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BrBRCVHe0034-71672004000100003

BrBRCVHe0034-71672004000100003

variedadeBr
ano2004
fonteScielo

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Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e desafios atuais AUTORES CONVIDADOS

1 Sinalizadores atuais...

Se nos dispuséssemos a fazer uma revisão sistemática de estudos, políticas e práticas que adotaram o conceito de gênero como ferramenta teórico-metodológica e política para problematizar e intervir nos processos que instituem e sustentam desigualdades sociais entre homens e mulheres e autorizam formas de subordinação feminina, poderíamos contabilizar, inclusive na área da saúde, vários indícios que sinalizam uma trajetória de reconhecimento, incorporação e legitimação crescentes dessa teorização, nas últimas décadas. A extensa lista de grupos de estudos e pesquisa, registrada na plataforma Lattes do CNPq com esse foco de investigação, constitui um sinalizador contundente disso.

Poderíamos, no entanto, elencar outros sinalizadores, tão ou mais significativos, que permitem configurar melhor algumas dimensões do "estado" desse processo de institucionalização do gênero, sobretudo no contexto político brasileiro atual. Assim, por exemplo, o Plano Plurianual 2004-2007(1:6) estabelece como uma dentre três prioridades governamentais, na área social, "promover a redução das desigualdades de gênero". Pretende-se que essa meta, a ser impulsionada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), seja incorporada, de forma transversalizada, no conjunto das políticas e programas propostos e implementados pelo atual governo.

Em consonância com essa meta, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher(2: 63), delineada para esse mesmo período, explicita como uma de suas diretrizes que "a elaboração, a execução e a avaliação das políticas de saúde da mulher deverão nortear-se pela perspectiva de gênero (...)", uma vez que mulheres e homens, "(...) em função da organização social das relações de gênero, também estão expostos a padrões distintos de sofrimento, adoecimento e morte"(2:13).

Ao mesmo tempo e no mesmo espaço político, a Lei n. 10.745 de 09.12.2003, instituiu o ano de 2004 como o Ano da Mulher e a SPM proclama que ele deverá se constituir como um marco "na luta pela igualdade de gênero no país" (3:3).

Também nesse contexto o Decreto Presidencial publicado no Diário Oficial da União, na edição n. 247 de 19.12.2003, convoca a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com o tema "Políticas para as mulheres: um desafio para a igualdade numa perspectiva de gênero"(3: 5).

É óbvio que essas (e outras) evidências políticas atuais de institucionalização de perspectivas (plurais e até conflitantes) de gênero não podem ser atribuídas, linear e unicamente, a um governo e aos partidos políticos que lhe dão sustentação, e nem resultam de ações isoladas de políticos, grupos, instituições e entidades sociais. Elas resultam de processos multifacetados, disputados e negociados, desencadeados com e a partir do Feminismo e dos movimentos de mulheres, em que se articulam movimentos sociais e políticos com abordagens teórico-metodológicas de diferentes matizes. Mais fortemente "localizáveis" nos países ocidentais e na segunda metade do século XX, estes movimentos e abordagens tiveram "o mérito de transformar as até então esparsas referências às mulheres - as quais eram usualmente apresentadas como a exceção, a nota de rodapé, o desvio da regra masculina - em tema central"(4:19). E é esse movimento político e teórico que focalizo, brevemente, a seguir.

2 Das notas de rodapé ao corpo dos textos: fragmentos de histórias...

Os movimentos de mulheres e os Feminismos percorreram trajetos que podem ser contados de diferentes formas e sob diferentes óticas, mas suas estudiosas, em geral, registram esta história mais recente fazendo referência a uma primeira e segunda ondas do movimento feminista(4-6).

A primeira onda aglutina-se, fundamentalmente, em torno do movimento sufragista, com o qual se reivindicava o direito de votar para as mulheres e este praticamente começou, no Brasil, com a Proclamação da República, em 1890, e arrefeceu quando o direito ao voto foi estendido às mulheres brasileiras, na constituição de 1934, mais de quarenta anos depois. Sem desconsiderar a importância capital dos movimentos políticos da primeira onda e dos direitos políticos e civis que estes asseguraram, interessa-me explorar um pouco mais os movimentos desencadeados com a segunda onda feminista.

