Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e desafios atuais
AUTORES CONVIDADOS
1 Sinalizadores atuais...
Se nos dispuséssemos a fazer uma revisão sistemática de estudos, políticas e
práticas que adotaram o conceito de gênero como ferramenta teórico-metodológica
e política para problematizar e intervir nos processos que instituem e
sustentam desigualdades sociais entre homens e mulheres e autorizam formas de
subordinação feminina, poderíamos contabilizar, inclusive na área da saúde,
vários indícios que sinalizam uma trajetória de reconhecimento, incorporação e
legitimação crescentes dessa teorização, nas últimas décadas. A extensa lista
de grupos de estudos e pesquisa, registrada na plataforma Lattes do CNPq com
esse foco de investigação, constitui um sinalizador contundente disso.
Poderíamos, no entanto, elencar outros sinalizadores, tão ou mais
significativos, que permitem configurar melhor algumas dimensões do "estado"
desse processo de institucionalização do gênero, sobretudo no contexto político
brasileiro atual. Assim, por exemplo, o Plano Plurianual 2004-2007(1:6)
estabelece como uma dentre três prioridades governamentais, na área social,
"promover a redução das desigualdades de gênero". Pretende-se que essa meta, a
ser impulsionada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM),
seja incorporada, de forma transversalizada, no conjunto das políticas e
programas propostos e implementados pelo atual governo.
Em consonância com essa meta, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
da Mulher(2: 63), delineada para esse mesmo período, explicita como uma de suas
diretrizes que "a elaboração, a execução e a avaliação das políticas de saúde
da mulher deverão nortear-se pela perspectiva de gênero (...)", uma vez que
mulheres e homens, "(...) em função da organização social das relações de
gênero, também estão expostos a padrões distintos de sofrimento, adoecimento e
morte"(2:13).
Ao mesmo tempo e no mesmo espaço político, a Lei n. 10.745 de 09.12.2003,
instituiu o ano de 2004 como o Ano da Mulher e a SPM proclama que ele deverá se
constituir como um marco "na luta pela igualdade de gênero no país" (3:3).
Também nesse contexto o Decreto Presidencial publicado no Diário Oficial da
União, na edição n. 247 de 19.12.2003, convoca a I Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres, com o tema "Políticas para as mulheres: um desafio
para a igualdade numa perspectiva de gênero"(3: 5).
É óbvio que essas (e outras) evidências políticas atuais de institucionalização
de perspectivas (plurais e até conflitantes) de gênero não podem ser
atribuídas, linear e unicamente, a um governo e aos partidos políticos que lhe
dão sustentação, e nem resultam de ações isoladas de políticos, grupos,
instituições e entidades sociais. Elas resultam de processos multifacetados,
disputados e negociados, desencadeados com e a partir do Feminismo e dos
movimentos de mulheres, em que se articulam movimentos sociais e políticos com
abordagens teórico-metodológicas de diferentes matizes. Mais fortemente
"localizáveis" nos países ocidentais e na segunda metade do século XX, estes
movimentos e abordagens tiveram "o mérito de transformar as até então esparsas
referências às mulheres - as quais eram usualmente apresentadas como a exceção,
a nota de rodapé, o desvio da regra masculina - em tema central"(4:19). E é
esse movimento político e teórico que focalizo, brevemente, a seguir.
2 Das notas de rodapé ao corpo dos textos: fragmentos de histórias...
Os movimentos de mulheres e os Feminismos percorreram trajetos que podem ser
contados de diferentes formas e sob diferentes óticas, mas suas estudiosas, em
geral, registram esta história mais recente fazendo referência a uma primeira e
segunda ondas do movimento feminista(4-6).
A primeira onda aglutina-se, fundamentalmente, em torno do movimento
sufragista, com o qual se reivindicava o direito de votar para as mulheres e
este praticamente começou, no Brasil, com a Proclamação da República, em 1890,
e arrefeceu quando o direito ao voto foi estendido às mulheres brasileiras, na
constituição de 1934, mais de quarenta anos depois. Sem desconsiderar a
importância capital dos movimentos políticos da primeira onda e dos direitos
políticos e civis que estes asseguraram, interessa-me explorar um pouco mais os
movimentos desencadeados com a segunda onda feminista.
