Recurrência da Hepatite C após transplante hepático de doador vivo e falecido
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Recurrência da Hepatite C após transplante hepático de doador vivo e falecido
Hepatitis C recurrence after living donor and cadaveric liver transplantation
Júlio Cezar Uili CoelhoI; Luciano OkawaI; Mônica Beatriz ParolinI; Alexandre
Coutinho Teixeira de FreitasI; Jorge E. Fouto MatiasI; Alysson Rogério
MatioskiII
IServiço de Cirurgia do Aparelho Digestivo e Transplante Hepático do Hospital
de Clínicas da Universidade Federal do Paraná
IISetor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR
Correspondência
INTRODUÇÃO
A hepatopatia crônica causada pelo vírus da hepatite C (VHC) é a indicação mais
comum de transplante hepático tanto intervivos como cadavérico em vários
países, inclusive no Brasil(7, 16, 28). A recurrência da hepatite C após
transplante hepático (TH) é elevada, podendo evoluir para cirrose e perda do
enxerto em elevada proporção dos pacientes(5, 9, 15, 24). Estas complicações
fazem com que o resultado do TH no paciente com hepatite C, tanto em sobrevida
do enxerto como do paciente, seja inferior a de pacientes transplantados sem
hepatite C(1, 3, 4, 20, 23).
Uma das estratégias adotadas em virtude da crescente disparidade entre o número
de pacientes em lista de espera e o número de doações de órgãos, é o
transplante hepático de doador vivo (THDV)(6, 14). Esta modalidade, além de
reduzir o tempo de espera e a mortalidade na lista de espera emprega enxerto
potencialmente de melhor qualidade (doador saudável e menor tempo de isquemia
fria)(7, 14, 26). Entretanto, alguns estudos sugerem que a recurrência do VHC é
mais precoce ou mais agressiva após o THDV do que após o transplante hepático
de doador falecido (THDF)(8, 9, 21, 27).
O objetivo deste estudo foi determinar a recurrência da hepatite C em pacientes
submetidos a THDV comparados com os submetidos a THDF.
MÉTODOS
O total de 333 transplantes hepáticos foi realizado no Hospital de Clínicas da
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, no período de setembro de 1991 a
dezembro de 2005. Desses, 279 (83,8%) eram THDF e 54 (16,2%) THDV. Hepatopatia
crônica pelo VHC foi a indicação mais comum de THDF (82 pacientes) bem como de
THDV (19 pacientes). O protocolo de estudo eletrônico de todos pacientes com
hepatopatia crônica pelo VHC foi avaliado. Foram excluídos os pacientes com os
seguintes critérios: 1) seguimento clínico e/ou laboratorial inferior a 3 meses
(perda de seguimento ou óbito); 2) não disponibilidade de teste de PCR
qualitativo para hepatite C realizado pós-TH; 3) não disponibilidade de pelo
menos, uma biopsia hepática após o TH; 4) presença de coinfecção pelo vírus da
hepatite B e/ou HIV antes e após o TH; 5) diagnóstico de rejeição celular aguda
persistente ou rejeição crônica; 6) transplante duplo de rim e fígado; e 7)
dados incompletos no protocolo de estudo.
Diagnóstico de recurrência de infecção pelo VHC
O diagnóstico da recurrência do VHC no enxerto hepático foi suspeitado
clinicamente (alteração das enzimas hepáticas, ultrassonografia com Doppler de
vasos hepáticos normal, estudos das vias biliares normal por
colangiorressonância magnética, imunossupressão adequada e exclusão de
exposição a drogas hepatóxicas) e confirmado pela presença de RNA-VHC detectado
por teste de PCR qualitativo e pelo exame histológico de tecido hepático obtido
por biopsia percutânea. As alterações histológicas indicativas de recurrência
viral consistiram da presença de atividade lobular (corpos eosinofílicos,
infiltrado linfocitário no lóbulo e lesão hepatocelular) e inflamação portal,
sem a presença de características diagnósticas de rejeição(19, 29). Todas as
biopsias foram interpretadas por um patologista com experiência em
histopatologia de TH.
Imunossupressão
Todos os pacientes submetidos a transplante hepático receberam esquema de
imunossupressão composto por um inibidor da calcineurina (ciclosporina ou
tacrolimo) associado a corticosteróide e uma droga antiproliferativa
(azatioprina 1 mg/ kg/ dia ou micofenolato mofetil 1 g de 12/12 horas, por via
oral). O esquema de imunossupressão variou conforme o período de tempo em que
os pacientes foram transplantados. O inibidor de calcineurina utilizado até
1998 foi a ciclosporina em microemulsão (4 mg/kg de 12/12 horas por via oral,
objetivando nível sérico entre 200 e 350 ng/mL no primeiro ano e,
posteriormente, 120 a 200 ng/mL). Após 1999, a ciclosporina foi substituída
pelo tacrolimo (0,05 mg/kg de 12/12 horas por via oral, objetivando nível
sérico de 10 a 15 ng/mL no primeiro mês, 8 a 12 ng/mL até o 4º mês e após, 6 a
10 ng/mL).