Esta engendrou-se, nos países ocidentais, no contexto pós-segunda guerra e fortaleceu-se especialmente nos anos 60 e 70 do século XX, no contexto de intensos debates e questionamentos desencadeados por movimentos de contestação (intelectual e política) americanos e europeus que culminaram, na França, com as manifestações de maio de 1968. No Brasil, ela se associa, também, à eclosão de movimentos de oposição aos governos da ditadura militar e, depois, aos movimentos de redemocratização da sociedade brasileira, no decorrer dos anos 80.

Estes movimentos remeteram, principalmente, à necessidade de investir mais em produção de conhecimento e estimularam o desenvolvimento sistemático de estudos e de pesquisas que tivessem como objetivo não denunciar, mas, sobretudo, compreender e explicar a subordinação social e a invisibilidade política a que as mulheres vinham sendo historicamente submetidas. Pretendia-se, com esses investimentos, ampliar e qualificar formas de intervenção que permitissem aprofundar o confronto com tais condições.

Nesse contexto, nas últimas quatro décadas, as estudiosas feministas levaram para a academia temas e fontes de investigação até então concebidos como menores e não autorizados pelo paradigma científico vigente, podendo-se mencionar temáticas e fontes vinculadas ao cotidiano, à família, à sexualidade e ao trabalho doméstico, dentre outras. Tais abordagens e objetos vêm sendo introduzidos, também, de forma paulatina e nem sempre harmoniosa, em agendas curriculares e de pesquisa de inúmeros campos disciplinares e profissionais de diferentes níveis de ensino e instituições.

Incorporando as características do próprio movimento, esses estudos adotaram perspectivas teóricas plurais e não necessariamente convergentes, aliando-se com diferentes campos de estudo como, por exemplo, a psicanálise, ou incorporando e tensionando a teorização marxista ou, ainda, produzindo teorias feministas como a teoria do patriarcado. Nessa trajetória de institucionalização científica e acadêmica, as teorizações feministas também questionaram e abalaram, desde o início e de muitas formas, pressupostos básicos do paradigma de Ciência hegemônico, tais como a universalidade, a racionalidade, a neutralidade, a objetividade, a prerrogativa de definir 'a' verdade, a ascendência sobre qualquer outra forma de saber que não compartilhasse de tais requisitos, a suposição de uma essência humana - masculina e branca - centrada na razão, dentre muitos outros. Tais processos foram (são) permeados por confrontos e resistências tanto com aqueles e aquelas que continu(av)am utilizando e reforçando justificativas biológicas ou teológicas para as diferenças e desigualdades entre mulheres e homens, quanto com aqueles que, desde perspectivas marxistas, defendiam e defendem a centralidade da categoria de classe social para a compreensão das diferenças e desigualdades sociais.

E é no contexto de tais debates e confrontos que algumas feministas se viram frente ao desafio de demonstrar que não são características anatômicas e fisiológicas, em sentido estrito, ou tampouco desvantagens sócio-econômicas tomadas de forma isolada, que definem diferenças apresentadas como justificativa para desigualdades entre mulheres e homens. O que algumas delas passariam a argumentar é que são os modos pelos quais determinadas características femininas e masculinas são representadas como mais ou menos valorizadas, as formas pelas quais se distingue feminino de masculino, aquilo que se torna possível pensar e dizer sobre mulheres e homens que vai constituir o que é inscrito no corpo e definido e vivido como masculinidade e feminilidade, em uma dada cultura, em um determinado momento histórico. Um grupo de estudiosas anglo-saxãs começaria a utilizar, então, o termo gender, traduzido para o português como gênero, a partir do início da década de setenta do século passado.

Embora sua introdução fosse cercada por controvérsias que diziam respeito à pertinência do uso de um conceito que supostamente invisibiliza o sujeito da luta feminista, ele foi gradativamente incorporado às diversas correntes feministas, nos planos acadêmico e político, sendo necessário frisar que essas incorporações implicaram, também, em definições múltiplas e nem sempre convergentes para o termo. De forma mais genérica, no entanto, pode-se dizer que as diferentes definições convergiam em um ponto: com o conceito de gênero pretendia-se colocar em xeque a equação - que resultava em diferenças re- conhecidas como sendo inatas e essenciais - na qual se articulava um determinado modo de ser a um sexo anatômico que lhe seria 'naturalmente' correspondente, para argumentar que diferenças e desigualdades entre mulheres e homens eram social e culturalmente construídas e não biologicamente determinadas(7).

