Impacto da exposição a incidentes críticos na saúde e bem-estar psicológicos
dos tripulantes de ambulância
Impacto da exposição a incidentes críticos na saúde e bem-estar psicológicos
dos tripulantes de ambulância
Impact of expousure to critical incidents in health and psychological well-
being of emergency ambulance personnel
Actualmente, tem-se assistido a uma multiplicidade de situações que ameaçam as
populações, como as guerras, os atentados, e as catástrofes naturais,
nomeadamente sismos e tsunamis. Perante estas situações é imprescindível que as
equipas de socorro estejam prontas para intervir imediata e eficazmente, o que
pode constituir um desafio para a sua saúde física e mental. Neste sentido,
parte das investigações com equipas de emergência têm-se concentrado sobre a
avaliação da sintomatologia e respostas de stress a grandes incidentes
(Fullerton, Ursano, & Wang, 2004), no entanto estas equipas estão mais
expostas a eventos de menor escala, tais como acidentes de viação, paragens
cárdio-respiratórias e doenças súbitas (Clohessy, & Ehlers, 1999). Como a
intensidade do impacto é independente da dimensão do evento (Marmar, Weiss,
Metzler, & Delucchi, 1996), na última década surgiu um crescente
reconhecimento da importância de avaliar as equipas de socorro na sua prática
diária.
Um número de estudos recentes mostra que os operacionais de emergência relatam
uma grande variedade de stressores, incluindo a constante exposição a
incidentes de carácter traumático (Jonsson, Segesten, & Mattsson, 2003).
Esta exposição externa refere-se a factores físicos e psicossociais do ambiente
de trabalho que causam uma exposição interna do corpo (Aasa, Barnekow-
Bergkvist, Angquist, & Brulin, 2005). Exemplo disso é os operacionais serem
confrontados com situações que envolvem a dor, o sofrimento humano, a morte e
crianças (Regehr, Goldberg, & Hughes, 2002; Jonsson, Segesten, &
Mattsson, 2003; Van der Ploeg, & Kleber, 2003; Jonsson, & Segesten,
2004). Durante a exposição a estes eventos, o operacional pode perder a noção
do tempo, entrar em "piloto automático", "ficar em branco", ter a impressão de
que está a ter um sonho ou a ver um filme, ter a sensação de que está a
flutuar, sentir-se desligado do próprio corpo ou ter a sensação de distorção
corporal, embotamento emocional e amnésia de algumas partes do acontecimento
(Marmar, Weiss, Metzler, & Delucchi, 1996). A esta experiência chamamos
dissociação peritraumática. Estudos na área do trauma consideram que estes
sintomas dissociativos, a exposição e interpretação do acontecimento, a
percepção e avaliação da ameaça são predictores do desenvolvimento de
perturbação psicológica posterior (Fullerton, Ursano, & Wang, 2004;
Bennett, Williams, Page, Hood, Woollard, & Vetter, 2005). A perturbação
pós-stress traumático (PPST) é um desses diagnósticos, que se refere ao
desenvolvimento de sintomas específicos após a exposição a um stressor
traumático, implicando uma experiência pessoal directa, observação ou
conhecimento (Corneil, Beaton, Murphy, Johnson, & Pike, 1999; Alexander,
& Klein, 2001). No contexto da emergência pré-hospitalar a prevalência de
sintomas de PPST é superior a 20% (Wagner, Heinrichs, & Ehlert, 1998;
Clohessy, & Ehlers, 1999; Haslam & Mallon, 2003; Jonsson, &
Segesten, 2004; Sterud, Ekeberg, & Hem, 2006). Contudo, alguns estudos
indicam que na maioria dos casos os sujeitos apresentam vários sintomas, embora
não os suficientes para diagnosticar a PPST. Em Portugal, os poucos estudos
existentes nesta área referem que os socorristas e os bombeiros apresentam
sintomas significativos da PPST (Fernandes, & Pinheiro, 2004; Marcelino,
& Figueiras, 2007), enquanto os enfermeiros e os médicos apresentam uma
baixa prevalência de PPST (Maia, & Ribeiro, 2010). A exposição diária aos
incidentes críticos, a dissociação perante estas situações, o suporte social
pobre e os longos anos de experiência têm sido considerados importantes
predictores da PPST (Marmar, Weiss, Metzler, Ronfeldt, & Forman, 1996). É
ainda de salientar a importância das diferenças individuais como o sexo, a
idade, a escolaridade, a personalidade e a experiência prévia perante uma
situação traumática, como chave determinante da intensidade e duração dos
sintomas (Regehr, Hill, & Glancy, 2000; Alexander, & Klein, 2001;
Smith, & Roberts, 2003).
