento entre
os parceiros e da partilha comum de experiências, de emoções e de valores
básicos (Espero e acredito na partilha de sentimentos, na partilha das
emoções, boas ou más.; Partilha de valores, terem valores comuns.). Como
valores básicos, surgem a sinceridade, a confiança, a honestidade e,
principalmente, a fidelidade e o respeito, que não devem ser quebrados para
manter a relação (Acho que o primeiro valor é a confiança. Se calhar está
ligado à confiança o respeito.; Acredito na fidelidade, de ambas partes.).
O repertório amor romântico remete para o guião tradicional, que associa o amor
a uma relação de compromisso e duradoira, que se inicia no namoro e culmina no
casamento - conceptualizado como o percurso normal, a consumação do amor e uma
fonte de felicidade - (O momento mais feliz, para mim, foi o dia do nosso
casamento. Foi o resultado do nosso amor e acho que veio solidificar ainda mais
a nossa relação, acho que sim.) e prescreve a iniciativa masculina (A melhor
coisa a fazer é agarrar o boi pelos cornos e, nestas questões sentimentais,
amorosas, é não deixar andar no chove e não molha. Temos que partir logo
partir logo. É ela que eu quero, vou lutar por isto, vou agarrar ».) e a
passividade feminina (Nós tivemos uma conversa onde ele se declarou. Mas eu,
também, já sabia estava à espera que ele desse o primeiro passo, é assim que
deve ser.) no estabelecimento da relação. Este guião tradicional inclui a fase
cor-de-rosa (Olhe, eu digo-lhe, o momento feliz: foram todos! Todos os minutos
que eu estava com ele parece que tinha o mundo aos meus pés. Parece que tudo
brilhava à minha frente), onde há uma extrema idealização do parceiro e da
relação, bem como a expectativa do final feliz: ficar juntos, casar e
constituir família ( apesar de ser uma história com cinco meses e meio, é uma
história que eu gostava que durasse, pelo menos, cinco séculos e meio, não é!
Porque. E ser feliz! Gostava imenso de fazer uma vida com ela, ter um
filhote.). Destaca-se ainda o imperativo do amor, caracterizado globalmente
pela expectativa e pressão social para ter uma relação e pelo estigma de não
ter uma relação, ou alguém, em termos românticos (Com a idade a gente começa a
sentir alguns problemas de solidão ou de desajustamento social. Embora eu,
socialmente, não deixe isso transparecer muito.; Há momentos que imagino, se
eu tivesse alguém, as coisas seriam super diferentes.).
Este repertório veicula a crença fatalista do amor verdadeiro e da existência
da pessoa certa (O amor, quando é amor, é para sempre.; Era ter alguém ao
meu lado, o chamado amor verdadeiro, o amor para toda a vida.), da cara-
metade, conceptualizada como complemento e fonte de equilíbrio (Acho que ele é
a minha cara metade. Acaba por ser, um bocadinho, metade daquilo que eu sou.;
Têm que estar os dois a par. Como temos duas pernas, é mais fácil andar com
duas pernas do que andar a coxear . Dá-nos um equilíbrio.). Verifica-se, neste
repertório, uma valorização do romantismo, do sentimento amor, enfatizando
o amor como o mais importante e a base da felicidade.
Por fim, destacam-se ainda duas metáforas: (i) a metáfora do amor vencedor, em
que perante os obstáculos ou problemas, os parceiros conseguem ultrapassá-los,
porque juntos os enfrentam e com amor (Houve muitos problemas mas nós
estávamos sempre os dois a apoiar-nos mutuamente e, corresse como corresse, não
íamos dar tanta importância. O que importava era o que sentíamos.); e a
metáfora efeito cupido, no sentido de, quando ou com quem menos se espera, o
amor surge naturalmente, sendo capaz de unir, ou esbater, as diferenças (Havia
alguma antipatia e uma dissonância muito grande. Se quiser procurar duas
pessoas muito diferentes é o que nós éramos. Duas pessoas muito diferentes, com
objetivos diferentes na vida, características diferentes e, portanto, que nunca
pensariam que poderia entre elas haver um entendimento a outro nível.).
O repertório amor pragmático apresenta uma conceptualização do amor e das
relações mais racional, ponderada e, até, calculada, sendo maioritariamente
utilizado como contraponto a outros repertórios, mais idealistas, e após o
balanço das experiências relacionais. O amor é conceptualizado de forma mais
fluida e flexível, considerando a possibilidade de vários amores ao longo da
vida, a vulnerabilidade do amor e das relações às contingências, bem como a
possibilidade do amor acabar e da dissolução das relações (Não acho que haja o
grande amor, nem acho que tenha que ser para sempre. Aquela expressão do
Vinícius, «O amor é eterno enquanto dura» é uma expressão que, em mim, faz
muito sentido enquanto uma pessoa está muito envolvida. Portanto, é eterno
enquanto dura.).
Inclui principalmente a noção de aprendizagem, insight ou amadurecimento,
resultante das experiências relacionais, prescrevendo a prudência e precaução
no âmbito relacional e afetivo (As pessoas estarem sempre com alertas, estudar
bem a pessoa.; O modo como vejo as relações foi 90% marcada pelo que se
passou. E perdi completamente, perdi completamente os ideais românticos. Acho
que as coisas são práticas, o dia a dia é prático, e tudo na vida funciona
assim.).
