Biocatálise em meios aquo-restritos: fundamentos e aplicações em química
analítica
INTRODUÇÃO
Na última década, os conceitos relativos as reações enzimáticas mudaram
drasticamente. Embora a constatação que certas enzimas apresentam atividade
catalítica em meio orgânico date do início do século, foi a partir dos anos 80
que as macromoléculas biológicas passaram a ser vastamente utilizadas em outros
meios que não o aquoso. Dentre as numerosas aplicações de reações enzimáticas
em meio orgânico, destacam-se a síntese de produtos de interesse nas áreas
clínica, nutricional, ambiental, industrial e biotecnológica. Paralelamente, a
utilização de biossensores em meio não aquoso também levou a novas aplicações,
tornando possível trabalhar em meios até então inexplorados ou analisar
espécies de caráter hidrofóbico, entre outras vantagens. A seguir serão
apresentados vários aspectos de importância no controle da atividade enzimática
em solventes orgânicos, bem como diversas aplicações analíticas envolvendo
reações enzimáticas em meio não aquoso.
REAÇÕES ENZIMÁTICAS EM MEIO AQUOSO
A utilização de reações enzimáticas pelo homem se confunde com os primórdios da
civilização. Inicialmente esta utilização ocorreu exclusivamente de forma
doméstica, para mais recentemente tornar-se de grande importância em uma vasta
gama de aplicações industriais.
Nas últimas décadas, a extraordinária seletividade de substratos (incluindo
quimio-, régio- e enantio-especificidade), passou a ser explorada de forma cada
vez mais intensa. A capacidade das enzimas de catalisar reações em meio aquoso,
em condições moderadas de temperatura e de pressão, reduzem a possibilidade de
danos a analitos termossensíveis e minimizam, também, os efeitos de corrosão em
alguns processos químicos. Em contrapartida, a aplicação eficaz de enzimas tem
sido restrita devido a uma série de limitações, particularmente aquelas
referentes à sua estabilidade operacional (essencial para uso por longos
períodos ou para procedimentos automatizados) e, em muitos casos, à pouca
solubilidade dos analitos.
Para eliminar esses efeitos desfavoráveis, algumas estratégias têm sido
investigadas. A mais antiga é a via sintética1 que utiliza técnicas da química
orgânica buscando a síntese de catalisadores com atividades similares à de
enzimas. Recentemente, foi demonstrado que técnicas de engenharia de proteínas
podem promover a formação de ligações intramoleculares estrategicamente
posicionadas, a modificação da polaridade ou, ainda, a alteração da densidade
de carga na superfície da proteína2,3, produzindo biocatalisadores robustos
capazes de manterem a atividade catalítica mesmo em condições pouco favoráveis.
Outra abordagem tem sido a utilização de procedimentos para a imobilização
(insolubilização) das enzimas, preferencialmente, através de ligações
covalentes (opção de um ou vários pontos de ligação) Neste caso, ligações
múltiplas originam preparações mais estáveis, entretanto com menor
flexibilidade espacial das enzimas, resultando geralmente em decréscimo de
atividade.
Esses métodos de imobilização estão disseminados tanto em aplicações
industriais como em sistemas de análise. Exemplos de aplicações analíticas
envolvendo enzimas imobilizadas são os biossensores, os reatores para análises
cromatográficas ou em sistemas de análise por injeção em fluxo, cabendo ainda
destacar aplicações envolvendo kits para titulações e para imunoensaios.
Contudo, os procedimentos de imobilização, normalmente, são laboriosos e
bastante demorados além de acarretarem limitações difusionais e ainda custos
adicionais. As principais vantagens advindas da aplicação de enzimas
imobilizadas4,5 são mostradas na Tabela_1.
Uma outra possibilidade, para reduzir as limitações da estabilidade, é o
emprego direto de enzimas naturais de organismos extremófilos que são bastante
estáveis às "intempéries" ambientais6,7 em seu meio natural.
Com respeito às restrições de solubilidade do analito, os recursos mais
utilizados são a adição de um solvente miscível ou de um surfactante no meio
onde ocorrerá a reação. Freqüentemente, o emprego desses aditivos pode provocar
diminuição da atividade enzimática.
Os métodos enzimáticos convencionais têm sido empregados em meio aquoso
principalmente devido a idéia preconcebida de que este é um bom ambiente para a
manutenção da conformação estrutural da enzima cataliticamente ativa. Essa
noção não é completamente verdadeira. Muitas enzimas (ou complexos
multienzimáticos) tais como lipases, esterases, desidrogenasese aquelas
responsáveis pelo metabolismo xenobiótico, são cataliticamente ativas em
ambientes hidrofóbicos naturais8 com eficiência similar àquela em soluções
aquosas, ou em certos casos, até superior. Em sentido estrito, podem ser
considerados como ambientes não-aquosos os solventes orgânicos9-12, os fluidos
supercríticos13, os gases14, os substratos líquidos ou misturas eutéticas de
substratos livres de solvente15.
Reações enzimáticas em meios aquo-restritos
A catálise enzimática em meio orgânico possui uma enorme potencialidade para
aplicações em síntese orgânica (separação de álcoois ou ácidos racêmicos16,17,
síntese de peptídeos18), na indústria (síntese de aspartame19,
interesterificação regiosseletiva de óleos e gorduras20) e particularmente, na
(bio)analítica21.
Apesar do reconhecimento desses benefícios, o número de trabalhos onde enzimas
têm sido utilizadas para propósitos analíticos em meio não-aquoso é, ainda,
bastante limitado, quando comparado com a profusão de monografias produzida em
fase aquosa. As principais razões listadas por Braco22 que podem justificar
esse desequilíbrio no uso de meios aquosos e não-aquosos em métodos analíticos
mediados por enzimas são:
a) o comportamento de inúmeras enzimas em ambientes aquo-restritos ainda
permanece inexplorado;
b) muitas amostras reais são aquosas ou encontram-se em meio aquoso o que
implica, muitas vezes, ou numa partição ineficiente ou no acréscimo de uma
etapa no processo para a extração do analito de interesse na fase orgânica;
c) os fundamentos da enzimologia em meios não-aquosos foram estabelecidos muito
recentemente;
d) o uso de solventes orgânicos pode, muitas vezes, colocar em risco a saúde do
analista (por serem tóxicos, inflamáveis e/ou explosivos) além de poderem
acarretar problemas ambientais. A esse respeito, a possibilidade do emprego de
solventes não-tóxicos, biocompatíveis com os lipídeos em aplicações analíticas
tem sido amplamente explorada23.
Inúmeras pesquisas têm demonstrado as vantagens da biocatálise em meios aquo-
restritos, oferecendo uma oportunidade ímpar para o desenvolvimento de novas
tecnologias e de biossensores na determinação de importantes analitos
(insolúveis em água) e de matrizes de amostras hidrofóbicas. Na Tabela_2 são
apresentadas as principais vantagens da realização de reações enzimáticas em
meios aquo-restritos.
A introdução de biossensores eletroquímicos, em meios não-aquosos, tem
encontrado variadas aplicações no processamento industrial e em testes de
controle de qualidade. Quando utilizados em sistemas de análise por injeção em
fluxo, propriedades tais como velocidade, portabilidade e simplicidade de
análise são conseguidas. Neste contexto, o desenvolvimento de novos
biossensores amperométricos em meios não-aquosos deve ser explorado em
profundidade por químicos, bioquímicos e engenheiros.
A seguir, serão discutidos de forma concisa, os princípios básicos do
comportamento das macromoléculas biológicas (enzimas, anticorpos, anticorpos
catalíticos) e receptores abióticos em ambientes não-aquosos (função da água,
critérios para a seleção do solvente, efeitos de memória, estabilidade térmica,
alteração da especificidade enzimática, influência do pH). Aplicações correntes
e perspectivas futuras de biossensores em fase orgânica também serão abordados.
Fatores que controlam a atividade enzimática em solventes orgânicos
Água
As propriedades solventes da água resultam das forças atrativas fortes (as
pontes de hidrogênio) que existem entre as suas moléculas. A molécula de água e
seus produtos de ionização, H+e OH-, influenciam profundamente a estrutura, a
automontagem e as propriedades das enzimas. As biomoléculas polares dissolvem-
se facilmente na água (hidrofílicas) porque elas podem substituir as interações
moleculares água-água, energeticamente favoráveis, por interações do tipo
pontes de hidrogênio e eletrostáticas, ainda mais favoráveis, no sistema água-
soluto. A variação da entalpia (DH) pela dissolução desses solutos é,
geralmente, pequena. Diferentemente, moléculas não-polares interferem com as
interações água-água e são muito pouco solúveis na mesma água (hidrofóbicas).