Mas a PPST não é a única consequência da experiência ao trauma. A exposição ao
trauma está também associada a diversas modificações biopsicosociais que podem
afectar a saúde de uma forma diversa. A ansiedade, a depressão, a dependência
de substâncias, tais como tabaco, álcool e cafeína, a fadiga, o burnout,
dificuldades de relacionamento interpessoal, a dor física ou queixas de saúde
persistentes, são também diagnósticos frequentes neste contexto (Wagner,
Heinrichs, & Ehlert, 1998; Van der Ploeg, & Kleber, 2003; Bennett,
Williams, Page, Hood, & Woollard, 2004, Aasa, Brulin, Angquist, &
Barnekow-Bergkvist, 2005; Van der Velden, Kleber, & Koenen, 2008). Um dos
efeitos que tem sido estudado em vítimas de trauma é a relação com a saúde
"pobre", nomeadamente com as queixas de saúde sem explicação médica. Alguns
estudos referem que a exposição ao trauma e a PPST são predictores das queixas
de saúde, nomeadamente sugerem que os efeitos da exposição ao trauma na saúde
são mediados pela presença da PPST (Orcutt, Erickson, & Wolfe, 2002). Este
dado revela que a experiência de trauma vai provocando efeitos psicológicos
negativos que eliminam a resiliência e os recursos adaptativos, tornando as
diversas dimensões da saúde mais vulneráveis (Bennett, Williams, Page, Hood,
Woollard, & Vetter, 2005; Sterud, Ekeberg, & Hem, 2006).
A literatura reforça a ideia de que o grau e o tipo de exposição diária a que
os operacionais de emergência pré-hospital estão sujeitos, o contexto e
condições de trabalho e as exigências psicossociais estão associadas ao
desenvolvimento de sintomatologia diversa, o que constitui factores de risco
para a saúde mental e bem-estar psicológico. Neste sentido, este estudo tem
como principal objectivo avaliar o impacto da exposição a incidentes críticos
na saúde e bem-estar psicológico dos tripulantes de ambulância Portugueses.
Especificamente: (1) caracterizar a exposição e a sintomatologia associada aos
incidentes críticos; (2) investigar se existem diferenças na sintomatologia em
função do sexo, exposição ao trauma e regiões geográficas de trabalho; (3)
investigar a relação entre a exposição ao trauma, sintomatologia, e variáveis
sócio-demográficas; e (4) identificar que se a PPST é mediadora da relação
entre a exposição ao trauma e o impacto nas queixas de saúde e o bem-estar
psicológico.
Método
Participantes
A amostra foi constituída por 250 tripulantes de ambulância de Corpos de
Bombeiros das cinco regiões do país, 152 pertencem ao sexo masculino (61%) e 98
ao sexo feminino (39%), com idades compreendidas entre os 18 e os 54 anos
(M=32, d.p.=8.3), em que a média de idades do sexo masculino (M=33.93,
d.p.=7.99) é estatisticamente superior à do sexo feminino (M=28.17, d.p.=7.57;
t=-5.66, p=.000). Aproximadamente metade dos participantes é solteira (45%) e
tem o ensino básico (49%). Relativamente à actividade profissional, os
tripulantes têm em média 11 anos de serviço (d.p.=7.80) e a maioria acumula a
actividade em regime de assalariado e voluntariado (64%).