A iniciação e investimento na relação surgem neste repertório como o resultado
de uma análise ponderada das condições pessoais e materiais dos parceiros (E
passado pouco tempo, de facto, tanto ele como eu, percebemos que era aquilo que
queríamos e, lá está, casámos! Aquela fase de apalpar um bocadinho o terreno e
perceber se, de facto, é aquela pessoa. Depois analisar as condições para um
projeto de vida, de toda aquela fase que se prolongou durante bastante tempo,
de termos condições para o fazer.), da listagem de atributos desejáveis no/na
parceiro/a (Nas vertentes pessoais, era uma pessoa brilhante do ponto de vista
intelectual, uma pessoa que tinha sempre assunto para conversar ; Depois com
o meu marido, como era um pessoa muito reta, eu achei que tinha ali o meu porto
seguro. E foi mesmo isso que me levou a casar.), bem como a manutenção ou
término da relação depende do balanço das vantagens e das desvantagens da
relação, para o/a próprio/a (Perceber «isto é muito forte, muito intenso, mas
o mal que provoca é superior ao bem que alguma vez na vida tirarei daquilo»,
até, de facto, se tomar a decisão de interromper este relacionamento porque
estava a tornar-se complicado de gerir.).
O repertório amor apaixonado é menos frequente, surgindo muito pontualmente ou
em participantes muito específicos (como os/as jovens e os/as adultos/as
solteiros/as). O amor é conceptualizado como uma alteração do estado normal, em
termos cognitivos, emocionais e físicos (Aquela coisa assim aquele calor a
subir por nós acima! O coração a bater muito forte! Foi emocionante mesmo!),
associando-se às noções do amor-cego (acho que grande paixão é um
encantamento. De repente, o pessoal fica cego para tudo o que está na periferia
e só vê aquele objeto de interesse de desejo e, durante um período de tempo,
está tudo concentrado.) e do amor à primeira vista (até ter encontrado
agora uma miúda que eu pensei que ia ser ocasional e que houve um click e,
atualmente, é minha namorada). Valoriza a aparência física (ela também era
extremamente bonita, uma pessoa extremamente física - ela tinha sido modelo,
loira, muito vistosa - e a relação iniciou-se e solidificou-se numa parte
física.), enfatiza a ativação física e sexual (em qualquer relacionamento, a
atração física é a primeira coisa. Tem que haver logo algum tem que haver
aquele magnetismo, aquela química.) e a noção da paixão incontrolável
(Sentes aquela atração completamente louca e obstinada por uma pessoa. Em que
tu não consegues explicar por que é que aquilo acontece, não consegues
explicar.).
Por fim, o repertório amor game-playing é o menos frequente, concebendo as
relações como um jogo, sem investimento emocional e sem compromisso. Surge
maioritariamente associado às relações fugazes, volúveis e passageiras (Nestas
pequenas relações, não são relações, são apenas momentos em que uma pessoa tem
aquela parte física, aquela parte sentimental mais distanciada. E depois
voltamos ao nosso espaço, que é porreiro: uma pessoa chega a casa a que horas
quer, fala com quem quer, não deve explicações a ninguém e não há cá controlos,
não há cá responsabilidades com nada. Isso é espetacular!) conceptualizando-as
como relações de não amor, limitadas ao jogo da sedução e da conquista.
Inclui a prescrição de aproveitar o momento e evitar o compromisso (Eu, neste
momento, o que eu faço: não tenho qualquer relação porque quero curtir a vida
ao máximo, quero aproveitar de tudo para, um dia, mais tarde, sossegar um
bocadinho e acalmar. E, depois, então conseguir manter algum tipo de relação),
veiculando, até, até a objetificação do/da parceiro/a em prol da satisfação
pessoal (Neste momento, quero é curtir a vida, aproveitar ao máximo, tirar o
máximo possível da mulher.).
Contraste entre os discursos da população juvenil e os da população adulta
Tanto os/as jovens como os/as adultos/as fazem uso de todos os repertórios,
anteriormente descritos, mas, no entanto, os repertórios assumem padrões de
relevância e utilização diferentes. Assim, o repertório amor romântico é o mais
utilizado pelos/as jovens (39,62%), seguindo-se o companheiro (24,61%) e o
apaixonado (14,62%) (Tabela_2).7
Os/as jovens, na sua maioria, utilizam o repertório romântico ao longo de toda
a sua história: como ponto de partida para a história (fase cor de rosa,
idealização da relação), na conceptualização/superação das dificuldades ao
longo da história (metáfora amor vencedor e minimização/negação dos
problemas), como prescrição para a manutenção da relação (noção de que o amor
basta) e como projeção no futuro (expectativa do final feliz). Alternam com o
repertório amor companheiro, nomeadamente na descrição do aprofundar/melhorar a
relação, recorrendo à noção do entendimento e diálogo, que reforça a crença na
mudança da relação. O repertório amor apaixonado está mais presente nos/nas
jovens, principalmente a noção da alteração do seu estado normal devido à
intensidade do amor, servindo para justificar/aceitar comportamentos menos
ponderados ou mais impulsivos quando confrontados com problemas relacionais,
tais como cometia uma loucura, ficava fora e mim, no caso de ser alvo de
infidelidade, ou são ciúmes, ele não estava a pensar bem, no caso de
comportamentos de controlo sobre a parceira.
Por seu turno, o repertório amor companheiro (42,53%) está amplamente
disseminado nos/nas adultos/as, seguindo-se o romântico (27,22%) e o pragmático
(20,55%). Os/as adultos/as utilizam, maioritariamente, o repertório companheiro
como prescrição para manter e gerir a relação, recorrendo ao romântico como
ponto de partida e como projeção no futuro (a crença no verdadeiro amor/pessoa
certa e a noção do efeito cupido). Como contraponto ao romântico, alternam
com um discurso mais ponderado e racional, nomeadamente no que diz respeito à
listagem de atributos desejáveis para a escolha do/a parceiro/a e à análise das
condições para o estabelecimento/consolidação da relação. Por fim, apesar do
repertório game-playing ser o menos utilizado por ambos, está mais presente
nos/nas jovens (9,53%) do que nos/nas adultos/as (4,39%), principalmente a
noção de aproveitar o momento e de adiar o compromisso.