Estas moléculas não-polares tendem, quando em solução aquosa, a agregarem-se de
forma a minimizar os efeitos energeticamente desfavoráveis provocados pela sua
presença.
Biomoléculas como as enzimas são anfipáticas, possuindo regiões superficiais
polares (ou carregadas) e não-polares. Em um ambiente aquoso, essas duas
regiões da molécula experimentam tendências conflitantes; a região hidrofílica
interage favoravelmente com a água enquanto a região hidrofóbica tem a
tendência de evitar o contato com a água (Figura_1A). Assim, os resíduos de
aminoácidos hidrofóbicos das enzimas agregam-se para apresentar a menor área
hidrofóbica possível à água (ficam confinados no interior da molécula protéica)
e as regiões polares são arranjadas para maximizar as interações com o solvente
aquoso (Figuras_1B e 1C).
Quando a água é substituída por um solvente orgânico, alterações na conformação
nativa da enzima podem ocorrer tanto na estrutura terciária como nas mais
proeminentes estruturas secundárias (a a-hélice e a conformaçãob) acarretando,
desta maneira, a sua desestabilização. Com o objetivo de assegurar uma
conformação enzimática cataliticamente ativa em meio orgânico, a molécula da
enzima deve ter uma camada de hidratação definida24,25, separando o solvente do
contato com a superfície da proteína e contribuindo para o aumento da sua
flexibilidade interna.
Quando água é adicionada a um sistema enzimático não-aquoso, ela é distribuída
entre solvente, enzima, substrato e suporte (se presente). A quantidade de água
ligada as moléculas de enzima é fundamental para a atividade catalítica em meio
não aquoso. A explicação mais provável para isso advém do fato da água aumentar
a mobilidade e a flexibilidade dos sítios ativos e, concomitantemente, a
polarização da estrutura protéica.
Numerosas discussões e trabalhos26-28 têm sido dedicados para determinar a
quantidade adequada de água para a atividade enzimática em meio orgânico. Zaks
e Klibanov27 examinaram três modelos de enzimas - polifenoloxidase, álcool
desidrogenaseeálcool oxidase- em solventes de hidrofobicidades e conteúdos de
água diferentes. Eles mostraram que a atividade enzimática estava relacionada à
quantidade de água ligada à proteína e não à concentração de água nos solventes
orgânicos. A água ligada àquelas enzimas em solventes orgânicos não formaria
uma camada de água verdadeira mas, de preferência, uns poucos
"clusters", provavelmente, em torno de regiões carregadas e polares
da superfície enzimática. Os resultados desse estudo foram re-interpretados em
termos de atividade de água por Halling29, confirmando que a atividade
enzimática ótima está relacionada com a atividade de água, independente do
solvente usado. Este mesmo autor30 tem proposto que a atividade termodinâmica
da água é um parâmetro que deve ser usado para quantificar o nível de água
associado com a enzima. A água, dessa maneira, é requerida, unicamente, para a
função catalítica das enzimas em solventes orgânicos, contribuindo para a
formação de todas as ligações não covalentes e pontes de hidrogênio da
estrutura protéica.
A quantidade de água necessária para catálise depende das características de
cada enzima. Lipases são altamente ativas quando poucas moléculas de água estão
associadas com a molécula protéica31-33. Subtilisinae a-quimotripsinanecessitam
menos de 50 moléculas de água por molécula de enzima para exibir sua atividade
mínima27. Álcool oxidase, álcool desidrogenase e polifenoloxidase, entretanto,
são unicamente ativas quando um elevado número de moléculas de água (3,5 x 107)
estão ligadas com a molécula de enzima formando uma monocamada34.
Água fortemente ligada pode ser encontrada em preparações enzimáticas
desidratadas por liofilização em níveis tão baixo quanto 0,01%. Wehtje et al.35
utilizaram a a-quimotripsina em acetato de etila com diferentes concentrações
de água e verificaram grandes modificações na atividade catalítica desta
enzima. Há um aumento da velocidade de reação com o incremento do grau de
hidratação da enzima até atingir uma condição ótima (Figura_2). Isso,
provavelmente, se deve ao aumento da flexibilidade interna da molécula de
enzima. Um aumento acima destes valores resultou na diminuição da atividade
enzimática. Nesse caso, a água atuaria como um substrato na reação enzimática
especialmente em reações hidrolíticas, produzindo reações secundárias e
diminuindo o rendimento do processo químico. Outros autores36,37 têm comprovado
que a água está envolvida em muitos processos de inativação enzimática
propiciada pela agregação da enzima devido as reações de transmidação e
formação intermolecular de pontes de dissulfeto.
Existe um consenso de que as enzimas são mais termoestáveis em meios com baixo
conteúdo de água do que em soluções aquosas. Isto pode ser explicado pelo
aumento da rigidez e pelos processos covalentes envolvidos na inativação
irreversível, tais como deamidação, hidrólise de peptídeos e decomposição da
cistina, que necessitam de água. Estes processos são extremamente lentos em
meios de baixa concentração de água. O aumento da termoestabilidade tem sido
mostrado para lipase do pâncreas de suínos10, a-quimotripsina27,
ribonuclease,a-quimotripsina, lisozima36e tirosinase38.
Embora a presença de água ligada seja uma condição necessária para a retenção
da atividade catalítica e estabilidade em meios não-aquosos, alguns estudos têm
demonstrado que as enzimas eritrocupreína39, xantina oxidase40, lipase
pancreática41 e subtilisina42 retêm sua atividade catalítica em solventes
orgânicos verdadeiramente anidros (dimetilsulfóxido, formamida, piridina ou
dimetilformamida). Os mecanismos moleculares que protegem a conformação dessas
enzimas e as suas propriedades catalíticas nesses solventes orgânicos ainda
permanecem obscuros.
Além dessas propriedades naturais, a modificação química pode reduzir a
quantidade de água requerida por uma enzima tornando-a, desta maneira, mais
hidrofóbica. Esta sugestão foi comprovada pelo aumento na atividade da
peroxidase após deglicosilação ou modificação benzil- e poli-(etileno
glicol)43.
Solvente
As modificações no sistema biocatalítico somente afetarão o biocatalisador
quando estas ocorrerem nas proximidades moleculares da enzima. Quando se
dissolve um solvente orgânico imiscível em água (sistema bifásico líquido-
líquido) a concentração do solvente é variável e depende de sua solubilidade em
água. Isto significa que o biocatalisador, nesses sistemas, não experimenta uma
concentração do solvente que exceda a solubilidade deste na fase aquosa. Dessa
maneira, o biocatalisador estará exposto na interface do sistema líquido-
líquido o qual poderá ser nocivo para ele44.
Para solventes miscíveis não há limite de solubilidade do solvente na fase
aquosa e qualquer concentração deste pode ser obtida nestes sistemas. Tem sido
mostrado que há um valor limite para a concentração do solvente orgânico onde
se inicia a inativação (ver Tabela_3)45,46. Tem sido demonstrado
quantitativamente, que solventes não polares não são suficientemente solúveis
em água para alcançar a concentração limite de inativação47.
Os efeitos do solvente sobre a velocidade de reação da catálise enzimática em
sistemas de uma ou duas fases podem ser diretos ou indiretos48. Os efeitos
indiretos compreendem a partição de reagentes e de produtos, a alteração do
equilíbrio químico e mais a transferência de massa em sistemas de duas fases.
Os efeitos diretos são responsáveis pela redução da atividade e pela inativação
(desestabilização) da enzima através de dois mecanismos: primeiramente, pela
interação solvente-enzima que altera a conformação nativa da enzima devido a
penetração do solvente no âmago hidrófobo da proteína provocando a quebra das
ligações de hidrogênio e das interações hidrofóbicas49.
Uma exceção, seria a estabilização conformacional adquirida pela enzima em
meios não-aquosos, através do "efeito gaiola". Neste caso, as
moléculas das enzimas, no interior da proteína, estariam firmemente espremidas
pelas moléculas ao seu redor50 à semelhança das enzimas imobilizadas.
Outra maneira na qual os solventes afetam a atividade é por interação direta
com a água essencial em torno da molécula enzimática51. Solventes altamente
polares são capazes de absorver água avidamente e retirar a camada de
hidratação da enzima, provocando a perda das propriedades catalíticas por
inativação ou desnaturação. Reciprocamente, os solventes hidrofóbicos por serem
menos capazes de arrastar "para fora" ou deformar a camada de
hidratação podem apenas afetar parcialmente a atividade catalítica.
