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EuPTHUHu1645-37942013000100007

EuPTHUHu1645-37942013000100007

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-3794
Year2013
Issue0001
Article number00007

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O Ensino na Política Islâmica do Moçambique Colonial: Da ansiedade islamofóbica à miragem do Islão português

Os dois tempos das políticas coloniais portuguesas para com o Islão na Guiné e em Moçambique o tempo islamofóbico[2] e o da sedução das lideranças muçulmanas, este último encetado em meados dos anos 60[3] foram marcados pela apreensão perante o crescimento do ensino islâmico, devido ao facto de ele parecer escapar à política de portugalização dos nativos. Uma tal atitude cruzou-se com duas formas de representação ideológica do muçulmano: a islamofobia concebeu-o como estruturalmente anti-português, vendo nas escolas corânicas um factor de resistência (desnacionalizadora) à assimilação das populações colonizadas; no período apostado em atrair as comunidades e os dignitários islâmicos, dentro das políticas psico-sociais de contra- insurreição, as escolas corânicas, desenquadradas do sistema oficial, passaram a ser encaradas como um entrave à plena instauração de um Islão português no espaço ultramarino. Do seu encerramento compulsivo pelos poderes administrativos e da relutância em autorizar novos estabelecimentos de ensino islâmico até à tentativa de lhes impor o uso do português em detrimento do árabe, ocorreu toda uma trajectória em que as continuidades se sobrepuseram, muitas vezes, às rupturas. Mas houve também, finalmente, a tentativa de conciliar esse ensino com a ideia de portugalizar o Islão, subordinando as escolas corânicas ao sistema educativo oficial algo que, porém, não chegou a ser mais do que um projecto.

O presente artigo procurará reconstituir essa evolução. Centrado no caso de Moçambique, dará relevo aos seguintes pontos: a política de encerramento de mesquitas e escolas corânicas no final dos anos 30, espelho de contradições e interpretações alternativas que se digladiavam no seio da Administração colonial sobre a presença do Islão; o contraste entre a expansão das escolas islâmicas e a retracção das escolas oficiais destinadas às populações nativas, retracção reforçada pela precariedade das missões católicas; o conflito entre católicos e muçulmanos suscitado por esse contraste; as dificuldades em impor/promover uma política da língua portuguesa num quadro de perda na competição identitária com o Islão; os debates e tensões, no seio da Administração portuguesa e nos meios católicos de Moçambique, em torno da criação de um centro de difusão da doutrina islâmica, eventualmente controlável pelas autoridades coloniais.

Entre a repressão e a tolerância ambivalente Na década de 30 do século passado, o discurso da ideologia colonial portuguesa denotou um claro desejo de homogeneização identitária: uma civilização, uma língua, uma cultura, um povo. O Islão apenas podia, pois, representar um desvio intolerável face a esse ideal de coesão absoluta. E é significativo que as diatribes mais virulentas contra os seus efeitos desnacionalizadores tenham, por vezes, partido de elites africanas totalmente identificadas com o projecto ocidentalista ou europeísta do colonialismo português. O que levanta a necessidade de analisar um outro mapa imaginário, que AbdoolKarim Vakil focou num dos seus textos (2003, p. 28): aquele em que o sujeito nativo inventa um pólo identitário negativo ou antagonista, ocupado pelo maometano, contraposto a um pólo positivo correspondente ao português, europeu e civilizado, com o qual o sujeito se identifica ao mesmo tempo que denega ou recalca uma referência mais arcaica, preenchida pela figura do negro selvagem, não-civilizado, etc. Um artigo de José Cantine, publicado em 1933 como editorial em O Brado Africano, periódico de Lourenço Marques que pretendia dar expressão às elites nativas locais, é um exemplo de como as acusações contra o Islão podiam ser proferidas por colonizados que interiorizavam a ideologia do colonizador e se remodelavam identitariamente de acordo com ele. O interessante no texto de Cantine é, justamente, o modo como ele confirmava a centralidade estratégica do ensino e da política da língua dentro da rivalidade imaginada entre a cultura portuguesa e católica e a cultura islâmica:

[ ] Nós, como nativos que somos, não podemos continuar silenciosos em face do que se está passando nas escolas maometanas da Colónia de Moçambique, que não fazem outra coisa senão arabizar o nativo português.

Quem se der ao trabalho de ir à Malanga ou à Munhuana terá ocasião de ver os nossos nativos e nativas completamente arabizados, o que não pode continuar, porque não estamos numa colónia árabe, mas numa colónia portuguesa de lei. Isto durará enquanto as autoridades escolares não submeterem as escolas maometanas ao regime das Missões religiosas, que, além da religião, são obrigadas a nacionalizar e civilizar os indígenas das suas Missões.

É de absoluta necessidade a exterminação da civilização árabe na Colónia de Moçambique.

Em Moçambique deve haver uma única civilização, uma única língua a língua portuguesa, usos e costumes portugueses, enfim, civilização portuguesa.

Se ainda portugueses amigos da sua Pátria devem obstar à desnacionalização dos nativos da Missões árabes (Cantine, 1933, pp.

14-15).

Importa sublinhar que o epíteto de desnacionalizador não era, no discurso oficial do colonialismo português, reservado exclusivamente ao Islão. Desde meados dos anos 20 e no período inicial da década de 30, ele serviu, sobretudo, para adjectivar as missões estrangeiras, que o mesmo é dizer: protestantes[4], de tal forma que o esquema retórico das acusações contra estas era praticamente idêntico ao que, mais tarde, se aplicou às instituições muçulmanas. Numa tal ambiência, não surpreende que, no final dos anos 30, tenha ocorrido em Moçambique o episódio em que vamos agora deter a nossa atenção.

Em 13 de Março de 1937, Nicolau Calheiros, Encarregado do Governo em Moçambique, produziu uma circular destinada aos concelhos e circunscrições do Niassa[5], na qual invocava os diplomas legislativos n.º 167 e 168, de 1929[6], considerando que estes facultam às autoridades os meios indispensáveis para reprimir a propaganda religiosa e impedir o estabelecimento de Escolas sem licença do Governo. Sendo assim, o Encarregado do Governo instruiu os administradores locais para que verificassem

[ ] se as mesquitas e escolas estabelecidas na Circunscrição a seu cargo estão habilitadas com as licenças exigidas pelo artigo 1.º de cada um desses Diplomas, ordenando, no caso de as não possuírem, o encerramento de todos os estabelecimentos que à face de auto competente se mostre estarem funcionando com inobservância da Lei.