Material
As variáveis sócio-demográficas recolhidas foram a idade, sexo, habilitações
literárias e estado civil. Foram ainda recolhidos dados relacionados com a
região geográfica de trabalho, número de anos de serviço, satisfação
profissional ("De que maneira está satisfeito com o seu trabalho?", opções de
resposta de 1 a 5: nada satisfeito, pouco satisfeito, mais ou menos satisfeito,
satisfeito, muito satisfeito), relação com os colegas ("Como considera as suas
relações com os colegas de trabalho?", opções de resposta de 1 a 5: muito más,
más, razoáveis, boas, muito boas), consumo de substâncias ("Habitualmente
consome alguma(s) das seguintes substâncias?", resposta de sim/não para café,
álcool, tabaco, drogas leves) e auto-avaliação da saúde ("Como avalia a sua
saúde neste momento?", resposta dada numa escala de Likert de 7 pontos: de (1)
terrível a (7) excelente).
Questionário de Experiências Dissociativas Peritraumáticas (QEDP) ' Para
avaliar as respostas dissociativas durante um acontecimento foi utilizado a
versão traduzida e adaptada do Peritraumatic Dissociative Experiences
Questionnaire (Maia, Moreira, & Fernandes, 2009). Este instrumento é
constituído por 10 itens, com uma escala de resposta do tipo Likert de 5
pontos: nada verdadeiro (1) a muitíssimo verdadeiro (5). Assume-se a presença
de sintomas peritraumáticos significativos quando os valores são superiores a
1.5. Os autores da versão portuguesa encontraram um alpha de Cronbach total de
0.87, e neste estudo o alpha foi de 0.93.
Perturbação Pós-Stress Traumático (PPST) - Recorreu-se à PTSD Checklist-versão
civis (PCL-C, Weathers, Litz, Herman, Huska, & Keane, 1993; versão
experimental portuguesa traduzida pelos autores, em preparação para
publicação), para avaliar a sintomatologia da PPST com base nos critérios de
diagnóstico do DSM-IV. Esta medida tem duas partes: uma parte inicial que
pretende avaliar se os indivíduos já vivenciaram algum acontecimento traumático
ao longo da sua vida e durante a actividade profissional (critério A); A
segunda parte avalia os 17 sintomas descritos nos critérios B (reexperienciar),
C (evitamento) e D (hiper-activação) do DSM-IV-TR. As respostas são dadas numa
escala de Likert de 5 pontos, em que 1 é "Nada" e 5 é "Extremamente". O alpha
de Cronbach total da escala encontrado neste estudo foi de 0.94 (reexperienciar
a=0.88; evitamento a=0.88; hiper-activação a=0.90), valor bastante superior ao
encontrado pelos autores da escala original (a=0.81).
Saúde Mental (MHI) - Foi utilizada a versão traduzida e adaptada do Mental
Health Inventory (Ribeiro, 2001) para avaliar o distress e o bem-estar
psicológico. Este instrumento é constituído por 38 itens que se distribuem por
cinco sub-escalas (ansiedade, depressão, perda de controlo emocional e
comportamental, afecto positivo e laços emocionais), que por sua vez se agrupam
em duas escalas (distress psicológico e bem-estar psicológico). As respostas
são dadas numa escala ordinal de 6 pontos, em que valores mais elevados
correspondem a uma melhor saúde mental. O autor da versão portuguesa da escala
encontrou um alpha de Cronbach total de 0.96 (distress psicológico a=0.95; bem-
estar psicológico a=0.91), e neste estudo o alpha total foi de 0.97 (distress
psicológico a=0.96; bem-estar psicológico a=0.93).