Esses movimentos no campo teórico foram retro-alimentados e alimentaram, ao mesmo tempo, várias iniciativas políticas nos contextos internacional, latino- americano e brasileiro, que se multiplicaram ao longo da segunda metade do século XX, na esteira da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Esta afirmou, explicitamente, a igualdade de direitos entre mulheres e homens e indicou aos países signatários a necessidade de implementar tanto instrumentos jurídicos quanto programas e ações que viabilizassem o alcance desta igualdade.

O Brasil assinou vários documentos e tratados internacionais patrocinados pela Organização das Nações Unidas nesse período, destacando-se dentre os que focalizam desigualdades que envolvem mulheres: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979); a Declaração e Programa de Ação de Viena (1993); o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo (1994); a Declaração de Beijing adotada pela IV Conferência Mundial sobre as Mulheres (1995) e o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (promulgado pelo Brasil em 2002). O Brasil assinou, ainda, diversos documentos de convenções latino-americanas como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (1969) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará (1994)(8).

No plano interno, essas redes políticas internacionais têm fortalecido, conectado e retro-alimentado desde então, reivindicações e ações programáticas substantivas de inúmeros grupos organizados de mulheres e entidades feministas, podendo-se mencionar como exemplo recente, a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, realizada em Brasília em junho de 2002 - um evento político que sintetiza e re-afirma, na Plataforma Política Feminista, "seu potencial de contestação, mobilização e elaboração política e, estrategicamente, posiciona coletivamente, os conteúdos de seus discursos plurais frente ao contexto político brasileiro (...), afirmando também a diversidade e a capacidade de aliança entre feministas"(9:5) brasileiras.

No conjunto desses movimentos teóricos e políticos plurais, gênero segue sendo incorporado e utilizado de duas maneiras bastante diferentes e conflitantes.

Por um lado, gênero vem sendo usado como um conceito que se opõe - ou complementa - a noção de sexo biológico e se refere aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a(s) cultura(s) inscreve(m) sobre corpos sexuados. Nas perspectivas derivadas dessa abordagem - que é largamente assumida em estudos, políticas e ações programáticas contemporâneas - a ênfase na construção social e cultural do masculino e do feminino não tensionou o pressuposto da existência de uma 'natureza' biológica universalizável do corpo e do sexo. Ou seja, em algumas dessas vertentes continua-se operando com o pressuposto de que o social e a cultura agem sobre uma biologia humana universal que os antecede.

Por outro lado, gênero tem sido usado, sobretudo pelas feministas pós- estruturalistas(4,6,10,11) para enfatizar que "a sociedade forma não a personalidade e o comportamento, mas também as maneiras como o corpo [e, portanto, também o sexo] aparece"(10:9). Com este enfoque o conceito problematiza tanto noções essencialistas que remetem a modos de ser e de sentir, quanto noções biologicistas de corpo, de sexo e de sexualidade e disso resultam importantes mudanças epistemológicas e políticas para quem atua nesses movimentos sociais e campos de estudos.

3 Desdobramentos epistemológicos e políticos dessa abordagem de gênero O feminismo pós-estruturalista, alimentando-se especialmente de teorizações desenvolvidas por Michel Foucault e Jaques Derrida, assume que a linguagem (entendida, aqui, em sentido amplo) é o lócus central de produção dos nexos que a cultura estabelece entre corpo, sujeito, conhecimento e poder. Os estudos que se ancoram nesse pressuposto, se afastam de perspectivas que tratam o corpo como uma entidade biológica universal (apresentada como origem das diferenças entre homens e mulheres, ou como superfície sobre a qual a cultura opera para inscrever diferenças traduzidas em desigualdades) para teorizá-lo como um construto sócio-cultural e lingüístico, produto e efeito de relações de poder.