Esta circular pretendia, portanto, desencadear uma vaga de encerramentos compulsivos tanto de mesquitas como de escolas corânicas, julgando assim contrariar a expansão do Islão no norte de Moçambique. Se a prática do culto islâmico estava directamente em causa, o alvo principal, porém, parecia ser o ensino religioso propriamente dito. De resto, os diplomas legislativos referidos no documento reportavam-se, exclusivamente, às condições desse ensino. O artigo 1.º do Diploma n.º 167 estipulava que nenhuma missão de ensino e propaganda religiosa poderá estabelecer-se e funcionar na Colónia de Moçambique sem prévia licença do Governador Geral, requerida com a indicação da religião que pretende propagar e do local onde pretende instalar-se, enquanto o artigo 1.º do Diploma n.º 168 fazia depender o estabelecimento de escolas particulares de ensino primário para indígenas da autorização do respectivo Governador do distrito. Alargar esta regulamentação aos templos era, obviamente, abusivo, mas a circular jogava com a confusão entre mesquitas e escolas, pressupondo que as primeiras eram apenas um disfarce para as segundas.

Vários muçulmanos recusaram, desde logo, assistir passivamente ao fecho dos seus lugares de culto. Um grupo residente nas povoações de Nacala e Memba, oriundo da Índia britânica e vivendo em Moçambique havia longos anos, outro de Mocímboa da Praia e outro ainda de naturais do Ibo, com nacionalidade portuguesa, requereram ao Governador da Província do Niassa a reabertura das mesquitas que tinham sido encerradas[7]. Para isso, utilizaram uma argumentação sofisticada, invocando o facto de a sua prática de culto ser muito aceite pelas autoridades, não violar qualquer norma de ordem pública, estar conforme à liberdade de religião reconhecida pela Constituição da República Portuguesa e pelo Acto Colonial e, finalmente, nem sequer ser abrangida pelos famigerados diplomas legislativos cujas disposições não são aplicáveis a [ ] mesquitas, que apenas podem ser consideradas como templos da religião mahometana, e nunca casas de propaganda religiosa como são, por exemplo, as missões católicas e as protestantes, uma vez que as mesquitas não são propriamente missões de ensino e propaganda religiosa, não fazendo a catequese como aquelas fazem, por padres missionários[8]. A pressão sobre as autoridades portuguesas veio também de outras instâncias, nomeadamente diplomáticas, devido ao facto de os encerramentos de mesquitas afectarem muçulmanos originários da Índia, que eram então cidadãos britânicos. Todo este episódio levou ao envolvimento directo do Cônsul Geral britânico sedeado na Beira que, a 19 de Julho de 1937, endereçou ao Governo-Geral de Moçambique um ofício onde solicitava esclarecimentos sobre o encerramento da mesquita utilizada pela Comunidade Maometana Britânica de Porto Amélia, na sequência de um telegrama que um membro desta associação lhe tinha enviado[9].

Entretanto, do lado dos administradores de circunscrição, a ordem do Encarregado do Governo foi acolhida de forma desigual. A sua anuência à circular variou consoante a interpretação dos diplomas legislativos nela citados. Apesar de a maioria dos funcionários locais não ter acatado a ordem ou tê-la aplicado tardiamente, a decisão de encerrar vinte e quatro lugares de culto islâmico acabou por afectar mais de 30 mil fiéis, a acreditar no ofício que, sobre este assunto, o Governador do Niassa, João de Figueiredo, enviou ao Governador-Geral em 10 de Novembro de 1938[10].

Alguns funcionários mais zelosos prontificaram-se a cumprir as instruções.

Assim sucedeu, por exemplo, na Circunscrição Civil de Meconta, cujo encarregado identificou quatro indígenas arabizados que se entregavam a propaganda desnacionalizadora[11]. Para além de ter ordenado a detenção destes últimos, o zelo do administrador foi ao ponto de apreender não apenas livros em guzarate e ardósias escritas por alunos, mas até mesmo tamboretes indianos tudo o que ostentasse, pois, a marca de uma alteridade identitária. A justificação fornecida repetia a estrutura argumentativa de um certo discurso islamofóbico, segundo a qual o Islão era basicamente um jogo de aparências em que nada era o que parecia. Nesta óptica, as escolas corânicas não podiam senão participar dessa estratégia de dissimulação:

Não se trata, positivamente, de escolas ou missões religiosas estáveis, expressamente previstas nos dois Diplomas Legislativos, n.ºs 167 e 168, mas sim de indivíduos isolados, perniciosos (charifos e seus delegados) que, disfarçadamente, às ocultas, vão fazendo em arredadas mesquitas ou palhotas adaptadas, propaganda desnacionalizadora entre os nativos das imediações, ensinando-os e impelindo-os para os usos e costumes mahometanos, indivíduos estes que amanhã são novos auxiliares, charifos propagandistas do credo, e assim nossos detractores e inimigos, na parte referente ao caso religioso, social e até político.

À estratégia de dissimulação dos muçulmanos, que pretendiam fazer passar por meros templos o que, na verdade, eram escolas para inculcação da islâmica, havia que responder com medidas repressivas indiferenciadas. Dir-se-ia não haver neste raciocínio uma destrinça entre o Islão genuíno, puramente religioso, e um Islão falso ou instrumentalizado para desnacionalizar os nativos. Segundo o administrador colonial em questão, um e o outro eram, de facto, o mesmo. De tal modo que ensinar o Corão e impelir os nativos para a cultura mahometana era, desde logo e por si , criar os nossos futuros detractores e inimigos cujos comportamentos podiam espelhar a essência do Islão: a sua falsidade de base.