Esta engendrou-se, nos países ocidentais, no contexto pós-segunda guerra e
fortaleceu-se especialmente nos anos 60 e 70 do século XX, no contexto de
intensos debates e questionamentos desencadeados por movimentos de contestação
(intelectual e política) americanos e europeus que culminaram, na França, com
as manifestações de maio de 1968. No Brasil, ela se associa, também, à eclosão
de movimentos de oposição aos governos da ditadura militar e, depois, aos
movimentos de redemocratização da sociedade brasileira, no decorrer dos anos
80.
Estes movimentos remeteram, principalmente, à necessidade de investir mais em
produção de conhecimento e estimularam o desenvolvimento sistemático de estudos
e de pesquisas que tivessem como objetivo não só denunciar, mas, sobretudo,
compreender e explicar a subordinação social e a invisibilidade política a que
as mulheres vinham sendo historicamente submetidas. Pretendia-se, com esses
investimentos, ampliar e qualificar formas de intervenção que permitissem
aprofundar o confronto com tais condições.
Nesse contexto, nas últimas quatro décadas, as estudiosas feministas levaram
para a academia temas e fontes de investigação até então concebidos como
menores e não autorizados pelo paradigma científico vigente, podendo-se
mencionar temáticas e fontes vinculadas ao cotidiano, à família, à sexualidade
e ao trabalho doméstico, dentre outras. Tais abordagens e objetos vêm sendo
introduzidos, também, de forma paulatina e nem sempre harmoniosa, em agendas
curriculares e de pesquisa de inúmeros campos disciplinares e profissionais de
diferentes níveis de ensino e instituições.
Incorporando as características do próprio movimento, esses estudos adotaram
perspectivas teóricas plurais e não necessariamente convergentes, aliando-se
com diferentes campos de estudo como, por exemplo, a psicanálise, ou
incorporando e tensionando a teorização marxista ou, ainda, produzindo teorias
feministas como a teoria do patriarcado. Nessa trajetória de
institucionalização científica e acadêmica, as teorizações feministas também
questionaram e abalaram, desde o início e de muitas formas, pressupostos
básicos do paradigma de Ciência hegemônico, tais como a universalidade, a
racionalidade, a neutralidade, a objetividade, a prerrogativa de definir 'a'
verdade, a ascendência sobre qualquer outra forma de saber que não
compartilhasse de tais requisitos, a suposição de uma essência humana -
masculina e branca - centrada na razão, dentre muitos outros. Tais processos
foram (são) permeados por confrontos e resistências tanto com aqueles e aquelas
que continu(av)am utilizando e reforçando justificativas biológicas ou
teológicas para as diferenças e desigualdades entre mulheres e homens, quanto
com aqueles que, desde perspectivas marxistas, defendiam e defendem a
centralidade da categoria de classe social para a compreensão das diferenças e
desigualdades sociais.
E é no contexto de tais debates e confrontos que algumas feministas se viram
frente ao desafio de demonstrar que não são características anatômicas e
fisiológicas, em sentido estrito, ou tampouco desvantagens sócio-econômicas
tomadas de forma isolada, que definem diferenças apresentadas como
justificativa para desigualdades entre mulheres e homens. O que algumas delas
passariam a argumentar é que são os modos pelos quais determinadas
características femininas e masculinas são representadas como mais ou menos
valorizadas, as formas pelas quais se distingue feminino de masculino, aquilo
que se torna possível pensar e dizer sobre mulheres e homens que vai constituir
o que é inscrito no corpo e definido e vivido como masculinidade e
feminilidade, em uma dada cultura, em um determinado momento histórico. Um
grupo de estudiosas anglo-saxãs começaria a utilizar, então, o termo gender,
traduzido para o português como gênero, a partir do início da década de setenta
do século passado.
Embora sua introdução fosse cercada por controvérsias que diziam respeito à
pertinência do uso de um conceito que supostamente invisibiliza o sujeito da
luta feminista, ele foi gradativamente incorporado às diversas correntes
feministas, nos planos acadêmico e político, sendo necessário frisar que essas
incorporações implicaram, também, em definições múltiplas e nem sempre
convergentes para o termo. De forma mais genérica, no entanto, pode-se dizer
que as diferentes definições convergiam em um ponto: com o conceito de gênero
pretendia-se colocar em xeque a equação - que resultava em diferenças re-
conhecidas como sendo inatas e essenciais - na qual se articulava um
determinado modo de ser a um sexo anatômico que lhe seria 'naturalmente'
correspondente, para argumentar que diferenças e desigualdades entre mulheres e
homens eram social e culturalmente construídas e não biologicamente
determinadas(7).