Nessa perspectiva, o conceito de gênero remete a todas as formas de construção social, cultural e lingüística implicadas com processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e nomeando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade. O conceito de gênero privilegia, exatamente, o exame dos processos que instituem essas distinções - biológicas, comportamentais e psíquicas - percebidas entre homens e mulheres. E, por isso, ele nos afasta de abordagens que tendem a focalizar subordinações que seriam derivadas do desempenho de papéis, funções e características culturais estritas de mulheres e homens, para aproximar-nos de abordagens que tematizam o social e a cultura, em sentido amplo, como sendo constituídos e atravessados por representações - sempre múltiplas, provisórias e contingentes - de feminino e de masculino e que, ao mesmo tempo, produzem e/ou ressignificam essas representações.

Esse modo de teorizar o gênero redimensiona, pois, seu uso como ferramenta teórica e política sendo útil pontuar, rapidamente, alguns desses redimensionamentos. Desde essa perspectiva, operar com o conceito de gênero supõe então: a) assumir que diferenças e desigualdades entre mulheres e homens são social, cultural e discursivamente construídas e não biologicamente determinadas; b) deslocar o foco de atenção da 'mulher dominada, em si' para a relação de poder em que tais diferenças e desigualdades são produzidas, vividas e legitimadas; c) explorar o caráter relacional do conceito e considerar que as análises e intervenções empreendidas neste campo de estudos devem considerar ou, pelo menos, tomar como referência, as relações - de poder - e as muitas formas sociais e culturais que, de forma interdependente e inter-relacionada, educam homens e mulheres como "sujeitos de gênero"; d) 'rachar' a homogeneidade, a essencialização e a universalidade contidas nos termos mulher, homem, dominação masculina e subordinação feminina, dentre outros e, com isso, tornar visíveis os mecanismos e estratégias de poder que instituem e legitimam estas noções; e) explorar a pluralidade, a conflitualidade e a provisoriedade dos processos que de-limitam possibilidades de se definir e viver o gênero em cada sociedade, nos seus diferentes segmentos culturais e sociais(12).

Desdobrando e ampliando um pouco mais essas afirmações, elas implicam considerar, por exemplo, que ao longo da vida e através das mais diversas instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres, num processo que não é linear, progressivo ou harmônico e que também nunca está finalizado ou completo. Inscreve-se, nesse pressuposto, uma articulação intrínseca entre gênero e educação e, também, uma ampliação da noção de educativo, uma vez que se enfatiza que educar engloba um complexo de forças e de processos (que inclui, na contemporaneidade, além das instâncias usualmente implicadas nisso, os meios de comunicação de massa, os brinquedos, a literatura, o cinema, a música) no interior dos quais indivíduos são transformados em - e aprendem a se reconhecer como - homens e mulheres, no âmbito das sociedades e grupos a que pertencem. Argumenta-se, sobretudo, que esses processos educativos - constitutivos de muitos programas e ações desenvolvidos nas áreas da saúde e da enfermagem - envolvem estratégias sutis e refinadas de naturalização e legitimação que precisam ser reconhecidas, demarcadas e problematizadas.

Acentuando que nascemos e vivemos em tempos, lugares e circunstâncias específicos, essas abordagens admitem a existência de formas plurais, conflitantes e instáveis de feminilidade e masculinidade. Apoiando-se em perspectivas que concebem aculturacomo sendo um campo de luta e contestação em que se produzem sentidos múltiplos e nem sempre convergentes de masculinidade e de feminilidade, noções essencialistas, universais e trans-históricas de homem e mulher - no singular - passam a ser consideradas demasiadamente simplistas e contestadas. Então, exatamente porque gênero enfatiza essa pluralidade e conflitualidade dos processos pelos quais a cultura constrói e distingue corpos e sujeitos femininos e masculinos, torna-se necessário considerar que isso se expressa pela articulação de gênero com outras 'marcas' sociais, tais como classe, raça/etnia, sexualidade, geração, religião, nacionalidade. E, ainda, que cada uma dessas articulações produz modificações importantes nas formas pelas quais feminilidades e masculinidades, no plural, são (ou podem ser), vividas e experienciadas, por grupos diversos, dentro dos mesmos grupos ou, ainda, pelos mesmos indivíduos, ao mesmo tempo ou em diferentes momentos de sua vida.