Queixas Subjectivas de Saúde (QSS) - Utilizou-se a versão traduzida e adaptada
da Subjective Health Complaint Scale (Alves, & Figueiras, 2008) para
avaliar com que frequência sentiram 23 sintomas físicos no mês anterior. Esta
escala é constituída por cinco dimensões: problemas gastrointestinais, gripe,
dores músculo-esqueléticas, alergia e pseudoneurologia. A escala de resposta é
de quatro pontos, variando entre nenhuma vez (0) a muitas vezes (3). Na versão
portuguesa da escala o alpha de Cronbach total foi de 0.88, e neste estudo o
alpha total foi de 0.89 (problemas gastrointestinais a=0.81; gripe a=0.60;
dores músculo-esqueléticas a=0.88; alergia a=0.66; pseudoneurologia a=0.79).
Procedimento
Após a autorização da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) e dos
Comandantes dos Corpos de Bombeiros, foram enviados os respectivos
questionários através da ANPC para os Bombeiros, juntamente com um conjunto de
informações sobre os objectivos do estudo e os procedimentos a adoptar,
salientando a protecção dos dados pessoais e a participação voluntária. Os
Comandantes fizeram a distribuição e recolha dos questionários anónimos, e
posteriormente enviaram os exemplares preenchidos em envelope fechado.
Análise Estatística
Foi utilizado o software estatístico IBM SPSS Statistics 19 para cálculo das
medidas de tendência central e de frequências, comparações de médias através do
Mann-Whitney U Test e doKruskal Wallis Test, e correlações de Spearman's
rho. O modelo de mediação foi analisado com o software AMOS 19.
RESULTADOS
Exposição ao trauma e sintomatologia
A maioria dos tripulantes de ambulância (71%) refere já ter vivenciado pelo
menos um acontecimento considerado traumático no decorrer do seu trabalho. No
entanto, mencionam que não é possível fazer uma contabilização do número de
vezes que passaram por essas situações. Os acontecimentos são auto-avaliados
como bastante traumáticos (M=4.97, d.p.=1.67), salientando-se os acidentes de
viação (35%) e as paragens cárdio-respiratórias (13%) como os mais marcantes.
No seguimento destes acontecimentos apenas 3% dos tripulantes tomou
medicamentos e 2% esteve de baixa médica ou recebeu apoio psicológico. A média
dos sintomas dissociativos é de 1.60 (d.p.=0.70), verificando-se a presença de
sintomas peritraumáticos significativos durante o acontecimento em 100
tripulantes (40%) (Quadro 1). O número médio de sintomas da PPST é de 1.67
(d.p.=0.72), e apenas 25 tripulantes (10%) apresentam sintomas compatíveis com
o diagnóstico da PPST. Os índices de saúde mental, nomeadamente de distress
psicológico e de bem-estar psicológico são 4.70 (d.p.=0.79) e 4.27 (d.p.=1.00),
respectivamente (Quadro 1).
Quadro 1 - Caracterização da sintomatologia associada aos incidentes críticos
vivenciados (n=250).
Consumo de substâncias, queixas e auto-avaliação da saúde
Relativamente ao uso regular de substâncias, 84% (n=209) ingere café e 22%
álcool (n=55), 38% (n=95) consome tabaco e 2% (n=4) drogas leves. Durante as 4
semanas anteriores ao questionário, 87% dos participantes manifestaram pelo
menos uma queixa subjectiva de saúde, destacando-se com maior incidência as
dores músculo-esqueléticas (M=1.20, d.p.=0.97) e pseudoneurológicas (M=1.03,
d.p.=0.76) (Quadro I). Os tripulantes fazem uma auto-avaliação geral da saúde
como boa (M=5.26, d.p.=1.03).
Satisfação profissional e relação com os colegas
A maioria dos participantes estão satisfeitos com o trabalho (59%, n=147) e 16%
estão muitos satisfeitos. As relações com os colegas são boas (54%) ou muito
boas (17%).
