O Ensino na Política Islâmica do Moçambique Colonial: Da ansiedade islamofóbica
à miragem do Islão português
Os dois tempos das políticas coloniais portuguesas para com o Islão na Guiné e
em Moçambique – o tempo islamofóbico[2] e o da sedução das lideranças
muçulmanas, este último encetado em meados dos anos 60[3] – foram marcados pela
apreensão perante o crescimento do ensino islâmico, devido ao facto de ele
parecer escapar à política de portugalização dos nativos. Uma tal atitude
cruzou-se com duas formas de representação ideológica do muçulmano: a
islamofobia concebeu-o como estruturalmente anti-português, vendo nas escolas
corânicas um factor de resistência (desnacionalizadora) à assimilação das
populações colonizadas; no período apostado em atrair as comunidades e os
dignitários islâmicos, dentro das políticas psico-sociais de contra-
insurreição, as escolas corânicas, desenquadradas do sistema oficial, passaram
a ser encaradas como um entrave à plena instauração de um Islão português no
espaço ultramarino. Do seu encerramento compulsivo pelos poderes
administrativos e da relutância em autorizar novos estabelecimentos de ensino
islâmico até à tentativa de lhes impor o uso do português em detrimento do
árabe, ocorreu toda uma trajectória em que as continuidades se sobrepuseram,
muitas vezes, às rupturas. Mas houve também, finalmente, a tentativa de
conciliar esse ensino com a ideia de portugalizar o Islão, subordinando as
escolas corânicas ao sistema educativo oficial – algo que, porém, não chegou a
ser mais do que um projecto.
O presente artigo procurará reconstituir essa evolução. Centrado no caso de
Moçambique, dará relevo aos seguintes pontos: a política de encerramento de
mesquitas e escolas corânicas no final dos anos 30, espelho de contradições e
interpretações alternativas que se digladiavam no seio da Administração
colonial sobre a presença do Islão; o contraste entre a expansão das escolas
islâmicas e a retracção das escolas oficiais destinadas às populações
nativas, retracção reforçada pela precariedade das missões católicas; o
conflito entre católicos e muçulmanos suscitado por esse contraste; as
dificuldades em impor/promover uma política da língua portuguesa num quadro de
perda na competição identitária com o Islão; os debates e tensões, no seio da
Administração portuguesa e nos meios católicos de Moçambique, em torno da
criação de um centro de difusão da doutrina islâmica, eventualmente controlável
pelas autoridades coloniais.
Entre a repressão e a tolerância ambivalente
Na década de 30 do século passado, o discurso da ideologia colonial portuguesa
denotou um claro desejo de homogeneização identitária: uma só civilização, uma
só língua, uma só cultura, um só povo. O Islão apenas podia, pois, representar
um desvio intolerável face a esse ideal de coesão absoluta. E é significativo
que as diatribes mais virulentas contra os seus efeitos desnacionalizadores
tenham, por vezes, partido de elites africanas totalmente identificadas com o
projecto ocidentalista ou europeísta do colonialismo português. O que
levanta a necessidade de analisar um outro mapa imaginário, que AbdoolKarim
Vakil focou num dos seus textos (2003, p. 28): aquele em que o sujeito nativo
inventa um pólo identitário negativo ou antagonista, ocupado pelo maometano,
contraposto a um pólo positivo correspondente ao português, europeu e
civilizado, com o qual o sujeito se identifica ao mesmo tempo que denega ou
recalca uma referência mais arcaica, preenchida pela figura do negro
selvagem, não-civilizado, etc. Um artigo de José Cantine, publicado em 1933
como editorial em O Brado Africano, periódico de Lourenço Marques que pretendia
dar expressão às elites nativas locais, é um exemplo de como as acusações
contra o Islão podiam ser proferidas por colonizados que interiorizavam a
ideologia do colonizador e se remodelavam identitariamente de acordo com ele. O
interessante no texto de Cantine é, justamente, o modo como ele confirmava a
centralidade estratégica do ensino e da política da língua dentro da rivalidade
imaginada entre a cultura portuguesa e católica e a cultura islâmica:
[ ] Nós, como nativos que somos, não podemos continuar silenciosos em
face do que se está passando nas escolas maometanas da Colónia de
Moçambique, que não fazem outra coisa senão arabizar o nativo
português.
Quem se der ao trabalho de ir à Malanga ou à Munhuana terá ocasião de
ver os nossos nativos e nativas completamente arabizados, o que não
pode continuar, porque não estamos numa colónia árabe, mas numa
colónia portuguesa de lei. Isto durará enquanto as autoridades
escolares não submeterem as escolas maometanas ao regime das Missões
religiosas, que, além da religião, são obrigadas a nacionalizar e
civilizar os indígenas das suas Missões.
É de absoluta necessidade a exterminação da civilização árabe na
Colónia de Moçambique.
Em Moçambique deve haver uma única civilização, uma única língua – a
língua portuguesa, usos e costumes portugueses, enfim, civilização
portuguesa.
Se ainda há portugueses amigos da sua Pátria devem obstar à
desnacionalização dos nativos da Missões árabes (Cantine, 1933, pp.
14-15).
Importa sublinhar que o epíteto de desnacionalizador não era, no discurso
oficial do colonialismo português, reservado exclusivamente ao Islão. Desde
meados dos anos 20 e no período inicial da década de 30, ele serviu, sobretudo,
para adjectivar as missões estrangeiras, que o mesmo é dizer: protestantes[4],
de tal forma que o esquema retórico das acusações contra estas era praticamente
idêntico ao que, mais tarde, se aplicou às instituições muçulmanas. Numa tal
ambiência, não surpreende que, no final dos anos 30, tenha ocorrido em
Moçambique o episódio em que vamos agora deter a nossa atenção.
Em 13 de Março de 1937, Nicolau Calheiros, Encarregado do Governo em
Moçambique, produziu uma circular destinada aos concelhos e circunscrições do
Niassa[5], na qual invocava os diplomas legislativos n.º 167 e 168, de 1929[6],
considerando que estes facultam às autoridades os meios indispensáveis para
reprimir a propaganda religiosa e impedir o estabelecimento de Escolas sem
licença do Governo. Sendo assim, o Encarregado do Governo instruiu os
administradores locais para que verificassem
[ ] se as mesquitas e escolas estabelecidas na Circunscrição a seu
cargo estão habilitadas com as licenças exigidas pelo artigo 1.º de
cada um desses Diplomas, ordenando, no caso de as não possuírem, o
encerramento de todos os estabelecimentos que à face de auto
competente se mostre estarem funcionando com inobservância da Lei.