No que diz respeito a aspetos mais específicos dos discursos, verifica-se que
existe um maior número de significados que são mais específicos da população
adulta, não surgindo na população jovem, e outros significados que só estão
presentes na população jovem. Por exemplo: a população adulta veicula, no
repertório romântico, a valorização das manifestações de romantismo e, no
repertório companheiro, defende a noção da reciprocidade na relação,
conceptualiza o amor como construção e enfatiza a noção da partilha de
experiências, emoções e valores para alicerçar e manter a relação; por sua vez,
na população jovem, emerge a crença romântica de que o amor basta/fonte de
felicidade e a expectativa de abdicar/ceder por amor (principalmente face à
mulher).
Por fim, no que diz respeito ao estado civil dos/das participantes adultos/as
(que implica diferentes experiências relacionais), verificam-se algumas
diferenças na forma como conceptualizam o amor (Tabela_3)8.
Os/as participantes casados/as ou em união de facto são os/as que possuem uma
perspetiva mais companheira e romantizada ' veiculam a noção de que estão
numa relação porque encontraram a pessoa certa e o amor verdadeiro,
referindo os valores do amor companheiro como estando presentes na relação e
que lhes permite gerir/ultrapassar as dificuldades, mantendo-os na relação.
Isto reflete, no nosso entender, a concepção da vida a dois (seja sob a forma
formal do casamento ou informal) sob o imperativo do amor (Pais, 1998;
Giddens, 1992): na atualidade, dada a liberdade e desinstitucionalização das
relações, a escolha de estar e permanecer numa relação implicará ir ao
encontro das expectativas românticas da felicidade e da realização pessoal
através do amor (Giddens, 1992) que, sendo verdadeiro, pressupõe que seja para
sempre ' podendo implicar, em alguns casos, anos de infelicidade.
Os que mais se aproximam do padrão juvenil são os/as solteiros/as (ver tabelas
2 e 3), diferenciando-se apenas no maior recurso ao amor pragmático, em vez do
apaixonado, dado que enfatizam a análise racional das condições relacionais e
dos atributos desejáveis (por enquanto omissos) no/na parceiro/a para
justificar o não terem, ainda, uma relação. Os/as divorciados/as, por seu
turno, também recorrem mais ao amor pragmático, comparativamente aos/às
casados/as, cujos significados lhes permite conceptualizar a história
relacional que falhou e integrá-la como fonte de aprendizagem e
amadurecimento.
Contraste entre os discursos de diferentes gerações
Há uma similaridade transversal nos vários grupos geracionais que constituem a
população adulta, no que diz respeito ao padrão de utilização dos diferentes
repertórios (tabela_4)9: por um lado, o repertório companheiro como principal
grelha interpretativa utilizada para dar sentido ao amor e às diferentes
experiências amorosas, sendo amplamente partilhado, e, por outro, os
repertórios apaixonado e game-playing como as grelhas preteridas, usadas, na
sua maioria, para enquadrar o passado ou fases de transição da história
relacional dos/das participantes.
Apesar desta homogeneidade, encontramos algumas especificidades que distinguem
a faixa etária que viveu a juventude no período pós 25 de Abril (40-52 anos):
os/as participantes oscilam entre o repertório companheiro e o repertório
pragmático, enquanto os/as das outras faixas oscilam entre companheiro e o
romântico, sendo também os/as que, comparativamente aos/às restantes, fazem
mais uso do repertório apaixonado e do repertório game-playing.
De um modo geral, verificamos que os/as participantes pós 25 de Abril se
distinguem pelo uso mais diversificado e distribuído dos diferentes
repertórios, revelando maior ambiguidade na forma como conceptualizam o amor e
as relações: por um lado, apresentam uma perspetiva tradicional do amor, que
veicula a desejabilidade do casamento/durabilidade da relação, associada à
constituição da família e investimento no projeto comum da vida a dois,
defendendo a fidelidade como condição essencial (sendo o tema mais focado nesta
faixa etária); e, por outro, quando confrontados/as com a frustração ou não
concretização deste arquétipo relacional (situações de infidelidade, ruptura,
rejeição, conflitualidade), abandonam o ideal da vida a dois e adoptam uma
perspetiva mais calculista do amor. Posicionam-se como mais individualistas,
em termos afetivos e relacionais, na medida em que a vivência do amor a dois
faz sentido quando é favorável ao/à próprio/a (repertório pragmático), quando
acarreta emoções fortes de prazer (repertório apaixonado) ou quando não implica
compromisso e investimento (repertório game-playing), como se pode observar no
exemplo que segue.
Porque quando a escolhi para me casar tinha a certeza que era a pessoa que
queria mas, pelo vistos Sinceramente, ao longo destes anos todos, penso que,
realmente, aquilo não era para mim. Eu estava ali, mas estava ali enganado. E
ainda bem. Porque, de facto, não seria tão feliz como sou agora neste momento,
independentemente de estar sozinho. Neste momento, prefiro estar assim tenho a
minha namorada, que me dá pica já tive outras relações, só físicas e que não
davam chatices (Caso P, divorciado, 45 anos).
