A influência das fases oral e faríngea na dinâmica da deglutição
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A deglutição é um fenômeno dinâmico ligado à manutenção da higidez biológica,
que se verifica pela ingestão de nutrientes adequados, absorvidos e
incorporados pelo organismo. É dividida, segundo a região em que o fenômeno se
desenvolve, em fases oral, faríngea e esôfago-gástrica(1, 8, 9, 16). Quanto a
sua execução, são definidas: a oral como voluntária, a faríngea e a esôfago-
gástrica como involuntárias(1, 8, 9, 10).
A fase oral da deglutição pode ainda ser subdividida nos estágios de preparo,
qualificação, organização e ejeção(9). O preparo foi definido como o tempo em
que o alimento é insalivado e triturado pela mastigação. A qualificação, que se
inicia em associação com o estágio de preparo, caracteriza-se pela percepção do
bolo em seu volume, consistência, densidade, grau de umidificação e inúmeras
outras características físicas e químicas que importam para adequada interação
com o bolo alimentar. No estágio de organização, este bolo é usualmente
posicionado sobre o dorso da língua. As estruturas osteomúsculo-articulares,
responsáveis pela morfofuncionalidade da boca, organizam-se para a ejeção que
se cumpre pelo ajustamento das paredes bucais e projeção posterior da língua,
gerando pressão propulsiva, conduzindo o bolo e transferindo pressão para a
faringe(9, 10).
Além do posicionamento do mesmo na cavidade oral, a integridade morfofuncional
das estruturas envolvidas na dinâmica da ejeção influencia na qualidade desta
ejeção. A relação entre a organização do bolo no interior da cavidade oral e
sua ejeção foi considerada de dois modos distintos(14, 27). Um, onde o bolo a
ser ejetado está posicionado sobre o dorso da língua, que o comprime de
anterior para posterior ("tipper"). A extremidade anterior da língua apresenta-
se aposta ântero-superiormente, em nível do trígono dos incisivos e a
comunicação da cavidade oral com a orofaringe abre-se por projeção posterior do
palato. A orofaringe, receptiva, receberá o conteúdo oral ejetado. O outro,
onde o bolo a ser ejetado posiciona-se acima e abaixo da língua ("dipper").
Aqui, no momento da ejeção oral, o primeiro volume a ser transferido é o que
está disposto acima da língua e em seqüência, o que se posicionou sob a língua.
A força propulsiva, indispensável na condução do alimento, é gerada na cavidade
oral. O volume, a densidade e a viscosidade do material a ser deglutido
determinam a pressão a ser gerada nessa cavidade durante a ejeção,
influenciando a fase faríngea(7, 12).
A fase faríngea da deglutição inicia-se com a invasão pressórica da orofaringe
determinada pela ejeção oral(7). Durante a fase faríngea, o escape nasal é
impedido pelo ajuste do palato mole contra a parede posterior da faringe,
evitando, deste modo, a dissipação da pressão(7, 8, 15, 23). Simultaneamente
ocorre o início da propagação de seqüência contrátil da musculatura constritora
da faringe em sentido crânio-caudal. O bolo alimentar prossegue em direção à
laringofaringe que, neste momento, encontra-se receptiva, pela ampliação
promovida pelos músculos dilatadores e pela elevação e anteriorização do
complexo hiolaríngeo(7, 15, 23).
Número significativo de doenças está associado com distúrbios da deglutição
como parte de seu quadro clínico. Estes distúrbios, freqüentemente,
caracterizam o processo disfágico. As causas neurológicas são as mais
freqüentes e, usualmente, as que causam maior repercussão na dinâmica da
deglutição(16, 18, 20, 25, 32, 33).
A disfagia é freqüentemente observada no acidente vascular encefálico (AVE),
principalmente na sua fase aguda(20), podendo ser encontrada em 80% dos casos.
Em muitos destes, a alimentação por via oral torna-se difícil, sendo necessário
o emprego de via de alimentação alternativa. A pneumonia aspirativa é fator
complicador, podendo ser identificada em 11% dos casos(11).
A doença de Parkinson (DP) é uma doença neurodegenerativa, caracterizada,
principalmente, pela presença de rigidez, tremor e bradicinesia(5). Diversos
estudos apontam para a existência de dificuldades de deglutição em associação a
essa doença(5). Em estudo realizado por FUH et al.(18), constatou-se que na DP
existem alterações da dinâmica da deglutição em 63,2% dos casos, com presença
de aspiração em 15,8%. O comprometimento da fase oral da deglutição foi
identificado em 50% dos indivíduos e, entre estes, 11 apresentaram alteração da
fase faríngea. Admite-se que, além da rigidez, há diversas causas não
diretamente relacionadas à DP que contribuem para a disfagia(31).