Esses movimentos no campo teórico foram retro-alimentados e alimentaram, ao
mesmo tempo, várias iniciativas políticas nos contextos internacional, latino-
americano e brasileiro, que se multiplicaram ao longo da segunda metade do
século XX, na esteira da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Esta
afirmou, explicitamente, a igualdade de direitos entre mulheres e homens e
indicou aos países signatários a necessidade de implementar tanto instrumentos
jurídicos quanto programas e ações que viabilizassem o alcance desta igualdade.
O Brasil assinou vários documentos e tratados internacionais patrocinados pela
Organização das Nações Unidas nesse período, destacando-se dentre os que
focalizam desigualdades que envolvem mulheres: a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979); a Declaração e
Programa de Ação de Viena (1993); o Programa de Ação da Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo (1994); a Declaração
de Beijing adotada pela IV Conferência Mundial sobre as Mulheres (1995) e o
Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher (promulgado pelo Brasil em 2002). O Brasil
assinou, ainda, diversos documentos de convenções latino-americanas como a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica
(1969) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará (1994)(8).
No plano interno, essas redes políticas internacionais têm fortalecido,
conectado e retro-alimentado desde então, reivindicações e ações programáticas
substantivas de inúmeros grupos organizados de mulheres e entidades feministas,
podendo-se mencionar como exemplo recente, a Conferência Nacional de Mulheres
Brasileiras, realizada em Brasília em junho de 2002 - um evento político que
sintetiza e re-afirma, na Plataforma Política Feminista, "seu potencial de
contestação, mobilização e elaboração política e, estrategicamente, posiciona
coletivamente, os conteúdos de seus discursos plurais frente ao contexto
político brasileiro (...), afirmando também a diversidade e a capacidade de
aliança entre feministas"(9:5) brasileiras.
No conjunto desses movimentos teóricos e políticos plurais, gênero segue sendo
incorporado e utilizado de duas maneiras bastante diferentes e conflitantes.
Por um lado, gênero vem sendo usado como um conceito que se opõe - ou
complementa - a noção de sexo biológico e se refere aos comportamentos,
atitudes ou traços de personalidade que a(s) cultura(s) inscreve(m) sobre
corpos sexuados. Nas perspectivas derivadas dessa abordagem - que é largamente
assumida em estudos, políticas e ações programáticas contemporâneas - a ênfase
na construção social e cultural do masculino e do feminino não tensionou o
pressuposto da existência de uma 'natureza' biológica universalizável do corpo
e do sexo. Ou seja, em algumas dessas vertentes continua-se operando com o
pressuposto de que o social e a cultura agem sobre uma biologia humana
universal que os antecede.
Por outro lado, gênero tem sido usado, sobretudo pelas feministas pós-
estruturalistas(4,6,10,11) para enfatizar que "a sociedade forma não só a
personalidade e o comportamento, mas também as maneiras como o corpo [e,
portanto, também o sexo] aparece"(10:9). Com este enfoque o conceito
problematiza tanto noções essencialistas que remetem a modos de ser e de
sentir, quanto noções biologicistas de corpo, de sexo e de sexualidade e disso
resultam importantes mudanças epistemológicas e políticas para quem atua nesses
movimentos sociais e campos de estudos.
3 Desdobramentos epistemológicos e políticos dessa abordagem de gênero
O feminismo pós-estruturalista, alimentando-se especialmente de teorizações
desenvolvidas por Michel Foucault e Jaques Derrida, assume que a linguagem
(entendida, aqui, em sentido amplo) é o lócus central de produção dos nexos que
a cultura estabelece entre corpo, sujeito, conhecimento e poder. Os estudos que
se ancoram nesse pressuposto, se afastam de perspectivas que tratam o corpo
como uma entidade biológica universal (apresentada como origem das diferenças
entre homens e mulheres, ou como superfície sobre a qual a cultura opera para
inscrever diferenças traduzidas em desigualdades) para teorizá-lo como um
construto sócio-cultural e lingüístico, produto e efeito de relações de poder.
