Estudo da basic need satisfaction in general scale para a língua portuguesa
A teoria de auto-determinação (TAD) define-se como uma teoria de motivação,
interessada em apoiar as tendências naturais e intrínsecas para um
comportamento efectivo e saudável (Deci & Ryan, 1985, 2002; Ryan &
Deci, 2000). Partindo da perspectiva clássica Aristotélica de desenvolvimento
humano, que postula uma tendência activa para o crescimento psicológico e sua
integração, a TAD foca a dialéctica entre o organismo activo, com orientação
inata para o crescimento e o contexto social que suporta ou bloqueia as
tentativas de dominar e integrar as experiências vivenciadas de forma unificada
e auto-coerente (Deci & Ryan, 2002).
Actualmente, a TAD é composta por cinco mini-teorias (cognitive evaluation
theory; organismic integration theory; causality orientations theory, basic
psychological needs theory e goal contents theory), cada uma relacionada com
uma faceta da motivação ou funcionamento da personalidade, que se articulam e
partilham a metateoria organicista e dialéctica e o conceito de necessidades
básicas, consideradas como inatas, universais e essenciais ao funcionamento
óptimo (Deci & Ryan, 2002, 2009). No âmbito da TAD,necessidade significa os
nutrientes psicológicos inatos essenciais para o continuo crescimento
psicológico, integridade e bem-estar(Deci & Ryan, 2000) e necessidade
básica é um estado que necessita de ser energizado, caso contrário contribui
para a patologia e para o mal-estar (Ryan & Deci, 2000).
Uma das mini-teorias denomina-se teoria das necessidades psicológicas básicas,
um postulado teórico formulado para fornecer uma interpretação teórica a vários
resultados empíricos (Deci & Vansteenkiste, 2004), que foca a importância
das necessidades psicológicas com o bem-estar, defendendo que o grau de
satisfação, com flutuações diárias e ao longo da vida, das três necessidades
psicológicas básicas 'competência, autonomia e relações de pertença' é preditor
do bem-estar psicológico e do funcionamento óptimo (Deci & Ryan, 1985,
2002; Reis, Sheldon, Gable, Roscoe, & Ryan, 2000; Ryan, 1995; Ryan &
Deci, 2000). Estes resultados também se verificaram num estudo com mulheres
portuguesas (Vieira, et al., 2011). A necessidade de competência é satisfeita
ao experienciar que nas interacções e na busca activa para desenvolver
capacidades se obtém os resultados desejados com eficácia (Deci & Ryan,
2002; Reis, Sheldon, Gable, Roscoe, & Ryan, 2000). Já a necessidade de
autonomia é satisfeita ao agir de acordo com os valores integrados (Deci &
Ryan, 2002); ou, expresso de outra forma, na possibilidade do comportamento ser
auto-determinado (Ryan, Bernstein, & Warren Brown, 2010). A satisfação nas
relações de pertença consiste em sentir-se próximo e ligado a outros
significativos (Meyer, Enström, Harstveit, Bowles, & Beevers, 2007; Reis,
et al., 2000), a uma tendência à proximidade e o desejo de ligação com outros
(Wei, Shaffer, Young, & Zakalik, 2005); ou seja, a vivenciar relações de
pertença gratificantes com outros significativos e com a comunidade.
Os contextos sociais têm impacto no bem-estar ao apoiarem ou bloquearem a
satisfação das necessidades (Deci & Ryan, 1985, 2002; Ryan & Deci,
2000). O funcionamento saudável e o bem-estar aumentam quando as acções e
interacções satisfazem as necessidades psicológicas básicas (Reis, et al.,
2000). Os comportamentos naturais que compelem à acção, com o objectivo de
satisfazer as necessidades, diferem mediante o sujeito, o tempo, a situação e a
cultura mas se tiverem sucesso são experienciados resultados psicológicos
positivos (Deci & Ryan, 2000, 2002).
A satisfação das necessidades psicológicas básicas é o processo psicológico
central pelo qual a motivação intrínseca, a tendência inata integrativa e
persecução de objectivos intrínsecos são facilitados, resultando em bem-estar e
funcionamento óptimo (Deci & Vansteenkiste, 2004). Deci e Ryan (1995, 2000,
2002) propõem dois tipos de instrumentos para aferir as necessidades
psicológicas básicas, um para medir a satisfação das necessidades em geral e
outro em domínios específicos, como o domínio (a) do trabalho; (b) das relações
interpessoais e (c) do exercício físico.