Esta circular pretendia, portanto, desencadear uma vaga de encerramentos
compulsivos tanto de mesquitas como de escolas corânicas, julgando assim
contrariar a expansão do Islão no norte de Moçambique. Se a prática do culto
islâmico estava directamente em causa, o alvo principal, porém, parecia ser o
ensino religioso propriamente dito. De resto, os diplomas legislativos
referidos no documento reportavam-se, exclusivamente, às condições desse
ensino. O artigo 1.º do Diploma n.º 167 estipulava que nenhuma missão de
ensino e propaganda religiosa poderá estabelecer-se e funcionar na Colónia de
Moçambique sem prévia licença do Governador Geral, requerida com a indicação da
religião que pretende propagar e do local onde pretende instalar-se, enquanto
o artigo 1.º do Diploma n.º 168 fazia depender o estabelecimento de escolas
particulares de ensino primário para indígenas da autorização do respectivo
Governador do distrito. Alargar esta regulamentação aos templos era,
obviamente, abusivo, mas a circular jogava com a confusão entre mesquitas e
escolas, pressupondo que as primeiras eram apenas um disfarce para as segundas.
Vários muçulmanos recusaram, desde logo, assistir passivamente ao fecho dos
seus lugares de culto. Um grupo residente nas povoações de Nacala e Memba,
oriundo da Índia britânica e vivendo em Moçambique havia longos anos, outro de
Mocímboa da Praia e outro ainda de naturais do Ibo, com nacionalidade
portuguesa, requereram ao Governador da Província do Niassa a reabertura das
mesquitas que tinham sido encerradas[7]. Para isso, utilizaram uma argumentação
sofisticada, invocando o facto de a sua prática de culto ser há muito aceite
pelas autoridades, não violar qualquer norma de ordem pública, estar conforme à
liberdade de religião reconhecida pela Constituição da República Portuguesa e
pelo Acto Colonial e, finalmente, nem sequer ser abrangida pelos famigerados
diplomas legislativos cujas disposições não são aplicáveis a [ ] mesquitas,
que apenas podem ser consideradas como templos da religião mahometana, e nunca
casas de propaganda religiosa como são, por exemplo, as missões católicas e as
protestantes, uma vez que as mesquitas não são propriamente missões de ensino e
propaganda religiosa, não fazendo a catequese como aquelas fazem, por padres
missionários[8]. A pressão sobre as autoridades portuguesas veio também de
outras instâncias, nomeadamente diplomáticas, devido ao facto de os
encerramentos de mesquitas afectarem muçulmanos originários da Índia, que eram
então cidadãos britânicos. Todo este episódio levou ao envolvimento directo do
Cônsul Geral britânico sedeado na Beira que, a 19 de Julho de 1937, endereçou
ao Governo-Geral de Moçambique um ofício onde solicitava esclarecimentos sobre
o encerramento da mesquita utilizada pela Comunidade Maometana Britânica de
Porto Amélia, na sequência de um telegrama que um membro desta associação lhe
tinha enviado[9].
Entretanto, do lado dos administradores de circunscrição, a ordem do
Encarregado do Governo foi acolhida de forma desigual. A sua anuência à
circular variou consoante a interpretação dos diplomas legislativos nela
citados. Apesar de a maioria dos funcionários locais não ter acatado a ordem ou
tê-la aplicado tardiamente, a decisão de encerrar vinte e quatro lugares de
culto islâmico acabou por afectar mais de 30 mil fiéis, a acreditar no ofício
que, sobre este assunto, o Governador do Niassa, João de Figueiredo, enviou ao
Governador-Geral em 10 de Novembro de 1938[10].
Alguns funcionários mais zelosos prontificaram-se a cumprir as instruções.
Assim sucedeu, por exemplo, na Circunscrição Civil de Meconta, cujo encarregado
identificou quatro indígenas arabizados que se entregavam a propaganda
desnacionalizadora[11]. Para além de ter ordenado a detenção destes últimos, o
zelo do administrador foi ao ponto de apreender não apenas livros em guzarate
e ardósias escritas por alunos, mas até mesmo tamboretes indianos – tudo o
que ostentasse, pois, a marca de uma alteridade identitária. A justificação
fornecida repetia a estrutura argumentativa de um certo discurso islamofóbico,
segundo a qual o Islão era basicamente um jogo de aparências em que nada era o
que parecia. Nesta óptica, as escolas corânicas não podiam senão participar
dessa estratégia de dissimulação:
Não se trata, positivamente, de escolas ou missões religiosas
estáveis, expressamente previstas nos dois Diplomas Legislativos,
n.ºs 167 e 168, mas sim de indivíduos isolados, perniciosos (charifos
e seus delegados) que, disfarçadamente, às ocultas, vão fazendo em
arredadas mesquitas ou palhotas adaptadas, propaganda
desnacionalizadora entre os nativos das imediações, ensinando-os e
impelindo-os para os usos e costumes mahometanos, indivíduos estes
que amanhã são novos auxiliares, charifos propagandistas do credo, e
assim nossos detractores e inimigos, na parte referente ao caso
religioso, social e até político.
À estratégia de dissimulação dos muçulmanos, que pretendiam fazer passar por
meros templos o que, na verdade, eram escolas para inculcação da fé islâmica,
havia que responder com medidas repressivas indiferenciadas. Dir-se-ia não
haver neste raciocínio uma destrinça entre o Islão genuíno, puramente
religioso, e um Islão falso ou instrumentalizado para desnacionalizar os
nativos. Segundo o administrador colonial em questão, um e o outro eram, de
facto, o mesmo. De tal modo que ensinar o Corão e impelir os nativos para a
cultura mahometana era, desde logo e por si só, criar os nossos futuros
detractores e inimigos cujos comportamentos só podiam espelhar a essência do
Islão: a sua falsidade de base.