Nessa perspectiva, o conceito de gênero remete a todas as formas de construção
social, cultural e lingüística implicadas com processos que diferenciam
mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos,
distinguindo-os e nomeando-os como corpos dotados de sexo, gênero e
sexualidade. O conceito de gênero privilegia, exatamente, o exame dos processos
que instituem essas distinções - biológicas, comportamentais e psíquicas -
percebidas entre homens e mulheres. E, por isso, ele nos afasta de abordagens
que tendem a focalizar subordinações que seriam derivadas do desempenho de
papéis, funções e características culturais estritas de mulheres e homens, para
aproximar-nos de abordagens que tematizam o social e a cultura, em sentido
amplo, como sendo constituídos e atravessados por representações - sempre
múltiplas, provisórias e contingentes - de feminino e de masculino e que, ao
mesmo tempo, produzem e/ou ressignificam essas representações.
Esse modo de teorizar o gênero redimensiona, pois, seu uso como ferramenta
teórica e política sendo útil pontuar, rapidamente, alguns desses
redimensionamentos. Desde essa perspectiva, operar com o conceito de gênero
supõe então: a) assumir que diferenças e desigualdades entre mulheres e homens
são social, cultural e discursivamente construídas e não biologicamente
determinadas; b) deslocar o foco de atenção da 'mulher dominada, em si' para a
relação de poder em que tais diferenças e desigualdades são produzidas, vividas
e legitimadas; c) explorar o caráter relacional do conceito e considerar que as
análises e intervenções empreendidas neste campo de estudos devem considerar
ou, pelo menos, tomar como referência, as relações - de poder - e as muitas
formas sociais e culturais que, de forma interdependente e inter-relacionada,
educam homens e mulheres como "sujeitos de gênero"; d) 'rachar' a
homogeneidade, a essencialização e a universalidade contidas nos termos mulher,
homem, dominação masculina e subordinação feminina, dentre outros e, com isso,
tornar visíveis os mecanismos e estratégias de poder que instituem e legitimam
estas noções; e) explorar a pluralidade, a conflitualidade e a provisoriedade
dos processos que de-limitam possibilidades de se definir e viver o gênero em
cada sociedade, nos seus diferentes segmentos culturais e sociais(12).
Desdobrando e ampliando um pouco mais essas afirmações, elas implicam
considerar, por exemplo, que ao longo da vida e através das mais diversas
instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres, num
processo que não é linear, progressivo ou harmônico e que também nunca está
finalizado ou completo. Inscreve-se, nesse pressuposto, uma articulação
intrínseca entre gênero e educação e, também, uma ampliação da noção de
educativo, uma vez que se enfatiza que educar engloba um complexo de forças e
de processos (que inclui, na contemporaneidade, além das instâncias usualmente
implicadas nisso, os meios de comunicação de massa, os brinquedos, a
literatura, o cinema, a música) no interior dos quais indivíduos são
transformados em - e aprendem a se reconhecer como - homens e mulheres, no
âmbito das sociedades e grupos a que pertencem. Argumenta-se, sobretudo, que
esses processos educativos - constitutivos de muitos programas e ações
desenvolvidos nas áreas da saúde e da enfermagem - envolvem estratégias sutis e
refinadas de naturalização e legitimação que precisam ser reconhecidas,
demarcadas e problematizadas.
Acentuando que nascemos e vivemos em tempos, lugares e circunstâncias
específicos, essas abordagens admitem a existência de formas plurais,
conflitantes e instáveis de feminilidade e masculinidade. Apoiando-se em
perspectivas que concebem aculturacomo sendo um campo de luta e contestação em
que se produzem sentidos múltiplos e nem sempre convergentes de masculinidade e
de feminilidade, noções essencialistas, universais e trans-históricas de homem
e mulher - no singular - passam a ser consideradas demasiadamente simplistas e
contestadas. Então, exatamente porque gênero enfatiza essa pluralidade e
conflitualidade dos processos pelos quais a cultura constrói e distingue corpos
e sujeitos femininos e masculinos, torna-se necessário considerar que isso se
expressa pela articulação de gênero com outras 'marcas' sociais, tais como
classe, raça/etnia, sexualidade, geração, religião, nacionalidade. E, ainda,
que cada uma dessas articulações produz modificações importantes nas formas
pelas quais feminilidades e masculinidades, no plural, são (ou podem ser),
vividas e experienciadas, por grupos diversos, dentro dos mesmos grupos ou,
ainda, pelos mesmos indivíduos, ao mesmo tempo ou em diferentes momentos de sua
vida.