Diversos são os métodos que possibilitam o estudo e a compreensão da dinâmica
da deglutição e suas disfunções. A videofluoroscopia tem sido considerada como
o melhor deles para a avaliação da deglutição(3, 6, 19, 23). Trata-se de método
radiológico, com baixo índice de exposição à radiação, que permite acompanhar
toda a dinâmica do fenômeno da deglutição em tempo real, possibilitando a
correlação morfológica e funcional dos eventos observados. O registro em fita
de vídeo a uma velocidade de 30 quadros por segundo possibilita a análise e a
re-análise dos exames, sem a necessidade de novas exposições à radiação X. O
método tem sido indicado como auxiliar no diagnóstico e tratamento dos
distúrbios da deglutição, especialmente da fase faríngea(22, 28).
Embora a dinâmica da deglutição ocorra de forma integrada, observa-se que a
fase oral não tem sido tão valorizada quanto a fase faríngea.
O presente trabalho objetivou: 1. avaliar, através do método
videofluoroscópico, a fase oral da deglutição, para observar as características
da organização do bolo líquido baritado em voluntários sadios e as variações
desta organização em exames de pacientes disfágicos, 2. estabelecer a inter-
relação funcional dos estágios de organização e ejeção oral do referido bolo, e
3. verificar a presença (ou ausência) de interferência do binômio organização/
ejeção sobre a fase faríngea da deglutição.
MATERIAL E MÉTODO
Foram analisados 44 exames videofluoroscópicos de indivíduos de ambos os sexos,
sendo 14 voluntários sadios (idade média = 31 anos) e 30 com doença neurológica
associada, divididos em 15 com DP (idade média = 66,1 anos) e 15 com AVE (idade
média = 63,6 anos). Os voluntários sadios não apresentavam alterações
morfológicas ou funcionais perceptíveis na cavidade oral e não tinham queixas
ou história prévia de distúrbios da deglutição.
Todos os indivíduos estudados foram submetidos a avaliação da dinâmica da
deglutição, seguindo protocolo descrito por JUNQUEIRA e COSTA(22). Privilegiou-
se a incidência em perfil direito com meio de contraste líquido (solução de
sulfato de bário).
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital
Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e os voluntários assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os exames foram realizados no Serviço de Radiodiagnóstico da UFRJ. Utilizou-se
seriógrafo da marca Medicor, modelo UV56M tipo FR2 com tubo D19-12/50-150 sob a
mesa, sistema de TV Videomed 2, com intensificador de imagem RBV23/13 e sistema
de gravador/monitor através do qual as imagens foram registradas em fita VHS,
objetivando posterior análise.
Foram selecionadas 124 deglutições, em média três por indivíduo avaliado, que
foram analisadas por pelo menos dois observadores, utilizando-se conjunto
vídeo/monitor Panasonic AG-1960/CT-1383 VY com controlador de edição da marca
Panasonic AG-A96, o que permitiu a observação em tempo real e quadro a quadro,
com possível revisão de uma mesma morfologia e suas relações dinâmicas por
repetidas vezes. Este processo permitiu gerar como resultado as Figuras_1, 2, 3
que tipificam e caracterizam a organização e a ejeção oral, bem como a inter-
relação funcional entre as fases oral e a faríngea.
Para nível de significância estatística foi considerado o valor de P < 0,05. Na
análise estatística foi aplicado o teste não-paramétrico Qui-quadrado, que
constituiu a base do processo comparativo das distribuições de freqüências
tabeladas.
RESULTADOS
Foi possível observar nos exames videofluoroscópicos a existência de variações
na organização e ejeção oral de indivíduos normais e doentes e efetuar
metodização terminológica descritiva. Os estágios de organização e ejeção oral,
bem como a fase faríngea da deglutição, foram caracterizados nas Figuras_1, 2,
3.
A Tabela_1 estabelece a correlação, na amostra da presente série, do número de
deglutições com o tipo de organização da fase oral da deglutição em voluntários
sadios (n), pacientes com AVE e DP.
Foi encontrada significância P = 0,0037 <<0,05, indicando a existência de
correlação funcional entre os tipos de organização da fase oral da deglutição
nos grupos estudados.
A Tabela_2 estabelece, nas deglutições observadas, o percentual de correlação
dos tipos de organização com os tipos de ejeção.
No cruzamento entre os tipos de organização e ejeção, encontrou-se P = 1,14E-05
< 0,05, admitindo-se a existência de correlação funcional entre os estágios
organização e ejeção da fase oral da deglutição.
A Tabela_3 expressa, nas deglutições observadas, a correlação dos tipos de
organização oral com a dinâmica da fase faríngea.
A fase faríngea alterada apresentou maior relação com os tipos instável e
alongada. O cruzamento entre os parâmetros organização e fase faríngea resultou
num valor de P = 0,000108 << 0,05, existindo relação significativa de
dependência entre as classificações dos mesmos. Existe correlação funcional
entre os tipos de organização da fase oral com a fase faríngea.
DISCUSSÃO
Na organização definida como fechada, o conteúdo oral relacionou-se com o dorso
da língua e com o palato duro, mantendo-se nesta posição sem dificuldade. Este
tipo de organização foi identificado em 71,4% das deglutições dos voluntários
sadios, sendo, portanto, uma característica predominante da fisiologia de
indivíduos sem queixa de disfagia. Não obstante, essa organização fechada
esteve presente em 31,1% das deglutições de pacientes com AVE e 43,2% das
deglutições de pacientes com DP.