Outros administradores reagiram à circular n.º 12/6 com relutância e diversas objecções, fruto de uma percepção mais próxima da realidade das populações muçulmanas, mas também de uma leitura mais afinada dos diplomas legislativos n.ºs 167 e 168. O responsável pela Circunscrição Civil de Mucojo, por exemplo, confirmou em Agosto de 1937 ter mandado encerrar todas as mesquitas, em cumprimento do seu dever de funcionário, mas asseverava tê-lo feito contra a sua consciência, pois essas mesquitas mais não eram do que míseras palhotas onde o indígena pratica ordeiramente as suas devoções[12]. Aprofundando a sua postura crítica, o autor desta nota estabeleceu uma analogia entre o descontentamento dos nativos muçulmanos face à medida tomada e o que a nós católicos sucederia se nos fechassem as igrejas. E note-se que aqui a distinção entre o in-group do nós e out-group dos outros era feita para sublinhar uma partilha identitária e não uma diferença intransponível.

Este funcionário chamou ainda a atenção para o erro estratégico inerente à política repressiva que estava a ser seguida, erro que acabaria por levar à desnacionalização dos nativos que, supostamente, se pretendia evitar: Dada a afinidade de raças e comunhão de crenças e ideias com a gente do Tanganica, receio muito que um ou outro xarife abandone as terras e que leve atrás de si os indígenas que lhe são mais dedicados. Previsão bastante razoável se pensarmos no exemplo do Xehe Abudo Michongué, o mais importante dignitário islâmico do Niassa, o qual se tinha refugiado no Malawi, com cerca de 10 mil fiéis que o acompanharam no exílio, provavelmente por causa de um simples mal- entendido, que as autoridades, incluindo a PIDE, nada tinham contra ele (Vakil, Monteiro & Machaqueiro, 2011, pp. 245-246)[13].

A 20 de Agosto de 1937, o Encarregado do Governo que tinha estado na origem de todo este imbróglio sentiu a necessidade de se justificar perante o Director dos Serviços de Administração Civil[14]. O arrazoado revela que a sua iniciativa fora inspirada por uma concepção assumidamente hostil ao Islão. Este documento requer uma análise demorada, sobretudo no parágrafo em que o autor plasma bem a sua visão, movida por uma rejeição emocional da religião islâmica:

Não procuramos nem pretendemos impedir que os mahometanos pratiquem o culto da sua religião nem obstamos a que mantenham escolas da sua língua destinadas somente à educação dos seus descendentes, desde que se subordinem às regras que as leis vigentes impõem para tais casos.

Mas não consentiremos que transformem os seus templos e as suas escolas em sinagogas de catequese onde o nosso preto é atraído para, à sombra de uma religião que não é a nossa, lhe incutir no ânimo princípios e ideias contrárias ao nosso sistema político, aos nossos hábitos e costumes, aos nossos métodos de colonização, à nossa economia e a tudo, enfim, quanto não seja enriquecer a grei maometana à custa do suor alheio.

Muito poderia ser dito acerca desta passagem. Em primeiro lugar, o seu anti- semitismo larvar, patente na alusão à sinagoga, que talvez não se deva apenas a uma confusão decorrente da dificuldade em diferenciar as religiões. Aliás, a acusação feita ao muçulmano focalizado apenas no enriquecimento próprio à custa do suor alheio é perfeitamente simétrica das acusações de cobiça feitas aos judeus. O que mostra uma certa repetição e monotonia na estruturação das representações identitárias: o esquema é relativamente invariável, mudando apenas os alvos que os preenchem.

No imaginário de Calheiros o maometano representa o grande Outro, a alteridade absoluta e negativa da qual o português se diferenciava totalmente. Em contrapartida, o preto é visto como sendo nosso: não uma parte de nós, mas uma propriedade nossa que, paternalisticamente, o colonizador português deve tutelar e proteger caracterização identitária oscilante, que, num trecho posterior, os africanos aparecem identificados como portugueses das Colónias e Calheiros chega a falar do negro português.

A protecção de que este seria objecto procurava, alegadamente, defendê-lo da influência negativa exercida pela religião islâmica. Tal como noutros documentos que assinalámos atrás, Calheiros assimila o Islão a um estratagema de falsidade ou de dissimulação, traços que atribui à própria afinidade do islamismo com os usos e costumes africanos. Outros autores tinham sublinhado essa afinidade para desqualificarem, em simultâneo, o povo negro e o Islão, considerando que ambos partilhavam traços de inferioridade intelectual e cultural (Machaqueiro, 2012a, pp. 41-43). Para Calheiros, contudo, dir-se-ia que tal afinidade nada mais era do que simples estratégia de simulação dos muçulmanos orientais (ou seja: não-ocidentais, não-portugueses), feita para atrair os incautos africanos:

É na religião que o oriental firma o plano em torno do qual gira toda a sua actividade político-económica e por essa razão sente absoluta necessidade de chamar o indígena ao credo que professa simulando ao mesmo tempo adaptar-se aos seus usos e costumes, para mais facilmente poder explorá-lo.

Daí a necessidade de o colonizador proteger os africanos, declarada numa passagem onde regressa a diabolização do muçulmano que converte o trabalho alheio em ouro (a imagem que Calheiros constrói do muçulmano é, em termos psicanalíticos, claramente anal-sádica) e o tópico do Islão desnacionalizante:

Temos por nosso lado o direito indeclinável de nos defender e proteger os indígenas contra a ganância desmedida destas aves de rapina que não se contentando em converter o trabalho alheio em ouro para levarem para as terras que foram nossas, ainda têm o arrojo de pretender desnacionalizar os portugueses das Colónias, tentando, teimosamente, divulgar entre eles uma língua que não conhecemos e submetê-los espiritualmente ao freio duma religião que nos repugna aceitar não por índole e por educação, como também porque se a tal acedêssemos afrontaríamos gravemente a memória dos nossos maiores.