Nesse sentido, gênero sinaliza não apenas para as mulheres e nem mesmo toma
exclusivamente suas condições de vida como objeto de análise. Em vez disso, o
conceito traz implícita a idéia de que as análises e as intervenções
empreendidas devem considerar, ou tomar como referência, as relações - de poder
- entre mulheres e homens e as muitas formas sociais e culturais que os
constituem como "sujeitos de gênero". Isso implica, portanto, analisar os
processos, as estratégias, os saberes e as práticas sociais e culturais que
educam indivíduos como mulheres e homens de determinados tipos, sobretudo se
quisermos investir em possibilidades de propor intervenções que permitam
modificar, minimamente, as relações de poder de gênero vigentes nas sociedades
e grupos em que vivemos.
Por último, e de forma importante, essa abordagem do gênero implica considerar
que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis,
as doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas
por representações e pressupostos de feminino e de masculino, ao mesmo tempo em
que estão centralmente implicadas com sua produção, manutenção ou
ressignificação. Dessa forma, deixa-se de enfocar, de forma isolada, aquilo que
mulheres ou homens fazem ou podem fazer ou os processos educativos pelos quais
seres humanos se constituem como mulheres ou homens e se enfatiza a necessidade
de compreender esses aspectos e processos, articulando-os aos diferentes modos
pelos quais o gênero opera estruturando esse social que os torna possíveis e
necessários.
Ao lado de tudo isso, e sobretudo na área da saúde, é importante registrar que
a ênfase no caráter fundamentalmente histórico, social, cultural e lingüístico
do gênero não significa negar que ele se constrói com - e através de - corpos
que passam a ser re-conhecidos e nomeados como corpos sexuados. Não se está,
portanto, negando a materialidade do corpo ou dizendo que ela não importa, mas
mudando o foco dessas análises: do 'corpo em si' para os discursos, processos e
relações que possibilitam que sua biologia passe a funcionar como causa e
explicação de diferenciações e posicionamentos sociais (um exemplo simples
dessa operação é o pressuposto, ainda ativo, que sustenta a idéia de que ser
portadora de um útero implica, necessariamente, a existência de um algo mais,
chamado de instinto materno).
Desse modo, quando nos dispomos a discutir a produção de diferenças e de
desigualdades de gênero, assumindo estes desdobramentos do conceito, também
estamos, ou deveríamos estar, de algum modo, fazendo uma analítica de processos
sociais mais amplos que marcam e discriminam sujeitos como diferentes, tanto em
função de seu corpo/sexo quanto em função de articulações de gênero com raça,
sexualidade, classe social, religião, aparência física, nacionalidade, etc. E
isso demanda uma ampliação e complexificação não só das análises que precisamos
desenvolver, mas, também, uma re-avaliação profunda das intervenções sociais e
políticas que devemos, ou podemos, fazer. Um processo de reflexão que procuro
desenvolver um pouco mais, a seguir, para finalizar este ensaio.
4 Gênero, saúde e educação: 'exercícios de pensar' sobre tais relações
Essa abordagem dos estudos de gênero, em sua confluência com os Estudos
Culturais, tem-se mostrado extremamente fértil para compreender e problematizar
processos de produção de diferenças e desigualdades sociais que são colocados
em ação na relação entre educação e saúde; sobretudo porque podemos perceber
como esses processos funcionam, posicionando mulheres, mães, homens, pais e
crianças em torno de eixos como saudável/doente ou normal/patológico ou, ainda,
norma/risco, com base nos conhecimentos que dão sustentação a políticas e
programas de educação e de saúde - especialmente naquelas voltadas para o
segmento materno-infantil - que são implementadas nesses campos.
Os estudos que temos desenvolvido com essas abordagens(13-18) vêm permitindo
delinear, por exemplo, em representações de mulher e de mãe que esses programas
educacionais e de saúde produzem ou veiculam, elementos importantes de
representações produzidas nos séculos XVIII e XIX, em diversas instâncias das
culturas européias ocidentais. Ao mesmo tempo, essas representações parecem
incorporar e inscrever, no corpo feminino e na maternidade, 'novos' e
conflitantes 'atributos' derivados tanto das lutas de movimentos sociais como o
feminismo e os movimentos em prol dos direitos humanos, quanto da influência de
um leque cada vez maior de conhecimentos, cientificamente autorizados a definir
e prescrever modos mais adequados de cuidar e se relacionar com a infância,
dentre os quais se destacam a Medicina, a Psicanálise, a Psicologia, o Direito
e a Pedagogia. Repercutem também, nesses sistemas de representação, efeitos das
profundas e abrangentes transformações sociais, econômicas e culturais
desencadeadas pelo neoliberalismo e pela globalização(19).
