Erros de medicação em pediatria
INTRODUÇÃO
Em meio aos acentuados avanços tecnológicos e científicos ocorridos na
assistência à saúde, principalmente nas últimas décadas, o sistema atual tem
como grande desafio, a prestação de um cuidado seguro, efetivo, oportuno e
individualizado, em contextos clínica e normativamente cada vez mais complexos
(1).
A complexidade e a especificidade que caracterizam o sistema de saúde atual
exigem a provisão de estruturas e processos assistenciais adequados às
necessidades da clientela atendida, constituindo em suporte para implantação e
execução de assistência de qualidade(2-3).
Por definição, a provisão de atendimento qualificado demanda profissionais com
alto nível de competência para o alcance de bons resultados em saúde, e redução
de lesões produzidas ou decorrentes da assistência.(2)
Apesar dos excelentes resultados geralmente alcançados, o potencial do cuidado
à saúde em produzir conseqüências adversas aos pacientes tem sido tema
abrangente na literatura(4).
Após uma série de estudos relatando a ocorrência de lesões e mortes resultantes
de erros na área da saúde, o Institute of Medicine dos Estados Unidos da
América (EUA) publicou em 2000 a obra mais importante realizada sobre o tema
até o momento, o relatório To Err is Human: Building a Safer Health System(5-
7). Os autores, baseados em estudos epidemiológicos norte-americanos, estimam
que ocorram entre 44.000 e 98.000 mortes anuais no país devido a erros na
assistência à saúde. Tomando como base a menor estimativa, tornam-se a oitava
causa de morte nos EUA(8). Os óbitos relacionados a erros de medicação perfazem
cerca de 7.000 ao ano(9).
Desde então, a temática segurança do paciente ocupa lugar de destaque na
literatura internacional, sendo que várias iniciativas têm sido adotadas com o
objetivo de prevenir erros e danos aos pacientes, e promover a qualidade do
cuidado, incluindo a formação de grupos de estudo e de trabalho em diferentes
organismos, destacando-se as recomendações produzidas na temática pela
Organização Mundial da Saúde (OMS)(10).
Considerando que a terapia medicamentosa consiste na forma mais comum de
intervenção no cuidado à saúde, é consenso na literatura que os erros de
medicação são freqüentes, especialmente nas áreas de atendimento pediátrico,
embora existam controvérsias acerca de sua incidência dependendo da definição,
contexto assistencial e tipo de metodologia empregada nos estudos sobre o tema
(11-13). Pesquisas que utilizam múltiplos métodos de coleta de dados fornecem
maiores taxas de erros, já que observam diferentes etapas do processo de
medicação(14).
Entre todos os pacientes hospitalizados estima-se que aproximadamente 3%
desenvolvam um evento adverso grave decorrente do uso de medicamentos durante
sua internação(15-16). Entre pacientes não- hospitalizados, poucas pesquisas
foram realizadas, não havendo consenso quanto à incidência de erros de
medicação.
O presente artigo teve por objetivo apresentar e discutir dados referentes à
epidemiologia dos erros de medicação em diferentes áreas de atendimento
pediátrico, e apontar estratégias de prevenção.
O erro de medicação é definido como um evento evitável, ocorrido em qualquer
fase da terapia medicamentosa, que pode ou não causar danos ao paciente. A
ocorrência do dano caracteriza o evento adverso ao medicamento, que se refere
ao prejuízo ou lesão, temporária ou permanente, decorrente do uso incorreto do
medicamento, incluindo a falta do mesmo(17-19).
Quando o erro, apesar de ter potencial para provocar um dano, não causa
prejuízo ao paciente por ter sido interceptado antes de atingi-lo, define-se o
erro de medicação potencial, também descrito na literatura como potencial
evento adverso ao medicamento(17-19).
Entre as pesquisas sobre erros de medicação identificadas em diferentes bases
de dados nacionais e internacionais, aproximadamente 8% referem-se à população
pediátrica. Tal literatura divide-se em relatos de caso, principalmente
relacionados à superdosagem de medicamentos, revisões de prontuários de uma ou
mais instituições de saúde, e experiências de específicos locais de atendimento
à saúde(20-22).
Estima-se que a probabilidade de ocorrência de erros com potencial para causar
danos seja três vezes maior em crianças hospitalizadas, quando comparadas aos
pacientes adultos(20,23-24). A maior vulnerabilidade à ocorrência de erros de
medicação em pediatria deve-se a vários fatores.