Seguidamente, surge um argumento que, colidindo com a liberdade de religião afirmada na Constituição de 1933[15] e no próprio Acto Colonial[16], denunciava, afinal, os limites destes textos jurídicos quando confrontados com a violência inerente ao paternalismo colonial. Uma violência que consistia em produzir e confirmar a subalternidade do colonizado:

O negro português é tutelado porque a sua condição social assim o determina. Não podemos, pois, reconhecer-lhe o direito de se integrar em credos religiosos para nós enigmáticos, motivo porque não perfilhamos a ideia em lhe facultar liberdades de semelhante natureza e antes entendemos que se nos impõe a obrigação, dentro da função tutelar que nos cumpre exercer, de o conduzir pelo caminho que consideramos mais acessível à realização do nosso objectivo colonizador, mais adequado aos nossos interesses que colocaremos sempre em primeiro plano, e mais compatível com os nossos incontestáveis direitos de soberania dos quais nunca abdicaremos

A liberdade religiosa era, deste modo, restringida à religião percepcionada como instrumental para a preservação do domínio português em África:

Admitimos todas as ideias religiosas dentro da mais ampla liberdade, condicionada pela mais perfeita ordem; mas combateremos sem tréguas os que trabalhem no sentido de diminuir o Poder e o Prestígio da nossa autoridade ou enfraquecer os alicerces do nosso domínio. 

Assim sendo, os portugueses das Colónias, na sua condição de crianças que ainda não atingiram a maioridade, não têm direito a escolher a religião. Esta ser-lhes-á imposta pelos seus maiores, os portugueses (adultos) da Metrópole:

Não, Exmo. Senhor, os portugueses das Colónias não podem conhecer nem praticar outra língua sem que primeiro conheçam e pratiquem a portuguesa; e não podem ter outra religião que não seja aquela que amparou os portugueses na descoberta e conquista de mais de metade do mundo, enquanto não atingirem a maioridade. E quem com isto se não conformar, tem aberto o caminho de saída.

Percebe-se então toda a intencionalidade e toda a imaginação identitária que subjazem à circular n.º 12/6: a identidade positiva, superior e modelar, a do português católico, branco e adulto, está necessariamente encarregue de tutelar a identidade subalterna e inferior, a do português das colónias, negro-africano em estado de menoridade, ou seja, de infantilidade sabendo nós que a criança foi, desde os primórdios dos encontros coloniais entre europeus e os povos sul-americanos e africanos, uma das encarnações do selvagem (Jahoda, 1999, pp. 131-163).

Este documento do Encarregado do Governo foi, talvez, um último gesto de obstinação no meio de um mal-estar cada vez maior. Em Outubro de 1938, o novo Governador do Niassa, o então Capitão-Tenente João de Figueiredo, decidiu autorizar a reabertura das mesquitas e a devolução dos livros e quadros que tinham sido confiscados, aconselhando os maometanos a evitarem manifestações religiosas fora das mesquitas, desde que não se trate das inerentes aos enterros, e induzindo, cuidadosamente, a que maometanos indianos e maometanos indígenas praticassem o culto em mesquitas separadas[17] uma medida curiosa, pois parece antecipar, com trinta anos de antecedência, a política de separação e isolamento dos muçulmanos africanos em relação aos asiáticos que as autoridades portuguesas tentarão concretizar a partir de meados da década de 60.

A justificação de João de Figueiredo para a sua decisão desautorizou por completo o Encarregado de Governo Nicolau Calheiros, apelidando a ordem que este dera de precipitada, sem o mais ligeiro estudo da situação, ilegal e contraproducente. Mas os seus argumentos principais foram de natureza política, reconhecendo a posição delicada e frágil do poder português numa área onde o Islão representava uma força cultural, mas também política, de grande relevância. Também nisto Figueiredo antecipou uma percepção de que em finais dos anos 60 portanto, tardiamente a Administração colonial tentará retirar todos os seus frutos.

Num certo sentido, ele foi um precursor do discurso ambivalente que Sarmento Rodrigues desenvolveu a propósito do Islão nas colónias portuguesas enquanto Governador-Geral da Guiné. Numa famosa conferência de 1948 sobre a inserção dos muçulmanos na ordem colonial portuguesa, Sarmento Rodrigues ora embatia nas desconfianças que pareciam intrínsecas ao património das dominações coloniais exercidas sobre povos muçulmanos, ora apelava à unidade identitária com estes, ao ponto de ser, porventura, o primeiro a usar publicamente o termo muçulmanos portugueses (Rodrigues, 1948, p. 231; Vakil, 2003, p. 268). Ora, esta mesma ambivalência tinha percorrido o discurso de João de Figueiredo. Numa sua entrevista publicada a 20 de Dezembro de 1941 no jornal Guardian de Lourenço Marques, ele afirmou, por um lado, que sempre que tem havido tratamento diferente especialmente em relação aos mahometanos condutores das cerimónias religiosas, eles têm correspondido a todos os desejos das autoridades, tendo levado os indígenas a fazerem voluntariamente o que doutro modo não fariam tão facilmente[18]. E reconhecia que, se até pouco tempo o indígena cristão, e, mais em especial ainda, o católico se dizia português, tinham entretanto surgido milhares de mahometanos que se dizem portugueses mahometanos. Não que João de Figueiredo admitisse serem eles, de facto, portugueses. Mas, pelo menos, não evitou constatar que os muçulmanos podiam assumir uma identidade portuguesa. Mesmo assim, a sua conclusão mantinha-se dentro do cânone do uniformismo identitário próprio da ideologia colonial dos anos 30, que se prolongou ainda durante as duas décadas seguintes: Em meu entender, olhada a questão sem paixão religiosa, haveria vantagem em que o catolicismo fosse a religião única nestas paragens, porque, sem unidade religiosa, difícil será haver unidade de portuguesismo. Durante muito tempo, esta posição oscilante foi o melhor que o colonialismo português teve para oferecer em alternativa à islamofobia pura e dura.