Diferenças de sexo, exposição ao trauma e região de trabalho
Não se verificou diferenças de sexo nos sintomas de PPST e de dissociação, no
entanto os homens estão mais expostos a situações traumáticas, têm mais
antiguidade na profissão e consomem mais café e álcool, enquanto as mulheres
apresentam mais distress psicológico e mais queixas subjectivas de saúde
(Quadro 2). Os tripulantes que estiveram expostos ao trauma apresentam mais
sintomas de PPST e de dissociação peritraumática, mais queixas de saúde,
consomem mais cafeína e consequentemente fazem uma pior avaliação da sua saúde
e apresentam menor bem-estar psicológico (Quadro 2). Relativamente às regiões
geográficas de trabalho, a análise indica que os tripulantes de ambulância da
região do Algarve apresentam menor exposição ao trauma (X2KW(4)=44.242;
p=.000), menos sintomas de PPST (X2KW(4)=13.450; p=.009), menos dissociação
peritraumática (X2KW(4)=14.207; p=.007), e menos queixas de saúde (X2KW
(4)=13.440; p=.009) (Figura 1).
Quadro 2 - Diferenças (Mann-Whitney U Test) de sexo e da exposição ao trauma
nas variáveis em estudo (n=250).
Figura 1
Diferenças (Kruskal Wallis Test) nos sintomas entre as regiões geográficas
(n=250).
Diferenças (Kruskal Wallis Test) nos sintomas entre as regiões geográficas
(n=250).
Associação entre as variáveis
Foram utilizadas correlações de Spearman's rho para analisar possíveis
relações entre o nº de anos de serviço, satisfação profissional, relações com
os colegas, consumo de substâncias, auto-avaliação da saúde, exposição ao
trauma, dissociação, PPST, distress, queixas de saúde e bem-estar psicológico
(Quadro 3). Os resultados indicam uma associação positiva entre a exposição ao
trauma e os sintomas (dissociação, sintomas de PPST, distress, e queixas de
saúde) e uma associação negativa destes com a auto-avaliação da saúde e o bem-
estar psicológico. A PPST está positivamente correlacionada com o nº de anos de
serviço. O consumo de substâncias não apresenta correlações significativas. A
satisfação profissional e as relações com os colegas estão associadas a menos
distress, ao bem-estar e a uma melhor auto-avaliação da saúde.
Quadro 3 - Diferenças (Kruskal Wallis Test) nos sintomas entre as regiões
geográficas (n=250).
Modelo de mediação da PPST sobre as queixas de saúde e bem-estar psicológicoNa
análise do modelo de mediação da PPST sobre a presença de queixas de saúde e o
impacto no bem-estar psicológico, não foi incluído o consumo de substâncias por
não apresentar correlações significativas com as variáveis em estudo. As
variáveis número de anos de serviço, satisfação profissional e relação com os
colegas entraram no modelo inicial mas na respecificação do modelo foram
retiradas por não serem predictores significativos. O modelo final é
apresentado na figura 2, onde as trajectórias não significativas foram
eliminadas, tendo sido analisada a qualidade do ajustamento do modelo com o
teste da diferença de χ2, verificando-se diferenças significativas entre os
dois modelos (χ2(9)=81.192; p=0.000). O sexo (β=0.15; p=0.005), a auto-
avaliação da saúde (β=-0.23; p<0.001), o distress (β=-.29; p<0.001) e a PPST
(β=0.32; p<0.001) têm um efeito directo sobre as queixas de saúde. O distress
(β=.69; p<0.001) e a PPST (β=-0.11; p=0.020) apresentam um efeito directo sobre
o bem-estar psicológico. A exposição ao trauma (β=0.20; p<0.001) e a
dissociação (β=0.50; p<0.001) só se manifestam de forma indirecta nas queixas
de saúde e no bem-estar psicológico, mediadas pela PPST. Este modelo explica
38% da variabilidade total das queixas de saúde e 52% da variabilidade total
sobre o bem-estar psicológico.