A necessidade do cálculo individualizado da dose, baseada na idade, peso e
superfície corpórea da criança, envolvendo múltiplas operações matemáticas em
várias fases do processo de medicação (prescrição, dispensação, preparo,
administração e monitorização) favorece a ocorrência do erro de medicação em
crianças(24-26).
Estudos demonstram a dificuldade de enfermeiros, médicos e residentes de
pediatria em realizar os diversos cálculos matemáticos, ocasionando o erro
relacionado à dosagem de medicamentos, o mais freqüentemente observado em
crianças, que se refere à prescrição ou à administração incorreta da dose de um
fármaco(23,26-27).
A prescrição ou administração de uma dose 10 vezes superior ou inferior à
adequada para a idade e peso da criança é particularmente comum e deveras
perigosa(16). Estima-se que esse tipo de erro compreenda 15% de todos os erros
de prescrição relacionados à dose de medicamentos(28). Usualmente envolve
fármacos com alto potencial de risco, administrados em doses inferiores a um
miligrama por quilograma de peso, na vigência de cálculos que podem gerar
confusão durante a conversão de miligrama para micrograma(29).
Num período de sete meses, pesquisadores analisaram 20 relatos de erros de dose
por um fator de 10 envolvendo crianças, notificados à farmácia de um hospital
de nível terciário. Cinco erros atingiram o paciente e 15 foram interceptados.
Em seis casos, os erros poderiam ter causado óbito, e em nove efeitos tóxicos
severos(21).
Pacientes pediátricos apresentam rápidas e dinâmicas modificações físicas e
fisiológicas ao longo do tempo. Características peculiares relacionadas à
maturidade fisiológica das crianças alteram sua capacidade de absorção,
metabolização e excreção das drogas, e constituem informações importantes nem
sempre consideradas nas decisões clínicas relacionadas à seleção e utilização
dos fármacos(15,29).
Aproximadamente 75% dos medicamentos prescritos em pediatria não foram
adequadamente estudados nesta população. Dessa forma, a prática da terapia
medicamentosa em crianças pode resultar em aumento dos riscos de ocorrerem
erros e eventos adversos(24).
Apesar do uso respaldado pela prática clínica e algumas pesquisas na área,
ressalta-se no cotidiano da prática hospitalar de atendimento pediátrico a
falta de medicamentos parenterais com características e formulações específicas
para aplicação em pediatria. A indústria farmacêutica não disponibiliza a
maioria dos fármacos de uso parenteral em apresentação pediátrica. Deste modo,
profissionais de saúde devem realizar práticas que promovam o uso de
medicamentos formulados para adultos em crianças gerando necessidade de
cálculos sofisticados, re-diluição, manipulação excessiva e administração de
doses muito fracionadas, o que predispõe à ocorrência de falhas. Tal situação
tem levado alguns pesquisadores a nominarem crianças como órfãs de terapia
parenteral(30).
EPIDEMIOLOGIA DOS ERROS DE MEDICAÇÃO EM PEDIATRIA
Em comparação à população adulta, apesar do risco elevado de ocorrência de
erros de medicação entre crianças, poucos estudos estimam sua incidência nessa
faixa etária(8).
Por anos, os erros de medicação em crianças foram apresentados em séries de
casos ou relatos individuais. A possibilidade de avaliação sistemática das
taxas de erros nessa população ocorreu apenas recentemente(15).
Um dos primeiros estudos prospectivos sobre erros de medicação em crianças foi
publicado em 1987. Farmacêuticos revisaram prescrições de medicamentos de dois
hospitais pediátricos, sendo detectada taxa de 0,49 erros por 100 medicamentos
prescritos. A ocorrência foi significativamente mais comum nas unidades de
cuidados intensivos pediátricos (UCIP). A prescrição errada da dose do
medicamento foi o tipo mais freqüente (82%), sendo os antimicrobianos a classe
mais comumente associada aos erros(31).
Pesquisa de referência na área evidenciou erros de medicação em 5,7% das 10.778
prescrições de medicamentos analisadas, com taxa de eventos adversos ao
medicamento de 2,3 por 100 admissões (26 eventos), e de 10 erros de medicação
potencial por 100 admissões (115 eventos). Entre os erros de medicação
potencial, 16% foram classificados como potencialmente fatais, 45% como erros
sérios, e 39% como erros significativos. Os erros potencialmente fatais
incluíam superdosagens de heparina e digoxina, e prescrição de amoxacilina a
paciente com história de reação anafilática à penicilina(20).