Esta ambiguidade discursiva pode relacionar-se, em parte, com o facto de serem
participantes que vivenciaram a sua juventude na época pós-ditatorial - período
de transição entre um regime muito fechado e tradicional para um regime
democrático e de maior liberdade. Como indicam Dias e Machado (2008), tratou-
se de um contexto histórico e político único, que se caracterizou pela
veiculação de um discurso de reivindicação de liberdades e de crítica social,
em todos os âmbitos, assente numa ideologia de esquerda, que acarretou
transformações no discurso sobre a conjugalidade. Verifica-se, na geração de
Abril, um discurso de oposição ao Estado Novo, representando um ponto de
ruptura com a repressão da época ditatorial.
Por sua vez, os/as participantes que viveram a juventude na época ditatorial,
veiculam nas suas histórias concepções mais conservadoras e tradicionalistas,
próprias do Estado Novo, com valores e conceitos morais tidos como
inquestionáveis (a família, o casamento, a fidelidade, a limitação da mulher ao
papel de esposa, mãe e dona de casa, o homem como elemento de autoridade no
núcleo familiar, austero e rígido). A título de exemplo:
A nossa história de namoro até ao casamento não foi muito longa. Depois a fase
do casamento e os filhos. Para constituir família.; Tive de ter aquela fase
de adaptação ao casamento. A mim, bastava-me olhar para ver que o olhar dele
era um olhar de reprovação. Ele é assim muito sério. Eu acho que, para mim, é
correto de mais.(Caso B, 62 anos, casada).
O sonho de casar, de nos amarmos e respeitarmos, sermos fiéis até que a morte
nos separasse. (Caso L, 62 anos, divorciada)
Ela fazia-me tudo o que eu queria. Dava-me coragem para ir trabalhar, quando
chegava a casa ia-me logo preparar o bifezinho. (Caso J, divorciado, 62 anos).
No entanto, quando falam no presente e se projetam no futuro, agora já
distanciados/as no tempo e com outras vivências, já tecem alguma reflexão e
análise crítica daqueles valores (repertório pragmático), principalmente quando
têm uma história relacional que não se enquadrou no guião convencional.
Hoje nada me pesa porque eu era uma excelente dona de casa, uma excelente
cozinheira, fazia tudo para o trazer sempre bem vestido. Mas eu achava que ele
não me respeitava como mulher. E eu, então a relação chegou ao fim. Agora,
antes divorciada que casada e infeliz, como vejo a maioria das mulheres por aí!
Agora já não é como antigamente, ainda bem que os tempos mudaram e,
sinceramente, não me importo que falem de mim.(Caso L, divorciada, 62 anos).
Ao contrário do que seria expectável, dado o distanciamento geracional e o
diferente enquadramento histórico e político, os/as participantes que viveram a
adolescência nos anos 90, já na segunda década do regime democrático (26-39
anos), têm um discurso mais próximo dos/das participantes que viveram a
juventude na época do Estado Novo (faixa etária 53 anos ou mais), do que da
geração que os antecedeu, a geração de Abril.
Quase 80% dos relatos, quer da geração democrática, como da geração do
Estado Novo, remete para o repertório amor companheiro e para o repertório
romântico, caracterizando-se, globalmente, por um discurso mais fechado e
hegemónico: (i) no repertório companheiro veiculam essencialmente a expectativa
da vida a dois e da construção de um projeto comum, assente nos valores do
companheirismo, invioláveis e rígidos; (ii) no repertório romântico está
patente a desejabilidade da durabilidade da relação, o ideal do amor único e
verdadeiro e a primazia do casamento e da constituição de família; (iii) e a
desvalorização do repertório apaixonado que, sendo associado à intensidade
emocional, à ativação física e à erotização, é conceptualizado como imaturo e
menor, ou inferior, quando comparado ao verdadeiro amor (sendo usual a
distinção entre paixão e amor).
Há um casal que eu admiro, têm 4 filhos fantásticos. Quando um dia eu tiver
família gostava que fosse assim. Não é só pelo número de filhos mas pela
capacidade que têm em gostar um do outro. E os filhos, são miúdos extremamente
educados, sem nada que ver com aquilo que nós hoje encontramos. É o meu modelo
de relação, uma relação que dura há anos, um amor genuíno.(Caso B, 37 anos,
divorciado).
Embora recorram, também, ao repertório pragmático, a geração do Estado Novo e a
geração democrática fazem-no de forma diferente da geração de Abril: usam-no
fundamentalmente como complemento racional do projeto a dois (do amor
companheiro) ou para sustentar a crença da pessoa certa (do amor romântico),
procedendo à análise das condições logísticas para a relação a dois e à
listagem dos atributos desejáveis no/na parceiro/a.
Foi o culminar de vários meses de preparação, de ponderar se tínhamos ou não
condições para avançar, em termos económicos e profissionais. Pronto, o
casamento é o expoente máximo de tudo aquilo. (Caso F, casada, 28 anos).
Se eu visse um homem educado, respeitador. Toda a mulher, antes da coabitação
com um homem, devia ver se, na realidade, aquele homem seria um bom marido e um
bom pai para os seus filhos. (Caso L, divorciada, 62 anos).
Os aspetos diferenciadores, introduzidos pela geração de Abril, que se mantêm
na geração democrática e nos permite distingui-la da geração do Estado Novo,
dizem respeito à formalização desinstitucionalizada do amor (permitindo
outras formas de formalização, como a união de facto), à consideração da
possibilidade das relações terminarem (embora não seja desejável e seja de
evitar) e ao alargamento (que se traduz num acréscimo) dos papéis associados à
mulher.