Outros administradores reagiram à circular n.º 12/6 com relutância e diversas
objecções, fruto de uma percepção mais próxima da realidade das populações
muçulmanas, mas também de uma leitura mais afinada dos diplomas legislativos
n.ºs 167 e 168. O responsável pela Circunscrição Civil de Mucojo, por exemplo,
confirmou em Agosto de 1937 ter mandado encerrar todas as mesquitas, em
cumprimento do seu dever de funcionário, mas asseverava tê-lo feito contra a
sua consciência, pois essas mesquitas mais não eram do que míseras palhotas
onde o indígena pratica ordeiramente as suas devoções[12]. Aprofundando a sua
postura crítica, o autor desta nota estabeleceu uma analogia entre o
descontentamento dos nativos muçulmanos face à medida tomada e o que a nós
católicos sucederia se nos fechassem as igrejas. E note-se que aqui a
distinção entre o in-group do nós e out-group dos outros era feita para
sublinhar uma partilha identitária e não uma diferença intransponível.
Este funcionário chamou ainda a atenção para o erro estratégico inerente à
política repressiva que estava a ser seguida, erro que acabaria por levar à
desnacionalização dos nativos que, supostamente, se pretendia evitar: Dada a
afinidade de raças e comunhão de crenças e ideias com a gente do Tanganica,
receio muito que um ou outro xarife abandone as terras e que leve atrás de si
os indígenas que lhe são mais dedicados. Previsão bastante razoável se
pensarmos no exemplo do Xehe Abudo Michongué, o mais importante dignitário
islâmico do Niassa, o qual se tinha refugiado no Malawi, com cerca de 10 mil
fiéis que o acompanharam no exílio, provavelmente por causa de um simples mal-
entendido, já que as autoridades, incluindo a PIDE, nada tinham contra ele
(Vakil, Monteiro & Machaqueiro, 2011, pp. 245-246)[13].
A 20 de Agosto de 1937, o Encarregado do Governo que tinha estado na origem de
todo este imbróglio sentiu a necessidade de se justificar perante o Director
dos Serviços de Administração Civil[14]. O arrazoado revela que a sua
iniciativa fora inspirada por uma concepção assumidamente hostil ao Islão. Este
documento requer uma análise demorada, sobretudo no parágrafo em que o autor
plasma bem a sua visão, movida por uma rejeição emocional da religião islâmica:
Não procuramos nem pretendemos impedir que os mahometanos pratiquem o
culto da sua religião nem obstamos a que mantenham escolas da sua
língua destinadas somente à educação dos seus descendentes, desde que
se subordinem às regras que as leis vigentes impõem para tais casos.
Mas não consentiremos que transformem os seus templos e as suas
escolas em sinagogas de catequese onde o nosso preto é atraído para,
à sombra de uma religião que não é a nossa, lhe incutir no ânimo
princípios e ideias contrárias ao nosso sistema político, aos nossos
hábitos e costumes, aos nossos métodos de colonização, à nossa
economia e a tudo, enfim, quanto não seja enriquecer a grei maometana
à custa do suor alheio.
Muito poderia ser dito acerca desta passagem. Em primeiro lugar, o seu anti-
semitismo larvar, patente na alusão à sinagoga, que talvez não se deva apenas a
uma confusão decorrente da dificuldade em diferenciar as religiões. Aliás, a
acusação feita ao muçulmano – focalizado apenas no enriquecimento próprio à
custa do suor alheio – é perfeitamente simétrica das acusações de cobiça
feitas aos judeus. O que mostra uma certa repetição e monotonia na estruturação
das representações identitárias: o esquema é relativamente invariável, mudando
apenas os alvos que os preenchem.
No imaginário de Calheiros o maometano representa o grande Outro, a
alteridade absoluta e negativa da qual o português se diferenciava
totalmente. Em contrapartida, o preto é visto como sendo nosso: não uma
parte de nós, mas uma propriedade nossa que, paternalisticamente, o
colonizador português deve tutelar e proteger – caracterização identitária
oscilante, já que, num trecho posterior, os africanos aparecem identificados
como portugueses das Colónias e Calheiros chega a falar do negro português.
A protecção de que este seria objecto procurava, alegadamente, defendê-lo da
influência negativa exercida pela religião islâmica. Tal como noutros
documentos que assinalámos atrás, Calheiros assimila o Islão a um estratagema
de falsidade ou de dissimulação, traços que atribui à própria afinidade do
islamismo com os usos e costumes africanos. Outros autores tinham
sublinhado essa afinidade para desqualificarem, em simultâneo, o povo negro e o
Islão, considerando que ambos partilhavam traços de inferioridade intelectual e
cultural (Machaqueiro, 2012a, pp. 41-43). Para Calheiros, contudo, dir-se-ia
que tal afinidade nada mais era do que simples estratégia de simulação dos
muçulmanos orientais (ou seja: não-ocidentais, não-portugueses), feita para
atrair os incautos africanos:
É na religião que o oriental firma o plano em torno do qual gira toda
a sua actividade político-económica e por essa razão sente absoluta
necessidade de chamar o indígena ao credo que professa simulando ao
mesmo tempo adaptar-se aos seus usos e costumes, para mais facilmente
poder explorá-lo.
Daí a necessidade de o colonizador proteger os africanos, declarada numa
passagem onde regressa a diabolização do muçulmano que converte o trabalho
alheio em ouro (a imagem que Calheiros constrói do muçulmano é, em termos
psicanalíticos, claramente anal-sádica) e o tópico do Islão
desnacionalizante:
Temos por nosso lado o direito indeclinável de nos defender e
proteger os indígenas contra a ganância desmedida destas aves de
rapina que não se contentando em converter o trabalho alheio em ouro
para levarem para as terras que já foram nossas, ainda têm o arrojo
de pretender desnacionalizar os portugueses das Colónias, tentando,
teimosamente, divulgar entre eles uma língua que não conhecemos e
submetê-los espiritualmente ao freio duma religião que nos repugna
aceitar não só por índole e por educação, como também porque se a tal
acedêssemos afrontaríamos gravemente a memória dos nossos maiores.