Investigação semelhante foi realizada com objetivo de determinar a incidência,
as causas e as conseqüências de erros de medicação e eventos adversos ao
medicamento em crianças hospitalizadas em uma unidade de internação e uma UCIP.
Foram identificadas taxas de seis eventos adversos ao medicamento por 100
admissões (76 eventos), e oito erros de medicação por 100 admissões (94
eventos). Concluiu-se que eventos adversos ao medicamento têm maior
probabilidade de ocorrer em crianças com tempo prolongado de internação e
recebendo maior número de medicamentos(32).
Num período de cinco anos, um dos maiores hospitais pediátricos no Reino Unido
registrou a ocorrência de 195 erros medicação por meio de um sistema interno de
notificação. Corroborando dados da literatura quanto ao alto risco de
ocorrência de erros de medicação em crianças com idade até dois anos, grande
parte dos eventos (44%) ocorreu em pacientes nessa faixa etária. Os tipos de
erro de medicação mais comuns foram administração de medicamento em velocidade
de infusão incorreta (15,8%), administração incorreta da dose do medicamento
(14,8%), administração de dose extra do medicamento (13,8%), erro de omissão
(12,3%) e administração de medicamento errado (12,3%)(33).
Em estudo publicado em 2006, foram analisados os relatos enviados a um sistema
nacional de notificação de erros norte-americano (MEDMARX) num período de cinco
anos. De janeiro de 1999 a dezembro de 2003, o sistema recebeu 19.350
notificações de erros relacionados à utilização de medicamentos em crianças,
correspondendo a 3,3% de todos os informes(28).
Com objetivo de identificar erros de medicação, pesquisadores analisaram 68
prontuários de crianças internadas em três unidades pediátricas de um hospital
universitário do município de São Paulo. Por se tratar de estudo retrospectivo,
de revisão de prontuários, os erros identificados poderiam constituir erros de
medicação ou de documentação do processo assistencial. Observou-se 1.717 erros
de registro, compondo 21,1% das 8.152 doses de medicamentos ou soluções
prescritas. Destacam-se os erros de omissão, definidos como a não comprovação
da realização da medicação por meio da checagem da prescrição do médico pela
enfermagem, que corresponderam a 75,7% das falhas(34).
Os analgésicos opióides, os antibióticos e os agentes antidiabéticos constituem
as classes de medicamentos mais comumente associadas a erros e eventos adversos
ao medicamento em crianças(15-16,28).
ERROS DE MEDICAÇÃO EM UNIDADES DE EMERGÊNCIA PEDIÁTRICA
Em unidades pediátricas para atendimento de emergência, diferentes estudos
apontam que grande parte dos erros acontecem durante o procedimento de
reanimação cardiorrespiratória, principalmente em plantões noturnos e aos
finais de semana, ocorrendo em aproximadamente 10% de todos os pacientes
admitidos nesse setor(16,35-36).
Em situações de emergência os erros são atribuídos à necessidade de
implementação da terapia medicamentosa em período de tempo extremamente
reduzido, à complexidade do atendimento, às diversas interrupções que impedem a
continuidade do cuidado, a flutuações na quantidade de pacientes assistidos, ao
envolvimento de menor número de profissionais que poderiam interceptar o erro e
à dificuldade na utilização da dispensação de medicamentos por dose unitária em
tais unidades(37).
Estudo realizado com objetivo de avaliar a incidência e a origem dos erros de
medicação entre crianças atendidas em quatro unidades de emergência evidenciou
84 erros nos prontuários dos 182 pacientes selecionados para estudo, resultando
em taxa de 39% de erros. Apesar do índice elevado, não foram identificados
danos aos pacientes(38).
Pesquisadores analisaram retrospectivamente os prontuários de 1532 crianças
atendidas no setor de emergência de um hospital pediátrico de nível terciário
do Canadá. Os erros de prescrição foram o tipo mais comumente observado,
principalmente entre os pacientes graves. Os resultados do estudo demonstraram
que o fator de risco mais importante para a ocorrência de erros durante o
atendimento de emergência foi o nível de treinamento da equipe médica. Médicos
residentes cometeram mais erros, principalmente no início do ano acadêmico(35).
