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BrBRCVHe0004-28032003000100003

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National varietyBr
Year2003
SourceScielo

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Infecção bacteriana no paciente cirrótico ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO Os pacientes com cirrose hepática têm maior prevalência de infecção bacteriana, que determina pior prognóstico(6, 15). As infecções mais freqüentemente descritas nessa população de doentes são a infecção urinária, a pneumonia, a infecção de pele e tecido celular subcutâneo e a peritonite bacteriana espontânea (PBE)(1, 6, 15).

As causas desta maior susceptibilidade à infecção, especialmente neste grupo de pacientes, são várias: desde a capacidade diminuída do fígado cirrótico em remover as endotoxinas e bactérias, em decorrência da circulação colateral existente e da diminuição da atividade do sistema retículo endotelial, até estado de imunodepressão sistêmica e local representado pelas alterações de complemento, imunoglobulinas e atividade opsônica plasmática e do líquido de ascite(2, 3, 14, 27).

Estudos realizados no Brasil chamaram a atenção para a associação da infecção bacteriana com a etiologia alcoólica da hepatopatia(27), com a classe C de Child-Pugh(6, 27) e com a ocorrência de hemorragia digestiva alta(1). Embora esses estudos tenham analisado número importante de pacientes, nenhum deles no nosso meio, foi realizado incluindo casuística significativamente maior e avaliando os critérios acima em conjunto.

O objetivo do presente estudo foi avaliar a prevalência de infecção bacteriana em população de pacientes cirróticos internados em hospital geral, bem como determinar a correlação da infecção bacteriana com a etiologia alcoólica da hepatopatia, com o grau de falência hepática e com a presença de hemorragia digestiva alta.

MATERIAL E MÉTODOS Foram avaliadas retrospectivamente 541 internações hospitalares consecutivas em 426 pacientes com cirrose hepática, internados no período de 1992 a 2000. A média de idade destes pacientes foi de 50,5 anos (15-95), sendo 71,2% do sexo masculino.

O diagnóstico de cirrose foi estabelecido pelo resultado da biopsia hepática (26,5%) e/ou por dados clínicos, ecográficos e endoscópicos compatíveis.

Observou-se ascite em 54,7% dos casos.

A causa da hepatopatia era definida de acordo com os seguintes critérios: ingestão de álcool acima de 80 g por dia, por no mínimo 12 anos(20), caracterizava etiologia alcoólica, presença de HBsAg e/ou anti-VHC, etiologia viral B e C, respectivamente, titulação do fator antinuclear e anticorpo antimúsculo liso superior a 1:40 sugeria hepatopatia de origem auto-imune; anticorpo antimitocôndria em nível superior a 1:40 era utilizado no diagnóstico de cirrose biliar primária. Níveis de ferritina (>150 ng/mL na mulher e 250 ng/ mL no homem) e saturação de transferrina (>50% na mulher e 62% no homem) elevados, sugeriam hemocromatose(9). Cobre sérico elevado, ceruloplasmina inferior a 20 mg/dL e anéis de Kayser-Fleischer eram considerados para o diagnóstico da doença de Wilson(30). Valores reduzidos de alfa-1-antitripsina eram considerados para o diagnóstico de deficiência desta enzima(21). Foi sistematicamente pesquisado o uso de medicamentos considerados hepatotóxicos.

Nos casos em que não foi preenchido nenhum dos critérios acima, a hepatopatia foi considerada criptogenética.

Utilizando os critérios especificados, em 150 pacientes a gênese da hepatopatia foi atribuída ao álcool (35,4%), em 145, ao vírus da hepatite C (34,0%), em 92, ao álcool associado ao vírus da hepatite C (21,6%) e em 21, ao vírus da hepatite B (5,0%). Outros diagnósticos foram responsáveis pelos seis casos restantes (1,4%), sendo três por etiologia medicamentosa, um por cirrose biliar primária e dois por hepatite auto-imune. Em 12 casos (2,8%) não foi possível o diagnóstico etiológico.

Os pacientes foram classificados quanto ao grau de disfunção hepática de acordo com a classificação de Child modificada por Pugh(23). se obtiveram dados descritivos que permitissem utilizá-la com segurança em 470 casos. Destes, 24,9% pertenciam à classe A, 41,1% à classe B e 34,1% à classe C.

As características da população avaliada podem ser observadas na Tabela_1.

O diagnóstico de PBE foi estabelecido quando a contagem de polimorfonucleares no líquido de ascite era superior a 250 células/mm³, independentemente do resultado da cultura(26). O diagnóstico de infecção urinária foi estabelecido na dependência de sintomas característicos, associados ao crescimento bacteriano em cultura de urina superior a 100.000 colônias/mL. Broncopneumonia foi diagnosticada através de dados clínicos, radiológicos e bacteriológicos compatíveis e o diagnóstico de infecção de pele e subcutâneo foi estabelecido na presença de edema e hiperemia em pele e/ou partes moles. Pacientes sem fonte aparente de infecção, mas com febre, leucocitose com desvio à esquerda, e/ou hemocultura positiva foram considerados como tendo bacteremia.

