Infecção bacteriana no paciente cirrótico
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
Os pacientes com cirrose hepática têm maior prevalência de infecção bacteriana,
que determina pior prognóstico(6, 15). As infecções mais freqüentemente
descritas nessa população de doentes são a infecção urinária, a pneumonia, a
infecção de pele e tecido celular subcutâneo e a peritonite bacteriana
espontânea (PBE)(1, 6, 15).
As causas desta maior susceptibilidade à infecção, especialmente neste grupo de
pacientes, são várias: desde a capacidade diminuída do fígado cirrótico em
remover as endotoxinas e bactérias, em decorrência da circulação colateral
existente e da diminuição da atividade do sistema retículo endotelial, até
estado de imunodepressão sistêmica e local representado pelas alterações de
complemento, imunoglobulinas e atividade opsônica plasmática e do líquido de
ascite(2, 3, 14, 27).
Estudos realizados no Brasil chamaram a atenção para a associação da infecção
bacteriana com a etiologia alcoólica da hepatopatia(27), com a classe C de
Child-Pugh(6, 27) e com a ocorrência de hemorragia digestiva alta(1). Embora
esses estudos tenham analisado número importante de pacientes, nenhum deles no
nosso meio, foi realizado incluindo casuística significativamente maior e
avaliando os critérios acima em conjunto.
O objetivo do presente estudo foi avaliar a prevalência de infecção bacteriana
em população de pacientes cirróticos internados em hospital geral, bem como
determinar a correlação da infecção bacteriana com a etiologia alcoólica da
hepatopatia, com o grau de falência hepática e com a presença de hemorragia
digestiva alta.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram avaliadas retrospectivamente 541 internações hospitalares consecutivas em
426 pacientes com cirrose hepática, internados no período de 1992 a 2000. A
média de idade destes pacientes foi de 50,5 anos (15-95), sendo 71,2% do sexo
masculino.
O diagnóstico de cirrose foi estabelecido pelo resultado da biopsia hepática
(26,5%) e/ou por dados clínicos, ecográficos e endoscópicos compatíveis.
Observou-se ascite em 54,7% dos casos.
A causa da hepatopatia era definida de acordo com os seguintes critérios:
ingestão de álcool acima de 80 g por dia, por no mínimo 12 anos(20),
caracterizava etiologia alcoólica, presença de HBsAg e/ou anti-VHC, etiologia
viral B e C, respectivamente, titulação do fator antinuclear e anticorpo
antimúsculo liso superior a 1:40 sugeria hepatopatia de origem auto-imune;
anticorpo antimitocôndria em nível superior a 1:40 era utilizado no diagnóstico
de cirrose biliar primária. Níveis de ferritina (>150 ng/mL na mulher e 250 ng/
mL no homem) e saturação de transferrina (>50% na mulher e 62% no homem)
elevados, sugeriam hemocromatose(9). Cobre sérico elevado, ceruloplasmina
inferior a 20 mg/dL e anéis de Kayser-Fleischer eram considerados para o
diagnóstico da doença de Wilson(30). Valores reduzidos de alfa-1-antitripsina
eram considerados para o diagnóstico de deficiência desta enzima(21). Foi
sistematicamente pesquisado o uso de medicamentos considerados hepatotóxicos.
Nos casos em que não foi preenchido nenhum dos critérios acima, a hepatopatia
foi considerada criptogenética.
Utilizando os critérios especificados, em 150 pacientes a gênese da hepatopatia
foi atribuída ao álcool (35,4%), em 145, ao vírus da hepatite C (34,0%), em 92,
ao álcool associado ao vírus da hepatite C (21,6%) e em 21, ao vírus da
hepatite B (5,0%). Outros diagnósticos foram responsáveis pelos seis casos
restantes (1,4%), sendo três por etiologia medicamentosa, um por cirrose biliar
primária e dois por hepatite auto-imune. Em 12 casos (2,8%) não foi possível o
diagnóstico etiológico.
Os pacientes foram classificados quanto ao grau de disfunção hepática de acordo
com a classificação de Child modificada por Pugh(23). Só se obtiveram dados
descritivos que permitissem utilizá-la com segurança em 470 casos. Destes,
24,9% pertenciam à classe A, 41,1% à classe B e 34,1% à classe C.
As características da população avaliada podem ser observadas na Tabela_1.
O diagnóstico de PBE foi estabelecido quando a contagem de polimorfonucleares
no líquido de ascite era superior a 250 células/mm³, independentemente do
resultado da cultura(26). O diagnóstico de infecção urinária foi estabelecido
na dependência de sintomas característicos, associados ao crescimento
bacteriano em cultura de urina superior a 100.000 colônias/mL. Broncopneumonia
foi diagnosticada através de dados clínicos, radiológicos e bacteriológicos
compatíveis e o diagnóstico de infecção de pele e subcutâneo foi estabelecido
na presença de edema e hiperemia em pele e/ou partes moles. Pacientes sem fonte
aparente de infecção, mas com febre, leucocitose com desvio à esquerda, e/ou
hemocultura positiva foram considerados como tendo bacteremia.