ERROS DE MEDICAÇÃO EM UNIDADES DE CUIDADOS INTENSIVOS PEDIÁTRICOS
É consenso que a probabilidade de ocorrerem erros e eventos adversos é maior
conforme a intensidade do cuidado, a severidade da doença e a complexidade do
sistema provedor da assistência, características inerentes ao ambiente de UCIP
(39). Soma-se a isso o fato de que aproximadamente dois terços de todos os
pacientes de UCIP recebem múltiplas medicações intravenosas, em média o dobro
da quantidade de outras unidades de internação, havendo maior possibilidade de
falha na comunicação entre os profissionais, no cálculo das doses e na
administração dos medicamentos capazes de causar graves danos aos pacientes
(40).
Estudo que apresentou análise do número de medicamentos administrados nas
unidades pediátricas de um hospital de ensino brasileiro encontrou uma média de
11,4 doses de medicamentos/criança/dia na UCIP, enquanto que nas unidades
clínica, cirúrgica e de infectologia as médias foram, respectivamente, de 6,0,
8,2 e 4,2 doses de medicamentos/ criança/dia(30).
A prevalência de erros de medicação em unidades de cuidados intensivos (UCI)
varia amplamente. Segundo resultados de um estudo de revisão, a média de erros
de medicação identificados foi de 105,9 por 1.000 pacientes/dia em UCI de
pacientes adultos, e 24,1 por 1.000 pacientes/dia em UCIP e neonatais(40). Essa
extensa variabilidade pode ser atribuída ao método de detecção dos erros, à
especialidade das UCI, ao número de UCI e instituições avaliadas, ao tipo de
tecnologia existente nas unidades e à definição de erro de medicação nos
diferentes estudos analisados.
Ao estudar os relatos de erros de medicação de uma UCIP e uma unidade de
internação pediátrica de um hospital especializado em cardiologia,
pesquisadores observaram que mais de 60% das notificações relacionavam-se aos
pacientes sob cuidados intensivos. Dos 441 erros notificados num período de
dois anos, 99 foram classificados como erros graves. Desses, 24 não foram
interceptados, sendo que quatro geraram conseqüências clínicas evidentes(41).
Relacionado à terapia intensiva, destacam-se, ainda, na literatura os relatos
de caso referentes à administração inadvertida de fármacos por vias diferentes
da prescrita. Crianças criticamente enfermas possuem múltiplas vias de acesso
para administração de medicamentos (ex. venosa central e periférica; enteral;
epidural) e para monitorização hemodinâmica podendo esse constituir fator de
risco para ocorrência de erros(42-43).
ERROS DE MEDICAÇÃO EM ONCOLOGIA PEDIÁTRICA
No que se refere à segurança do paciente em oncologia pediátrica, evidenciam-se
poucos estudos que analisam erros envolvendo a terapia antineoplásica, apesar
do alto potencial para danos relacionado aos erros com tais medicamentos(44).
No período de 1999 a 2004, foram analisados todos os relatos de erros
relacionados a agentes antineoplásicos abrangendo pacientes com idade menor que
18 anos enviados ao sistema de notificação MEDMARX. Dos 310 erros notificados,
55,2% ocorreram entre pacientes hospitalizados. Em 85% dos casos os erros
atingiram aos pacientes. A necessidade de monitorização adicional ou
instituição de nova intervenção terapêutica ocorreu em 15,6% dos erros (49
casos). Acerca das fases do processo de medicação, 48% dos erros ocorreram na
fase de administração e 30% na fase de dispensação do medicamento. Os agentes
mais comumente envolvidos foram metotrexate (15,3%), citarabina (12,1%),
etoposide (8,3%) e doxorrubicina (6,2%)(44).
Gandhi et al. realizaram estudo em três unidades ambulatoriais destinadas à
administração de quimioterapia, sendo duas de tratamento de pacientes adultos,
e uma de pacientes pediátricos. Foram revisadas 10.112 prescrições de
medicamentos, sendo identificados erros de medicação em 3% (2.104) das
prescrições de pacientes pediátricos, e 16% dos erros associados a agentes
quimioterápicos. Aproximadamente dois terços dos erros encontrados tinham
potencial para causar danos(45).