Analisando comparativamente, pôde-se considerar que a organização definida como
fechada seria similar ao padrão "tipper", que se complementa com a ejeção do
tipo adequada, conforme descrito por DODDS et al.(14). Em estudo realizado por
JUNQUEIRA(21), o padrão "tipper" foi identificado em 94,87% das deglutições e
foi considerado como efetivo.
A definição da organização do tipo aberta esteve relacionada à conformação de
espaço cavitário oral, provocado pela ausência de contato da língua com a
região do trígono dos incisivos, que se preenche com solução contrastada. Este
tipo de organização subdividiu-se em aberta anterior e em aberta ântero-
superior. Na primeira, o preenchimento oral se deu em espaço anterior
determinado pela retração da língua. Na aberta ântero-superior, o conteúdo oral
de maior volume preencheu a região anterior e a superior da língua, o que
sugere haver uma relação volume-dependente, concordando com ALI et al.(2),
COSTA et al.(7), DANTAS et al.(12), DANTAS e DODDS(13), KAHRILAS(23) e
POUDEROUX e KAHRILAS(30).
A organização do tipo aberta anterior ocorreu em 14,3% das deglutições dos
voluntários sadios, em 11,1% dos pacientes com AVE e em 16,2% dos pacientes com
DP. O tipo aberta ântero-superior foi encontrado em 14,3% das deglutições dos
voluntários normais, em 33,3% dos pacientes com AVE e em 29,7% das dos
pacientes com DP. Pode-se considerar que a organização do tipo aberta apresenta
similaridades com o padrão "dipper". Esses resultados sugerem que este tipo de
organização seria mais comumente encontrado em indivíduos que possuam algum
grau de disfunção na organização oral, contrariando DODDS et al.(14).
Na organização do tipo alongada, o conteúdo oral ocupa uma extensão que abrange
desde a porção anterior da cavidade oral até a posterior, em nível do palato
mole. Este tipo de organização foi encontrado nos grupos de pacientes, tanto
com AVE quanto com DP, numa freqüência de 11,1% na primeira e 2,7% na DP. Este
tipo de organização apresenta correlação com as doenças, em acordo com as
observações de JUNQUEIRA(21), que também descreve a organização alongada como
patológica.
O resultado estatístico comprovou haver correlação funcional significante entre
os tipos de ejeção e os grupos analisados. As ejeções do tipo lentificada e do
tipo dois tempos foram freqüentemente observadas nos grupos com AVE e DP.
A ejeção do tipo dois tempos denota maior dificuldade na relação de organização
e ejeção oral. O conteúdo oral não é devidamente contido e escapa para a
faringe, antes mesmo de se iniciar a ejeção. Nesse sentido, pode-se sugerir que
a ejeção do tipo dois tempos expressa maior dificuldade na coordenação das
fases orais, que termina por influenciar negativamente a fase faríngea.
A fase faríngea de tipo adequada foi observada em todos os voluntários sadios.
A ejeção oral resultou em trânsito faríngeo livre, contínuo e em sincronismo
com a abertura da transição faringoesofágica.
A fase faríngea do tipo adaptada foi encontrada em 53,3% das deglutições dos
pacientes com AVE e em 64,9% dos pacientes com DP. Esta adaptação permitiu a
visualização do fluxo do meio de contraste com alguma descontinuidade ou
retardo, mas com preservação funcional do sincronismo deste fluxo com a
abertura da transição faringoesofágica, fato já anteriormente observado por
KENDALL e LEONARD(24).
A fase faríngea do tipo alterada foi encontrada em 46,7% das deglutições dos
pacientes com AVE e 35,1% dos pacientes com DP. Essas deglutições permitiram a
visualização de comprometimento das vias aéreas por penetração ou aspiração.
O grupo com DP foi o que apresentou maior ocorrência da fase faríngea do tipo
adaptada. Este tipo de trânsito faríngeo na DP foi também observado por ROSSO
et al.(31).
O grupo acometido por AVE foi o que apresentou maior freqüência de disfunção da
fase faríngea da deglutição, o que sugere que essa enfermidade provoca maior
número de alterações da deglutição, se comparado à DP, o que também é
considerado por MENG et al.(29), SCHECHTER(32) e ROSSO et al.(31).
CONCLUSÕES
A organização do tipo fechada é a forma a ser admitida como normal. Os tipos de
organização aberta ântero-superior, alongada e instável são formas de
organizações encontradas em indivíduos com algum grau de dificuldade no
processo da deglutição. A ejeção do tipo adequada é a expressão de normalidade
e se caracteriza pela transferência do conteúdo oral para a faringe em massa de
uma única vez. O predomínio de ejeções dos tipos lentificada e dois tempos é
indicativa de alteração da fisiologia da deglutição. Existe correlação
funcional entre os estágios de organização e ejeção oral. A organização oral
influi não só na qualidade da ejeção oral, mas também na efetiva dinâmica da
fase faríngea.