A Basic Need Satisfaction in General Scale (BNSG), que teve origem na adaptação
da Basic Needs Satisfaction at Work Scale(TAD; Gagné, 2003; Johnston &
Finney, 2010), é um questionário de auto-preenchimento,com livre acesso no
sítio da self-determination theory(SDT), ou TAD,da Universidade de Rochester1 e
é o instrumento proposto pelos autores para aferir as necessidades de
satisfação em geral. Composto por 21 itens, com uma escala de resposta tipo
Likert de sete pontos, divididos por três subescalas, que correspondem às três
necessidades psicológicas básicas (a) com sete itens na subescala da autonomia,
(b) com seis itens na subescala da competência e (c) oito itens para a
subescala das relações de pertença. O instrumento tem flexibilidade para ser
utilizado com as três subescalas agregadas ou com cada uma das subescalas de
forma independente. Os autores, Deci e Ryan, referem que alguns estudos optaram
por utilizar três itens por subescala num total de nove itens. É um instrumento
construído a partir da teoria, razão pela qual os autores nunca se debruçaram
muito sobre a sua estrutura com base na investigação estatística.
Johnston e Finney (2010) analisaram pela primeira vez a estrutura factorial do
instrumento optando pela análise factorial confirmatória para testar a solução
factorial de um e de três factores. Como não obtiveram um modelo ajustado aos
dados optaram pela redução da escala para 16 itens. Conforme as autoras
afirmam, apesar de existirem vários estudos onde o questionário foi utilizado,
não há um artigo dos autores originais com as qualidades psicométricas do
instrumento nem outros estudos sobre a estrutura factorial.
Ryan (2011) elucida que a obtenção de uma solução factorial com três factores
depende do contexto de avaliação, podendo por vezes ser esperado, e até
pretendido, outro tipo de solução. Como, e.g., a um nível geral de avaliação as
três diferentes necessidades podem demonstrar o quanto se integram ao saturarem
num factor comum. Também alerta que a análise factorial, como técnica útil para
apurar constructos independentes, não deve ser considerada como o mais
importante indicador de validade, nem a ela subjugar a construção de
questionários sob pena de ser redutor e teoricamente empobrecedor. Deverá ser
considerado um conjunto de resultados de análises a vários níveis, sendo
essencial na interpretação dos resultados o suporte da teoria.
O anterior vem ao encontro com o defendido por Messick (1989), que define
validade como uma avaliação global do grau em que as evidências empíricas e as
fundamentações teóricas apoiam a adequação e a pertinência das interpretações e
acções, com base nos resultados dos testes ou outros modos de avaliação. Para
Messick (1995) a concepção tradicional de validade (conteúdo, critério e
constructo) é incompleta, fragmentada e descura as implicações das
interpretações dos resultados como base para a acção e as consequências
sociais. Este autor defende uma ideia unificada de validade com seis aspectos
(conteúdo, substantivo, estrutural, generalização, externa, consequencial) que
funcionam como um critério geral de validade.
A adaptação deste instrumento para a população portuguesa justifica-se pela
elevada aplicabilidade da TAD e utilidade na prática clínica mas também pela
ausência de estudos das qualidades psicométricas do questionário,
principalmente a nível da sua estrutura factorial.
O objectivo do estudo é descrever o processo de adaptação da versão portuguesa
da BNSG e contribuir para o estudo métrico da escala.
MÉTODO
Foram realizados dois estudos, um com amostras de conveniência da comunidade do
Sul do país e outra do Norte.
Adaptação à língua portuguesa
Após autorização dos autores do questionário, procedemos à sua tradução e
adaptação à população portuguesa. O instrumento foi submetido ao processo de
tradução, retroversão e retradução com dois tradutores bilingues independentes,
sendo que na retroversão não houve acesso à versão original. Após análise e
discussão de uma versão de consenso, tendo em vista uma população alargada,
surgiram alternativas para alguns dos itens (e.g., for myself; sense of
accomplishment; I pretty much keep to myself and don't have a lot of social
contacts) que foram apresentadas a dois peritos na área de psicologia para
assegurar a validade de conteúdo e equivalência lexical e cultural.
Em paralelo, num informal pré-teste, por e-mail, seguido de reflexão falada em
formato de entrevista com dez participantes, com idades entre os 26 e 50 anos,
foi apresentado um questionário com duas ou três alternativas semelhantes, da
versão consenso, e solicitado para optarem pela que preferissem. Com o
objectivo de melhor aferir a compreensibilidade e adequabilidade dos itens.A
ausência de ajuste dos itens ao género do leitor foi notada e mencionada por
dois participantes, do género feminino, na reflexão falada, pelo que foi
efectuada essa alteração, na versão portuguesa, da BNSG.
Por último, a nível gráfico, o instrumento foi uniformizado com os
questionários Perceived Competence e Health Care Climate Questionnaire, da TAD,
adaptados à população portuguesa por Mestre e Ribeiro (2008).