Embora sejam escassas as pesquisas sobre erros de medicação em oncologia
pediátrica, é consenso que sua ocorrência seja freqüente. Sessenta e três por
cento de 160 enfermeiras membros da Oncology Nursing Society entrevistadas
referem já ter presenciado erros de medicação envolvendo agentes
antineoplásicos em seu local de trabalho. Prescrições incompreensíveis,
estresse, número inadequado de profissionais e falta de experiência
profissional foram mencionados como fatores contribuintes para o acontecimento
de erros(46).
ERROS DE MEDICAÇÃO NA COMUNIDADE
Embora a prática da terapia medicamentosa em pediatria ocorra,
predominantemente, entre pacientes não hospitalizados, são escassos os estudos
sobre erros de medicação nesse contexto(47).
Evidencia-se discussão quanto ao uso racional de medicamentos na comunidade
que, segundo a OMS, se caracteriza pelo uso apropriado do medicamento conforme
as condições clínicas do paciente, em doses adequadas às suas necessidades
individuais, por um período adequado e ao menor custo para o paciente e para a
comunidade(48).
O uso inadequado de medicamentos é considerado um problema de saúde pública
(2,38). A OMS estima que 50% de todos os medicamentos são prescritos,
dispensados ou usados inadequadamente(49).
Segundo classificações internacionais, a escolha incorreta do medicamento,
baseada na indicação, contra-indicação, alergias conhecidas, existência e
disponibilidade de outra terapia mais eficaz, a prescrição incorreta da dose,
da via de administração, da velocidade de infusão ou da forma de apresentação
do medicamento, e a prescrição ilegível ou incompleta, são consideradas erros
de medicação, sendo de alta incidência na comunidade, decorrentes da
dificuldade de entendimento da prescrição do médico ou das informações
fornecidas por profissionais de saúde para o uso adequado do medicamento, bem
como, muito freqüente no Brasil, devido à auto-medicação ou indicação de
terapias medicamentosas por profissionais não capacitados(11).
Acompanhamento realizado com 1.382 crianças matriculadas em 15 creches do
município de São Paulo apontou que 12,1% delas utilizaram medicamentos contra-
indicados ou não indicados para tratar os sintomas ou diagnósticos referidos.
Vinte e sete por cento dos medicamentos foram prescritos incorretamente, e o
número de prescrições incorretas esteve significativamente associado ao número
de fármacos prescritos pelo médico. Considerando apenas o tipo de medicamento,
26,3% foram classificados como de uso inadequado por serem contra-indicados
para a idade ou de ação duvidosa ou ineficaz(50).
Ao analisar medicamentos prescritos para 1.933 crianças não-hospitalizadas,
pesquisadores observaram ocorrência de erros em 15% das prescrições dispensadas
(51).
Utilizando os métodos de entrevista e revisão de prontuários e de prescrições
de medicamentos, estudo conduzido em seis consultórios de pediatria dos EUA
identificou 283 eventos adversos ao medicamento. Setenta por cento dos eventos
classificados como preveníveis estavam relacionados à fase de administração do
fármaco, realizada pelos pais ou cuidadores, sugerindo a importância do
aprimoramento na comunicação entre os profissionais de saúde e os familiares ou
responsáveis pela criança para a prevenção de erros de medicação(47).
A OMS preconiza que o farmacêutico, no momento da dispensação, destine ao menos
três minutos à orientação do paciente quanto à ênfase no cumprimento da
dosagem, à prevenção de interação com alimentos ou com outros medicamentos, ao
reconhecimento de reações adversas potenciais e às condições de conservação dos
produtos. Pesquisas realizadas no Brasil apontam um tempo médio de orientação
entre 17 e 55 segundos(52).
PREVENÇÃO DE ERROS DE MEDICAÇÃO
Reconhecer que os erros de medicação são freqüentes e identificar seus padrões
e causas no cotidiano da prática de atendimento à criança são apenas o primeiro
passo para diminuição dos riscos de sua ocorrência(15). A literatura descreve
diversas estratégias utilizadas na prevenção de erros de medicação que, quando
desenvolvidas e implementadas com sucesso, contribuem para promover a segurança
nos sistemas de atendimentos à saúde.
Inicialmente, recomenda-se a adoção de uma abordagem com vistas à redução de
erros de medicação que seja orientada por sistemas. Sabe-se hoje que o erro não
é resultado da ação de um indivíduo, mas de uma cadeia de eventos acionada por
um sistema mal elaborado. A abordagem sistêmica tem como princípio examinar
falhas do processo que possam ter desencadeado o erro, e propor estratégias que
visem impedir sua recorrência ou minimizar seu impacto caso ele atinja o
paciente(12). Caracteriza-se, ainda, pela promoção da cultura de segurança, não
punitiva e receptiva às mudanças e intervenções necessárias para um nível ótimo
de segurança do paciente(10).