O protocolo de administração de corticosteróide incluía a administração de 1 g
de metilprednisolona por via endovenosa após a reperfusão do enxerto, iniciando
50 mg por via endovenosa no 1º dia pós-transplante e reduzindo gradualmente até
10 mg/ dia de prednisolona no 30º dia e 5 mg/dia após o 3º mês. Até 1998 o
corticosteróide era mantido em doses baixas (5 mg/dia), por no mínimo 1 ano
após o transplante, sendo que a partir de 1999 a prednisolona foi suspensa após
o 4º mês. O micofenolato mofetil substituiu a azatioprina após o ano 2000,
sendo empregado durante os 2 primeiros meses após o transplante, ou por
períodos mais longos quando não era possível manter níveis terapêuticos dos
inibidores da calcineurina.
Os episódios de rejeição aguda do enxerto foram diagnosticados e graduados de
acordo com a classificação de Banff(2). As formas leves foram tratadas com
aumento da dose dos inibidores de calcineurina, associado ou não à introdução
do micofenolato mofetil. As formas moderadas ou severas foram tratadas com
pulsoterapia de corticosteróides (três doses de 1 g de metilprednisolona
administradas por via endovenosa em dias alternados).
Dados avaliados e análise estatística
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de
Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Os dados coletados foram analisados
conforme a idade, sexo, resultado dos exames laboratoriais, recidiva do VHC e
rejeição aguda. As variáveis contínuas foram expressas com média ± desvio
padrão e as variáveis categóricas como percentagens. A análise estatística foi
realizada com o programa Excel, empregando-se o teste t de Student para as
variáveis contínuas, o teste do qui ao quadrado para as variáveis binomiais com
n maior ou igual a 20 e o teste de Fisher para as variáveis binomiais com n
menor do que 20. Foi considerado estatisticamente significativo valores de P
<0,05.
RESULTADOS
O total de 55 THDF e 10 THDV realizados em pacientes com cirrose hepática pelo
VHC foi incluído no estudo. Foram excluídos do estudo 36 pacientes (27 THDF e 9
do THDV), sendo 26 devido a óbito nos primeiros 3 meses após transplante
(18 THDF e 8 THDV); 4 por co-infecção pelo vírus da hepatite B (3 THDF e 1
THDV); 4 THDF por seguimento clínico e laboratorial inferior a 3 meses; e 2
THDF devido a dados incompletos no protocolo de estudo.
As características clínicas e laboratoriais dos dois grupos antes do TH estão
descritas na Tabela_1. A idade média dos pacientes do grupo de THDF foi de 51,9
± 8,7 anos e do grupo de THDV 50,1 ± 7,0 anos. Não houve diferença entre os
dois grupos quanto à idade, sexo, níveis séricos de creatinina e bilirrubina. O
tempo de atividade de protrombina (TAP) foi maior no grupo de THDF do que no
THDV (P = 0,04).
A recurrência do VHC foi similar nos grupos de THDF e THDV (P = 0,8). O total
de 37 pacientes (69,3%) do grupo de THDF apresentou recidiva do VHC, sendo que
o diagnóstico foi estabelecido em média em 20,1 ± 21,7 meses após o TH. Dos
pacientes do grupo de THDV, sete (70%) tiveram recidiva em média 11,3 ± 9,5
meses após o TH. O período de seguimento médio dos pacientes do grupo de THDF
foi de 53,4 ± 40,5 meses e do grupo de THDV foi de 37,4 ± 16,6 meses.
A incidência de rejeição aguda foi igual no grupo de THDF (n = 27; 49%) e no
grupo de THDV (n = 2; 20%) (P = 0,08). A maioria das rejeições agudas do grupo
de THDF (n = 16; 59,3%), e em apenas um paciente do grupo de THDV (50%), foi
leve e tratada com elevação da dose de ciclosporina ou tacrolimo, acompanhada
ou não da adição de micofenolato. Os demais episódios de rejeição aguda dos
dois grupos (11 THDF e 1 THDV) foram eficazmente tratados com três doses de
pulsoterapia de metilprednisolona. A recidiva do VHC nos pacientes do grupo de
THDF que receberam pulsoterapia (9 de 11 pacientes) foi similar a dos demais
pacientes (28 de 44 pacientes) (P = 0,25). A recidiva também foi similar nos
pacientes do grupo de THDV que receberam pulsoterapia (um de um paciente) em
relação aos que não receberam (seis de nove pacientes) (P = 0,7).