O diagnóstico de hemorragia digestiva alta foi estabelecido mediante
exteriorização de sangramento (melena e/ou hematêmese) ou queda do hematócrito/
hemoglobina associadas a achados endoscópicos compatíveis com sangramento ativo
ou recente.
O desfecho considerado foi alta ou óbito do paciente no período da internação
hospitalar.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do hospital.
Realizou-se análise descritiva dos dados e calculou-se a média e desvio-padrão
para as variáveis quantitativas e percentual para as categóricas. Para avaliar
a associação entre as variáveis categóricas foi realizado o teste do Qui-
quadrado.
O nível de significância considerado para análise estatística foi 5%.
RESULTADOS
Foram diagnosticados 135 episódios de infecção bacteriana nas 541 internações
analisadas (25%). A média de idade dos pacientes infectados foi de 46,5 anos
(15-75), sendo 68,1% do sexo masculino. As infecções mais freqüentemente
observadas foram a do trato urinário em 42 episódios (31,1%), a PBE em 35
(25,9%) e a broncopneumonia em 34 (25,2%). Ocorreu associação de infecção
urinária e broncopneumonia em cinco casos (3,7%). Infecção de pele e tecido
celular subcutâneo foi observada em 15 casos (11,1%). Bacteremia sem foco
definido ocorreu nos quatro casos restantes (2,9%).
Em relação à presença de infecção e sua associação com a etiologia da cirrose,
observou-se maior freqüência da etiologia alcoólica nos pacientes infectados
(68,9%), quando comparada a outras causas de hepatopatia (30,4%) (P = 0,021).
Por outro lado, os pacientes infectados eram predominantemente da classe Child-
Pugh B ou C (84,8%) quando comparados aos não-infectados (72,1%) (P = 0,006).
A hemorragia digestiva alta ocorreu em 35 casos da amostra (6,5%), sendo que se
observou infecção em 42,9% dos episódios. Quando se avaliaram os pacientes sem
sangramento, a infecção esteve presente em 23,7% dos casos. Houve diferença
estatística em relação à freqüência de infecção entre estas duas populações (P
= 0,011).
O percentual de óbitos na amostra geral de pacientes foi 4,3%. Os óbitos foram
mais freqüentes nos infectados (8,9%), quando comparado aos não-infectados
(2,7%) (P = 0,002).
Nos pacientes infectados, quando a etiologia da hepatopatia era decorrente do
álcool, observou-se que a mortalidade (9,6%) não diferiu significativamente
daquela observada quando a gênese da mesma era decorrente de outras causas
(7,1%) (P = 0,63).
Por outro lado, na análise da mortalidade dos pacientes infectados em relação
ao grau de disfunção hepatocelular, observou-se que os óbitos destes ocorreram
predominantemente nos pacientes pertencentes às classes B ou C de Child Pugh
(95,7%), quando comparados àqueles casos pertencentes à classe A (4,3%) (P =
0,019).
DISCUSSÃO
A prevalência de infecções bacterianas nos pacientes com cirrose hepática
varia, na literatura, de 33% a 57%. No presente estudo a prevalência de
infecção nos pacientes cirróticos hospitalizados foi de 25%, pouco menor do que
em alguns estudos brasileiros(1, 6, 27).
A PBE, a infecção do trato urinário (ITU), a pneumonia e a infecção de pele e
tecido celular subcutâneo são as infecções mais freqüentemente observadas nos
pacientes com hepatopatia crônica(1, 6, 15, 27).
A PBE é a infecção mais freqüente em alguns estudos(1, 6, 27), embora no
presente seja a segunda em freqüência, responsável por 25,9% dos casos. O
principal fator desencadeador do surgimento da PBE parece ser a quebra da
barreira mucosa intestinal e o mecanismo proposto, a translocação bacteriana.
Esta representa a passagem de bactérias não-patogênicas, que normalmente
colonizam o trato gastrointestinal pela parede intestinal, infectando sítios
distantes, como nódulos linfáticos mesentéricos, baço e fígado. Os três
principais mecanismos para explicar a translocação bacteriana, presentes nos
pacientes com cirrose, são: alteração da flora intestinal, alteração da
permeabilidade da mucosa intestinal e a diminuição das defesas do hospedeiro(2,
11, 31). Uma vez atingindo a circulação sangüínea, em decorrência da
translocação bacteriana, poderá sobrevir quadro de PBE devido à incapacidade do
fígado em remover as bactérias da corrente sangüínea, pois as anastomoses
portossistêmicas, tanto intra, quanto extra-hepáticas, permitem que as
bactérias realizem curto-circuito, fugindo à captação do sistema retículo-
endotelial que, provavelmente, é o maior sítio de remoção de bactérias(8, 10).
Assim, há tendência à perpetuação da bacteremia, oferecendo oportunidade aos
microorganismos de causarem infecção metastática em sítios suscetíveis. Por
outro lado, a infecção no líquido de ascite é possibilitada pela diminuição de
sua capacidade em destruir as bactérias em decorrência do comprometimento da
atividade bactericida e opsônica do mesmo(28, 29).