Escolas corânicas e política da língua Como foi referido, as autoridades administrativas tiveram um longo braço de ferro com as missões protestantes que se traduziu também num esforço para lhes impor o uso da língua portuguesa. Esse esforço teve, por sua vez, um equivalente no relacionamento do poder colonial com as escolas corânicas. Daí que diversos documentos oficiais, emanados tanto dos poderes centrais de Lisboa como das autoridades locais nas colónias, insistissem no ensino obrigatório do português como estratégia para colocar, de forma mais eficaz, as populações colonizadas sob a alçada orientadora de Portugal e para impedir que fossem atraídas pela propaganda anticolonial, a qual se supunha ter ligações à doutrinação islâmica. Nos anos 60, perante um ambiente internacional hostil ao sistema colonial e a emergência de movimentos independentistas nas colónias, este problema adquiriu uma importância renovada para as autoridades portuguesas. A isto acresce a transição, ainda muito gradual, para uma política de atracção ou conquista das populações muçulmanas com o objectivo de as isolar, imunizando-as contra influências externas, potencialmente subversivas. Jogava-se assim num quadro em que os motivos religiosos podiam ter uma tradução política, favorável ou desfavorável à ordem colonial portuguesa. Um documento produzido pelo Ministério do Ultramar em inícios de 1960, reportando-se à situação da Guiné Portuguesa, reflectiu boa parte destas preocupações e das mudanças que elas induziam:

A nossa Província da Guiné está a ser sujeita a uma propaganda generalizada, utilizando os temas religiosos, por parte da República da Guiné que, embora crescente, não tem obtido os resultados pretendidos.

Esta situação parece aconselhar a maior cautela na política religiosa a seguir na Guiné porquanto a população islamizada tem um mais elevado nível de cultura e melhores qualidades guerreiras.

Torna-se essencial procurar captar a população islamizada sem exercer pressões religiosas sobre ela, as quais têm sido até agora ineficazes no sentido de obter a sua conversão ao cristianismo[19].

O responsável por este documento atribuía uma importância especial à política de ensino nessa estratégia de captação das populações colonizadas e, em particular, dos muçulmanos: O ensino primário é um dos pontos fundamentais desta questão, visto que os filhos dos indígenas islamizados são obrigados a frequentar as escolas das missões e da sua recusa resultam efeitos nocivos sobre o ponto de vista Nacional. E acrescentava que o problema também se colocava em Moçambique, exigindo atenção e uma resposta urgente.

Em 1964, uma nota dos Serviços de Instrução de Moçambique sugeriu que deveria ser exigido aos mualimos a prova de estarem habilitados a ensinar português.

Mas observava, num tom visando temperar propensões mais repressoras, que não se deveria proibir o uso do árabe, tanto mais que é a língua sagrada dos islâmicos. Deve-se exigir é o ensino da catequese em português[20]. Um ano antes, a Administração do Concelho de Nampula tinha proposto a incorporação (compulsiva?) das escolas muçulmanas no sistema de ensino português enquanto meio de contrariar aquilo que era percepcionado como tendências centrífugas de tais escolas face ao programa assimilacionista:

Tenta-se manter uma vigilância junto das mesquitas, tarefa que, como disse em Perintreps anteriores, é bastante difícil devido à impenetrabilidade do meio. Outro problema que julgo interessante abordar aqui é o do funcionamento das escolas Maometanas. Embora não desconheça o melindre político deste assunto, julgo que estas escolas deviam ser regulamentadas e integradas no nosso sistema de ensino.

Desta forma poder-se-ia exercer sobre elas uma fiscalização com alguma eficiência, que impedisse de certo modo a tarefa de desnacionalização que não podem deixar de ter[21].

O despacho exarado nesta comunicação pelo Governador do distrito de Moçambique ia mais longe: Quanto ao ensino nas escolas maometanas tive oportunidade de propor, pelos Serviços de Instrução, a sua regulamentação, na qual fosse incluída a obrigatoriedade de o ensino e a catequese serem feitos exclusivamente em português.

Em Fevereiro de 1966, o próprio Suleiman Valy Mamede salientou a necessidade do ensino obrigatório da língua portuguesa nas escolas dependentes das associações maometanas de Moçambique, usando a sua posição de funcionário do Ministério do Ultramar para influenciar a orientação dessas organizações, atitude que veio a aprofundar, depois de 1968, enquanto primeiro Presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa[22]. O seu discurso reiterava a argumentação oficial do regime:

Não se pode compreender que o ensino da língua portuguesa seja completamente descurado nessas escolas, a favor do ensino exclusivo do árabe. Convém salientar que essas escolas são portuguesas e a língua é a grande realidade que se prolonga através das gerações, pois muitas formas de acção psico-social utilizadas nos territórios ultramarinos, porém a mais importante, é sem dúvida, o ensino da língua portuguesa[23].

Apesar de todos estes conselhos e instruções, os dados sugerem que a Administração colonial foi incapaz de contrariar a expansão do suaíli ou do árabe e que a língua portuguesa se mostrou cronicamente minoritária, se não mesmo residual. Em Julho de 1968, Fernando Amaro Monteiro, o mais competente islamólogo dos Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique (SCCIM), assinalou a irrelevância do português face a outras línguas como um dos problemas maiores que a Administração tinha de enfrentar:

Intensifica-se a divulgação do swahili como língua veicular africana, ultrapassando mesmo os quadros do Islam negro, onde se generalizou largamente.

No que se refere à Província de Moçambique, o fenómeno não deixa de sentir-se e apresenta-se mesmo, na opinião do signatário, como susceptível de causar sérios problemas à difusão da língua e da cultura portuguesa [ ][24].

Embora circulassem várias sugestões para promover o português como língua principal, tudo indica que, em finais da década de 60, esta era uma causa perdida dentro de um sistema que, durante a sua vigência, nada fizera para estimular o acesso dos nativos ao ensino, optando por relegar essa tarefa para missões católicas cuja rede era exígua e cada vez mais desacreditada junto das populações.