É importante frisar que há exceções notáveis. A xantina oxidase40, a
lipasepancreática suína41 e a subtilisina42mantêm suas propriedades catalíticas
tanto em solventes orgânicos como em meio aquoso. Uma possível explicação para
este fato é que essas enzimas são capazes de reter sua camada de hidratação tão
fortemente que mesmo solventes hidrofílicos não conseguem retirar a água.
Muitas maneiras diferentes têm sido descritas na literatura para quantificar a
hidrofobicidade52. Os mais importantes indicadores de hidrofobicidade são
citados na Tabela_4.
Laane et al.53 discutiram amplamente os parâmetros da Tabela_4 e concluíram que
o Log P apresentava a melhor correlação com a atividade enzimática. Desta
maneira, o Log P, definido como o logaritmo do coeficiente de partição em um
sistema bifásico padrão octanol/água foi introduzido como uma medida
quantitativa da polaridade do solvente.
Para moléculas simples, os valores do Log P são conhecidos ou podem ser
calculados das constantes fragmentais hidrofóbicas (hydrophobic fragmental
constants - hfc) de Rekker e Kort54. Estes valores foram obtidos por comparação
dos valores de Log P de uma série de compostos homólogos determinados
experimentalmente. Os compostos orgânicos mais comuns e seus respectivos Log P
estão listados na Tabela_5. Pela adição do hfc próprio, o Log P pode ser
calculado para qualquer composto relativamente simples.
Para exemplificar, o Log P do pentanol (CH3 (CH2)4OH) é: 1 x CH3+ 4 x CH2 + 1 x
OH = 1 x 0,701 + 4 x 0,519 + (-1,595) = 1,182, que é um valor próximo ao
determinado experimentalmente, 1,30. Deve-se notar que para estruturas
conjugadas os cálculos são mais elaborados, pois correções são necessárias para
produzir o valor Log P adequado. Geralmente, para estruturas mais complexas, o
Log P é determinado pela medida da concentração no equilíbrio do soluto em
ambas as fases, por técnicas convencionais.
Há poucos casos de desvios mais acentuados entre os valores calculados e os
preditos: pentanol, 1,5655 comparado com 1,3; ciclohexanol 1,2356 comparado com
1,5; acetato de benzila, 1,9656 comparado com 1,6; CCl4, 2,7256 comparado com
3,0 e pentano,3,3156comparado com 3,0. Algumas dessas diferenças podem refletir
erros nas medidas. Em compensação, boa concordância têm sido conseguida para
numerosos solventes.
Baseado nestes resultados, o Log P foi introduzido como uma medida quantitativa
da polaridade do solvente53,57. Geralmente, a atividade enzimática é baixa em
solventes relativamente hidrofílicos, que apresentam Log P < 2, é moderada em
solventes tendo Log P entre 2 e 4 e é alta em solventes apolares, onde Log P >
4 (ver Tabela_5).
Outro fator a ser considerado para a seleção do solvente é a solubilidade do
substrato e do produto nos meios58. Por ex., açúcares são solúveis apenas em
solventes hidrofílicos (miscíveis com a água) tais como piridina (Log P = 0,71)
ou dimetilformamida (Log P = -1,0). O uso de solventes imiscíveis com a água é
inviável para a catálise enzimática, pois não ocorre nenhuma interação entre o
açúcar insolúvel e a enzima também insolúvel. De modo similar, compatibilidade
dos produtos da reação enzimática com o solvente é crucial. Produtos polares
tendem a permanecer na camada de água em torno da enzima e isto causará
inibição ou reações secundárias indesejáveis. Esta situação foi encontrada na
catálise de fenóis pela polifenoloxidase em hexano11 (Log P = 3,50) e na
oxidação do álcool benzílico pela álcool oxidase, também em hexano59. No
primeiro caso, os produtos polares gerados (o-quinonas) são insolúveis em
hexano e rapidamente se polimerizam no ambiente aquoso próximo a enzima,
provocando a sua inativação. Em um solvente mais polar como o clorofórmio (Log
P = 2,0), os produtos se distribuem por todo o solvente e não inativam a
enzima11,60.
Apesar da ampla utilização do Log P como parâmetro para ser relacionado com a
atividade enzimática, algumas discrepâncias têm sido relatadas61,62. Reslow et
al.63, mostraram que a inclusão do parâmetro solubilidade de Hildebrand (d) em
água ajudava na relação solvente orgânico/atividade enzimática. Valivety et
al.64, mostraram que a atividade catalítica era melhor relacionada como uma
função não só do Log P mas também com o índice de aceitação de elétrons ou
polarizabilidade. Posteriormente, Wehtje65e Yang e Robb66verificaram que não
havia nenhuma relação satisfatória entre a atividade do biocatalisador e o Log
P.
Outras propriedades do solvente têm sido relacionados com a atividade
enzimática. Por exemplo, a atividade da álcool desidrogenase aumentou com a
diminuição da constante dielétrica do solvente67 e uma relação linear foi
observada entre a atividade da lipasee o Log Sw/o (solubilidade molar da água
em um solvente)68.
Pelos aspectos apresentados, pode-se concluir que ainda não há um parâmetro
quantitativo confiável que possa refletir as múltiplas interações entre enzima-
solvente orgânico que permita predizer, com sucesso, a atividade biocatalítica
ótima em meio não aquoso.
Vários autores têm buscado essa solução. Schneider69 propôs um parâmetro de
solubilidade tridimensional pela combinação dos parâmetros Log P, d e ligações
por pontes de hidrogênio. Khmelnitzky et al.46, desenvolveram um modelo
matemático denominado "capacidade desnaturante" que relaciona algumas
características físico-químicas do solvente orgânico, tais como
hidrofobicidade, capacidade de solvatação e geometria molecular. Batra e
Gupta70, mediram as atividades da polifenoloxidase, peroxidase, fosfatase ácida
e tripsina na presença de diferentes solventes e constataram que a variação na
atividade enzimática com a natureza do solvente não está relacionada com o Log
P nem com a capacidade desnaturante.
É possível que estudos futuros, envolvendo um grande número de proteínas de
natureza diferentes (por ex., proteínas com estrutura quaternária), possam
introduzir parâmetro(s) que possibilite(m) a otimização das concentrações
limites dos solventes orgânicos que retenham e/ou maximizem a atividade e a
estabilidade do biocatalisador em sistemas bifásicos.
pH e alteração da especificidade enzimática
Entre as questões intrigantes referentes a ação das enzimas em solventes não-
aquosos encontra-se o pH. Todas as reações enzimáticas em água são fortemente
dependentes do pH visto que o estado de ionização da enzima é essencial para a
catálise. Desde que protonação e desprotonação da enzima raramente ocorrem de
maneira perceptível em um meio orgânico, como a enzima reconhece o pH em
solventes orgânicos anidros? A resposta é um tanto inusitada: a enzima
"recorda-se" do pH da última solução aquosa a que foi expostae isto
tem sido chamado de "memória de pH"41,71. A nível molecular, os
grupos ionogênicos da molécula enzimática adquirem uma certo grau de ionização
na solução aquosa a um dado pH - e a atividade enzimática correspondente a este
pH - que é mantido sem modificação nos solventes orgânicos como também no
estado sólido.
Desta maneira, a capacidade tamponante do microambiente aquoso deve ser
controlada e algumas substâncias como hidrocloreto de trisoctilamina e ácido
trifenil acético (sal sódico)72 têm sido adicionadas às soluções aquosas que
vão ser liofilizadas ou introduzidas na fase orgânica. A perda da "memória
de pH" na hidratação pode ser atribuída a redistribuição de cargas na
superfície da proteína.
Tem sido registrado que a liofilização da a-quimotripsinaem soluções aquosas
contendo certos ligantes (N-acetil-l-fenilalanina) tem efeitos significativos
sobre a atividade catalítica desta enzima em fase orgânica. Foi observado um
aumento de até 35 vezes na sua atividade quando liofilizada napresença daquele
ligante27. Efeitos similares têm também sido documentados para subtilisina73 e
de novo, mais recentemente, para a-quimotripsina74,75. Esse aumento na
atividade deve-se ao efeito "fechadura" entre ligante e enzima tendo
como resultado uma conformação enzimática mais ativa. A enzima assume uma nova
conformação quando ocorre a sua união com o ligante que é complementar para
aqueles substratos com a mesma estereoquímica. Esta conformação é
"congelada" - torna-se rígida - e permanece quando a enzima é
transferida para um solvente orgânico, visto que a mobilidade das moléculas de
enzima é muito menor neste meio do que na água76.