Os procedimentos de adaptação à língua portuguesa no estudo 2 foram idênticos
ao do estudo 1 com as seguintes excepções: o pré-teste foi efectuado a dois
grupos de alunos universitários (uma turma de 1º ciclo, 3º ano; e uma turma de
mestrado 1º ano, ambos de cursos de exercício e saúde, correspondendo a 45
alunos). Após o preenchimento, foi proporcionado um momento de discussão acerca
de problemas sentidos, dificuldades na compreensão de itens ou outros. As notas
retiradas deste pré-teste foram discutidas pelos investigadores e tradutores da
escala até se chegar ao consenso final dos itens do questionário.
O questionário final foi depois harmonizado graficamente com outros
questionários como, por exemplo, o Behavioral Regulations for Exercise
Questionnaire-2 (Palmeira, Teixeira, Silva, & Markland, 2007) e um conjunto
de questões demográficas.
Material
O material utilizado consistiu num questionário sociodemográfico e na versão
portuguesa da BNSG. No questionário sociodemográfico constavam questões sobre a
idade, género, escolaridade, estado civil, eventual incapacidade física ou
mental.
A versão portuguesa da BNSG (Anexo A) do instrumento que a TAD propõe, de 21
itens, para aferir se as três necessidades básicas estão a ser satisfeitas, é
composto por três subescalas, (autonomia, competência e relações de pertença).
Com sete itens, na subescala de autonomia (e.g., Sinto-me livre para decidir
por mim próprio/a como viver a minha vida. ou Na minha vida diária tenho que
fazer frequentemente o que me mandam). Na subescala da competência, seis itens
(e.g., Frequentemente não me sinto muito competente ou Fui capaz de aprender
recentemente novas competências interessantes). E a subescala das relações de
pertença composta por oito itens (e.g., Dou-me bem com as pessoas com quem
contacto ou Sou uma pessoa reservada e não tenho muitos relacionamentos
sociais).
Os itens são avaliados numa escala de resposta tipo Likert de 7 pontos (de 1
=Nada verdadeiroa7 = Totalmente verdadeiro). A pontuação é efectuada pelo
somatório das respostas dos itens de cada subescala após inversão da pontuação
dos itens negativos. Os valores mais elevados correspondem a um maior grau de
satisfação das necessidades.
Análise estatística
O tratamento estatístico dos dados foi efectuado na versão 15.0 do software
estatístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS). Os procedimentos
estatísticos utilizados no SPSS consistiram na análise descritiva, cálculo da
consistência interna (alpha de Cronbach) e na análise factorial exploratória em
componentes principais.
Estudo 1
Participantes
Participaram no estudo 420 indivíduos (58% mulheres e 42% homens), com
intervalo idades entre os 18 e os 85 anos (M= 39,99, DP= 11,89), seleccionados
aleatoriamente da população em geral abrangendo diferentes estatutos
socioeconómicos, estados civis e níveis de escolaridade. A condição de
participação foi a idade superior a 18 anos.
Procedimento
A recolha de dados foi efectuada por via electrónica (i.e., e-mail) ou em
papel, para abranger uma população mais alargada. Ambos estruturados de igual
forma, com uma nota introdutória inicial, seguida do questionário
sóciodemográfico e por fim a versão portuguesa da BNSG. Os participantes foram
informados ' por informação constante na nota introdutória ' sobre (a)
identificação institucional dos investigadores; (b) objectivo do estudo; (c)
que a participação era voluntária; (d) os dados recolhidos eram anónimos e
confidenciais; e (e) da importância da sua participação.
O tempo de administração foi de sete minutos, em média.
RESULTADOS
O instrumento, considerando a estrutura original com itens propostos, apresenta
uma boa consistência interna global, uma consistência interna aceitável na
subescala das relações de pertença e uma baixa consistência interna nas
subescalas da autonomia e competência (Quadro 1).
Quadro_1
Comparação dos alpha de Cronbach de ambos os estudos
Os 21 itens, da versão portuguesa, foram submetidos à análise factorial
exploratória, com método de extracção em componentes principais (ACP), rotação
varimax e critério de normalização de Kaiser. Os valores de Kaiser (KMO = 0,87)
e teste de esfericidade de Bartlett (0,0001) revelaram adequabilidade para a
realização da análise.
Depois de efectuada a ACP, bem como a observação do scree plot, foram
encontrados três componentes com eigenvalue superior a 1, que explicam 44,9% da
variância (figura 1). A carga no primeiro componente é elevada, sendo a maioria
acima de 0,40, sugerindo a adequação da existência de um único factor. Foram
obtidas correlações moderadas entre as subescalas (entre 0,56 e 0,59),
relacionadas positiva e significativamente entre si (p < 0,001).