A questão do centro islâmico e o fantasma da Universidade Muçulmana Em 1973, à beira do colapso do sistema colonial, persistiam os velhos conflitos em torno das escolas corânicas, sujeitas à acusação recorrente de serem focos desnacionalizadores e anti-portugueses. Em Março do ano anterior, a Diocese de Nampula, a cargo do Bispo D. Manuel Vieira Pinto, queixara-se à Secretaria Provincial da Educação de Moçambique de que as autoridades administrativas e as tradicionais não estavam a encaminhar as crianças em idade escolar para os postos de ensino das missões católicas[25]. Em resposta, o Secretário Provincial da Educação, Adelino Augusto Marques de Almeida, emitiu em Janeiro de 1973 uma Informação[26] na qual, sem deixar de admitir a quota-parte de responsabilidade que as missões tinham no absentismo dos alunos, por não oferecerem um mínimo de condições pedagógicas, descrevia um quadro que não se alterava desde, pelo menos, os anos 50: as famílias muçulmanas tinham relutância em enviar os seus filhos às escolas cristãs, preferindo-lhes as corânicas que, não ministrando o ensino Primário, privam as crianças desse elemento de cultura e de formação portuguesa, e que, para além do estudo do Corão, ensinavam desde o árabe ao suaíli, passando pelo urdu e pelo guzarate, com exclusão do português. Baseando-se em informações transmitidas pela Diocese de Nampula, o Secretário Provincial receava que as tensões entre católicos e muçulmanos degenerassem numa confrontação violenta entre credos religiosos, que os muçulmanos acusavam abertamente os portugueses de serem os seus inimigos tradicionais, de as suas escolas oficiais não passarem de escolas estrangeiras, ao ponto de uma escola da Missão do Mossuril ter sido incendiada.

Instado pelo Governador-Geral, Pimentel dos Santos, a produzir um parecer sobre esta situação, Fernando Amaro Monteiro que, nessa altura, não trabalhava nos SCCIM, mas se mantinha como consultor do Governo-Geral sugeriu a criação de centros oficiais de ensino corânico, onde se pudesse fazer a formação de elementos em moldes consentâneos para com o interesse nacional[27]. Na medida em que a frequência desses centros controlados pelas autoridades portuguesas representasse promoção social para os seus alunos, seria possível que aqueles conseguissem rivalizar com as muitas centenas de escolas corânicas improvisadas em palhotas ou sob a copa de árvores (Monteiro, 1993a, p. 87).

Claro está que, no contexto de desagregação acelerada do poder português, nenhum seguimento foi dado a semelhante sugestão.

De algum modo, a ideia avançada por Amaro Monteiro harmonizava-se com o seu projecto de instituir em Moçambique um centro islâmico maior, capaz de certificar a transmissão de conhecimento doutrinário e cuja visibilidade permitisse, a breve trecho, instrumentalizá-lo de modo a colocar os muçulmanos do norte de Moçambique ao lado dos portugueses contra a FRELIMO[28]. A questão do centro islâmico prende-se, portanto, com o tema do nosso artigo, visto que remetia para o problema do ensino e do seu enquadramento político. Neste caso, o assunto em foco não era tanto o das escolas corânicas, mas sim o que poderia resultar da criação de uma forma de ensino islâmico superior em Moçambique.

Escusado será dizer que a simples menção desse tema bastou para despertar a agressividade dos meios católicos mais conservadores, os quais não escondiam o seu ressentimento pela mudança táctica das autoridades portuguesas relativamente ao Islão. Era, contudo, irónico que esta tivesse sido, em grande parte, inspirada pelos gestos ecuménicos de sectores da Igreja mais abertos ao espírito do Concílio Vaticano II, como foi o caso da aproximação de D. Eurico Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral (actual Lichinga) aos muçulmanos da sua diocese em meados dos anos 60. Recorde-se que, nesse período, o jovem Bispo, entusiasta das ideias do Concílio Vaticano II, empreendera vários gestos de diálogo com o Islão, criando condições para estar presente em diversas cerimónias islâmicas, mormente na inauguração de mesquitas, oportunidades que sempre aproveitava para proferir discursos ecuménicos cuidadosamente elaborados, entre os quais se destaca a famosa Carta Fraterna aos Muçulmanos da sua diocese, de Setembro de 1966. Esta política de aproximação, que teve o apoio expresso da Santa Sé[29], aparecia em consonância com a imagem renovada que o Estado português queria projectar na arena internacional, ao reclamar-se de um colonialismo de rosto humano e inter-racial[30]. Contudo, nada disso impediu que os elementos mais conservadores da Igreja Católica, encarando qualqueraggiornamento com suspeita, tentassem minar os avanços feitos na direcção de uma população muçulmana que neles continuava a suscitar sentimentos de hostilidade. E não surpreende que o Bispo de Vila Cabral se queixasse, em conversa privada com Jacques Honoré, de que o Colégio Episcopal de Moçambique estava bastante recuado em relação à posição que ele havia tomado face aos islamizados da sua diocese e de que os seus colegas estariam, sobretudo, inclinados a desaprová-lo e a temer as consequências da sua acção[31].

Anos mais tarde, a polémica com os sectores católicos mais recuados poderia subir de tom quando as iniciativas para orientar a educação islâmica pareceram partir das comunidades muçulmanas propriamente ditas e não da Administração portuguesa. Por diversas vezes circularam rumores que, provavelmente, mais não eram do que boatos destinados a condicionar a política oficial para com o Islão. Ilustração disto mesmo é a carta de Mons. Paulo Machado, residente em Nampula, datada de 4 de Outubro de 1967, endereçada ao Governador-Geral e que parece ter tido larga difusão na Província.

Pronunciava-se em termos violentos sobre uma notícia publicada no Diário de Moçambique que anunciava a criação de uma Universidade Muçulmana na Ilha de Moçambique[32]. Desenvolvendo uma teoria da conspiração, a carta atribuía semelhante notícia a uma traição anti-portuguesa, cujo ponto de partida estaria

num traidor a Portugal que pelo nome de Dr. Valy (Selimane Valy Mamede) [ ]. Rapaz extraordinariamente ambicioso e extraordinariamente inteligente, que, com indevidas protecções, se anichou no Ministério [do Ultramar], e, dali conduz toda uma propaganda contra a nossa posição em Moçambique.

Ele é o mandatário do Cairo e de quejandos, e, não tendo podido vencer-nos pelas armas, pelo terrorismo, tentam agora introduzir dentro da nossa ‘cidade' o ‘cavalo de Tróia' com a coisa inocentíssima de ‘uma Universidade Muçulmana' [33].