Seguidamente, surge um argumento que, colidindo com a liberdade de religião
afirmada na Constituição de 1933[15] e no próprio Acto Colonial[16],
denunciava, afinal, os limites destes textos jurídicos quando confrontados com
a violência inerente ao paternalismo colonial. Uma violência que consistia em
produzir e confirmar a subalternidade do colonizado:
O negro português é tutelado porque a sua condição social assim o
determina. Não podemos, pois, reconhecer-lhe o direito de se integrar
em credos religiosos para nós enigmáticos, motivo porque não
perfilhamos a ideia em lhe facultar liberdades de semelhante natureza
e antes entendemos que se nos impõe a obrigação, dentro da função
tutelar que nos cumpre exercer, de o conduzir pelo caminho que
consideramos mais acessível à realização do nosso objectivo
colonizador, mais adequado aos nossos interesses – que colocaremos
sempre em primeiro plano, e mais compatível com os nossos
incontestáveis direitos de soberania dos quais nunca abdicaremos
A liberdade religiosa era, deste modo, restringida à religião percepcionada
como instrumental para a preservação do domínio português em África:
Admitimos todas as ideias religiosas dentro da mais ampla liberdade,
condicionada pela mais perfeita ordem; mas combateremos sem tréguas
os que trabalhem no sentido de diminuir o Poder e o Prestígio da
nossa autoridade ou enfraquecer os alicerces do nosso domínio.
Assim sendo, os portugueses das Colónias, na sua condição de crianças que
ainda não atingiram a maioridade, não têm direito a escolher a religião. Esta
ser-lhes-á imposta pelos seus maiores, os portugueses (adultos) da Metrópole:
Não, Exmo. Senhor, os portugueses das Colónias não podem conhecer nem
praticar outra língua sem que primeiro conheçam e pratiquem a
portuguesa; e não podem ter outra religião que não seja aquela que
amparou os portugueses na descoberta e conquista de mais de metade do
mundo, enquanto não atingirem a maioridade. E quem com isto se não
conformar, tem aberto o caminho de saída.
Percebe-se então toda a intencionalidade e toda a imaginação identitária que
subjazem à circular n.º 12/6: a identidade positiva, superior e modelar, a do
português católico, branco e adulto, está necessariamente encarregue de
tutelar a identidade subalterna e inferior, a do português das colónias,
negro-africano em estado de menoridade, ou seja, de infantilidade – sabendo
nós que a criança foi, desde os primórdios dos encontros coloniais entre
europeus e os povos sul-americanos e africanos, uma das encarnações do
selvagem (Jahoda, 1999, pp. 131-163).
Este documento do Encarregado do Governo foi, talvez, um último gesto de
obstinação no meio de um mal-estar cada vez maior. Em Outubro de 1938, o novo
Governador do Niassa, o então Capitão-Tenente João de Figueiredo, decidiu
autorizar a reabertura das mesquitas e a devolução dos livros e quadros que
tinham sido confiscados, aconselhando os maometanos a evitarem manifestações
religiosas fora das mesquitas, desde que não se trate das inerentes aos
enterros, e induzindo, cuidadosamente, a que maometanos indianos e
maometanos indígenas praticassem o culto em mesquitas separadas[17] – uma
medida curiosa, pois parece antecipar, com trinta anos de antecedência, a
política de separação e isolamento dos muçulmanos africanos em relação aos
asiáticos que as autoridades portuguesas tentarão concretizar a partir de
meados da década de 60.
A justificação de João de Figueiredo para a sua decisão desautorizou por
completo o Encarregado de Governo Nicolau Calheiros, apelidando a ordem que
este dera de precipitada, sem o mais ligeiro estudo da situação, ilegal e
contraproducente. Mas os seus argumentos principais foram de natureza
política, reconhecendo já a posição delicada e frágil do poder português numa
área onde o Islão representava uma força cultural, mas também política, de
grande relevância. Também nisto Figueiredo antecipou uma percepção de que só em
finais dos anos 60 – portanto, tardiamente – a Administração colonial tentará
retirar todos os seus frutos.
Num certo sentido, ele foi um precursor do discurso ambivalente que Sarmento
Rodrigues desenvolveu a propósito do Islão nas colónias portuguesas enquanto
Governador-Geral da Guiné. Numa famosa conferência de 1948 sobre a inserção dos
muçulmanos na ordem colonial portuguesa, Sarmento Rodrigues ora embatia nas
desconfianças que pareciam intrínsecas ao património das dominações coloniais
exercidas sobre povos muçulmanos, ora apelava à unidade identitária com estes,
ao ponto de ser, porventura, o primeiro a usar publicamente o termo muçulmanos
portugueses (Rodrigues, 1948, p. 231; Vakil, 2003, p. 268). Ora, esta mesma
ambivalência tinha já percorrido o discurso de João de Figueiredo. Numa sua
entrevista publicada a 20 de Dezembro de 1941 no jornal Guardian de Lourenço
Marques, ele afirmou, por um lado, que sempre que tem havido tratamento
diferente especialmente em relação aos mahometanos condutores das cerimónias
religiosas, eles têm correspondido a todos os desejos das autoridades, tendo
levado os indígenas a fazerem voluntariamente o que doutro modo não fariam tão
facilmente[18]. E reconhecia que, se até há pouco tempo só o indígena
cristão, e, mais em especial ainda, o católico se dizia português, tinham
entretanto surgido milhares de mahometanos que se dizem portugueses
mahometanos. Não que João de Figueiredo admitisse serem eles, de facto,
portugueses. Mas, pelo menos, não evitou constatar que os muçulmanos podiam
assumir uma identidade portuguesa. Mesmo assim, a sua conclusão mantinha-se
dentro do cânone do uniformismo identitário próprio da ideologia colonial dos
anos 30, que se prolongou ainda durante as duas décadas seguintes: Em meu
entender, olhada a questão sem paixão religiosa, haveria só vantagem em que o
catolicismo fosse a religião única nestas paragens, porque, sem unidade
religiosa, difícil será haver unidade de portuguesismo. Durante muito tempo,
esta posição oscilante foi o melhor que o colonialismo português teve para
oferecer em alternativa à islamofobia pura e dura.