Fazendo uma análise holística, verificamos que as grelhas romântica e
companheira parecem ser as mais difundidas e partilhadas culturalmente, dado
que o guião romântico e os valores/prescrições do companheirismo assumem
destaque no discurso dos/das participantes de todas as gerações, inclusive na
população juvenil. Assim, estas grelhas parecem ter uma continuidade discursiva
transgeracional. É a geração de Abril que introduz descontinuidade nesta
continuidade discursiva, ainda que o faça de um forma ambígua, ao apresentar
significados mais flexíveis e formas relacionais mais diversificadas e
alternativas às convencionais, algo inexistente no discurso da geração que a
antecedeu e que se dissipa, também, na geração que a sucede.
Assim, analisando transversalmente os discursos geracionais, consideramos que
há um retorno às concepções tradicionais do amor, às formas relacionais
conservadoras e, até, a um certo moralismo e estigmatização dos que não
seguem o padrão convencional. A geração democrática (e mesmo a juvenil)
aspira à segurança, à estabilidade e à certeza do amor verdadeiro e para
toda a vida, de constituir família e do projeto a dois da geração do
Estado Novo, embora já não subjugada à institucionalização, característica do
Estado Novo, mas, do nosso ponto de vista, subjugado à fusão afetiva/
relacional (Pais, 1998).
As pessoas têm um envolvimento, tem que haver esse respeito. Quer dizer, nós,
felizmente, distinguimo-nos dos cães, não é (risos)! De facto, os cães em
qualquer sítio da rua fazem. Portanto, eu sei que isso hoje acontece. Nós
andamos na rua e, de facto, as coisas acontecem como se fosse tudo muito
natural ' a televisão e as novelas, por exemplo, esta geração dos Morangos é
uma geração completamente inútil. Expõe-se ali o corpo feminino que acho que é
uma obra muito bem-feita para que possa ser entregue assim sem rei e sem
roque, sem regra, não é! Sem qualquer pudor. Quando nós chegamos a este ponto,
alguma coisa está errada.(Caso B, divorciado, 37 anos).
E, portanto, hoje se calhar também atingimos situações que, para mim, são
completamente anormais ' troca de casais e coisas do género. E acho que
precisávamos de voltar, não diria, voltar há 40 ou 50 anos, mas acho que
precisávamos de voltar um bocadinho ao tradicional. Hoje é tudo um bocadinho
mais impessoal. As pessoas vivem, assim, como se fosse tudo ao monte no
supermercado. (Caso S, solteira, 28 anos).
Verifica-se, assim, que, enquanto a geração do Estado Novo assume estas
concepções tradicionais sob o discurso dos constrangimentos contextuais que, na
data, limitaram o seu leque de alternativas e possibilidades de conceptualizar
e viver o amor, os da geração democrática fazem-no sob o discurso da
escolha - no sentido que, face ao vasto leque de opções, em que tudo é
permitido, escolhem o guião convencional.
Por sua vez, a população juvenil atual tende também a adoptar o modelo
tradicional, revelando, até, discursos mais extremados e genderizados, que
veiculam relações assimétricas e desiguais. Como vimos anteriormente, quando
comparados com a população adulta em geral, recorrem mais aos repertórios
apaixonado e game-playing mas, no entanto, tal não significa que apresentem
concepções sobre o amor mais abertas, igualitárias ou flexíveis. Pelo
contrário, na adopção destes repertórios, é notória a conotação moral, a
crítica negativa, o duplo padrão sexual (Começar com alguma rapariga e depois
vir a saber histórias! Que anda com todos, isso é difícil! Já trás defeito: nos
rapazes pegar muitas é bom. Agora, saber que uma rapariga é marada, é mau.
Pode ser um bocado machista, mas uma pessoa tem de pensar na imagem, não é!),
a instrumentalização da mulher (Quanto mais se pega as raparigas, mais se
aprende! Essas, as maradas, servem para curtir e para coisa séria, não!), bem
como a legitimação de comportamentos de controlo e exercício de poder no
masculino (Arranjar alguém que não seja fiel, acho que me passo da cabeça,
cometo uma loucura. Nem sei o que faria .Por isso é que não podemos dar muita
liberdade, temos de estar atentos e controlar.) e a submissão/tolerância a
tais comportamentos pelo lado feminino (Quando as coisas vieram ao de cima,
tentei fazer com que ele confiasse mais em mim, fiz coisas para recuperar a
confiança: acabei com os hi-5, com o MSN, acabei com tudo, mudei o número de
telemóvel, para que ninguém tivesse o meu número, e tentei mostrar que estava
empenhada nisto.), veiculando a dominância masculina e a submissão feminina.
Repertórios interpretativos sobre o amor ' discursos femininos e masculinos
Tanto as mulheres, como os homens, apresentam o perfil discursivo já descrito
na análise geracional, não havendo diferenças de género nos padrões
identificados. Como podemos constatar na análise da tabela_510, o padrão de
utilização dos repertórios é muito similar, sendo apenas de destacar o facto do
repertório game-playing (volubilidade, relações passageiras,
descomprometimento) ser mais utilizado no masculino. Dentro deste padrão comum,
o que verificamos é a existência de significações específicas e usos
diferenciados de algumas construções.
A noção de aproveitar o momento e adiar o compromisso, presente no repertório
game-playing, é exclusiva do discurso masculino, principalmente nos homens
jovens e nos solteiros da população adulta. Também no repertório game-playing,
o envolvimento em relações volúveis e passageiras, bem como a objetificação do
parceiro no contexto dessas relações, é mais característica do masculino.
Quando surge no feminino, tem uma componente de emocionalidade ' no sentido da
expetativa romântica do amor impossível ou no sentido de esquecer/ultrapassar
desilusões amorosas, e não, apenas, na mera instrumentalização de obtenção de
prazer pelo prazer, (Já que isto também é uma relação que já estava a acabar,
então deixa-me arranjar outro desgraçado que ajude a aclarar o processo. ( )
Depois a situação de ter tido coisas pontuais mas, essas, claramente e
meramente, instrumentais: ora deixa-me conhecer outros corpos, outros homens
para ver se o meu corpo se descola da pele, do cheiro e das marcas.).