A ITU ocorre em até 54% dos pacientes com cirrose(32), embora dois estudos(1,
27) demonstrem prevalência bem menor, em torno de 10%. Na presente casuística a
prevalência foi de 31,1%. Postula-se que a alta incidência de ITU nos pacientes
com cirrose, especialmente naqueles com ascite, esteja correlacionada a volume
urinário residual e possível disfunção vesical, freqüentemente encontrada
nesses pacientes(4). Contudo, na maioria das vezes, essa infecção ocorre no
hospital e pode estar favorecida por instrumentação da uretra (colocação de
sonda urinária), que é freqüente nesses pacientes, seja para controle de
diurese ou por perda do controle esfincteriano, secundários à encefalopatia
portossistêmica(12).
Na literatura, e também na presente série, a pneumonia está entre as três
infecções mais freqüentes no paciente cirrótico. A prevalência aqui detectada
de 25,2% está de acordo com os 20% descritos(1, 6, 27). Postula-se que esta
freqüência aumentada possa estar relacionada à aspiração decorrente do
sangramento gastrointestinal alto, à encefalopatia hepática e aos vários
procedimentos diagnósticos e terapêuticos realizados secundariamente(22). Por
outro lado, estudo avaliando modelo de cirrose em ratos, analisou a resposta
destes comparados com controles (sem cirrose), à indução de pneumonia por
inoculação intratraqueal de Streptococcus pneumoniae. Nesse estudo, o
clareamento pulmonar do pneumococo foi mais reduzido nos ratos com cirrose e
ascite, justificando, assim, maior probabilidade do desenvolvimento de infecção
respiratória(18).
As infecções dermatológicas ocorrem em 2% a 11% dos pacientes cirróticos(6, 21)
e parecem estar relacionadas à infiltração da pele e do tecido celular
subcutâneo, decorrentes da retenção de água(6). Na casuística avaliada
observou-se esta complicação em 11,1% dos casos.
No presente estudo, observou-se maior prevalência de infecção quando a
etiologia da hepatopatia era relacionada com o álcool; este achado também foi
observado no estudo de ROSA et al.(27). Acredita-se que o álcool aumente a
permeabilidade da mucosa intestinal e diminua a ação das células de Kupffer(16,
34), favorecendo assim a infecção. O papel do álcool como imunossupressor
também não deve ser esquecido(17).
Por outro lado, o grau de comprometimento da função hepática correlaciona-se
com a maior prevalência de infecção, fato constatado tanto na literatura(1, 6,
27), quanto no estudo presente. Assim, observou-se que 84,8% dos pacientes com
infecção eram Child B ou C. Esses achados, provavelmente, sejam decorrentes de
maior imunodepressão observada nesta população de doentes.
Outra variável correlacionada a maior probabilidade de infecção é a ocorrência
de hemorragia gastrointestinal. Estudos prospectivos têm demonstrado que as
infecções bacterianas, na ausência de profilaxia, são documentadas em 22% dos
pacientes nas primeiras 48 horas da admissão por hemorragia digestiva alta e
que em 7 a 14 dias após o sangramento inicial, a incidência de infecção
bacteriana alcance 35% a 66%(5, 13). Isto pode ocorrer por aumento da
translocação bacteriana e por depressão do sistema retículo endotelial
secundário à hipovolemia(25). No presente estudo houve maior prevalência de
infecção nos pacientes com hemorragia digestiva alta (42,9%), sendo esta
diferença estatisticamente significativa, quando comparada aos pacientes sem
esta complicação. O estudo de ALMEIDA et al.(1) também demonstrou diferença na
prevalência de infecção entre pacientes com ou sem hemorragia digestiva, apesar
de não ter alcançado significância estatística.
Tendo em vista a freqüência das infecções nos pacientes com hepatopatia
crônica, é fundamental que estejamos atentos para o impacto que a mesma produz
no prognóstico destes doentes. Assim, considera-se que as infecções são
responsáveis por até 25% das mortes nesta população de pacientes(6, 7, 24)
tanto diretamente, quanto pela precipitação de encefalopatia portossistêmica
(33), hemorragia digestiva alta(13) ou insuficiência renal(19). Na presente
série, a mortalidade foi significativamente maior na presença de infecção,
quando comparada aos casos que não cursaram com esta complicação. Semelhante ao
descrito na literatura(1, 27), houve associação significativa entre o grau de
disfunção hepática e a mortalidade; quase todos os pacientes infectados que
morreram pertenciam à classe B ou C de Child-Pugh. Por outro lado, como já
demonstrado em outro estudo(27), não houve correlação entre a mortalidade e a
etiologia da hepatopatia.
Conclui-se que é freqüente o diagnóstico de infecção bacteriana no paciente
cirrótico hospitalizado e que a mesma correlaciona-se com a etiologia alcoólica
da hepatopatia, com a reserva funcional hepática e com a presença de
sangramento digestivo. A mortalidade hospitalar é maior nos pacientes
infectados, principalmente naqueles com pior função hepática.