Escolas corânicas e política da língua
Como já foi referido, as autoridades administrativas tiveram um longo braço de
ferro com as missões protestantes que se traduziu também num esforço para lhes
impor o uso da língua portuguesa. Esse esforço teve, por sua vez, um
equivalente no relacionamento do poder colonial com as escolas corânicas. Daí
que diversos documentos oficiais, emanados tanto dos poderes centrais de Lisboa
como das autoridades locais nas colónias, insistissem no ensino obrigatório do
português como estratégia para colocar, de forma mais eficaz, as populações
colonizadas sob a alçada orientadora de Portugal e para impedir que fossem
atraídas pela propaganda anticolonial, a qual se supunha ter ligações à
doutrinação islâmica. Nos anos 60, perante um ambiente internacional hostil ao
sistema colonial e a emergência de movimentos independentistas nas colónias,
este problema adquiriu uma importância renovada para as autoridades
portuguesas. A isto acresce a transição, ainda muito gradual, para uma política
de atracção ou conquista das populações muçulmanas com o objectivo de as
isolar, imunizando-as contra influências externas, potencialmente
subversivas. Jogava-se assim num quadro em que os motivos religiosos podiam
ter uma tradução política, favorável ou desfavorável à ordem colonial
portuguesa. Um documento produzido pelo Ministério do Ultramar em inícios de
1960, reportando-se à situação da Guiné Portuguesa, reflectiu boa parte destas
preocupações e das mudanças que elas induziam:
A nossa Província da Guiné está a ser sujeita a uma propaganda
generalizada, utilizando os temas religiosos, por parte da República
da Guiné que, embora crescente, não tem obtido os resultados
pretendidos.
Esta situação parece aconselhar a maior cautela na política religiosa
a seguir na Guiné porquanto a população islamizada tem um mais
elevado nível de cultura e melhores qualidades guerreiras.
Torna-se essencial procurar captar a população islamizada sem exercer
pressões religiosas sobre ela, as quais têm sido até agora ineficazes
no sentido de obter a sua conversão ao cristianismo[19].
O responsável por este documento atribuía uma importância especial à política
de ensino nessa estratégia de captação das populações colonizadas e, em
particular, dos muçulmanos: O ensino primário é um dos pontos fundamentais
desta questão, visto que os filhos dos indígenas islamizados são obrigados a
frequentar as escolas das missões e da sua recusa resultam efeitos nocivos
sobre o ponto de vista Nacional. E acrescentava que o problema também se
colocava em Moçambique, exigindo atenção e uma resposta urgente.
Em 1964, uma nota dos Serviços de Instrução de Moçambique sugeriu que deveria
ser exigido aos mualimos a prova de estarem habilitados a ensinar português.
Mas observava, num tom visando temperar propensões mais repressoras, que não
se deveria proibir o uso do árabe, tanto mais que é a língua sagrada dos
islâmicos. Deve-se exigir é o ensino da catequese em português[20]. Um ano
antes, a Administração do Concelho de Nampula tinha proposto a incorporação
(compulsiva?) das escolas muçulmanas no sistema de ensino português enquanto
meio de contrariar aquilo que era percepcionado como tendências centrífugas de
tais escolas face ao programa assimilacionista:
Tenta-se manter uma vigilância junto das mesquitas, tarefa que, como
já disse em Perintreps anteriores, é bastante difícil devido à
impenetrabilidade do meio. Outro problema que julgo interessante
abordar aqui é o do funcionamento das escolas Maometanas. Embora não
desconheça o melindre político deste assunto, julgo que estas escolas
deviam ser regulamentadas e integradas no nosso sistema de ensino.
Desta forma poder-se-ia exercer sobre elas uma fiscalização com
alguma eficiência, que impedisse de certo modo a tarefa de
desnacionalização que não podem deixar de ter[21].
O despacho exarado nesta comunicação pelo Governador do distrito de Moçambique
ia mais longe: Quanto ao ensino nas escolas maometanas já tive oportunidade de
propor, pelos Serviços de Instrução, a sua regulamentação, na qual fosse
incluída a obrigatoriedade de o ensino e a catequese serem feitos
exclusivamente em português.
Em Fevereiro de 1966, o próprio Suleiman Valy Mamede salientou a necessidade
do ensino obrigatório da língua portuguesa nas escolas dependentes das
associações maometanas de Moçambique, usando a sua posição de funcionário do
Ministério do Ultramar para influenciar a orientação dessas organizações,
atitude que veio a aprofundar, depois de 1968, enquanto primeiro Presidente da
Comunidade Islâmica de Lisboa[22]. O seu discurso reiterava a argumentação
oficial do regime:
Não se pode compreender que o ensino da língua portuguesa seja
completamente descurado nessas escolas, a favor do ensino exclusivo
do árabe. Convém salientar que essas escolas são portuguesas e a
língua é a grande realidade que se prolonga através das gerações,
pois há muitas formas de acção psico-social utilizadas nos
territórios ultramarinos, porém a mais importante, é sem dúvida, o
ensino da língua portuguesa[23].
Apesar de todos estes conselhos e instruções, os dados sugerem que a
Administração colonial foi incapaz de contrariar a expansão do suaíli ou do
árabe e que a língua portuguesa se mostrou cronicamente minoritária, se não
mesmo residual. Em Julho de 1968, Fernando Amaro Monteiro, o mais competente
islamólogo dos Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de
Moçambique (SCCIM), assinalou a irrelevância do português face a outras línguas
como um dos problemas maiores que a Administração tinha de enfrentar:
Intensifica-se a divulgação do swahili como língua veicular africana,
ultrapassando mesmo os quadros do Islam negro, onde já se generalizou
largamente.
No que se refere à Província de Moçambique, o fenómeno não deixa de
sentir-se e apresenta-se mesmo, na opinião do signatário, como
susceptível de causar sérios problemas à difusão da língua e da
cultura portuguesa [ ][24].
Embora circulassem várias sugestões para promover o português como língua
principal, tudo indica que, em finais da década de 60, esta era já uma causa
perdida dentro de um sistema que, durante a sua vigência, nada fizera para
estimular o acesso dos nativos ao ensino, optando por relegar essa tarefa
para missões católicas cuja rede era exígua e cada vez mais desacreditada junto
das populações.