No âmbito de alguns temas abordados, há uma diferenciação no que diz respeito
ao tópico da infidelidade, tolerável e desculpável quando é perpetrada no
masculino, inaceitável e condenável quando é perpetrada no feminino. Assim,
enquanto os homens tendem a responsabilizar e, até, demonizar a mulher infiel
(Relacionei-me com uma pessoa que, de facto, não tinha carácter nenhum. Tive
para aí uns 6 meses em que ela estava a preparar eventualmente a saída, digo
eu, estaria no início da relação com o outro fulano. Confrontei-a e disse-lhe
tudo o que tinha na cabeça para lhe dizer. que não tinha carácter nenhum.), as
mulheres são tolerantes com a infidelidade masculina, tendendo a
desresponsabilizar o parceiro, recorrendo às necessidades físicas do homem ou,
ainda, culpabilizando a mulher com quem foi cometida a infidelidade (Quando me
traiu, foi um momento infeliz. Mas eu já lhe tinha dito que relações sexuais
comigo, só quando me sentisse muito segura e confiasse nele. Para mim só faz
sentido numa relação de amor, mas os homens Por isso, disse-lhe que
compreendia que ele procurasse noutro sítio. Mas chateou-me a fulana! Ela era
assim um bocado ele fazia parte de uma lista de gajos com quem ela queria ir
para a cama )
Estas especificidades refletem, por um lado, a conceptualização da sexualidade
feminina como inerentemente afetiva, limitando a sua expressão ao contexto de
relações de amor, e, por outro, a conceptualização da sexualidade masculina
como maioritariamente fisiológica e separada do afeto, permitindo ao homem
maior liberdade sexual. Assim, verifica-se uma clara diferenciação de género na
associação afetividade/sexualidade, partilhada por homens e mulheres, que
continua a sustentar a desejabilidade da maior reserva e inibição da
sexualidade feminina e da maior impulsividade e expressão da sexualidade
masculina. Esta diferenciação genderizada sustenta também a expetativa da maior
restrição e exclusividade relacional no feminino e a aceitação/tolerância da
amplitude e não-exclusividade relacional no masculino.
Por fim, no âmbito do repertório pragmático, tanto os homens como as mulheres
procedem à listagem de atributos desejáveis no parceiro mas, no entanto,
diferenciam-se no tipo de atributos que valorizam: enquanto a mulher valoriza
características psicológicas e de carácter afetivo, no sentido em que o
parceiro seja possuidor de atributos que as faça sentir seguras, o homem
valoriza o aspeto físico, a imagem social e as características tradicionalmente
associadas aos papéis considerados naturalmente femininos ' de mãe, esposa,
prestadora de cuidados. Ainda neste âmbito, é notória a diferenciação da
geração do Estado Novo, que valoriza, de forma mais explícita e marcada, essas
características tradicionais (Um homem sério, respeitador, cavalheiro muito
trabalhador, não faltou com nada aos filhos; Uma boa esposa, dona de casa
exemplar, boa mãe, excelente cozinheira!).
À semelhança do que sucedeu em outros países Ocidentais, também em Portugal as
mudanças operadas ao nível da igualdade de género, acarretaram mudanças nas
relações de intimidade (Giddens, 1992; Neves, 2007; Santos & Amâncio,
2002). No entanto, o relato dos/das participantes revela que o duplo padrão
persiste. Este resultado vai ao encontro de vários estudos que indicam que as
mudanças são condicionadas e que as normas do duplo padrão tradicional
persistem: continua a limitar-se a intimidade feminina à emocionalidade, à
exclusividade e ao comprometimento nas relações (Alferes, 1997; Santos &
Amâncio, 2002), restringindo a liberdade sexual feminina; e, pelo contrário, a
subordinação do sexo ao prazer, o maior número de relações e a iniciação sexual
precoce (Alferes, 1997; Saavedra et al., 2010), o menor investimento afetivo, a
dissociação amor/sexo, as relações sem compromisso e o menor investimento
afectivo são aceites e mais frequentes no caso dos homens (Dias, 2006).
Discussão dos resultados e conclusão
No presente estudo procurámos identificar as grelhas interpretativas
disponíveis culturalmente para significar o amor e as experiências amorosas,
compreender de que forma são aprofundadas e transformadas pelos/as diferentes
participantes e refletir criticamente sobre as implicações destas construções
na vivência das relações amorosas.
Identificámos cinco repertórios interpretativos sobre o amor (o companheiro, o
romântico, o pragmático, o apaixonado e o game-playing) e verificámos que,
apesar desta multiplicidade, há uma homogeneidade na forma como os diferentes
repertórios são apropriados e conjugados: o repertório companheiro e o
repertório romântico são as grelhas interpretativas mais disseminadas para
conferir significado às experiencias amorosas, coexistindo com outras grelhas
menos difundidas ou menos consensuais culturalmente (repertório apaixonado,
pragmático e game-playing).