Esse fenômeno permitiu o desenvolvimento da técnica de "moléculas
impressas" (molecular imprinting) de Stahl et al.74 e de Braco et al.77. O
trabalho de Braco et al.77 mostrou que a albumina de soro bovino, quando
liofilizada a partir de uma solução aquosa contendo ácido p-hidroxibenzóico ou
ácido l-tartárico, desenvolveu uma afinidade específica para estes ligantes
quando em solventes orgânicos anidros. Por outro lado, Stahl et al.74 mostraram
que usando um sistema similar, a a-quimotripsinapode se tornar aceptora de
derivados do d-aminoácido.
O mais importante desse fenômeno é a sua possível utilização na preparação de
uma enzima, em meio orgânico para análise. Assim, uma alteração da
especificidade enzimática pode ser obtida em favor de um particular analito se
a enzima for liofilizada na presença de uma solução aquosa concentrada deste
analito. Zaks e Klibanov10comprovaram que a lipasepancreática suína, em meio
aquoso reage, indiferentemente com substratos pequenos ou grandesenquanto que a
enzima desidratada, em meio orgânico, não reage com moléculas grandes (álcoois
terciários), presumivelmente, devido a rigidez do seu centro ativo que não pode
mais ser aberto para acomodá-las.
Estabilidade térmica de enzimas em solventes não-aquosos
As moléculas de água, que se encontram em torno da molécula enzimática nas
soluções aquosas, exercem um papel importante na estabilidade protéica devido,
principalmente, às interações hidrofóbicas78-80 além das forças de van der
Waals, pontes salinas e pontes de hidrogênio81. Desta maneira, todas as reações
que provocam termoinativação irreversível de enzimas envolvem água livre82,83 e
a desnaturação, induzida pelo calor, necessita de uma ampla mobilidade
conformacional. Assim, não é surpresa que a manipulação da natureza do meio e
da quantidade de água em torno da enzima tem um profundo efeito sobre sua
estabilidade.
A remoção de água da superfície da proteína, indubitavelmente, diminui os
efeitos hidrofóbicos provocando a sua desestabilização. Isto conduz a uma
reorganização das moléculas de água devido ao incremento do número de ligações
intramoleculares por pontes de hidrogênio78 que contribui para a estabilização
e aumento da rigidez da proteína. O componente predominante destas ligações
intramoleculares é eletrostático. Logo, a estabilidade dessas ligações deve
aumentar em solventes com baixa constante dielétrica.
Quando proteínas são expostas a temperaturas elevadas por um período
prolongado, elas sofrem um processo de desenrolamento que expõe os grupos
reativos e áreas hidrofóbicas mais internas, acarretando modificações químicas
irreversíveis, o desordenamento monomolecular e agregação. Os processos
químicos que freqüentemente levam à inativação (altamente acelerados em
temperaturas elevadas) são a deamidação dos resíduos de asparagina e glutamina,
hidrólise das ligações peptídicas nos resíduos de ácido aspártico, permuta
dissulfeto-tiol, destruição de ligações dissulfeto, oxidação de cisteínas,
isomerização de prolinas, glicação de aminogrupos e outros processos
químicos84. Todos esses processos exigem a participação de água e, portanto,
não devem ocorrer em um microambiente livre de água como nos solventes
orgânicos anidros.
Inúmeros autores têm demonstrado que suspensões enzimáticas em solventes
orgânicos anidros exibem termoestabilidade bem superior do que aquelas em
soluções aquosas. Alguns exemplos estão agrupados na Tabela_6. Um exemplo
bastante ilustrativo da significativa diferença de termoestabilidade entre meio
aquoso e meio orgânico é o caso da tirosinase. Esta enzima possui uma vida
média, a 50oC, nove vezes superior em clorofórmio do que em solução aquosa.
Reslow et al.63(a-quimotripsinadesidratada imobilizada sobre superfície porosa
de vidro) e Zaks e Klibanov10,27 (lipase, a-quimotripsinae
subtilisinaliofilizadas) concordam em que a estabilidade térmica é fortemente
dependente da hidrofobicidade do solvente. Na presença de apenas 1,0% de água
no meio orgânico, a estabilidade da lipaseaproxima-se da sua estabilidade em
meio aquoso. Isto significa que a estrutura da enzima permanece inalterada
(enrolada) em meio orgânico, mesmo em altas temperaturas. A água exerce papel
relevante em tais processos, aumentando de forma significativa a flexibilidade
conformacional das enzimas. Zaks e Klibanov10demonstraram que a
lipasepancreática de suínos em solução aquosa a 100oC foi completamente
inativadaem menos de dois minutos., ao passo que nesta mesma temperatura,
mantém elevada atividade por várias horas, se o percentual de água presente não
ultrapassar 0,4%, como pode ser visto na Figura_3.
Biossensores, em geral, operam em temperaturas ótimas para que a reação
biocatalítica se processe rapidamente e tenha grande sensibilidade. Entretanto,
em muitos casos, a temperatura ideal para a reação enzimática ocorrer não
coincide com a condição mais favorável para os demais parâmetros envolvidos no
processo. O aumento da estabilidade térmica das enzimas proporcionada pelos
solventes orgânicos é uma vantagem importante do ponto de vista operacional da
enzima, ampliando o intervalo de temperatura onde ocorre um dado processo
químico de interesse.
APLICAÇÕES ANALÍTICAS DE ENZIMAS EM MEIOS NÃO-AQUOSOS
O principal impulso da química industrial moderna é a busca incessante de maior
especificidade nos processos bioquímicos. A falta de seletividade resulta em
aumento de custos advindo dos processos de separação, purificação e tratamento
de resíduos. Por outro lado, o conhecimento de que enzimas são específicas e
podem funcionar vigorosamente em sistemas anidros ou com baixo conteúdo de
água, tem proporcionado variadas transformações de importância biotecnológica.
Klibanov94,95, Dordick96 e tanaka e kawamoto97 têm revisado as inúmeras
aplicações de tais sistemas. Uma lista da natureza de tais aplicações é
mostrada na Tabela_7.
Apesar dessas limitações, aplicações e vantagens de dispositivos bioanalíticos
baseados em enzimas (biossensores enzimáticos) que funcionam em fase não-aquosa
têm sido demonstradas solucionando diversos problemas analíticos de indústrias
de alimentos, de bebidas, farmacêuticas, petroquímicas, militar e de
cosméticos, além do seu emprego na agricultura e nos diagnósticos clínicos.
Antes dessa exploração, somente uns poucos sensores enzimáticos operavam em
meios não aquosos. As enzimas eram mantidas em um compartimento aquoso
separadas do meio orgânico por uma membrana permeável seletiva. Um exemplo
desse tipo de sensor foi idealizado pela Phillips Petroleum para a determinação
do conteúdo de álcool na gasolina21. Ele consistia de um eletrodo de oxigênio
onde a álcool oxidasese encontrava imobilizada na extremidade e mantida
adequadamente hidratada por uma membrana externa semi-permeável. O álcool no
meio aquoso poderia atravessar essa membrana e na camada onde se encontrava a
enzima hidratada era biocataliticamente oxidado. A diminuição concomitante da
concentração de oxigênio era medida amperometricamente. Em outros casos, a
solubilidade do analito insolúvel em água era aumentada pelo uso de
detergentes. Isso, normalmente, acarretava perda de sensibilidade do sensor
tanto pela insolubilidade do analito em água como devido ao próprio detergente.
Entretanto, se a enzima era capaz de funcionar em uma fase predominantemente
orgânica, então analitos de baixa solubilidade em água poderiam estar em altas
concentrações para a bioanálise. Independente dessa característica - aumento de
solubilidade - os biossensores em fase orgânica podem oferecer outras vantagens
que são mostradas na Tabela_8.
Hall et al.125,126 descreveram, em 1988, o primeiro biossensor no qual o
biocatalisador estava em contato direto com a fase orgânica, para a
determinação amperométrica de fenóis em clorofórmio. Neste solvente, a
polifenoloxidasecatalisava a conversão do composto fenólico a benzoquinona, que
era eletroquimicamente reduzida em eletrodo de carbono vítreo a -275 mV (vs
ECS).
Algumas aplicações dos sensores enzimáticos, anticorpos e de compostos com
características similares à dos anticorpos (antibody mimics) em ambientes aquo-
restritos desenvolvidas nos anos recentes serão, a seguir, brevemente
discutidos.