Essa relações entre neoliberalismo, globalização e gênero têm sido analisados
por várias estudiosas feministas e tem sido possível constatar que
em todos los processos de ajuste estructural, las mujeres han
funcionado como um factor oculto de equilíbrio para absorver los
shocks de los programas de ajuste de la economia, tanto
intensificando el trabajo doméstico para compensar la disminución de
los serviços sociales por la caída del gasto público, como por el
hecho que la privatización de los sitemas de seguridad social ha
incidido em mayor medida em las mujeres, por su papel em la
reproduction (costos sociales de la maternidad asumidos
individualmente, por ejemplo) Así, su posición em la família y en el
mercado de trabajo las ubica como parte de la estratégia
desreguladora del mercado(20:196).
Quando se busca, então, delimitar efeitos desses discursos e processos, por
exemplo, nas representações de mulher e de maternidade produzidas e veiculadas
nas políticas e programas que vimos examinando, chama atenção a ampliação e
complexificação do leque de condutas, modos de cuidar e modos de sentir que
dizem respeito a uma relação mãe-filho 'normal' e 'natural', as quais são
apresentadas como sendo indispensáveis ao processo de desenvolvimento físico e,
principalmente, emocional de crianças que devem tornar-se adultos produtivos,
equilibrados e 'saudáveis'. Chama atenção, ainda, a incorporação de uma
"linguagem do risco"(21: 22) com e através da qual determinados grupos de
mulheres e crianças são classificados e valorados, crescentemente, como "de
risco" e, por conseqüência, transformados em sujeitos-alvo de práticas
assistenciais, educativas e de controle mais sistemáticas e estandartizadas.
O exame de tais representações vem nos permitindo perceber que a noção de
indivíduo mulher-mãe, ainda supõe, ou supõe com força renovada, a existência de
um ser que incorpora e se desfaz em múltiplos - a mãe como parceira do estado,
a mãe como agente de promoção de inclusão social, a mãe como esteio de sua
família e, mais especificamente, a mãe como responsável única e direta por seus
filhos. Nesse contexto, gerar e criar filhos 'equilibrados e saudáveis' passa a
ser social e culturalmente definido, também, como um 'projeto' de vida,
responsabilidade individual de cada mulher que se torna mãe, independentemente
das condições sociais em que essa mulher vive e dos problemas que ela enfrenta
- um projeto que deve começar a ser preparado, em todos os sentidos, desde
muito cedo, e que deve pautar sua vida como mulher (não beber, não fumar,
exercitar-se, comer as coisas adequadas, escolarizar-se, ter equilíbrio
emocional, condições financeiras, escolher bem o parceiro, fazer exames
regularmente etc...); é a isso que eu, particularmente, venho me referindo, em
meus estudos, como sendo uma nova politização da maternidade; nova não no
sentido de inovadora, mas no sentido de uma atualização, exacerbação,
complexificação e multiplicação de investimentos educativo-assistenciais que
têm como foco as mulheres, especialmente aquelas de segmentos mais pobres da
população(23-25).
Nesse contexto, a atualidade e a pertinência da problematização da maternidade,
por exemplo, se colocou para mim quando comecei a me deparar, de forma
sistemática, em minha prática docente no campo da educação em saúde, com um
conjunto disperso, porém recorrente, de enunciados que atribuem o
desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo e social saudável do feto e da
criança - posicionados, cada vez mais cedo, como seres que sentem e re-agem e
como sujeitos de direitos - a sentimentos, comportamentos, formas de cuidar e
se relacionar da mãe com o feto/criança. Nesse sentido, apesar das inovações
tecnológicas e das conquistas dos movimentos feministas, tal discursividade vem
transformando o exercício da maternidade, na contemporaneidade, em uma tarefa
cada vez mais difícil, complexa e abrangente que pode incluir desde o controle
de riscos de transmissão de doenças e distúrbios hereditários (que hoje
deveriam ser mapeados e calculados antecipamente) quanto evitar o tabagismo, o
consumo de álcool e drogas, o sedentarismo ou, ainda, sentimentos de negação e
rejeição que algumas mulheres podem experimentar em situações de gravidez não
desejada, os quais seriam sentidos e vivenciados pelo feto, no útero.