Por um lado, há que refletir sobre a multiplicidade de repertórios e, por
outro, sobre a homogeneidade da forma como se conjugam. No que diz respeito à
multiplicidade de repertórios, esta reflete, no nosso entender, o resultado das
transformações da modernidade na intimidade e nas relações familiares e sociais
que ocorreram nos países ocidentais (Giddens, 1992) refletindo, também, as
contradições/tensões que aquelas acarretam (Pais, 1998). A literatura indica o
desenvolvimento histórico e sociocultural do amor, desde o amour passion do
século XVIII, passando pelo amor romântico que se institui com norma nas
sociedades modernas ocidentais, assimilando alguns elementos do amor erotizado
(Giddens, 1992) e associando-lhe as noções da confiança, da descoberta mútua e
da autorrevelação com a pessoa especial (Giddens, 1992), até à noção de amor
confluente (igualdade nas trocas emocionais, desenvolvendo-se na medida em que
cada um proporciona e recebe gratificação suficiente para estar na relação) e
da ideia relacionamento especial em detrimento da pessoal especial (Bauman,
2003).
Do nosso ponto de vista, os diferentes repertórios refletem a simultaneidade de
todos aqueles discursos e transformações, em que não se foram sobrepondo ou
substituindo, mas que coexistem e concorrem entre si na atualidade. Os/as
participantes do nosso estudo revelam ter ao seu dispor diferentes versões do
amor, que vão apropriando e utilizando para dar sentido às suas experiências
relacionais em função do que lhes permite um posicionamento subjetivo e social
mais favorável (daí, por exemplo, serem os/as participantes solteiros/as e
divorciados/as que mais recorrem ao repertório pragmático e serem os/as que
estão numa relação a adoptarem um discurso marcadamente romântico e
companheiro).
No entanto, a homogeneidade da conjugação dos repertórios indica que há
discursos que são mais disseminados culturalmente e que prevalecem sobre
outros. À semelhança do que ocorre na maioria das sociedades ocidentais
(Giddens, 1992; Neves, 2008), também em Portugal o amor romântico parece ser um
dos mais dominantes culturalmente, regulando as relações. O amor romântico,
historicamente, começou a partir do século XVIII, resultante das transformações
sociais que a revolução industrial acarretou (abandono da vida rural e êxodo
para as cidades, individualismo, etc.) e foi-se consolidando, ao longo dos
século XIX, por vários fatores: a introdução do romance literário, a noção do
lar e da família nuclear, modificação nas relações familiares, a noção de
maternidade, etc. O modelo romântico permitiu formalizar/controlar a
sexualidade e, ao introduzir-lhe elementos virtuosos (fidelidade,
complementaridade dos cônjuges, respeito mútuo, exclusividade) oriundos da
moral judaico-cristã, tornou-se um modelo feminizado (Giddens, 1992), com
consequências para a vida das mulheres (limitação à esfera privada, papéis
restritos ao cuidado do lar e à maternidade). No entanto, com a entrada das
mulheres no mercado trabalho, os movimentos feministas e a luta pela igualdade
de direitos das mulheres nas várias áreas, o modelo romântico foi posto em
causa. Como consequência, o discurso romântico foi reajustado, valorizando
noções como a igualdade, a reciprocidade e o apoio mútuo (Bauman, 2003;
Giddens, 1992) que, no nosso entender, correspondem ao repertório companheiro
identificado no nosso estudo.
Assim, concluímos da nossa análise que o amor romântico surge como o discurso
que orienta as relações afetivas amorosas, em que a relação de amor é vista
como fonte de felicidade e de realização pessoal, imperando a crença do
verdadeiro amor, de um só amor e para sempre. No entanto, dado que o amor,
enquanto estado emocional por si só parece não ser suficiente para se manter
face às tensões e dificuldades relacionais, a grelha companheira surge para as
gerir e solucionar, de forma a manter a relação e, em última análise, perpetuar
e reforçar o modelo romântico tradicional. No nosso entender, estas grelhas
complementam-se e ambas sustentam a união (formal ou informal) monogâmica e a
família nuclear, bem como continuam a reforçar a diferenciação dos papéis de
género e as assimetrias na relação homem-mulher (relembramos, a realização
pessoal da mulher continua a ser essencialmente associada ao amor e à família,
bem como as expectativas companheiras da compreensão, do apoio e do suporte
recaem mais sobre a mulher).
Por seu turno, o repertório apaixonado parece-nos refletir o amour passion
(desvinculado da esfera conjugal e caracterizado pela urgência emocional e
sexual, era considerado potencialmente perturbador e propício à desordem
social) que dominou o discurso social até ao século XVIII (Giddens, 1992),
continuando a existir na atualidade a versão perturbadora do amor, como algo
incontrolável e propício a opções radicais. Nesta lógica, não é de admirar que
o repertório apaixonado, embora mais utilizado pelos/as jovens (porque começam
a viver as primeiras relações e a iniciar a vida sexual), surja timidamente nos
relatos dos/das participantes e para dar sentido a comportamentos ou práticas
relacionais que se desviam da imagem social desejável. O repertório apaixonado
permite-lhes enquadrar a componente mais erótica e sexual, sem colidir com as
virtudes do guião romântico, bem como justificar comportamentos dissonantes
com o que é socialmente desejável que, neste repertório, sob a conotação do seu
carácter incontrolável e perturbador, são aceitáveis.
Por seu turno, o repertório pragmático vai ao encontro do que Giddens (1992)
denomina de amor confluente ou da relação especial, resultante da crise do
discurso romântico e das dissoluções da relações. Como vimos, neste repertório
está presente a noção da contingência, da finitude das relações e de se estar
numa relação enquanto esta acarretar satisfação e vantagens suficientes, o que
coincide com o descrito por Giddens (1992) e Bauman (2003). De facto, são os/as
participantes que não têm uma relação atual ou que passaram por ruturas
relacionais que mais recorrem a este repertório, permitindo-lhes conceptualizar
o que falhou a escolha de estarem sós.