O diagnóstico de hemorragia digestiva alta foi estabelecido mediante exteriorização de sangramento (melena e/ou hematêmese) ou queda do hematócrito/ hemoglobina associadas a achados endoscópicos compatíveis com sangramento ativo ou recente.

O desfecho considerado foi alta ou óbito do paciente no período da internação hospitalar.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do hospital.

Realizou-se análise descritiva dos dados e calculou-se a média e desvio-padrão para as variáveis quantitativas e percentual para as categóricas. Para avaliar a associação entre as variáveis categóricas foi realizado o teste do Qui- quadrado.

O nível de significância considerado para análise estatística foi 5%.

RESULTADOS Foram diagnosticados 135 episódios de infecção bacteriana nas 541 internações analisadas (25%). A média de idade dos pacientes infectados foi de 46,5 anos (15-75), sendo 68,1% do sexo masculino. As infecções mais freqüentemente observadas foram a do trato urinário em 42 episódios (31,1%), a PBE em 35 (25,9%) e a broncopneumonia em 34 (25,2%). Ocorreu associação de infecção urinária e broncopneumonia em cinco casos (3,7%). Infecção de pele e tecido celular subcutâneo foi observada em 15 casos (11,1%). Bacteremia sem foco definido ocorreu nos quatro casos restantes (2,9%).

Em relação à presença de infecção e sua associação com a etiologia da cirrose, observou-se maior freqüência da etiologia alcoólica nos pacientes infectados (68,9%), quando comparada a outras causas de hepatopatia (30,4%) (P = 0,021).

Por outro lado, os pacientes infectados eram predominantemente da classe Child- Pugh B ou C (84,8%) quando comparados aos não-infectados (72,1%) (P = 0,006).

A hemorragia digestiva alta ocorreu em 35 casos da amostra (6,5%), sendo que se observou infecção em 42,9% dos episódios. Quando se avaliaram os pacientes sem sangramento, a infecção esteve presente em 23,7% dos casos. Houve diferença estatística em relação à freqüência de infecção entre estas duas populações (P = 0,011).

O percentual de óbitos na amostra geral de pacientes foi 4,3%. Os óbitos foram mais freqüentes nos infectados (8,9%), quando comparado aos não-infectados (2,7%) (P = 0,002).

Nos pacientes infectados, quando a etiologia da hepatopatia era decorrente do álcool, observou-se que a mortalidade (9,6%) não diferiu significativamente daquela observada quando a gênese da mesma era decorrente de outras causas (7,1%) (P = 0,63).

Por outro lado, na análise da mortalidade dos pacientes infectados em relação ao grau de disfunção hepatocelular, observou-se que os óbitos destes ocorreram predominantemente nos pacientes pertencentes às classes B ou C de Child Pugh (95,7%), quando comparados àqueles casos pertencentes à classe A (4,3%) (P = 0,019).

DISCUSSÃO A prevalência de infecções bacterianas nos pacientes com cirrose hepática varia, na literatura, de 33% a 57%. No presente estudo a prevalência de infecção nos pacientes cirróticos hospitalizados foi de 25%, pouco menor do que em alguns estudos brasileiros(1, 6, 27).

A PBE, a infecção do trato urinário (ITU), a pneumonia e a infecção de pele e tecido celular subcutâneo são as infecções mais freqüentemente observadas nos pacientes com hepatopatia crônica(1, 6, 15, 27).

A PBE é a infecção mais freqüente em alguns estudos(1, 6, 27), embora no presente seja a segunda em freqüência, responsável por 25,9% dos casos. O principal fator desencadeador do surgimento da PBE parece ser a quebra da barreira mucosa intestinal e o mecanismo proposto, a translocação bacteriana.

Esta representa a passagem de bactérias não-patogênicas, que normalmente colonizam o trato gastrointestinal pela parede intestinal, infectando sítios distantes, como nódulos linfáticos mesentéricos, baço e fígado. Os três principais mecanismos para explicar a translocação bacteriana, presentes nos pacientes com cirrose, são: alteração da flora intestinal, alteração da permeabilidade da mucosa intestinal e a diminuição das defesas do hospedeiro(2, 11, 31). Uma vez atingindo a circulação sangüínea, em decorrência da translocação bacteriana, poderá sobrevir quadro de PBE devido à incapacidade do fígado em remover as bactérias da corrente sangüínea, pois as anastomoses portossistêmicas, tanto intra, quanto extra-hepáticas, permitem que as bactérias realizem curto-circuito, fugindo à captação do sistema retículo- endotelial que, provavelmente, é o maior sítio de remoção de bactérias(8, 10).

Assim, tendência à perpetuação da bacteremia, oferecendo oportunidade aos microorganismos de causarem infecção metastática em sítios suscetíveis. Por outro lado, a infecção no líquido de ascite é possibilitada pela diminuição de sua capacidade em destruir as bactérias em decorrência do comprometimento da atividade bactericida e opsônica do mesmo(28, 29).