Tais vitupérios, expressamente dirigidos ao futuro presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa, ilustram bem as resistências que o protagonismo de Valy Mamede, enquanto muçulmano, despertava nos meios mais conservadores e islamofóbicos, apesar de ele, antes do 25 de Abril de 1974, sempre ter procurado inscrever a sua actuação na ordem ideológica do Estado Novo (Machaqueiro, 2011b).

Para além disso, a carta transcrevia os argumentos de um preto evoluído, de origem protestante, muito bom português, de inteligência lúcida, sem lhe mencionar o nome mas que se apurou depois tratar-se de Assahel Jonassane Mazula, vogal do Conselho Legislativo da Província de Moçambique, católico e não protestante como a carta afirmava[34]. Vale a pena determo-nos nessa argumentação, pois ela toca em vários pontos caros àqueles que, dentro do aparelho administrativo, se opunham à constituição de um centro que proporcionasse, em Moçambique, um ensino corânico de alto nível. Não irei cobrir a totalidade das teses apresentadas, mas focarei as que interessam directamente ao tema deste artigo.

A primeira afirmava que, não existindo ainda uma Universidade Católica em Moçambique, a criação de uma Universidade Muçulmana na Província ia provocar uma grande reacção pela parte de toda a gente de Moçambique, subentendendo- se que gente correspondia aos católicos ou aos cristãos em geral, ficando os muçulmanos automaticamente excluídos dessa categoria identitária. Outro argumento sustentava que, não possuindo os muçulmanos desse território escolas do ensino primário, secundário, médio e superior, a instauração de uma universidade sem aquelas equivalia a uma casa sem fundamentos e alicerces. O autor lançava, a seguir, uma acusação de ignorância em matéria de doutrina islâmica aos sacerdotes muçulmanos de Moçambique[35], que não se encontram em condições de frequentarem para qualquer espécie de escola superior, pois apenas decoram umas passagens do Corão de interesse imediato e nada mais caracterização que reflectia as percepções generalizadas relativamente ao Islão negro[36]. Estas eram teses de carácter prático. Seguidamente, o texto de Assahel Mazula, transcrito pelo padre Machado, passava à argumentação propriamente política. Segundo ele, a religião maometana tende para uma autonomia religiosa-política-administrativa, pelo que criar uma universidade seria a mesma coisa que oferecer-lhes uma bomba atómica para nos guerrear amanhã. Depois, o velho lugar-comum: , certamente, uma influência desnacionalizante, porque a religião muçulmana é desnacionalizadora.

Acrescentava, porém, uma ressalva curiosa: como os maometanos de Moçambique se pautavam pela ignorância e as autoridades administrativas estavam em boas condições de a controlar, essa influência desnacionalizadora era nula nos nossos territórios. Ora, uma eventual Universidade Muçulmana podia inverter esta situação favorável aos interesses portugueses, pois iria formar doutores islâmicos potencialmente incontroláveis, que é mais fácil de controlar 1 milhão de analfabetos do que 5 doutores formados.

É neste ponto específico que, a nosso ver, a argumentação de Assahel Mazula se articula com o debate em torno das vantagens ou desvantagens do estabelecimento de um centro islâmico em Moçambique, debate que atravessava, em surdina, alguns sectores do aparelho colonial, particularmente os seus serviços de intelligence, responsáveis pela definição das tácticas psico-sociais de conquista das populações[37]. Este debate assentava no binómio polarização/ despolarização, que designava uma escolha entre um cenário no qual os muçulmanos e outras comunidades se concentravam (se polarizavam) em redor de líderes influentes ou carismáticos e um cenário onde as populações se encontravam muito mais dispersas (despolarizadas), distribuindo a sua fidelidade por centros variados, locais e de menor vulto. Os estrategas dos SCCIM dividiram-se, genericamente, entre duas opções: promover a polarização dos muçulmanos à volta de centros que as autoridades pudessem controlar facilmente e dos quais retirariam vantagem, ou fortalecer a suposta tendência dos muçulmanos de Moçambique para a despolarização. Esta última via foi defendida pelo Major Fernando da Costa Freire, um dos vários directores que estiveram à frente dos SCCIM entre 1961, ano do seu estabelecimento, até à sua dissolução em 1974. Ele baseou o argumento no pressuposto de que a chamada despolarização era o principal atributo dos islamizados negros ou africanos, considerados a maioria dos que compunham o número de fiéis ao Islão em Moçambique. Costa Freire acreditava que esse fenómeno desencorajava a unidade ou coesão desse sector da população moçambicana, levantando desejáveis obstáculos à sua mobilização pelo movimento anticolonial: A ausência de uma subordinação hierárquica formal, transforma cada elemento da hierarquia numa entidade autónoma o que, aliado à tendência do negro para preservar a autonomia que porventura detenha, dificulta o levantamento, pela subversão, da ‘massa' negra islamizada[38]. A tendência contrária, a verificar-se, seria altamente indesejável na perspectiva do poder português, pois potenciaria as inclinações subversivas dos islamizados.

Ora, estes receios ligavam-se à problemática do ensino religioso. A Informação emitida por Costa Freire afirmava que o recrutamento de muçulmanos para actividades subversivas anticoloniais em Moçambique era, basicamente, efec- tuado por aqueles a quem fora reconhecida uma dignidade especial devido aos conhecimentos que detinham em doutrina islâmica. Costa Freire localizava na Tanzânia os centros em que os dignitários muçulmanos de Moçambique tinham recebido os seus ensinamentos, e concluía que os laços formados durante o ensino religioso se prestavam a colocar os antigos discípulos debaixo da alçada dos seus mestres em todas as questões, tanto religiosas como políticas.

Suspeitava-se, pois, que centros islâmicos tanzanianos cooptassem dirigentes muçulmanos em Moçambique para actuarem contra o poder colonial português[39].