DISCUSSÃO
Recurrência do VHC após TH é um dos tópicos mais importantes da Hepatologia por
vários motivos. Primeiro, a cirrose hepática causada pelo VHC é a indicação
mais comum de TH nos Estados Unidos, Europa e Brasil(4, 11). Segundo, a
recurrência do VHC ocorre na quase totalidade dos receptores(17, 25). Terceiro,
a progressão da doença hepática causada pelo VHC no fígado transplantado é mais
rápida e agressiva do que a observada no fígado nativo(4, 20). Cirrose hepática
avançada ocorre em poucos anos em número expressivo de pacientes transplantados
por hepatopatia pelo VHC(10, 20). Finalmente, retransplante por cirrose
hepática causada pela recurrência do VHC é associada a prognóstico ruim(4, 20).
Assim, alguns serviços contraindicam retransplante hepático nos casos de
recurrência do VHC(11).
Como não existe nenhum esquema profilático eficaz, é importante determinar os
fatores de risco de recurrência do VHC após TH para que se possa, mediante
intervenções apropriadas, reduzir a taxa e a agressividade dessa complicação.
Um dos fatores de risco mais importantes é o esquema de imunossupressão,
principalmente com o uso de corticóides em doses elevadas, OKT3 (anticorpo
monoclonal) e globulina antilinfocítica para tratar rejeição hepática celular
(rejeição aguda)(10, 22). Recentemente, alguns autores sugeriram que o THDV é
associado a maior risco de recurrência do VHC do que o THDF(8, 9, 21, 27).
SCHIANO et al.(21) relataram maior replicação do VHC em receptores de THDV,
cujos possíveis mecanismos são: 1) proliferação celular acelerada nos
receptores do THDV causaria alterações celulares que facilitariam a entrada do
VHC nos hepatócitos ou promoveriam a replicação viral; 2) células hepáticas com
estado funcional superior; 3) inoculação viral maior devida à captação mais
eficiente e a menor perda durante o transplante; e 4) o menor tamanho do
enxerto reduziria a capacidade de metabolizar medicamentos, resultando em maior
imunossupressão e menor defesa antiviral. Outros mecanismos foram sugeridos,
incluindo a hipótese de que a maior compatibilidade HLA entre doador e receptor
nos THDV facilitaria a recurrência do VHC neste tipo de transplante(25).
O presente estudo mostrou que a taxa de recurrência do VHC é igual após THDF e
THDV. HUMAR et al.(11) também relataram que a taxa de recurrência do VHC pós-
THDF é semelhante à observada pós-THDV e pós-"split liver" (fígado bipartido),
ou seja, de doadores que foram submetidos a ressecção hepática. Estes dados
sugerem que a regeneração hepática não altera a recurrência de hepatite C como
inicialmente foi hipotetizado. Outros autores também não observaram diferença
na recurrência do VHC entre THDF e THDV(10, 17, 25, 28). Outro estudo recente
demonstrou que a sobrevida do paciente e do enxerto é similar após THDF e THDV
(18). Os achados desse estudo são particularmente importantes porque são
baseados nos dados do Registro Científico de Receptores de Transplantes dos
Estados Unidos desde 1999, o maior número de transplantes hepáticos avaliados
até o presente. A discrepância dos estudos anteriores com os atuais pode ser
devida ao pequeno número de THDV incluídos nos estudos iniciais.
A disfunção hepática é geralmente menos intensa nos receptores de THDV do que
nos de THDF(13, 18). As características clínicas e laboratoriais dos pacientes
dos dois grupos foram similares no presente estudo, exceto pelo TAP que era
mais elevado no grupo de THDV. Dados similares foram obtidos em outros estudos
(13, 18).
O esquema de imunossupressão pode influenciar a replicação do VHC(9, 12).
GARCIA-RETORTILLO et al.(9) relataram que 5 de 7 pacientes que não receberam
corticóide no esquema de imunossupressor pós-TH tiveram redução na carga viral
do VHC, enquanto redução similar foi observada em somente 1 de 13 pacientes que
receberam corticóide. Estes dados sugerem que a ausência de corticóide no
esquema imunossupressor pós-TH pode reduzir a replicação viral. No presente
estudo, o mesmo esquema imunossupressor foi utilizado nos receptores de THDF e
de THDV. A percentagem de pacientes que apresentou rejeição celular (rejeição
aguda) foi similar nos dois grupos desta série. Estes dados minimizam a
influência dos imunossupressores nos resultados deste estudo.
CONCLUSÃO
A recidiva do VHC é similar nos receptores de THDF e THDV. Os dados desse e de
outros estudos recentes sugerem que a presença do VHC não deve influenciar na
decisão de indicação de THDV.