Nesse sentido, gênero sinaliza não apenas para as mulheres e nem mesmo toma exclusivamente suas condições de vida como objeto de análise. Em vez disso, o conceito traz implícita a idéia de que as análises e as intervenções empreendidas devem considerar, ou tomar como referência, as relações - de poder - entre mulheres e homens e as muitas formas sociais e culturais que os constituem como "sujeitos de gênero". Isso implica, portanto, analisar os processos, as estratégias, os saberes e as práticas sociais e culturais que educam indivíduos como mulheres e homens de determinados tipos, sobretudo se quisermos investir em possibilidades de propor intervenções que permitam modificar, minimamente, as relações de poder de gênero vigentes nas sociedades e grupos em que vivemos.

Por último, e de forma importante, essa abordagem do gênero implica considerar que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas por representações e pressupostos de feminino e de masculino, ao mesmo tempo em que estão centralmente implicadas com sua produção, manutenção ou ressignificação. Dessa forma, deixa-se de enfocar, de forma isolada, aquilo que mulheres ou homens fazem ou podem fazer ou os processos educativos pelos quais seres humanos se constituem como mulheres ou homens e se enfatiza a necessidade de compreender esses aspectos e processos, articulando-os aos diferentes modos pelos quais o gênero opera estruturando esse social que os torna possíveis e necessários.

Ao lado de tudo isso, e sobretudo na área da saúde, é importante registrar que a ênfase no caráter fundamentalmente histórico, social, cultural e lingüístico do gênero não significa negar que ele se constrói com - e através de - corpos que passam a ser re-conhecidos e nomeados como corpos sexuados. Não se está, portanto, negando a materialidade do corpo ou dizendo que ela não importa, mas mudando o foco dessas análises: do 'corpo em si' para os discursos, processos e relações que possibilitam que sua biologia passe a funcionar como causa e explicação de diferenciações e posicionamentos sociais (um exemplo simples dessa operação é o pressuposto, ainda ativo, que sustenta a idéia de que ser portadora de um útero implica, necessariamente, a existência de um algo mais, chamado de instinto materno).

Desse modo, quando nos dispomos a discutir a produção de diferenças e de desigualdades de gênero, assumindo estes desdobramentos do conceito, também estamos, ou deveríamos estar, de algum modo, fazendo uma analítica de processos sociais mais amplos que marcam e discriminam sujeitos como diferentes, tanto em função de seu corpo/sexo quanto em função de articulações de gênero com raça, sexualidade, classe social, religião, aparência física, nacionalidade, etc. E isso demanda uma ampliação e complexificação não das análises que precisamos desenvolver, mas, também, uma re-avaliação profunda das intervenções sociais e políticas que devemos, ou podemos, fazer. Um processo de reflexão que procuro desenvolver um pouco mais, a seguir, para finalizar este ensaio.

4 Gênero, saúde e educação: 'exercícios de pensar' sobre tais relações Essa abordagem dos estudos de gênero, em sua confluência com os Estudos Culturais, tem-se mostrado extremamente fértil para compreender e problematizar processos de produção de diferenças e desigualdades sociais que são colocados em ação na relação entre educação e saúde; sobretudo porque podemos perceber como esses processos funcionam, posicionando mulheres, mães, homens, pais e crianças em torno de eixos como saudável/doente ou normal/patológico ou, ainda, norma/risco, com base nos conhecimentos que dão sustentação a políticas e programas de educação e de saúde - especialmente naquelas voltadas para o segmento materno-infantil - que são implementadas nesses campos.

Os estudos que temos desenvolvido com essas abordagens(13-18) vêm permitindo delinear, por exemplo, em representações de mulher e de mãe que esses programas educacionais e de saúde produzem ou veiculam, elementos importantes de representações produzidas nos séculos XVIII e XIX, em diversas instâncias das culturas européias ocidentais. Ao mesmo tempo, essas representações parecem incorporar e inscrever, no corpo feminino e na maternidade, 'novos' e conflitantes 'atributos' derivados tanto das lutas de movimentos sociais como o feminismo e os movimentos em prol dos direitos humanos, quanto da influência de um leque cada vez maior de conhecimentos, cientificamente autorizados a definir e prescrever modos mais adequados de cuidar e se relacionar com a infância, dentre os quais se destacam a Medicina, a Psicanálise, a Psicologia, o Direito e a Pedagogia. Repercutem também, nesses sistemas de representação, efeitos das profundas e abrangentes transformações sociais, econômicas e culturais desencadeadas pelo neoliberalismo e pela globalização(19).