Figura 1
Scree Plot do estudo 1
DISCUSSÃO
A ACP da versão portuguesa da escala não confirma a distribuição dos itens nos
três componentes propostos no instrumento original. Os resultados obtidos na
população portuguesa corroboram os de Johnston e Finney (2010), na população
americana, onde emergem três componentes no scree plot, com a maioria dos itens
a apresentar carga apropriada no primeiro factor.
Estudo 2
Participantes
Participaram no estudo 408 indivíduos (51% mulheres e 49% homens), com
intervalo idades entre os 18 e os 75 anos (M= 35,05, DP= 11,91), praticantes de
exercício em contextos de ginásios e health-clubs, abrangendo diferentes
estatutos socioeconómicos, estados civis e níveis de escolaridade. A condição
de participação foi a idade superior a 18 anos.
Procedimento
A recolha de dados foi efectuada no âmbito de um estudo alargado sobre a adesão
ao exercício em contextos de ginásio e health-clubs. Foi pedida autorização às
instituições, após o que os questionários foram entregues aos sócios que se
voluntariaram para o estudo. A bateria de questionários teve uma estrutura
semelhante ao estudo 1.
RESULTADOS
O valor de Kaiser-Meyer-Olkin foi de 0,82 e o teste de esfericidade de Bartlett
revela significância estatística (0,0001). Os três componentes da ACP explicam
41,1% da variância total. O scree plot também sugere três componentes (figura
2). A maioria dos itens satura no primeiro factor, que explica 23,6% da
variância. As correlações entre as subescalas também são estatisticamente
significativas mas moderadas (entre 0,43 e 0,53). A consistência interna das
subescalas é baixa também neste estudo (Quadro_1)
Figura 2
Scree Plot do estudo 2
DISCUSSÃO
Optamos pela análise factorial exploratória seguindo as recomendações de
Gorsuch (1988) que alerta para o uso indevido da análise factorial
confirmatória com funções exploratórias. Não nos pareceu apropriado alterar a
escala com base em critérios estatísticos, por considerarmos que os critérios
conceptuais são sempre mais importantes, nem de recorrer a procedimentos de
data torturing como Mills (1993) os apelida.
Os valores de alpha de Cronbach, das subescalas da autonomia (0,58 e 0,67) e da
competência (0,57 e 0,64), são baixos se considerarmos os padrões psicométricos
recomendados, o que, dados o número reduzido de itens não é estranho. A
consistência interna da escala global é apropriada.
Estamos de acordo com Boyle (1991), que num artigo sobre se a homogeneidade do
item indicaria consistência interna ou redundância nas escalas psicométricas,
defende, citando diferentes autores, que uma alta consistência interna não
equivale a fidelidade, podendo ser indicador de redundância e afunilamento de
uma escala. Melhorar a fidelidade em constructos dinâmicos, que estudam o
comportamento em diferentes situações, pode significar perder informação
relevante (Rotter, 1990; Schwartz & Daltroy, 1999).
O estudo 2 confirma os resultados do estudo1, sugerindo a unidimensionalidade
do instrumento, embora a utilização das três subescalas, em conjunto ou em
separado, pareça ser apropriado.
CONCLUSÕES
Ambos os estudos pretendem contribuir para o estudo da BNSG à língua
portuguesa, com o objectivo de se obter a versão portuguesa do instrumento. A
informação preliminar recolhida sugere que as necessidades básicas de
autonomia, competência e relações de pertença constituem dimensões
importantes na TAD, embora a análise estrutural formal da escala nunca tenha
encontrado os três componentes e os valores psicométricos tendam a ser baixos.
Ryan (2011) refere-se a este aspecto e defende a versatilidade da estrutura do
instrumento consoante o contexto de avaliação. Na prática, é expectável a um
nível geral de avaliação que, para uma necessidade ser satisfeita as outras
também o sejam. As três necessidades, ao apresentarem-se significativamente
correlacionadas e com saturações cruzadas, pode significar o funcionamento
integral das necessidades. Ou seja, a escala foi inicialmente desenvolvida com
base na teoria sem preocupações de ajustamento psicométrico. Como Rotter (1990)
defende, os métodos estatísticos são ferramentas úteis mas não substituem a
teoria do comportamento. Assim, propomo-nos assumir esta perspectiva de não
valorização excessiva dos aspectos métricos da escala, valorizando antes os
aspectos teóricos, embora os valores psicométricos encontrados, sejam
apropriados não apenas pela sua magnitude, como pela consistência entre os
nossos dois estudos, como também com outros estudos que inspecionaram as
propriedades métricas.
Em suma, pela sua utilidade e comprovada validade de conteúdo, a escala pode
ser utilizada na população portuguesa no formato proposto pelos autores na
versão original ou seja com as três subescalas ou dimensões. O instrumento tem
potencialidade para se tornar mais depurado à medida que surgirem novos
contributos sobre as necessidades básicas subjacentes ao bem-estar e
funcionamento óptimo.