Eletrodos enzimáticos de fase orgânica
Nos últimos oito anos, uma considerável atenção tem sido dada à pesquisa e ao
desenvolvimento de biocatalisadores de fase orgânica para serem utilizados em
síntese, no processamento industrial e, particularmente, como ferramenta
analítica nos testes de controle de qualidade. Estes biossensores podem ser
usados para a detecção, direta e específica, de analitos hidrofóbicos de uma
variedade de amostras complexas que se tornam acessíveis ao microambiente
enzimático devido ao meio orgânico.
Muitos dos recentes avanços nesta área têm sido obtidos utilizando-se técnicas
de detecção eletroquímica que se expandiram durante as décadas de 60 e 70
usando eletrodos convencionais e solventes tais como dimetilformamida,
acetonitrila, carbonato de propileno e dimetilssulfóxido. Estes solventes
possuem algumas características importantes: constantes dielétricas baixas, a
capacidade de solubilizar analitos orgânicos e alguns compostos inorgânicos,
resistência à oxidação e à redução (ampliando a faixa de potencial de trabalho)
e, geralmente, boas características de estocagem. Uma abordagem sobre
eletroquímica em fase orgânica pode ser encontrada em Saini et al.21.
Com o desenvolvimento da tecnologia dos biossensores, outras técnicas de
transdução, além da eletroquímica, têm sido exploradas. Parâmetros tais como
oxigênio, gás carbônico, peróxido de hidrogênio e pH são comumente detectados
nas reações biocatalíticas. Para esses e outros parâmetros, uma ampla variedade
de métodos e ou sensores espectrofotométricos (absorbância, reflectância,
fluorescência, fosforescência e quimo/bioluminescência), calorimétricos,
piezelétricos e de sensores não catalíticos, são exeqüíveis. Dessa maneira, a
expansão da tecnologia de biossensores pode permitir o aumento potencial de
suas aplicações em fase orgânica e seu uso certamente beneficiará áreas tais
como a tecnologia de alimentos, diagnóstico clínico e o controle de
contaminação de águas. Muito tem que ser realizado para o desenvolvimento
desses novos biossensores para adequá-los a outros métodos de análise que não
os eletroquímicos. Recentemente, Díaz-Garcia e Valencia-González127, revisaram
o emprego de sensores ópticos em meio não-aquosos, ao passo que Wang e col.128
deram principal ênfase aos sensores eletroquímicos. A Tabela_9 reúne os
transdutores mais utilizados e possíveis aplicações.
Apesar do amplo emprego de enzimas isoladas como componente biológico,
preparações de células íntegras de microrganismos e de fontes vegetais e
animais têm sido também propostas como elementos biocatalíticos dos
biossensores. Tais materiais simplesmente mantêm a enzima de interesse em seu
ambiente natural resultando em uma estabilização da atividade enzimática
desejada137, sem sacrificar, em muitos casos, a sua seletividade.
Os biossensores de tecidos vegetais podem ser construídos pela retenção física
de fatias muito finas do tecido na superfície de um elemento de detecção usando
uma membrana porosa. Outra maneira de utilização desse material é a
distribuição homogênea do tecido vegetal, picado, em reatores de geometria
própria, para operarem em sistemas em fluxo138.
Diversos exemplos de aplicações recentes dos eletrodos enzimáticos em fase
orgânica estão listados na Tabela_10.
Uma outra aplicação dos biossensores baseia-se na possibilidade do uso de
mediadores insolúveis em solventes orgânicos (podem ser co-imobilizados com a
enzima por adsorção) obtendo-se os chamados sensores sem reagentes. Schubert et
al.130, exploraram a oxidação do íon hexacianoferrato(II) pelo peróxido de
hidrogênio na presença de peroxidaseem vários solventes orgânicos. A forma
oxidada desse íon era novamente reduzida em eletrodo de grafite em potencial
próximo de zero permitindo assim a quantificação de peróxido de hidrogênio.
Recentemente, Stancik et al.149 desenvolveram um biossensor baseado em um
eletrodo de Clark acoplado a uma camada biocatalítica contendo tirosinase.
Derivados da tiouréia foram detectados em hexano e o método mostrou-se
altamente sensível com limites de detecção no intervalo de 13 - 181 nmol L-1,
dependendo da estrutura do composto inibidor.
Há numerosas oportunidades do emprego de biossensores em fase orgânica em
sistemas de análise em fluxo. Recentemente, em uma revisão, Wang e col.150
discutiram as vantagens de tal metodologia. Em tais sistemas, além dos
benefícios já mencionados da enzimologia em meio não-aquoso, há rapidez na
análise de amostras complexas sem a necessidade de pré-tratamentos, tornando-os
atrativos para testes de controle de qualidade e de processos industriais.
Algumas aplicações recentes desses biossensores podem ser encontradas baseadas,
principalmente, no uso de oxidases e desidrogenases (polifenoloxidases, álcool
desidrogenasese peroxidases)151-155.
A utilização de tecidos vegetais como fonte de material enzimático para
aplicações em meio orgânico também foi explorada pelos autores138. O mesocarpo
fibroso do coco-da-baía (Cocus nucifera, L.)e frutas da palmeira-leque
(Lataniasp) em meio orgânico apresentam excelente desempenho para a detecção de
dihidroxifenóis, mas são altamente dependentes da quantidade de água ligada à
enzima. Na figura 4-A são apresentados os picos e a respectiva curva de
calibração, correspondentes à injeções de soluções contendo 1 x 10-4 M de
catecol e concentrações crescentes de água. Um comportamento bastante linear (r
= 0,997) é verificado em função do incremento percentual da quantidade de água,
entre 0,1 e 0,8 % (v/v). O incremento do sinal torna-se menos pronunciado para
quantidades maiores de água. Tais resultados permitem avaliar a quantidade de
água contida em um solvente, que para o presente caso, a reta extrapolada
indica a presença de 0,03% (v/v) de água na acetonitrila utilizada. A elevada
reprodutibilidade do método pode ser verificado pela realização de injeções
repetitivas de amostra. Para 44 injeções sucessivas de uma solução contendo 5 x
10-4 M de catecol e 0,7% (v/v) de água, respostas altamente repetitivas foram
obtidas (C.V. = 0,65%) apesar de ocorrer uma pequena deriva da linha base. A
alternância de amostras contendo respectivamente 0,1 e 0,8% de água, demonstra
a notável adequação da atividade enzimática, em função do conteúdo de água, não
havendo nenhum efeito de "memória" em relação às injeções anteriores,
como pode ser visualizado na Figura_4-B.
Reatores com o mesocarpo fibroso do coco, utilizados em meio de acetonitrila,
mostraram estabilidade muito superior àqueles mantidos em meio aquoso. O
monitoramento indireto da água deverá ser utilizado para determinação de
umidade de produtos com baixos teores de umidade. Estão em andamento
experimentos utilizando tais tecidos, tanto em meio aquoso como em fase
orgânica, visando a quantificação de inibidores enzimáticos.
Análises em bateladas
Diversos pesquisadores26,123realizaram determinações em bateladas onde a enzima
era diretamente introduzida em um meio não-aquoso e o produto formado
monitorado pelo aparecimento de cor. Kazandjian et al.26 utilizaram colesterol
oxidaseagregada com peroxidase(ambas as enzimas adsorvidas em superfícies de
vidro poroso) com p-anisidina como substrato cromogênico, em diferentes
solventes orgânicos, visando a análise de colesterol. Boeriu et al.123,
dispersaram, homogeneamente, a peroxidaseem misturas de parafina solidificável
contendo cromógeno (o ponto de fusão era selecionado pela variação desta
composição) como um protótipo de um sensor para temperaturas abusivas aplicável
a materiais alimentares, farmacêuticos e termo-sensíveis. Com o aumento da
temperatura, alterava-se a fase do meio, diminuindo as barreiras difusionais,
facilitando assim a catálise enzimática. Como resultado ocorria modificação de
cor que era monitorada visualmente.
Reatores enzimáticos que operam em sistemas analíticos em fluxo
Braco et al.156, foram os primeiros a realizar uma avaliação sistemática das
possibilidades de implementação de sistemas analíticos em fluxo empregando
solventes orgânicos. Esses autores adaptaram, para condições em fluxo, a
análise para colesterol. Neste trabalho, a viabilidade de utilização de um
reator bienzimático imobilizado não covalentemente para determinações em fluxo
em meio anidro (tolueno) com detecção espectrofotométrica foi demonstrada, com
a vantagem de apresentar ainda um notável melhoramento em relação ao sistema em
batelada. Com esse sistema, os autores obtiveram respostas lineares de 1 x 10-
6 até 1,8 x 10-4 mol L-1 de colesterol, com uma freqüência analítica de 60
amostras por hora. Em adição, tais reatores puderam ser utilizados por até 4
meses, período muito superior ao alcançado em meio aquoso.