Figura 2
Modelo de mediação da PPST sobre as queixas de saúde e o bem-estar psicológico.
DISCUSSÃO
A literatura e os resultados do presente estudo são convergentes ao revelar que
a saúde e o bem-estar físico e psicológico dos tripulantes de ambulância podem
ser comprometidos pelo trabalho em emergência pré-hospitalar. É incontestável
que as tarefas e exigências inerentes às profissões de socorro afectam a saúde
destes operacionais, uma vez que estes estão susceptíveis a efeitos traumáticos
posteriores, como resultado do seu envolvimento secundário em situações
traumáticas. Como em Portugal existem poucos dados sobre esta temática,
consideramos este estudo pertinente para clarificar alguns dos efeitos e
consequências psicológicas da exposição cumulativa a situações traumáticas na
saúde e bem-estar dos tripulantes de ambulância.
Durante a sua actividade diária, os tripulantes de ambulância estão expostos a
incidentes que envolvem a dor humana, como são os acidentes de viação, paragens
cárdio-respiratórias e incidentes que envolvem crianças. Estes operacionais
caracterizam-nos como bastante traumáticos e com influência nas suas vidas, no
entanto não recorrem a nenhum profissional de saúde, nem a qualquer tipo de
tratamento. Este resultado é consistente com a literatura que refere que os
operacionais são relutantes em procurar ajuda de um especialista, nomeadamente
não suportam a hipótese de que possam necessitar da ajuda de um especialista em
saúde mental (Regehr, Goldberg, Glancy, & Knott, 2002; Jonsson, Segesten,
& Mattsson, 2003; Sterud, Hem, Ekeberg, & Lau, 2008). Acresce o facto
de na maioria das vezes a sua preparação e treino ser apenas direccionada para
cuidar dos outros, sendo negada a existência de impacto sobre si próprio, e os
operacionais podem não ter estratégias adequadas para lidar com as suas
próprias reacções e/ou ter apoio para elas, dando origem a sensações de falta
de controlo e estratégias de negação da situação (Lowery, & Stokes, 2005).
Neste sentido, será também importante averiguar o papel das estratégias de
coping neste contexto.
A presença de sintomatologia associada à exposição a este tipo de
acontecimentos tem sido uma constante na literatura (Sterud, Ekeberg, &
Hem, 2006). Esta investigação corrobora esses estudos, na medida em que os
tripulantes de ambulância apresentam sintomas dissociativos peritraumáticos e
sintomas da PPST, no entanto o diagnóstico da PPST foi identificado apenas em
10% dos operacionais. Este resultado pode ser explicado pelo facto de que a
grande maioria das populações expostas ao trauma apresentam vários sintomas de
PPST, embora não os suficientes para fazer o diagnóstico da perturbação, e/ou
pelo facto de esta exposição se poder traduzir no aumento de outros
diagnósticos (Alexander, & Klein, 2001; Jonsson, Segesten, & Mattsson,
2003). Exemplo disso, é a presença nos operacionais de sintomas de distress
(ansiedade e depressão), consumo de substâncias como a cafeína e nicotina, e
queixas subjectivas de saúde com maior prevalência das dores músculo-
esqueléticas e pseudoneurológicas. Outro aspecto importante e que ajuda a
explicar estes resultados são as diferenças encontradas na sintomatologia face
à exposição ao trauma. Os operacionais expostos ao trauma apresentam mais
sintomas dissociativos e de PPST, mas também mais queixas de saúde e maior
consumo de café, o que tem impacto nos níveis de bem-estar psicológico e na
avaliação que fazem da sua saúde. Assim, a exposição ao trauma e o desgaste
contínuo acarreta dificuldades em superar as experiências traumáticas, levando
ao aparecimento de sintomatologia diversa e não só de stress pós-traumático
(Bennett, Williams, Page, Hood, Woollard, & Vetter, 2005; Sterud, Ekeberg,
& Hem, 2006).