A instituição de programas de educação permanente tem se mostrado efetiva na
prevenção de erros de medicação. Estudos mostram que um dos principais fatores
que contribuem para a ocorrência de erros é a falta de acesso a informações
sobre os medicamentos por parte de todos os profissionais envolvidos no
processo de medicação. Adicionalmente, o uso de protocolos assistenciais no
planejamento da assistência permite a implementação mais segura da terapia
medicamentosa(3,9,12).
Destaca-se a incorporação de tecnologias e sistemas de informação na prática
assistencial como estratégia de sucesso na prevenção de erros relacionados à
utilização de medicamentos. A implementação de prescrições médicas e de
enfermagem informatizadas, o uso de código de barras e de bombas de infusão
inteligentes são descritas como capazes de reduzir significantemente os erros
de medicação(3,9,12,53).
Prescrições eletrônicas que incluem recursos de apoio à decisão clínica
oferecem acesso imediato às informações sobre o paciente, reduzem a
possibilidade de seleção incorreta do medicamento, garantem prescrições
completas e em formato adequado, fornecem suporte para o cálculo de doses e
volume para reconstituições e diluições, e proporcionam a possibilidade de
verificações sobre interações e incompatibilidades medicamentosas,
contraindicações e alergias(3,9,12).
Destaca-se que vários países têm angariado esforços para a informatização
integrada em todos os sistemas de atenção à saúde, fornecendo informações
relativas ao cliente nos diversos locais de prestação de assistência, que
promovem a prevenção de erros.
A atuação clínica dos farmacêuticos nas unidades de atendimento também tem sido
descrita como estratégia de prevenção e redução de erros com medicamentos em
pediatria, especialmente em UCIP. Estudo recente concluiu que 81% dos erros de
medicação entre crianças hospitalizadas poderiam ter sido evitados se o
farmacêutico fosse um profissional integrante da equipe multiprofissional
(9,54).
O desenvolvimento e implementação de sistemas de notificação de erros, tendo
como foco a visão sistêmica de segurança, permitem identificar padrões de erros
evitáveis e suas causas principais, contribuindo para o desenvolvimento de
modelos de boas práticas assistenciais que previnam tais erros(10,25). A
incorporação de relatos de erros de medicação visa, essencialmente, a
possibilidade de mudanças para a construção de uma prática mais segura, uma vez
que o conhecimento da realidade nos permite aprender com os erros(43).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a ausência de estudos epidemiológicos amplos, multicêntricos, utilizando
metodologias e nomenclaturas padronizadas comprometam a generalização e
comparação de resultados, os diversos estudos sobre erros de medicação em
pediatria apresentados demonstram a complexidade da temática.
Observa-se a ocorrência de vários tipos de erros de medicação, nas diferentes
áreas e locais de atendimento à criança, relacionados a diversos fatores, entre
os quais se destacam a prática profissional e o sistema no qual a assistência é
realizada.
Evidenciar a falibilidade do cuidado à saúde em pediatria visa incitar os
profissionais a reavaliarem sua prática e a necessidade de reestruturação dos
seus processos de trabalho, estimulando uma mudança de comportamento e,
conseqüentemente, a prestação de uma assistência mais segura.
Os sistemas de atendimento nos quais a segurança do paciente constitui
prioridade apresentam gestão fundamentada na segurança e no gerenciamento de
riscos, estrutura e processos baseados em evidências, e práticas colaborativas
entre as equipes multidisciplinares, visando sempre o alcance de bons
resultados(56).
O desenvolvimento de atitudes pró-ativas e de liderança por parte dos
profissionais no contexto da segurança do paciente constituem premissas
essenciais no sentido de melhorar a qualidade da assistência prestada aos
pacientes pediátricos(56).
Errar é uma condição intrínseca ao processo cognitivo do ser humano, não sendo
possível extingui-la.(57) Entretanto, como no cuidado à saúde esses eventos
envolvem a integridade, o bem-estar ou a vida de outra pessoa, profissionais da
área devem despender esforços para o desenvolvimento de estratégias que
culminem com a prevenção dos erros e a manutenção dos sistemas de atenção à
saúde com vistas à promoção da segurança do paciente(56,58).