Essa relações entre neoliberalismo, globalização e gênero têm sido analisados por várias estudiosas feministas e tem sido possível constatar que em todos los processos de ajuste estructural, las mujeres han funcionado como um factor oculto de equilíbrio para absorver los shocks de los programas de ajuste de la economia, tanto intensificando el trabajo doméstico para compensar la disminución de los serviços sociales por la caída del gasto público, como por el hecho que la privatización de los sitemas de seguridad social ha incidido em mayor medida em las mujeres, por su papel em la reproduction (costos sociales de la maternidad asumidos individualmente, por ejemplo) Así, su posición em la família y en el mercado de trabajo las ubica como parte de la estratégia desreguladora del mercado(20:196).

Quando se busca, então, delimitar efeitos desses discursos e processos, por exemplo, nas representações de mulher e de maternidade produzidas e veiculadas nas políticas e programas que vimos examinando, chama atenção a ampliação e complexificação do leque de condutas, modos de cuidar e modos de sentir que dizem respeito a uma relação mãe-filho 'normal' e 'natural', as quais são apresentadas como sendo indispensáveis ao processo de desenvolvimento físico e, principalmente, emocional de crianças que devem tornar-se adultos produtivos, equilibrados e 'saudáveis'. Chama atenção, ainda, a incorporação de uma "linguagem do risco"(21: 22) com e através da qual determinados grupos de mulheres e crianças são classificados e valorados, crescentemente, como "de risco" e, por conseqüência, transformados em sujeitos-alvo de práticas assistenciais, educativas e de controle mais sistemáticas e estandartizadas.

O exame de tais representações vem nos permitindo perceber que a noção de indivíduo mulher-mãe, ainda supõe, ou supõe com força renovada, a existência de um ser que incorpora e se desfaz em múltiplos - a mãe como parceira do estado, a mãe como agente de promoção de inclusão social, a mãe como esteio de sua família e, mais especificamente, a mãe como responsável única e direta por seus filhos. Nesse contexto, gerar e criar filhos 'equilibrados e saudáveis' passa a ser social e culturalmente definido, também, como um 'projeto' de vida, responsabilidade individual de cada mulher que se torna mãe, independentemente das condições sociais em que essa mulher vive e dos problemas que ela enfrenta - um projeto que deve começar a ser preparado, em todos os sentidos, desde muito cedo, e que deve pautar sua vida como mulher (não beber, não fumar, exercitar-se, comer as coisas adequadas, escolarizar-se, ter equilíbrio emocional, condições financeiras, escolher bem o parceiro, fazer exames regularmente etc...); é a isso que eu, particularmente, venho me referindo, em meus estudos, como sendo uma nova politização da maternidade; nova não no sentido de inovadora, mas no sentido de uma atualização, exacerbação, complexificação e multiplicação de investimentos educativo-assistenciais que têm como foco as mulheres, especialmente aquelas de segmentos mais pobres da população(23-25).

Nesse contexto, a atualidade e a pertinência da problematização da maternidade, por exemplo, se colocou para mim quando comecei a me deparar, de forma sistemática, em minha prática docente no campo da educação em saúde, com um conjunto disperso, porém recorrente, de enunciados que atribuem o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo e social saudável do feto e da criança - posicionados, cada vez mais cedo, como seres que sentem e re-agem e como sujeitos de direitos - a sentimentos, comportamentos, formas de cuidar e se relacionar da mãe com o feto/criança. Nesse sentido, apesar das inovações tecnológicas e das conquistas dos movimentos feministas, tal discursividade vem transformando o exercício da maternidade, na contemporaneidade, em uma tarefa cada vez mais difícil, complexa e abrangente que pode incluir desde o controle de riscos de transmissão de doenças e distúrbios hereditários (que hoje deveriam ser mapeados e calculados antecipamente) quanto evitar o tabagismo, o consumo de álcool e drogas, o sedentarismo ou, ainda, sentimentos de negação e rejeição que algumas mulheres podem experimentar em situações de gravidez não desejada, os quais seriam sentidos e vivenciados pelo feto, no útero.