O estudo das relações entre as variáveis revelou que a PPST está associada à
exposição ao trauma, ao número de anos de serviço, ao aumento dos sintomas de
dissociação e de distress, aumento de queixas de saúde e à diminuição do bem-
estar e da negativa auto-avaliação da saúde destes operacionais. Este resultado
sugere que a antiguidade na profissão e a exposição a situações traumáticas
aumenta consideravelmente os efeitos na saúde. Contrariamente a outros estudos
que indicam que o consumo de substâncias está associado aos sintomas
dissociativos e predizem a PPST (Van der Velden, Kleber, & Koenen, 2008),
neste estudo esta relação não foi identificada. Neste sentido, poderia ter sido
relevante avaliar o papel da expressão e regulação das emoções, já que estes
factores psicológicos poderiam explicar o facto do aumento de comportamentos de
risco para a saúde não estar positivamente associado à história de trauma e aos
sintomas físicos e psicológicos (Wastell, 2002). A satisfação com o trabalho e
as relações entre os colegas também não estão directamente associados com o
impacto da exposição a situações adversas, no entanto estão relacionados com a
diminuição dos níveis de distress e aumento do bem-estar. Esta análise carece
de aprofundamento, por um lado porque alguns autores referem que o suporte
social pobre é um bom predictor dos sintomas de PPST (Corneil, Beaton, Murphy,
Johnson, & Pike, 1999; Regehr, Hemsworth,& Hill, 2001; Haslam, &
Mallon, 2003), por outro porque as relações com os colegas podem não ser
entendidas como suporte social dos pares, logo poderemos não estar a medir o
mesmo constructo.
A presença de sintomatologia difere de acordo com as regiões geográficas do
País. Os operacionais do Algarve apresentam menos exposição ao trauma e
consequentemente menos sintomas de PPST e de dissociação peritraumática, e
menos queixas de saúde. Na literatura não encontramos nenhum estudo comparativo
entre operacionais de emergência das áreas urbanas e rurais. No entanto,
podemos levantar a questão se estas diferenças se prendem com factores
organizacionais ou com o facto de o Algarve ser uma região sazonal, pelo que
existe uma probabilidade de ocorrências inferior, o que pode justificar uma
menor exposição ao trauma, tendo menos consequências para a saúde destes
operacionais.
A forma como os homens e as mulheres vivem as experiências traumáticas tem sido
alvo de discussão nos últimos anos. Alguns estudos portugueses mostraram que
não existem diferenças de sexo na prevalência de sintomas da PPST nos
operacionais de emergência (Marcelino, & Figueiras, 2007; Maia, &
Ribeiro, 2010). O presente estudo também não encontrou diferenças de sexo nos
sintomas dissociativos e de PPST, no entanto os homens estão mais expostos ao
trauma porque têm mais anos de serviço, mas as mulheres apresentam mais
distress e queixas de saúde. Este resultado é coincidente com estudos
anteriores que referem que o sexo feminino tem uma maior predisposição para
manifestar mais queixas somáticas, ansiedade e depressão (Aasa, Brulin,
Angquist, & Barnekow-Bergkvist, 2005; Sterud, Hem, Ekeberg, & Lau,
2008).
Os nossos resultados replicam os estudos que referem que a exposição ao trauma
e os sintomas dissociativos predizem a PPST (Maia, & Ribeiro, 2010), e que
esta perturbação, o distress, a auto-avaliação da saúde e o sexo são
predictores das queixas de saúde (Wagner, Heinrichs, & Ehlert, 1998). Os
resultados são ainda consistentes com a hipótese da PPST ser uma variável
mediadora do impacto da exposição ao trauma e da dissociação nas queixas de
saúde e no bem-estar psicológico (Orcutt, Erickson, & Wolfe, 2002). A ideia
de que a exposição continuada a situações muito ameaçadoras aumenta
consideravelmente a probabilidade de se desenvolver sintomatologia e que está
associada a potenciais consequências na saúde destes operacionais, é reforçada
por estes resultados (Jonsson, Segesten, & Mattsson, 2003; Fullerton,
Ursano, & Wang, 2004; Bennett, Williams, Page, Hood, Woollard, &
Vetter, 2005). O distress foi identificado como o único predictor directo do
bem-estar psicológico. Apesar de consistente com a literatura, este resultado
necessita de confirmação com outro instrumento de avaliação do bem-estar, uma
vez que neste estudo o distress e o bem-estar foram medidos pelo mesmo
inventário de saúde mental e estão fortemente correlacionados, o que poderá ter
influenciado este resultado.