A questão do centro islâmico e o fantasma da Universidade Muçulmana
Em 1973, à beira do colapso do sistema colonial, persistiam os velhos conflitos
em torno das escolas corânicas, sujeitas à acusação recorrente de serem focos
desnacionalizadores e anti-portugueses. Em Março do ano anterior, a Diocese
de Nampula, a cargo do Bispo D. Manuel Vieira Pinto, queixara-se à Secretaria
Provincial da Educação de Moçambique de que as autoridades administrativas e as
tradicionais não estavam a encaminhar as crianças em idade escolar para os
postos de ensino das missões católicas[25]. Em resposta, o Secretário
Provincial da Educação, Adelino Augusto Marques de Almeida, emitiu em Janeiro
de 1973 uma Informação[26] na qual, sem deixar de admitir a quota-parte de
responsabilidade que as missões tinham no absentismo dos alunos, por não
oferecerem um mínimo de condições pedagógicas, descrevia um quadro que não se
alterava desde, pelo menos, os anos 50: as famílias muçulmanas tinham
relutância em enviar os seus filhos às escolas cristãs, preferindo-lhes as
corânicas que, não ministrando o ensino Primário, privam as crianças desse
elemento de cultura e de formação portuguesa, e que, para além do estudo do
Corão, ensinavam desde o árabe ao suaíli, passando pelo urdu e pelo guzarate,
com exclusão do português. Baseando-se em informações transmitidas pela Diocese
de Nampula, o Secretário Provincial receava que as tensões entre católicos e
muçulmanos degenerassem numa confrontação violenta entre credos religiosos,
já que os muçulmanos acusavam abertamente os portugueses de serem os seus
inimigos tradicionais, de as suas escolas oficiais não passarem de escolas
estrangeiras, ao ponto de uma escola da Missão do Mossuril ter sido
incendiada.
Instado pelo Governador-Geral, Pimentel dos Santos, a produzir um parecer sobre
esta situação, Fernando Amaro Monteiro – que, nessa altura, já não trabalhava
nos SCCIM, mas se mantinha como consultor do Governo-Geral – sugeriu a criação
de centros oficiais de ensino corânico, onde se pudesse fazer a formação de
elementos em moldes consentâneos para com o interesse nacional[27]. Na medida
em que a frequência desses centros controlados pelas autoridades portuguesas
representasse promoção social para os seus alunos, seria possível que aqueles
conseguissem rivalizar com as muitas centenas de escolas corânicas
improvisadas em palhotas ou sob a copa de árvores (Monteiro, 1993a, p. 87).
Claro está que, no contexto de desagregação acelerada do poder português,
nenhum seguimento foi dado a semelhante sugestão.
De algum modo, a ideia avançada por Amaro Monteiro harmonizava-se com o seu
projecto de instituir em Moçambique um centro islâmico maior, capaz de
certificar a transmissão de conhecimento doutrinário e cuja visibilidade
permitisse, a breve trecho, instrumentalizá-lo de modo a colocar os muçulmanos
do norte de Moçambique ao lado dos portugueses contra a FRELIMO[28]. A questão
do centro islâmico prende-se, portanto, com o tema do nosso artigo, visto que
remetia para o problema do ensino e do seu enquadramento político. Neste caso,
o assunto em foco não era tanto o das escolas corânicas, mas sim o que poderia
resultar da criação de uma forma de ensino islâmico superior em Moçambique.
Escusado será dizer que a simples menção desse tema bastou para despertar a
agressividade dos meios católicos mais conservadores, os quais não escondiam o
seu ressentimento pela mudança táctica das autoridades portuguesas
relativamente ao Islão. Era, contudo, irónico que esta tivesse sido, em grande
parte, inspirada pelos gestos ecuménicos de sectores da Igreja mais abertos ao
espírito do Concílio Vaticano II, como foi o caso da aproximação de D. Eurico
Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral (actual Lichinga) aos muçulmanos da sua
diocese em meados dos anos 60. Recorde-se que, nesse período, o jovem Bispo,
entusiasta das ideias do Concílio Vaticano II, empreendera vários gestos de
diálogo com o Islão, criando condições para estar presente em diversas
cerimónias islâmicas, mormente na inauguração de mesquitas, oportunidades que
sempre aproveitava para proferir discursos ecuménicos cuidadosamente
elaborados, entre os quais se destaca a famosa Carta Fraterna aos Muçulmanos da
sua diocese, de Setembro de 1966. Esta política de aproximação, que teve o
apoio expresso da Santa Sé[29], aparecia em consonância com a imagem renovada
que o Estado português queria projectar na arena internacional, ao reclamar-se
de um colonialismo de rosto humano e inter-racial[30]. Contudo, nada disso
impediu que os elementos mais conservadores da Igreja Católica, encarando
qualqueraggiornamento com suspeita, tentassem minar os avanços feitos na
direcção de uma população muçulmana que neles continuava a suscitar sentimentos
de hostilidade. E não surpreende que o Bispo de Vila Cabral se queixasse, em
conversa privada com Jacques Honoré, de que o Colégio Episcopal de Moçambique
estava bastante recuado em relação à posição que ele havia tomado face aos
islamizados da sua diocese e de que os seus colegas estariam, sobretudo,
inclinados a desaprová-lo e a temer as consequências da sua acção[31].
Anos mais tarde, a polémica com os sectores católicos mais recuados só
poderia subir de tom quando as iniciativas para orientar a educação islâmica
pareceram partir das comunidades muçulmanas propriamente ditas e não da
Administração portuguesa. Por diversas vezes circularam rumores que,
provavelmente, mais não eram do que boatos destinados a condicionar a política
oficial para com o Islão. Ilustração disto mesmo é a carta de Mons. Paulo
Machado, residente em Nampula, datada de 4 de Outubro de 1967, endereçada ao
Governador-Geral e que parece ter tido larga difusão na Província.
Pronunciava-se em termos violentos sobre uma notícia publicada no Diário de
Moçambique que anunciava a criação de uma Universidade Muçulmana na Ilha de
Moçambique[32]. Desenvolvendo uma teoria da conspiração, a carta atribuía
semelhante notícia a uma traição anti-portuguesa, cujo ponto de partida
estaria
num traidor a Portugal que dá pelo nome de Dr. Valy (Selimane Valy
Mamede) [ ]. Rapaz extraordinariamente ambicioso e
extraordinariamente inteligente, que, com indevidas protecções, se
anichou no Ministério [do Ultramar], e, dali conduz toda uma
propaganda contra a nossa posição em Moçambique.
Ele é o mandatário do Cairo e de quejandos, e, não tendo podido vencer-nos
pelas armas, pelo terrorismo, tentam agora introduzir dentro da nossa cidade'
o cavalo de Tróia' com a coisa inocentíssima de uma Universidade Muçulmana'
[33].