Outro sistema em fluxo, útil para a determinação de colesterol em alimentos
(limite de detecção de 5 x10-5 mol L-1) foi idealizado por Valencia-González e
Diaz-Garcia157. Esse sistema consiste de materiais bioativos - colesterol
oxidase e peroxidase - co-imobilizados sobre vidro poroso, em associação com
uma resina aniônica carregada com material fluorescente, sensível à oxigênio. A
quantificação de colesterol neste caso foi obtida de forma indireta, via
diminuição de fluorescência, provocada pelo consumo de oxigênio, quando da
reação enzimática:
Colesterol + O2 ® 4-colesten-3-ona + H2O2
O peróxido de hidrogênio gerado é consumido, concomitantemente, objetivando
prevenir a inativação da colesterol oxidase140 e favorecer a reação anterior.
Biossensores enzimáticos em fase gasosa
Outro sistema que explora a biocatálise em ambientes aquo-restritos envolve a
condução da catálise enzimática com reagentes na fase gasosa. O uso dessa nova
técnica pode, em futuro bastante próximo, ser aplicável em diferentes áreas,
dentre as quais:
- Remoção de compostos tóxicos de gases residuais158.
- Produção de compostos voláteis - fragrâncias e aromas para as indústrias de
alimentos, de cosméticos e perfumaria.
- Aplicações analíticas envolvendo biossensores.
Apesar das enormes possibilidades de aplicações em processos biotecnológicos,
comprovadas pela eficiência catalítica, produtividade e exeqüibilidade técnica,
pesquisas fundamentais são necessárias para estabelecer os parâmetros que
afetam a cinética e a produtividade desse sistema.
O principal problema para muitas reações de potencial interesse comercial é a
obtenção de substratos e/ou produtos na fase gasosa. Dois fatores devem ser
levados em consideração. O primeiro, refere-se a temperatura e pressão absoluta
do sistema, parâmetros físicos que afetam a pressão de vapor dos diferentes
componentes do sistema. Com isso, pode-se alterar a atividade do biocatalisador
pelo comprometimento da concentração dos componentes na fase gasosa, além da
sua estabilidade. O segundo fator, é a atividade de água (parâmetro
termodinâmico), item amplamente discutido em páginas anteriores. As condições
de operação desse sistema são similares aos da enzimologia em meio orgânico.
As enzimas mais empregadas em bioreatores sólido-gás incluem as
hidrogenases159,160 (onde o substrato é hidrogênio), álcool oxidase161-163
(oxidação do etanol), álcool desidrogenases164,165 (produção de álcool e/ou
aldeído) e enzimas lipolíticas - lipases e cutinase166-169 (hidrólise de
ésteres) - onde são suspensas em misturas de vapor de água e do substrato.
Bioreatores nos quais o biocatalisador consiste de microrganismos intactos têm
sido usados em transformações visando a remoção de produtos tóxicos. A
utilização de microrganismos em tais sistemas é bem mais promissora devido a
sua habilidade de regenerar in situ os cofatores envolvidos na catálise por
enzimas tais como as oxidases. Os microrganismos imobilizados que têm sido
utilizados nesses sistemas sãoMycobacterium PY1170, Xanthobacter PY2170,
Methylosinus sp171, Methylocystis sp172, Pichia pastoris173,174 e Saccharomyces
cerevisiae175-177.
Há poucos exemplos de pesquisas detalhadas sobre a aplicação de biossensores
para a análise direta de substratos ou inibidores no estado gasoso. Algumas
aplicações analíticas de biocatalisadores em fase gasosa foram realizadas por
Guilbault178. Estes autores demonstraram que formaldeído pode ser analisado em
fase gasosa usando aformaldeído desidrogenase, imobilizada sobre um cristal
piezelétrico (CPZ), juntamente com os cofatores NAD+ e glutationa reduzida.
Este método é muito sensível (detecção de 1-100 ppm de formaldeído) e altamente
específico.
Imobilizações da colinesterase179 e de anticorpos180 (ver item seguinte)
imobilizados sobre CPZ têm sido utilizadas na detecção de pesticidas
organofosforados em nível de ppb. Respostas rápidas (2-3 min) foram obtidas e o
tempo de recuperação foi da ordem de 1-2 min. Estes resultados evidenciam
aplicações mais freqüentes e promissoras para os CPZ como sensores
imunoquímicos em fase gasosa. Entretanto, os parâmetros que afetam o desempenho
desses dispositivos devem ser identificados e otimizados antes que sejam
comercializados.
Outra estratégia tem sido empregada por Barzana et al.162,163 para a análise de
etanol na respiração ou de formaldeído no ar. O dispositivo consiste de uma
mistura de enzimas desidratadas (álcool oxidase e peroxidase) dispersas em um
suporte de celulose, contendo também o cromóforo 2,6-dicloroindofenol. O
produto da reação enzimática reage com o cromóforo adsorvido, dando origem a um
composto altamente colorido que indica semi-quantitativamente a concentração de
álcool na respiração.
Mitsubayashi et al.181, construíram um eletrodo com a álcool oxidaseimobilizada
por oclusão que exibiu alta seletividade para o etanol na presença de outros
gases. Os autores demonstraram que o dispositivo é aplicável no monitoramento
do álcool, expelido pela respiração, de indivíduos que ingeriram bebidas
alcoólicas.
A rotina para a determinação de gases é uma prática recomendável em ambientes
onde substâncias tóxicas (NH3, Cl2, CO, H2S, HCN), "irritantes
nervosos" (fosgênio), anestésicos (N2O), inflamáveis (CH4, propano,
etano), vapores orgânicos (hidrocarbonetos, óxido de etileno, dissulfeto de
carbono, formaldeído) e vapores inorgânicos (mercúrio) podem ocorrer. A máxima
concentração de exposição recomendada à muitas dessas substâncias situa-se na
faixa de ppm ou mesmo de ppb; assim, métodos de detecção com suficiente
sensibilidade são necessários. As análises desses gases mediadas por enzimas
podem representar uma alternativa simples, rápida e de baixo custo, se
comparada às metodologias convencionais. Um requisito adicional desejável é que
esses dispositivos analíticos devem ser suficientemente robustos para que
possam ser utilizados fora do laboratório, em estudos no campo.
Imunossensores em meio não-aquoso
Imunossensores são definidos como dispositivos analíticos que detectam a
ligação de um antígeno (AG) ao seu anticorpo (AC) específico. O produto da
reação imunoquímica na superfície do transdutor é monitorada e relacionada com
a concentração do antígeno.
Os imunossensores têm sido assunto de crescente interesse durante a última
década principalmente devido a potencialidade de sua aplicação como alternativa
da técnica de imunoanálise.
Sem considerar o transdutor ou a aplicação envolvida, um sistema ideal deve ter
as seguintes especificações:
- capacidade de detectar e quantificar o AG , dentro do intervalo de
concentração requerido (especificado) em tempo razoavelmente curto
(preferentemente em poucos segundos).
- capacidade de "traduzir" o evento da ligação sem a adição de
reagentes.
- capacidade de repetir a medida com o mesmo dispositivo (isto é, a reação
imunoquímica - AG-AC com o transdutor - deve ser reversível).
- capacidade de detectar a ligação específica do AG em amostras reais.
Há uma crucial diferença na natureza da ligação do complexo AG-AC com um
sistema enzimático. Neste, um substrato se liga ao centro ativo de uma enzima
para formar um complexo enzima-substrato, instável e transitório, antes da
formação do produto, sendo um processo inteiramente reversível. No curso normal
dessa reação, o produto continuamente será formado e liberado do sítio ativo,
até que seja estabelecido um equilíbrio. Esta situação é significativamente
diferente da ligação AG-AC.
A formação do complexo imuno-AG-AC é "permanente" e essencialmente
irreversível (sem aplicação de condições extremas), ocorrendo com uma maior
afinidade do que a dos sistemas enzimáticos. Esta falta de formação de produto
em uma reação imunoquímica simplifica seu possível modo de operação em um meio
orgânico, já que não depende dos processos de difusão do substrato e do produto
(em forma solúvel) a partir do sítio de ligação.