A prática do aleitamento materno, tal como esta é concebida e recomendada hoje
(em regime de livre demanda e como fonte exclusiva de alimentação do bebê até
os seis meses de vida, quando a licença maternidade é de três a quatro meses)
pode ser tomada como um exemplo emblemático desse processo. Uma leitura atenta
do programa e dos materiais educativos vinculados a ele, permite evidenciar o
quanto se tornaram complexas, multivariadas e quase que irrefutáveis as
vantagens dessa prática que é apresentada como sendo a mais importante prova do
amor e da competência maternas. Na perspectiva em que é apresentada, ela
garante a saúde física, emocional e até mesmo cognitiva do bebê e os efeitos de
sua adoção seriam sentidos ao longo de toda a sua vida. Nesse contexto de
vantagens irrefutáveis, a amamentação e a representação de maternidade a que
ela dá sustentação tem sido apresentada e passa a funcionar como uma
unanimidade capaz de congregar governos, regimes políticos, instituições de
ensino e pesquisa, empreendimentos empresariais e econômicos e movimentos
sociais que conflituam ou divergem frontalmente em muitas outras posições que
assumem e defendem, de uma tal forma que passa a ser quase impossível criticá-
la ou questioná-la(23,24).
O modo como a mãe foi posicionada no Programa Nacional Bolsa Escola,
desenvolvido no governo de Fernando Henrique Cardoso, bem como a miríade de
ações que se vinculam ao exercício dessa maternidade, é outro exemplo que
permite delimitar alguns dos mesmos mecanismos e estratégias(16). O referido
programa comprometia-se com a construção de uma sociedade mais justa, a ser
moldada através de um conjunto amplo de ações que integravam a chamada Rede de
Proteção Social, onde se incluíam, ainda, entre os mais divulgados, o Programa
Bolsa-Alimentação, o Auxílio-Gás e os Programas de Geração de Renda. Tais
programas, hoje integrados sob a denominação de Bolsa Família, tinham e têm
como foco principal o combate à pobreza e à exclusão social, e educação e saúde
são posicionadas neles como instâncias centrais para o alcance de tais
objetivos.
As ações propostas e desenvolvidas pelo programa são dirigidas à escola e à
família e, do modo como são definidas e organizadas, elas posicionam mulheres-
mães como agentes prioritárias para a sua implementação, sendo "imprescindível"
contar com sua ajuda e participação. Primeiro, auxiliando na permanência das
crianças na escola, com a intenção de chegar aos 100% de crianças
escolarizadas. Segundo, melhorando a qualidade de ensino através da efetiva
presença da família (apresentada na grande maioria dos textos como sinônimo de
mulher-mãe) no processo de aprendizagem dos/as seus/suas filhos/as. Como
contrapartida, o programa proporciona uma suplementação mensal de renda às
famílias que vivem em situação de pobreza para que mantenham seus/suas filhos/
as freqüentando a escola. Carin Klein(16) vai descrevendo como tais afirmações
vinculam as mulheres ao exercício de uma dada forma de maternidade através do
cumprimento de um conjunto de práticas, tais como ser "fiscal da educação das
crianças", levá-las regularmente aos serviços de saúde, participar de programas
educativos e qualificar-se para gerar e administrar a renda familiar, entre
outras. Na perspectiva assumida por tais programas, as mulheres precisam
tornar-se constituintes e constituidoras dessa trama que promove, protege,
cuida e fiscaliza a educação e a saúde das crianças.
A partir de nossos estudos poderíamos sintetizar alguns pontos que permitem
estabelecer e delimitar convergências importantes entre tais políticas e
programas:
- Eles têm, entre seus objetivos, a promoção da inclusão social. Nesse sentido,
embora utilizem, freqüentemente, uma retórica direcionada ao conjunto dos
grupos socialmente marginalizados ou a "todas as mulheres brasileiras", suas
ações estão dirigidas, sobretudo, a mulheres dos segmentos sociais mais pobres;
- Os discursos que atravessam e instituem esses programas interpelam o sujeito
mulher, valorizando sua capacidade de inserção concomitante no mercado de
trabalho e na família (porque seguem assumindo a maior parte dos encargos
vinculados ao cuidado e ao trabalho doméstico), os níveis de escolaridade
atingidos pela população feminina, suas qualidades humanas 'inatas' (por
exemplo, priorizar sempre as necessidades de seus filhos em detrimento das
próprias) para então posicioná-la, enquanto sujeito mãe, como sendo a maior
responsável pela operacionalização dessa inclusão social, que passa,
principalmente, pela promoção de mais educação e saúde das crianças;
- Alguns desse programas incorporam, explicitamente, definições mais abertas e
progressistas de família e isso resulta, em parte, da mobilização e da crítica
de várias/os estudiosas/os e movimentos sociais. Paradoxalmente, no entanto, um
dos efeitos de poder dessa incorporação parece ter sido não só a
'naturalização' da ausência do homem-pai nos núcleos familiares mais pobres,
mas, sobretudo, sua 'des-responsabilização' pela vida dessas crianças, e isso
tem se traduzido em dois movimentos distintos: por um lado, no posicionamento
do Estado no lugar de autoridade conferido ao pai na família mononuclear
moderna; por outro, na sobreposição de uma parte significativa dos deveres até
então definidos como 'paternos', sobretudo aqueles vinculados ao provimento do
lar, aos já consagrados 'deveres maternos'.