Este último aspecto relacionava-se também com outra vertente do argumento de Assahel Mazula: uma Universidade Muçulmana em Moçambique, enquanto estabelecimento de ensino internacional, iria atrair inevitavelmente muitos doutores islâmicos de todas as partes do mundo muçulmano: Cairo, Zanzibar, Nigéria, Argélia, etc., forjando assim uma aproximação cada vez maior entre os nossos muçulmanos e doutores muçulmanos do Estrangeiro. Sujeita a importar estes últimos, dada a inexistência de moçambicanos com formação islâmica superior, a universidade estaria a importar, ao mesmo tempo, a maior influência desnacionalizante[40]. Traduzindo isto para a linguagem conceptual dos SCCIM, tal significava polarizar os muçulmanos de Moçambique em torno de dignitários islâmicos localizados no exterior, retirando-os à esfera de influência portuguesa para os colocar debaixo de uma cultura político-religiosa de cunho transnacional, potencialmente inimiga do colonialismo.

A solução, mais ou menos consensual entre as autoridades portuguesas, para obviar à influência islâmica externa consistiu em portugalizar o Islão das colónias, uma saída considerada impensável trinta anos antes (Bonate, 2011, pp.

36-39). Isso obrigava a isolar e a afastar os muçulmanos de Moçambique, em especial os de origem africana ou negra, dos centros islâmicos exteriores, sobretudo os de feição asiática, sempre suspeitos de inclinações subversivas[41]. Tratava-se de uma estratégia que tinha marcado a política islâmica noutros quadrantes, nomeadamente na África Ocidental Francesa (Gouilly, 1952, pp. 253-254). A separação ou segregação do elemento africano em relação ao asiático constituía o primeiro passo para a desejável portugalização da massa islâmica, entretanto imunizada face a influências exteriores. Este objectivo condicionou o modo como as autoridades portuguesas conceberam o formato ideal da educação religiosa dos muçulmanos de Moçambique.

Não se procurou, longe disso, que estes adquirissem plena autonomia. Na verdade, visou-se a finalidade exactamente oposta: fornecer aos líderes comunitários muçulmanos apenas o mínimo necessário para se deixarem accionar pelas autoridades coloniais e se oporem a influências externas. à luz desse desígnio se pode entender a receita de uma autonomia calculadamente mitigada, receita dominada pela imagem racista do negro boçal:

Para se conceder aos elementos da hierarquia islâmica da Província a preparação suficiente ao fomento da despolarização, não se considera necessário que aquela seja de nível elevado mas apenas de nível compatível com o estádio cultural da massa. Deixados entregues à sua boçalidade, tenderão para a polarização, serão mais receptivos às influências externas e poderão constituir-se em factores desnacionalizantes[42].

Se estes propósitos eram consensuais no seio da Administração portuguesa, não havia, contudo, um pleno acordo sobre a melhor opção para instrumentalizar as comunidades muçulmanas e os seus dignitários em particular. Uns defendiam uma solução claramente centralista (ou polarizadora), como Eugénio de Castro Spranger, Adjunto dos SCCIM, que aconselhou o estabelecimento em Moçambique de um centro para a doutrinação islâmica que dispensasse a dependência do estrangeiro[43]. Outra versão desta ideia apontava para a criação de um centro de ensino em Moçambique, dedicado à transmissão e certificação do saber islâmico, que pudesse ser dirigido por Said Bakr, o prestigiado khalifa que se seguira a Ba Hassan como líder da confraria Qadiriyya Sadat, na sequência de um tumultuoso processo de sucessão (Bonate, 2007, pp. 103-106), e ao qual fora erradamente atribuído o título de Mufti no documento anónimo que concebia esta possibilidade[44]. De acordo com esta proposta, os principais dignitários do Islão em Moçambique seriam obrigados a frequentar o dito Centro de Estudos Islâmicos, de modo a que dos futuros nenhum pudesse pregar e actuar sem ter credenciais assinadas pelo Mufti [Said Bakri] e por ali emitidas. O documento sugeria mesmo a arquitectura institucional do referido Centro e o tipo de controlo a exercer sobre ele.

Esta ideia de concentrar o ensino e a certificação do islamismo num único centro situado na Ilha de Moçambique, como instrumento para melhor controlar e accionar os muçulmanos da região, circulava por essa altura entre vários responsáveis das instâncias administrativas. Ela apareceu em destaque, nomeadamente, num importante relatório produzido por Melo Branquinho para os SCCIM (Alpers, 1999, p. 177). Houve precedentes ilustres: a fim de contrariar as mensagens nacionalistas e anti-imperialistas, com fundo islâmico, emanadas do Cairo, as autoridades coloniais britânicas do Quénia e da Tanzânia tinham presidido, em finais dos anos 40, à criação da Sociedade para a Promoção dos Muçulmanos da África Oriental e contribuído para financiar o Instituto de Ensino Muçulmano de Mombaça[45], ambas as instituições fundadas com o patrocínio do Aga Khan e do Sultão de Zanzibar. A última, concebida à escala da África Oriental, embora não estivesse especificamente voltada para a doutrinação religiosa, proporcionando antes um ensino secundário e pós- secundário de natureza secular, nem por isso deixava de combinar este último com um ambiente cultural islâmico (Amiji, 1984, p. 124).

os defensores da despolarização dos muçulmanos sustentavam outras soluções. Costa Freire, por exemplo, considerava inconveniente um único centro e propunha, em vez disso, vários núcleos dispersos, eventualmente baseados em escolas corânicas existentes, organizados para preparar os que integrariam a futura hierarquia islâmica em Moçambique uma concepção que o Governador-Geral Costa Almeida reproduziu num despacho de 11 de Dezembro de 1967, temendo que um centro único para o estudo do Islão se tornasse uma fonte de influências ‘supranacional' e, consequentemente, passível de se orientar, ou não, a nosso favor, conforme a tal orientação polarizante imprimida pelos seus dirigentes [46].

Todas estas discussões acabaram por se confinar a um cenário meramente académico. Como foi dito atrás, a transformação das políticas islâmicas no regime colonial português não conseguiu produzir um quadro de ensino corânico que fosse satisfatório para os interesses do poder vigente. Essa transformação foi, de resto, uma resposta tardia à pressão exercida pela evolução da guerra colonial. A persistência dos conflitos entre as missões católicas e as escolas corânicas num ano tão adiantado como 1973 é um sintoma de como a ordem colonial se mostrou impotente para inverter, a seu favor, os efeitos da expansão do Islão em Moçambique.


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