A reação imunológica em um ambiente orgânico oferece diversas vantagens:
aumento de solubilidade (melhora o limite de detecção por pré-concentração da
amostra); dependendo da polaridade do solvente orgânico empregado, pode ocorrer
distorção da estrutura quaternária do complexo AG-AC permitindo a modulação da
interação AG-AC (pode torná-la reversível sem comprometimento da conformação
funcional do sítio de ligação) podendo ainda resultar em maior estabilidade e
intervalo de temperatura operacional.
Dependendo da tecnologia de transdutor empregada (registre-se que não há
conversão do analito, mas sim, ligação) imunossensores podem ser divididos em
três principais classes: óticos, piezelétricos e eletroquímicos. Além disso,
com base no mecanismo de imunoanálise usado, eles podem ser diretos-a reação
imunoquímica é diretamente determinada pela medida das modificações físicas
induzidas pela formação do complexo, ou indireta - onde uma espécie que possa
ser detectada com elevada sensibilidade está combinada com o AC ou AG de
interesse. Uma sensibilidade suficientemente elevada pode ser obtida com
imunossensores diretos, apesar da possibilidade de ocorrer processos de
adsorção não-específica na superfície de biorreconhecimento, o que se constitui
no principal problema em sistemas diretos. Nestes casos, o uso de experimentos
adequadamente controlados é fundamental.
O primeiro trabalho sobre a ação de anticorpos em solventes orgânicos anidros
foi descrito por Russell et al.182, em 1989. Neste estudo foi demonstrado que a
ligação da 4-amino-bifenila com o anticorpo monoclonal 2E11 imobilizado era
forte e específica, não somente em água mas também em uma variedade de meios
não-aquosos, incluindo acetonitrila e dioxano. Os autores verificaram que a
reação de afinidade processa-se com elevada especificidade. Entretanto, ao
contrário da enzimologia em fase orgânica, uma clara preferência por ambientes
hidrofílicos é evidenciada pela modificação na constante de dissociação do
complexo entre os solventes empregados. Um solvente hidrofílico como o dioxano
(Log P = -1,1) tem uma constante de dissociação de 16 ± 2 µmol L-1, enquanto um
solvente hidrófobo como o 1-pentanol (Log P = +1,3) tem uma constante de
dissociação na faixa de 790 ± 360 µmol L-1.
Cristais PZ revestidos com AC foram empregados como sensores imunoquímicos em
fase gasosa para a determinação do Paration®. Tais sensores mostraram-se
promissores, com resposta rápida, seletiva e reversível, em níveis de ppb com
uma vida útil aceitável para AC imobilizados não-covalentemente180.
Com o advento da tecnologia de hibridoma183,184, tornou-se possível gerar
sítios ligantes de AC homogêneos com alta afinidade que reconhecem um grande
número de ligantes estruturalmente diferentes. Esses novos AC,
predominantemente baseados em estratégias desenvolvidas pela engenharia de
proteínas, possuem seletividade bem superior e exibem atividade catalítica.
Estes AC catalíticos (ACc) ou abzimas (AZ) têm um valor considerável como
ferramentas na bioquímica e na biologia molecular, com potencialidade de
aplicação nas áreas de química sintética (produção de agentes terapêuticos ou
na síntese de novos materiais farmacêuticos). Algumas publicações têm se
dedicado a esta promissora área de pesquisa185-188.
Janda et al.189 foram os primeiros autores a registrarem o comportamento de ACc
imobilizados tanto em meio aquoso como em solventes orgânicos. Seus resultados
evidenciaram que os ACc imobilizados em um suporte inorgânico retêm a mesma
atividade e estereosseletividade que exibem em soluções aquosas. Outros
autores190 também mostraram que diferentes AZ podem ser moderadamente ativas
gerando uma expectativa otimista sobre as possibilidades de sua implementação
no campo analítico.
Técnicas de (bio)impressão molecular de polímeros
O reconhecimento molecular e seus mecanismos fundamentais governam a maioria
dos processos biológicos e são, desta maneira, de amplo interesse. Esforços
consideráveis têm sido feitos para desenvolver sistemas de reconhecimento
sintético específico para uma dada molécula através da modificação das
propriedades de anticorpos191 ou de proteínas e enzimas em meios aquo-restritos
onde a rigidez da conformação é a base para as novas propriedades.
Com os trabalhos desenvolvidos por Cram192, Lehn193 e Pedersen194 teve inicio o
desenvolvimento de sistemas de reconhecimento sintético. Tais moléculas, a
exemplo de enzimas e especialmente de anticorpos, apresentam características
que conferem elevado grau de complementaridade molecular, sendo atribuída à sua
estrutura tridimensional a capacidade de reconhecimento molecular com alta
seletividade193. Paralelamente, tem sido também explorado o uso de sistemas
macromoleculares de reconhecimento naturais, tais como ciclodextrinas195 e,
naturalmente, pares de reconhecimento biológico tais como interações AC-AG,
efetor-receptor e enzima-inibidor.
A idéia de usar uma molécula impressa específica para coordenar a montagem de
monômeros sintéticos em torno de uma molécula de interesse, criando assim um
sítio reativo com especificidade, vem sendo considerada e discutida há muito
tempo. Somente recentemente essa técnica foi suficientemente desenvolvida para
a realização desse desafio.
A técnica de impressão molecular segue essencialmente duas diferentes
estratégias: (bio)impressão ou indução de memória por ligante (ligand-induced
memory) e a formação de polímeros de moléculas impressas (covalente ou não-
covalentemente). Considerando a importância que estas técnicas vêm assumindo,
tais aspectos serão discutidos a seguir.
Memória induzida por ligantes ou (bio)impressão molecular
A (bio)impressão molecular tem sido aplicada tanto a enzimas como também a
proteínas e outras macromoléculas naturais e sintéticas73-75, 77, 190, 196 e
exploram o aumento exagerado da rigidez conformacional da macromolécula em um
solvente orgânico anidro propiciada pelo fenômeno da "memória
enzimática".
A catálise produzida por enzimas reguladoras pode ser modulada pela presença de
ligantes, resultando em modificações conformacionais, observadas no caso de
diversas enzimas alostéricas197. Algumas dessas enzimas reagem lentamente à
presença de um ligante, assim retendo seu efeito mesmo após o ligante ter sido
removido. Tal comportamento depende do alto grau de rigidez da proteína198. Em
água, muitas enzimas não apresentam significativa rigidez, para que retenha a
conformação induzida na ausência do ligante. Essa conversão é conseguida em
ambiente não-aquoso.
Recentemente, Mingarro et al.199, introduziram a (bio) impressão de enzimas
lipolíticas usando interfaces água-lipídio. O processo se baseia na ativação
das enzimas em meio aquoso, seguida de resfriamento e eliminação de água
(processo freeze-dry) e sua utilização em meio não-aquoso. Com esta estratégia
os autores sugerem que a rigidez conformacional da enzima em meio não aquoso
mantém sua conformação, aumentando de forma substancial a acessibilidade do
substrato ao sítio ativo da enzima. Em certos casos, este procedimento permitiu
ativações em meio não-aquoso de duas ou mais ordens de magnitude.
No caso de proteínas não-enzimáticas ou outras macromoléculas, a estratégia
consiste de gerar sítios de ligação com o ligante com uma macromolécula não
relacionada em solução aquosa. A conformação será preservada após liofilização
e lavagem com um solvente orgânico anidro para a retirada do ligante e deve ser
mantida em ambiente anidro. Isto permite a obtenção de adsorventes específicos
e tem sido utilizado em separações cromatográficas em fase orgânica.
Polímeros de moléculas impressas (covalente ou não-covalente)
Conceitualmente bastante similar mas tecnicamente mais versátil e provavelmente
com maiores possibilidades de aplicações analíticas, os polímeros de moléculas
impressas (PMI) podem ser gerados com uma seletividade pré-determinada a partir
de uma dada molécula modelo. Duas estratégias principais tem sido adotadas: A
formação de PMIs por ligações covalentes e por ligações não-covalentes. Modelos
bastante ilustrativos destas metodologias podem ser vistos no trabalho de
Mosbach200.