A prática do aleitamento materno, tal como esta é concebida e recomendada hoje (em regime de livre demanda e como fonte exclusiva de alimentação do bebê até os seis meses de vida, quando a licença maternidade é de três a quatro meses) pode ser tomada como um exemplo emblemático desse processo. Uma leitura atenta do programa e dos materiais educativos vinculados a ele, permite evidenciar o quanto se tornaram complexas, multivariadas e quase que irrefutáveis as vantagens dessa prática que é apresentada como sendo a mais importante prova do amor e da competência maternas. Na perspectiva em que é apresentada, ela garante a saúde física, emocional e até mesmo cognitiva do bebê e os efeitos de sua adoção seriam sentidos ao longo de toda a sua vida. Nesse contexto de vantagens irrefutáveis, a amamentação e a representação de maternidade a que ela sustentação tem sido apresentada e passa a funcionar como uma unanimidade capaz de congregar governos, regimes políticos, instituições de ensino e pesquisa, empreendimentos empresariais e econômicos e movimentos sociais que conflituam ou divergem frontalmente em muitas outras posições que assumem e defendem, de uma tal forma que passa a ser quase impossível criticá- la ou questioná-la(23,24).

O modo como a mãe foi posicionada no Programa Nacional Bolsa Escola, desenvolvido no governo de Fernando Henrique Cardoso, bem como a miríade de ações que se vinculam ao exercício dessa maternidade, é outro exemplo que permite delimitar alguns dos mesmos mecanismos e estratégias(16). O referido programa comprometia-se com a construção de uma sociedade mais justa, a ser moldada através de um conjunto amplo de ações que integravam a chamada Rede de Proteção Social, onde se incluíam, ainda, entre os mais divulgados, o Programa Bolsa-Alimentação, o Auxílio-Gás e os Programas de Geração de Renda. Tais programas, hoje integrados sob a denominação de Bolsa Família, tinham e têm como foco principal o combate à pobreza e à exclusão social, e educação e saúde são posicionadas neles como instâncias centrais para o alcance de tais objetivos.

As ações propostas e desenvolvidas pelo programa são dirigidas à escola e à família e, do modo como são definidas e organizadas, elas posicionam mulheres- mães como agentes prioritárias para a sua implementação, sendo "imprescindível" contar com sua ajuda e participação. Primeiro, auxiliando na permanência das crianças na escola, com a intenção de chegar aos 100% de crianças escolarizadas. Segundo, melhorando a qualidade de ensino através da efetiva presença da família (apresentada na grande maioria dos textos como sinônimo de mulher-mãe) no processo de aprendizagem dos/as seus/suas filhos/as. Como contrapartida, o programa proporciona uma suplementação mensal de renda às famílias que vivem em situação de pobreza para que mantenham seus/suas filhos/ as freqüentando a escola. Carin Klein(16) vai descrevendo como tais afirmações vinculam as mulheres ao exercício de uma dada forma de maternidade através do cumprimento de um conjunto de práticas, tais como ser "fiscal da educação das crianças", levá-las regularmente aos serviços de saúde, participar de programas educativos e qualificar-se para gerar e administrar a renda familiar, entre outras. Na perspectiva assumida por tais programas, as mulheres precisam tornar-se constituintes e constituidoras dessa trama que promove, protege, cuida e fiscaliza a educação e a saúde das crianças.

A partir de nossos estudos poderíamos sintetizar alguns pontos que permitem estabelecer e delimitar convergências importantes entre tais políticas e programas: - Eles têm, entre seus objetivos, a promoção da inclusão social. Nesse sentido, embora utilizem, freqüentemente, uma retórica direcionada ao conjunto dos grupos socialmente marginalizados ou a "todas as mulheres brasileiras", suas ações estão dirigidas, sobretudo, a mulheres dos segmentos sociais mais pobres; - Os discursos que atravessam e instituem esses programas interpelam o sujeito mulher, valorizando sua capacidade de inserção concomitante no mercado de trabalho e na família (porque seguem assumindo a maior parte dos encargos vinculados ao cuidado e ao trabalho doméstico), os níveis de escolaridade atingidos pela população feminina, suas qualidades humanas 'inatas' (por exemplo, priorizar sempre as necessidades de seus filhos em detrimento das próprias) para então posicioná-la, enquanto sujeito mãe, como sendo a maior responsável pela operacionalização dessa inclusão social, que passa, principalmente, pela promoção de mais educação e saúde das crianças; - Alguns desse programas incorporam, explicitamente, definições mais abertas e progressistas de família e isso resulta, em parte, da mobilização e da crítica de várias/os estudiosas/os e movimentos sociais. Paradoxalmente, no entanto, um dos efeitos de poder dessa incorporação parece ter sido não a 'naturalização' da ausência do homem-pai nos núcleos familiares mais pobres, mas, sobretudo, sua 'des-responsabilização' pela vida dessas crianças, e isso tem se traduzido em dois movimentos distintos: por um lado, no posicionamento do Estado no lugar de autoridade conferido ao pai na família mononuclear moderna; por outro, na sobreposição de uma parte significativa dos deveres até então definidos como 'paternos', sobretudo aqueles vinculados ao provimento do lar, aos consagrados 'deveres maternos'.