Assim, esses estudos e abordagens têm permitido, dentre outras coisas,
compreender e problematizar algumas das tensões que se estabelecem entre tais
políticas e aqueles movimentos e teorizações que se esforçaram por demonstrar
que mulher e mãe são posições de sujeito distintas, socialmente construídas,
que não se sobrepõem e nem se configuram como extensão necessária uma da outra.
A meu ver, algumas das estratégias que estão em ação nessas políticas e
programas funcionam, exatamente, no sentido de borrar essas distinções e
rearticular tais posições e identidades. E como educadoras que, nas áreas da
saúde e da educação, investem em projetos de transformação social que pretendem
incorporar perspectivas de gênero, penso que não podemos deixar isso passar em
branco.
Isso não significa que estejamos, com análises como essas, contestando a
necessidade e a importância de políticas e programas que se comprometem com a
diminuição da exclusão e da injustiça social. Transformação social e mais
justiça social implicam prover o acesso de todos os segmentos da população aos
bens e serviços de uma sociedade, mas a forma como isso vem sendo proposto,
nessas políticas e programas, re-afirma a centralidade da díade mulher-mãe,
sintetizada agora como família,que segue sendo sustentada pelo pressuposto
essencialista de que "a reprodução e a sexualidade causam diferenças de gênero
de modo simples e inevitável"(26:1).
Configuram-se, portanto, como políticas públicas que reforçam e atualizam,
através de várias estratégias e de forma ampliada, a responsabilidade feminina
pela reprodução biológica e social, pela educação dos filhos, pela erradicação
da pobreza, das doenças e do analfabetismo, pela demanda e organização de
creches, por saúde e por outras necessidades que garantam a sobrevivência da
família, em contextos sociais cada vez mais precários. E nesse sentido,
concordo com Lourdes Bandeira quando esta diz que políticas e programas
públicos de gênero deveriam se diferenciar de políticas e programas
direcionados para as mulheres porque precisam não só considerar, mas acessar
"necessariamente, a diversidade dos processos de socialização de homens e
mulheres, cujas conseqüências se fazem presentes, ao longo da vida, nas
relações individuais e coletivas"(26:1).
Assim, estudos que se proponham a articular gênero, saúde e educação podem
contribuir para delimitar, de forma mais ampla, algumas das redes de poder que
se colocam em movimento com determinados conhecimentos, ênfases educativas,
instrumentos de diagnóstico e modos de assistir e monitorar mulheres-mães e
'suas' crianças, que vêm sendo utilizados no contexto destes e de outras
políticas e programas, na atualidade. Para além disso, se retomarmos dois dos
pressupostos teórico-metodológicos centrais da perspectiva analítica que
assumimos nestas investigações, quais sejam, a noção de que educar envolve o
conjunto de processos pelos quais indivíduos são transformados ou se
transformam em homens e mulheres específicos no âmbito de uma cultura e que
esta engloba as práticas de significação lingüística e os sistemas simbólicos
através dos quais os significados (que permitem a mulheres e homens conhecer e
nomear seus corpos como corpos sexuados e, com isso, entender suas experiências
e delimitar modos de ser e de viver), tais estudos deveriam, também, levar-nos
a perguntar, mais freqüentemente, quais posições de sujeito a linguagem destas
políticas e programas está produzindo e legitimando para mulheres e homens,
pais e mães, filhos e filhas e, conseqüentemente, que sujeitos de gênero elas
estão constituindo e educando.