Em ambos os casos, para a obtenção de moléculas impressas, os monômeros
funcionais são polimerizados na presença de uma molécula modelo, por interação
entre seus grupos funcionais. Esta molécula modelo será a responsável pelas
características do polímero. No caso covalente, há a reversibilidade desta
ligação entre a molécula impressa e o monômero. Na abordagem não-covalente, um
coquetel de monômeros funcionais aglutinados em torno da molécula principal por
interações não-covalentes (iônicas, pontes de hidrogênio, hidrofóbicas, etc.) é
polimerizado pelos procedimentos convencionais para produzir uma rede
polimérica tri-dimensional contendo cavidades (sítios) presumivelmente
complementares, tanto em forma como em função, da molécula impressa.
Polímeros de moléculas impressas (PMI) podem ser aplicados na separação de
substâncias racêmicas, polímeros ativos cataliticamente, análogos aos sítios de
ligação do anticorpo (ou receptor), com implicações gerais em bioquímica
analítica, particularmente na construção de sensores seletivos de analitos
(substratos).
Vlatakis et al.201, desenvolveram um procedimento analítico utilizando PMI para
a determinação de teofilina e diazepam como uma alternativa aos anticorpos
biológicos. Essas drogas foram usadas como moléculas impressas para preparar
polímeros que imitassem os sítios combinantes desses anticorpos. Os PMI obtidos
foram estáveis, sensíveis e de baixo custo.
Mais recentemente, Kris et al.202 descreveram o uso dos PMI para gerar placas
cromatográficas (camada fina) para a separação rápida de quirais de alguns
derivados de aminoácidos e Sellergren203, registrou a utilização dessa técnica
como etapa de enriquecimento seletivo na extração da pentamidina (droga de ação
antiprotozoária) de fluídos biológicos.
Com o refinamento das técnicas para obtenção de moléculas impressas, uma
aplicação adicional óbvia deve ser o uso de polímeros substratos-seletivos como
componentes de sensores. Por substituição da parte biológica do sistema
(enzimas ou anticorpo) por polímeros catalíticamente ativos ou ligantes
específicos preparados a partir de moléculas impressas específicas, sistemas
mais robustos serão obtidos. Trabalhos nessa área ainda são raros e poucos
dados estão disponíveis no momento.
Andersson et al.204, usando medidas de potencial, diferenciaram isômeros
ópticos de derivados de aminoácidos em uma coluna que continha moléculas
impressas. Em outro estudo205, elipsometria foi empregada para o monitoramento
da ligação específica da vitamina K1 em uma superfície de silicone impressa.
Todos esse estudos são preliminares mas não há dúvida que em um futuro próximo
muitos sensores utilizarão sistemas sintéticos contendo sítios de ligação com
elevada afinidade e seletividade. Há também em curso o desenvolvimento de
sistemas múltiplos similares ao já descrito "nariz artificial" (ou
eletrônico, como preferem alguns autores) para a determinação de um ou vários
compostos. Também é previsto o desenvolvimento de sistemas de "contato
direto", onde "eletrodos moleculares" possam estar em íntimo
contato com o transdutor para produzir uma resposta simultânea no momento da
ligação200.
Os principais aspectos das estratégias empregadas na construção de moléculas
impressas encontram-se resumidas na Tabela_11.
Atividade enzimática em fluídos supercríticos (FSC)
Fluídos supercríticos (FSC), são materiais acima de suas temperaturas críticas,
condição em que não podem ser liqüefeitos. Acima do ponto crítico, a energia
térmica molecular excede as forças atrativas entre as moléculas.
Conseqüentemente, as propriedades dos FSC é uma ponte entre as propriedades dos
gases e dos líquidos.
As densidades dos FSC são comparáveis àquelas dos líquidos enquanto que as
viscosidades e os coeficientes de difusão são comparáveis àquelas dos gases (
Tabela12
). Há pelo menos uma ordem de magnitude de diferença entre as viscosidades dos
FSC e líquidos e desta maneira, os coeficientes de difusão dos FSC são uma
ordem de magnitude superior àqueles dos líquidos.
Baixas viscosidades aumentam a velocidade de transferência de massa elevando
assim, as velocidades de difusão. Os FSC possuem tensão superficial próxima de
zero podendo, portanto penetrar em poros que são inacessíveis aos líquidos
convencionais. O uso dos FSC como dispersante para biocatálise é relativamente
novo. Os primeiros trabalhos concernentes apareceram em 1985206-208.
Recentemente, o assunto tem sido revisado por Kamat et al.209.
Do ponto de vista tecnológico há algumas vantagens em se realizar reações
catalisadas por enzimas em FSC a saber:
a. a natureza hidrofóbica dos FSC permite a solubilização de espécies
hidrofóbicas.
b. não ocorre contaminação microbiana nos bioreatores de FSC porque as
bactérias não crescem em meio não-aquoso.
c. a baixa atividade de água do meio alterará o equilíbrio termodinâmico das
reações hidrolíticas favorecendo a síntese.
d. as temperaturas críticas e pressões de uma variedade de compostos estão no
intervalo de 35 a 50oC e abaixo de 20 MPa, respectivamente.
e. enzimas são insolúveis em FSC, sendo facilmente recuperadas, tornando sua
imobilização desnecessária.
f. reagentes gasosos tais como oxigênio e hidrogênio, são altamente miscíveis
com FSC. Logo, as velocidades de reações envolvendo substratos gasosos não é
limitada pela solubilidade.
g. a solubilidade de um material em um FSC pode ser controlada pelo ajuste da
pressão e por adição de pequenas quantidades de co-solventes tais como metanol
e acetona.
h. sem modificar o solvente, o fracionamento, a purificação e a cristalização
do produto na mistura de reação são exeqüíveis, usando uma etapa de redução na
pressão em uma seqüência de separadores.
Há inúmeros fatores que afetam a catálise enzimática em FSC, não cabendo aqui
sua discussão. Dentre os parâmetros que a afetam, os mais importantes são:
pressão, concentração de água, solvente, temperatura e os processos de
transferência de massa.
Muitas enzimas são ativas e estáveis em FSC. As lipases, em particular, têm
sido amplamente usadas para catalisar uma variedade de reações em dióxido de
carbono supercrítico.
A utilização de outros FSC é também de grande interesse devido ao fato de que a
velocidade de reação de muitas reações são mais lentas em dióxido de carbono
supercrítico do que em outros fluídos (hexafluoreto de enxofre, etileno, etano,
fluorofórmio).
Embora a biocatálise em FSC tenha sido estudada por mais de uma década, muitos
fundamentos ainda permanecem obscuros. Por ex., a interação entre solvente-
enzima ainda requer uma avaliação qualitativa e quantitativa; a influência da
água sobre a atividade, estabilidade e especificidade não é ainda previsível.
Este e muitos outros aspectos deverão ser investigados em futuro breve.
A partir do trabalho pioneiro de Randolph et al.206, onde ficou demonstrado o
uso de um biocatalisador (a fosfatasealcalina), em FSC, objetivando hidrolizar
o fosfato de p-nitro- fenil dissódico, inúmeras aplicações industriais têm
surgido, como alternativa para as operações de destilação e de extração de
solvente210-213.
Na Tabela_13, lista-se algumas aplicações de enzimas que exibem atividade em
FSC.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Transformações enzimáticas em meio orgânico já haviam sido registradas no
início do século40. Entretanto, até muito recentemente havia o consenso de que
enzimas poderiam ser utilizadas apenas em meio aquoso e em temperaturas muito
próximas da ambiente. Em meados da última década, os trabalhos desenvolvidos
pelo grupo de Klibanov10, 11, 41 e a seguir por diversos outros
pesquisadores,9,123, abriram novas fronteiras para o emprego da enzimologia em
meios aquo-restritos, como por exemplo, a utilização de reações enzimáticas na
transformação de espécies insolúveis em água, ou a possibilidade de trabalhar
em condições de temperatura muito mais drásticas que as usuais em meio aquoso.
Neste curto espaço de tempo, diversas aplicações surgiram, podendo ser
destacada a síntese de numerosos produtos naturais, farmacêuticos, na área da
química fina e de ingredientes alimentares.
Aplicações analíticas também tem se beneficiado das reações enzimáticas em meio
orgânico. Biossensores amperométricos (contendo antígenos, enzimas purificadas,
ou tecidos vegetais) tem sido empregados com sucesso em meio orgânico para a
resolução de problemas analíticos em áreas tão diversas como a clínica, na
análise de alimentos e de amostras ambientais. Tais aplicações, ainda
incipientes, deverão registrar um intenso crescimento nos próximos anos.
Nota. Já na etapa de revisão deste trabalho, tivemos acesso ao excelente artigo
publicado em Química Nova227, que trata da imobilização de lipasesem organo-
géis, para a síntese de ésteres alifáticos em meio orgânico.