A ITU ocorre em até 54% dos pacientes com cirrose(32), embora dois estudos(1, 27) demonstrem prevalência bem menor, em torno de 10%. Na presente casuística a prevalência foi de 31,1%. Postula-se que a alta incidência de ITU nos pacientes com cirrose, especialmente naqueles com ascite, esteja correlacionada a volume urinário residual e possível disfunção vesical, freqüentemente encontrada nesses pacientes(4). Contudo, na maioria das vezes, essa infecção ocorre no hospital e pode estar favorecida por instrumentação da uretra (colocação de sonda urinária), que é freqüente nesses pacientes, seja para controle de diurese ou por perda do controle esfincteriano, secundários à encefalopatia portossistêmica(12).

Na literatura, e também na presente série, a pneumonia está entre as três infecções mais freqüentes no paciente cirrótico. A prevalência aqui detectada de 25,2% está de acordo com os 20% descritos(1, 6, 27). Postula-se que esta freqüência aumentada possa estar relacionada à aspiração decorrente do sangramento gastrointestinal alto, à encefalopatia hepática e aos vários procedimentos diagnósticos e terapêuticos realizados secundariamente(22). Por outro lado, estudo avaliando modelo de cirrose em ratos, analisou a resposta destes comparados com controles (sem cirrose), à indução de pneumonia por inoculação intratraqueal de Streptococcus pneumoniae. Nesse estudo, o clareamento pulmonar do pneumococo foi mais reduzido nos ratos com cirrose e ascite, justificando, assim, maior probabilidade do desenvolvimento de infecção respiratória(18).

As infecções dermatológicas ocorrem em 2% a 11% dos pacientes cirróticos(6, 21) e parecem estar relacionadas à infiltração da pele e do tecido celular subcutâneo, decorrentes da retenção de água(6). Na casuística avaliada observou-se esta complicação em 11,1% dos casos.

No presente estudo, observou-se maior prevalência de infecção quando a etiologia da hepatopatia era relacionada com o álcool; este achado também foi observado no estudo de ROSA et al.(27). Acredita-se que o álcool aumente a permeabilidade da mucosa intestinal e diminua a ação das células de Kupffer(16, 34), favorecendo assim a infecção. O papel do álcool como imunossupressor também não deve ser esquecido(17).

Por outro lado, o grau de comprometimento da função hepática correlaciona-se com a maior prevalência de infecção, fato constatado tanto na literatura(1, 6, 27), quanto no estudo presente. Assim, observou-se que 84,8% dos pacientes com infecção eram Child B ou C. Esses achados, provavelmente, sejam decorrentes de maior imunodepressão observada nesta população de doentes.

Outra variável correlacionada a maior probabilidade de infecção é a ocorrência de hemorragia gastrointestinal. Estudos prospectivos têm demonstrado que as infecções bacterianas, na ausência de profilaxia, são documentadas em 22% dos pacientes nas primeiras 48 horas da admissão por hemorragia digestiva alta e que em 7 a 14 dias após o sangramento inicial, a incidência de infecção bacteriana alcance 35% a 66%(5, 13). Isto pode ocorrer por aumento da translocação bacteriana e por depressão do sistema retículo endotelial secundário à hipovolemia(25). No presente estudo houve maior prevalência de infecção nos pacientes com hemorragia digestiva alta (42,9%), sendo esta diferença estatisticamente significativa, quando comparada aos pacientes sem esta complicação. O estudo de ALMEIDA et al.(1) também demonstrou diferença na prevalência de infecção entre pacientes com ou sem hemorragia digestiva, apesar de não ter alcançado significância estatística.

Tendo em vista a freqüência das infecções nos pacientes com hepatopatia crônica, é fundamental que estejamos atentos para o impacto que a mesma produz no prognóstico destes doentes. Assim, considera-se que as infecções são responsáveis por até 25% das mortes nesta população de pacientes(6, 7, 24) tanto diretamente, quanto pela precipitação de encefalopatia portossistêmica (33), hemorragia digestiva alta(13) ou insuficiência renal(19). Na presente série, a mortalidade foi significativamente maior na presença de infecção, quando comparada aos casos que não cursaram com esta complicação. Semelhante ao descrito na literatura(1, 27), houve associação significativa entre o grau de disfunção hepática e a mortalidade; quase todos os pacientes infectados que morreram pertenciam à classe B ou C de Child-Pugh. Por outro lado, como demonstrado em outro estudo(27), não houve correlação entre a mortalidade e a etiologia da hepatopatia.

Conclui-se que é freqüente o diagnóstico de infecção bacteriana no paciente cirrótico hospitalizado e que a mesma correlaciona-se com a etiologia alcoólica da hepatopatia, com a reserva funcional hepática e com a presença de sangramento digestivo. A mortalidade hospitalar é maior nos pacientes infectados, principalmente naqueles com pior função hepática.


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