Tais vitupérios, expressamente dirigidos ao futuro presidente da Comunidade
Islâmica de Lisboa, ilustram bem as resistências que o protagonismo de Valy
Mamede, enquanto muçulmano, despertava nos meios mais conservadores e
islamofóbicos, apesar de ele, antes do 25 de Abril de 1974, sempre ter
procurado inscrever a sua actuação na ordem ideológica do Estado Novo
(Machaqueiro, 2011b).
Para além disso, a carta transcrevia os argumentos de um preto evoluído, de
origem protestante, muito bom português, de inteligência lúcida, sem lhe
mencionar o nome – mas que se apurou depois tratar-se de Assahel Jonassane
Mazula, vogal do Conselho Legislativo da Província de Moçambique, católico e
não protestante como a carta afirmava[34]. Vale a pena determo-nos nessa
argumentação, pois ela toca em vários pontos caros àqueles que, dentro do
aparelho administrativo, se opunham à constituição de um centro que
proporcionasse, em Moçambique, um ensino corânico de alto nível. Não irei
cobrir a totalidade das teses apresentadas, mas focarei as que interessam
directamente ao tema deste artigo.
A primeira afirmava que, não existindo ainda uma Universidade Católica em
Moçambique, a criação de uma Universidade Muçulmana na Província ia provocar
uma grande reacção pela parte de toda a gente sã de Moçambique, subentendendo-
se que gente sã correspondia aos católicos ou aos cristãos em geral, ficando
os muçulmanos automaticamente excluídos dessa categoria identitária. Outro
argumento sustentava que, não possuindo os muçulmanos desse território escolas
do ensino primário, secundário, médio e superior, a instauração de uma
universidade sem aquelas equivalia a uma casa sem fundamentos e alicerces. O
autor lançava, a seguir, uma acusação de ignorância em matéria de doutrina
islâmica aos sacerdotes muçulmanos de Moçambique[35], que não se encontram
em condições de frequentarem para já qualquer espécie de escola superior, pois
apenas decoram umas passagens do Corão de interesse imediato e nada mais –
caracterização que reflectia as percepções generalizadas relativamente ao
Islão negro[36]. Estas eram teses de carácter prático. Seguidamente, o texto
de Assahel Mazula, transcrito pelo padre Machado, passava à argumentação
propriamente política. Segundo ele, a religião maometana tende para uma
autonomia religiosa-política-administrativa, pelo que criar uma universidade
seria a mesma coisa que oferecer-lhes uma bomba atómica para nos guerrear
amanhã. Depois, o velho lugar-comum: Há, certamente, uma influência
desnacionalizante, porque a religião muçulmana é desnacionalizadora.
Acrescentava, porém, uma ressalva curiosa: como os maometanos de Moçambique
se pautavam pela ignorância e as autoridades administrativas estavam em boas
condições de a controlar, essa influência desnacionalizadora era nula nos
nossos territórios. Ora, uma eventual Universidade Muçulmana podia inverter
esta situação favorável aos interesses portugueses, pois iria formar doutores
islâmicos potencialmente incontroláveis, já que é mais fácil de controlar 1
milhão de analfabetos do que 5 doutores formados.
É neste ponto específico que, a nosso ver, a argumentação de Assahel Mazula se
articula com o debate em torno das vantagens ou desvantagens do estabelecimento
de um centro islâmico em Moçambique, debate que atravessava, em surdina, alguns
sectores do aparelho colonial, particularmente os seus serviços de
intelligence, responsáveis pela definição das tácticas psico-sociais de
conquista das populações[37]. Este debate assentava no binómio polarização/
despolarização, que designava uma escolha entre um cenário no qual os
muçulmanos – e outras comunidades – se concentravam (se polarizavam) em redor
de líderes influentes ou carismáticos e um cenário onde as populações se
encontravam muito mais dispersas (despolarizadas), distribuindo a sua
fidelidade por centros variados, locais e de menor vulto. Os estrategas dos
SCCIM dividiram-se, genericamente, entre duas opções: promover a polarização
dos muçulmanos à volta de centros que as autoridades pudessem controlar
facilmente e dos quais retirariam vantagem, ou fortalecer a suposta tendência
dos muçulmanos de Moçambique para a despolarização. Esta última via foi
defendida pelo Major Fernando da Costa Freire, um dos vários directores que
estiveram à frente dos SCCIM entre 1961, ano do seu estabelecimento, até à sua
dissolução em 1974. Ele baseou o argumento no pressuposto de que a chamada
despolarização era o principal atributo dos islamizados negros ou
africanos, considerados a maioria dos que compunham o número de fiéis ao Islão
em Moçambique. Costa Freire acreditava que esse fenómeno desencorajava a
unidade ou coesão desse sector da população moçambicana, levantando desejáveis
obstáculos à sua mobilização pelo movimento anticolonial: A ausência de uma
subordinação hierárquica formal, transforma cada elemento da hierarquia numa
entidade autónoma o que, aliado à tendência do negro para preservar a autonomia
que porventura detenha, dificulta o levantamento, pela subversão, da massa'
negra islamizada[38]. A tendência contrária, a verificar-se, seria altamente
indesejável na perspectiva do poder português, pois potenciaria as inclinações
subversivas dos islamizados.
Ora, estes receios ligavam-se à problemática do ensino religioso. A Informação
emitida por Costa Freire afirmava que o recrutamento de muçulmanos para
actividades subversivas anticoloniais em Moçambique era, basicamente, efec-
tuado por aqueles a quem fora reconhecida uma dignidade especial devido aos
conhecimentos que detinham em doutrina islâmica. Costa Freire localizava na
Tanzânia os centros em que os dignitários muçulmanos de Moçambique tinham
recebido os seus ensinamentos, e concluía que os laços formados durante o
ensino religioso se prestavam a colocar os antigos discípulos debaixo da alçada
dos seus mestres em todas as questões, tanto religiosas como políticas.
Suspeitava-se, pois, que centros islâmicos tanzanianos cooptassem dirigentes
muçulmanos em Moçambique para actuarem contra o poder colonial português[39].