Importa salientar que o conjunto dos resultados discutidos neste estudo devem
ser enquadrados tendo em conta o facto não tendo sido monitorizado o estado
físico e psicológico destes operacionais ao longo do tempo, pelo que
investigações com desenhos longitudinais deverão constituir um desafio para
futuros trabalhos, proporcionando uma interpretação mais sólida dos dados.
Outro aspecto que deverá ser explorado em futuras investigações é o papel dos
factores organizacionais, nomeadamente das preocupações e condições de trabalho
no contexto da emergência, na medida em que alguns autores referem que as
exigências psicológicas são um importante factor de risco para a presença de
sintomas e de queixas de saúde (Aasa, Brulin, Angquist, & Barnekow-
Bergkvist, 2005).
Apesar de alguns autores referirem que a presença de sintomatologia associada
ao trauma, as respostas dissociativas, as reacções emocionais por vezes
desadaptadas e a necessidade de somatizar, poderão ser considerados
comportamentos naturais em operacionais de emergência como reacção ao seu
trabalho (Wastell, 2002; Jonsson, & Segesten, 2004; Lowery, & Stokes,
2005), é fundamental que as organizações tenham profissionais preparados a
identificar e apoiar aqueles que em determinado momento têm mais dificuldade em
lidar com as situações, favorecendo a oportunidade de aprender com as
experiências e a construir novos significados que possam promover um
crescimento individual e colectivo. Segundo a evidência científica, o apoio dos
colegas de trabalho, a expressão emocional e comunicação moderam o impacto do
trauma e consequentemente o desenvolvimento de sintomas de saúde (Alexander,
& Klein, 2001; Van der Ploeg, & Kleber, 2003). Neste sentido, a
informação sobre os efeitos que os incidentes críticos podem ter nos
operacionais e a formação de pares (apoio dos colegas) é fundamental para dar
suporte, corrigir comportamentos, mitigar o impacto dos eventos e manter os
operacionais no seu nível óptimo de funcionamento e desempenho através de
estratégias eficazes (Lowery & Stokes, 2005; Dowdall-Thomae, Culliney &
Piechura, 2009). O apoio dos pares é ainda fundamental para aumentar a coesão
grupal e a identificação com a equipa, o que constitui um factor protector na
redução do stress. No entanto, as próprias organizações por vezes têm atitudes
negativas em relação a expressão de emoções, induzindo os operacionais a sentir
preocupações sobre a rejeição social levando a uma falta de vontade para
utilizar o colega de apoio, e consequentemente a não falar dos incidentes
críticos que os perturbam (Lowery & Stokes, 2005). Por conseguinte, é
também importante que os supervisores recebam treino sobre técnicas para
desbloquear esse efeito e assim aumentar o recurso ao apoio dos colegas,
promovendo uma inter-ajuda saudável e uma detecção precoce de sintomatologia
grave.
O presente estudo contribui assim para a compreensão das consequências
psicológicas da exposição cumulativa dos tripulantes de ambulância a incidentes
de carácter traumático, e apresentam implicações pertinentes para a prática nos
contextos de emergência, que ao nível da avaliação da história de trauma quer a
nível da necessidade de intervenções preventivas de gestão do stress perante
incidentes traumáticos e a promoção da saúde destes profissionais.