Assim, esses estudos e abordagens têm permitido, dentre outras coisas, compreender e problematizar algumas das tensões que se estabelecem entre tais políticas e aqueles movimentos e teorizações que se esforçaram por demonstrar que mulher e mãe são posições de sujeito distintas, socialmente construídas, que não se sobrepõem e nem se configuram como extensão necessária uma da outra.

A meu ver, algumas das estratégias que estão em ação nessas políticas e programas funcionam, exatamente, no sentido de borrar essas distinções e rearticular tais posições e identidades. E como educadoras que, nas áreas da saúde e da educação, investem em projetos de transformação social que pretendem incorporar perspectivas de gênero, penso que não podemos deixar isso passar em branco.

Isso não significa que estejamos, com análises como essas, contestando a necessidade e a importância de políticas e programas que se comprometem com a diminuição da exclusão e da injustiça social. Transformação social e mais justiça social implicam prover o acesso de todos os segmentos da população aos bens e serviços de uma sociedade, mas a forma como isso vem sendo proposto, nessas políticas e programas, re-afirma a centralidade da díade mulher-mãe, sintetizada agora como família,que segue sendo sustentada pelo pressuposto essencialista de que "a reprodução e a sexualidade causam diferenças de gênero de modo simples e inevitável"(26:1).

Configuram-se, portanto, como políticas públicas que reforçam e atualizam, através de várias estratégias e de forma ampliada, a responsabilidade feminina pela reprodução biológica e social, pela educação dos filhos, pela erradicação da pobreza, das doenças e do analfabetismo, pela demanda e organização de creches, por saúde e por outras necessidades que garantam a sobrevivência da família, em contextos sociais cada vez mais precários. E nesse sentido, concordo com Lourdes Bandeira quando esta diz que políticas e programas públicos de gênero deveriam se diferenciar de políticas e programas direcionados para as mulheres porque precisam não considerar, mas acessar "necessariamente, a diversidade dos processos de socialização de homens e mulheres, cujas conseqüências se fazem presentes, ao longo da vida, nas relações individuais e coletivas"(26:1).

Assim, estudos que se proponham a articular gênero, saúde e educação podem contribuir para delimitar, de forma mais ampla, algumas das redes de poder que se colocam em movimento com determinados conhecimentos, ênfases educativas, instrumentos de diagnóstico e modos de assistir e monitorar mulheres-mães e 'suas' crianças, que vêm sendo utilizados no contexto destes e de outras políticas e programas, na atualidade. Para além disso, se retomarmos dois dos pressupostos teórico-metodológicos centrais da perspectiva analítica que assumimos nestas investigações, quais sejam, a noção de que educar envolve o conjunto de processos pelos quais indivíduos são transformados ou se transformam em homens e mulheres específicos no âmbito de uma cultura e que esta engloba as práticas de significação lingüística e os sistemas simbólicos através dos quais os significados (que permitem a mulheres e homens conhecer e nomear seus corpos como corpos sexuados e, com isso, entender suas experiências e delimitar modos de ser e de viver), tais estudos deveriam, também, levar-nos a perguntar, mais freqüentemente, quais posições de sujeito a linguagem destas políticas e programas está produzindo e legitimando para mulheres e homens, pais e mães, filhos e filhas e, conseqüentemente, que sujeitos de gênero elas estão constituindo e educando.


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