Este último aspecto relacionava-se também com outra vertente do argumento de
Assahel Mazula: uma Universidade Muçulmana em Moçambique, enquanto
estabelecimento de ensino internacional, iria atrair inevitavelmente muitos
doutores islâmicos de todas as partes do mundo muçulmano: Cairo, Zanzibar,
Nigéria, Argélia, etc., forjando assim uma aproximação cada vez maior entre os
nossos muçulmanos e doutores muçulmanos do Estrangeiro. Sujeita a importar
estes últimos, dada a inexistência de moçambicanos com formação islâmica
superior, a universidade estaria a importar, ao mesmo tempo, a maior
influência desnacionalizante[40]. Traduzindo isto para a linguagem conceptual
dos SCCIM, tal significava polarizar os muçulmanos de Moçambique em torno de
dignitários islâmicos localizados no exterior, retirando-os à esfera de
influência portuguesa para os colocar debaixo de uma cultura político-religiosa
de cunho transnacional, potencialmente inimiga do colonialismo.
A solução, mais ou menos consensual entre as autoridades portuguesas, para
obviar à influência islâmica externa consistiu em portugalizar o Islão das
colónias, uma saída considerada impensável trinta anos antes (Bonate, 2011, pp.
36-39). Isso obrigava a isolar e a afastar os muçulmanos de Moçambique, em
especial os de origem africana ou negra, dos centros islâmicos exteriores,
sobretudo os de feição asiática, sempre suspeitos de inclinações
subversivas[41]. Tratava-se de uma estratégia que já tinha marcado a política
islâmica noutros quadrantes, nomeadamente na África Ocidental Francesa
(Gouilly, 1952, pp. 253-254). A separação ou segregação do elemento africano
em relação ao asiático constituía o primeiro passo para a desejável
portugalização da massa islâmica, entretanto imunizada face a influências
exteriores. Este objectivo condicionou o modo como as autoridades portuguesas
conceberam o formato ideal da educação religiosa dos muçulmanos de Moçambique.
Não se procurou, longe disso, que estes adquirissem plena autonomia. Na
verdade, visou-se a finalidade exactamente oposta: fornecer aos líderes
comunitários muçulmanos apenas o mínimo necessário para se deixarem accionar
pelas autoridades coloniais e se oporem a influências externas. Só à luz desse
desígnio se pode entender a receita de uma autonomia calculadamente mitigada,
receita dominada pela imagem racista do negro boçal:
Para se conceder aos elementos da hierarquia islâmica da Província a
preparação suficiente ao fomento da despolarização, não se considera
necessário que aquela seja de nível elevado mas apenas de nível
compatível com o estádio cultural da massa. Deixados entregues à
sua boçalidade, tenderão para a polarização, serão mais receptivos às
influências externas e poderão constituir-se em factores
desnacionalizantes[42].
Se estes propósitos eram consensuais no seio da Administração portuguesa, não
havia, contudo, um pleno acordo sobre a melhor opção para instrumentalizar as
comunidades muçulmanas e os seus dignitários em particular. Uns defendiam uma
solução claramente centralista (ou polarizadora), como Eugénio de Castro
Spranger, Adjunto dos SCCIM, que aconselhou o estabelecimento em Moçambique de
um centro para a doutrinação islâmica que dispensasse a dependência do
estrangeiro[43]. Outra versão desta ideia apontava para a criação de um centro
de ensino em Moçambique, dedicado à transmissão e certificação do saber
islâmico, que pudesse ser dirigido por Said Bakr, o prestigiado khalifa que se
seguira a Ba Hassan como líder da confraria Qadiriyya Sadat, na sequência de um
tumultuoso processo de sucessão (Bonate, 2007, pp. 103-106), e ao qual fora
erradamente atribuído o título de Mufti no documento anónimo que concebia esta
possibilidade[44]. De acordo com esta proposta, os principais dignitários do
Islão em Moçambique seriam obrigados a frequentar o dito Centro de Estudos
Islâmicos, de modo a que dos futuros nenhum pudesse pregar e actuar sem ter
credenciais assinadas pelo Mufti [Said Bakri] e por ali emitidas. O documento
sugeria mesmo a arquitectura institucional do referido Centro e o tipo de
controlo a exercer sobre ele.
Esta ideia de concentrar o ensino e a certificação do islamismo num único
centro situado na Ilha de Moçambique, como instrumento para melhor controlar e
accionar os muçulmanos da região, circulava por essa altura entre vários
responsáveis das instâncias administrativas. Ela apareceu em destaque,
nomeadamente, num importante relatório produzido por Melo Branquinho para os
SCCIM (Alpers, 1999, p. 177). Houve precedentes ilustres: a fim de contrariar
as mensagens nacionalistas e anti-imperialistas, com fundo islâmico, emanadas
do Cairo, as autoridades coloniais britânicas do Quénia e da Tanzânia tinham
presidido, em finais dos anos 40, à criação da Sociedade para a Promoção dos
Muçulmanos da África Oriental e contribuído para financiar o Instituto de
Ensino Muçulmano de Mombaça[45], ambas as instituições fundadas com o
patrocínio do Aga Khan e do Sultão de Zanzibar. A última, concebida à escala da
África Oriental, embora não estivesse especificamente voltada para a
doutrinação religiosa, proporcionando antes um ensino secundário e pós-
secundário de natureza secular, nem por isso deixava de combinar este último
com um ambiente cultural islâmico (Amiji, 1984, p. 124).
Já os defensores da despolarização dos muçulmanos sustentavam outras
soluções. Costa Freire, por exemplo, considerava inconveniente um único centro
e propunha, em vez disso, vários núcleos dispersos, eventualmente baseados em
escolas corânicas já existentes, organizados para preparar os que integrariam a
futura hierarquia islâmica em Moçambique – uma concepção que o Governador-Geral
Costa Almeida reproduziu num despacho de 11 de Dezembro de 1967, temendo que um
centro único para o estudo do Islão se tornasse uma fonte de influências
supranacional' e, consequentemente, passível de se orientar, ou não, a nosso
favor, conforme a tal orientação polarizante imprimida pelos seus dirigentes
[46].
Todas estas discussões acabaram por se confinar a um cenário meramente
académico. Como foi dito atrás, a transformação das políticas islâmicas no
regime colonial português não conseguiu produzir um quadro de ensino corânico
que fosse satisfatório para os interesses do poder vigente. Essa transformação
foi, de resto, uma resposta tardia à pressão exercida pela evolução da guerra
colonial. A persistência dos conflitos entre as missões católicas e as escolas
corânicas num ano tão adiantado como 1973 é um sintoma de como a ordem colonial
se mostrou impotente para inverter, a seu favor, os efeitos da expansão do
Islão em Moçambique.