Por fim, o repertório game-playing assume um menor destaque, sendo
conceptualizado como não-amor. Por se tratar da sua antítese (relações
fugazes, sem compromisso, envolvimento físico sem envolvimento afetivo), acaba
por reforçar o modelo romântico e é essencialmente associado ao masculino, o
que revela o duplo padrão sexual ainda existente na sociedade atual.
Este padrão, como já referimos, é culturalmente partilhado, tanto por homens
como por mulheres, independentemente do seu estado civil, atravessando as
diferentes gerações. No entanto, são de destacar algumas diferenças
geracionais, que podem ser compreendidas à luz do seu diferente enquadramento
histórico, social e político, nomeadamente: (i) na geração que viveu a
juventude na época ditatorial identificaram-se significados marcadamente mais
conservadores e tradicionalistas, com valores e regras de conduta rígidos,
próprios do Estado Novo (primazia da família e do casamento, papéis
tradicionais genderizados); (ii) na geração pós-25 de Abril que, tendo vivido a
juventude num período único da nossa história recente, apresenta significações
mais flexíveis e uma maior abertura a formas relacionais alternativas (apesar
da ambiguidade, oscilando com as concepções tradicionais); e (iii) na geração
democrática e, inclusive, na população juvenil atual, que retomam as
concepções tradicionais do amor e as formas relacionais conservadoras, sendo os
jovens que adotam posicionamentos mais extremados e genderizados, veiculando
maior assimetria e desigualdade na conjugalidade.
Consideramos que a geração pré-25 de Abril, hoje distanciada temporalmente
dessa época, conserva na memória os constrangimentos e o leque limitado de
opções relacionais, havendo uma certa resignação refletida ao contexto que os
condicionou (Naqueles tempos, os pais controlavam tudo. Era namorar à porta de
casa e não havia oportunidades para conhecer, até ao casamento). Por seu
turno, a geração pós 25 de Abril, ambígua no discurso, revela a necessidade de
expressar a sua individualidade e liberdade, por oposição à repressão e censura
da época ditatorial (O namoro é um tempo de descoberta e cumplicidade. Ver se
se entendem ou não, se é o que querem, ter liberdade para conhecer outras
pessoas e ter outras experiências. Se funcionar, muito bem! Se não, partir para
outra e amigos na mesma.). Por fim, as gerações posteriores, que não
vivenciaram os constrangimentos às liberdades pessoais e a repressão do Estado
Novo, e se deparam com uma multiplicidade de percursos relacionais possíveis e,
até, paradoxais, recuperam os valores tradicionais e rígidos da
conjugalidade, como estratégia de conseguir algum sentido de pertença,
segurança e estabilidade, numa sociedade cada vez mais globalizada, instável e
incerta em vários âmbitos (É importante ter uma relação. E, para mim, quando
acontecer, quero que seja para toda a vida. É importante ter um suporte
emocional, ter uma base, uma base que . Eu vou avançar, mas sei se alguma coisa
correr mal temos aquela base que está ali para me amparar na queda. Acho que é
isso.).
As ruturas continuam a ser conceptualizadas e vivenciadas pelos/as
participantes das diferentes gerações de forma negativa (tanto por parte das
mulheres, como por parte dos homens), estando patente nos seus relatos a
descrição da desorganização subjetiva e da perturbação afetiva que tal
acarreta. Por outro lado ainda, o estar só/não ter uma relação é
conceptualizado como algo em falta, estar incompleto, o que reflete a forte
disseminação e partilha do modelo relacional fusional.
Assim, consideramos que estas concepções acabam por constrangir a forma como
os/as participantes se posicionam nas relações e vivenciam o amor: apesar de
estar presente a possibilidade do término das relações e de conceptualmente os
parceiros não estarem subjugados ou ao serviço da relação, parece haver um
receio da abertura e da flexibilidade que tal acarreta, criando a sensação
subjetiva de insegurança ou incerteza ' pelo que os participantes recuperam a
noção de amor verdadeiro e o ideal do projeto comum com formas de recuperar
algum sentido de segurança, estabilidade, previsibilidade e controlo, numa
sociedade em constante mutação.
Por outro lado, ainda, estas diferenças geracionais, podem ser entendidas,
também, no contexto das transformações da modernidade na intimidade,
anteriormente referidas. Enquanto na maioria do mundo ocidental, essas
transformações ocorreram ao longo de três séculos, em Portugal as
transformações sucederam mais tardiamente e num período de tempo mais curto. Só
no final do século XIX os efeitos da revolução industrial começaram a fazer-se
sentir e, no início do século XX, Portugal era um país maioritariamente rural.
É possível que a geração pós-25 de abril seja a que mais vivenciou as rápidas e
drásticas mudanças, daí a maior ambiguidade e que, as gerações mais jovens
estejam atualmente a vivenciar um período de crise e questionamento dos
avanços operados e dos discursos alternativos existentes, tendendo a
aproximar-se dos modelos tradicionais e convencionais do amor.
O retorno ao conservadorismo e a nostalgia dos valores tradicionais e
seguros do passado, que encontramos no estudo, não podem deixar de ser
entendidos, também, sob o contexto histórico e político atual, tanto em
Portugal como na Europa: período de crise generalizada, em que as ideologias
mais extremadas e radicais tendem a emergir, tendo repercussões nas relações
sociais. Assim, não podemos deixar de nos questionar, por um lado, se começamos
a assistir à inoculação de um discurso que tende a associar à liberdade, à
paridade e à diversidade nos usos e costumes as noções de anarquia, caos
social e crise de valores, utilizadas como bodes expiatórios dos problemas
sociais e económicos atuais; ou, por outro, se observamos, da parte das
gerações mais novas, uma subvalorização dos avanços e das mudanças sociais
conquistados pelas gerações que as antecederam.