Itinerário percorrido pelas famílias de crianças internadas em um hospital
escola
INTRODUÇÃO
O diagnóstico oportuno de qualquer patologia é essencial para dar início da
terapêutica em tempo hábil, aumentando sensivelmente as chances de recuperação.
Porém, nem sempre é possível, quer por desconhecimento das famílias sobre
sinais e sintomas das doenças, quer por ausência, deficiência ou negligência do
profissional de saúde no estabelecimento do diagnóstico. Em alguns casos, há
interferência de outros fatores, como a dificuldade de acesso ao serviço
primário de saúde, que afeta de modo especial as camadas da população de menor
poder aquisitivo, desprovidas de recursos assistenciais alternativos.
Do adoecimento até a efetivação do diagnóstico correto e início do tratamento
específico, as crianças e suas famílias acabam percorrendo um longo caminho que
não raramente resulta na hospitalização infantil. Em muitos dos casos, a
internação da criança aparece como um sinalizador das falhas do atendimento
que, se bem conduzido, poderia interromper essa trajetória antes do agravamento
da condição de saúde.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) reduziu a segmentação na saúde ao
unir os serviços próprios da União, de estados e municípios e os da assistência
médica previdenciária. Além de estabelecer a universalização do acesso à
população, promoveu a descentralização, a regionalização e a integração desses
serviços, com a criação de redes assistenciais(1), definidas como o conjunto de
ações e serviços de saúde articulados em níveis crescente de complexidade,
tendo como finalidade a integralidade de assistência à saúde(2). A população
tem acesso à rede de serviços a partir do nível primário de atenção e, com base
na avaliação da gravidade do risco individual e coletivo, deve ser assegurado
ao usuário a continuidade do cuidado em saúde, em todas as suas modalidades,
nos diferentes serviços, como hospitais e outras unidades que integram a rede
de atenção da respectiva região(2).
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) é a porta de entrada do SUS e tem como
objetivo proporcionar a criação de um forte vínculo entre coletividade, família
e profissionais. Não obstante, na prática cotidiana, identificam-se ações
desenvolvidas pelos profissionais de forma fragmentada, muitas vezes só
considerando a influência das causas orgânicas sobre a saúde, sem valorizar o
acolhimento pautado na escuta e na atenção integral ao indivíduo(3).
Estudos sobre os itinerários de pessoas em busca de atenção à saúde podem
contribuir significativamente para que se compreenda o comportamento frente ao
cuidado e a forma como são utilizados os serviços de saúde, constituindo uma
importante ferramenta para a qualificação da assistência(4). Sob este prisma, a
investigação dos diversos contextos assistenciais pode evidenciar lacunas a
serem trabalhadas, o que torna pesquisas com esse enfoque importantes para
sensibilizar os profissionais a rever suas práticas. Trata-se, pois, de uma
alternativa que busca a qualificação permanente da atenção, com vistas a
proporcionar aos usuários um atendimento de excelência.
O elo entre a investigação e a prática de enfermagem é primordial para o
aprimoramento da atenção e a qualificação perfeiçoado(5).
O itinerário terapêutico compreende crescente das práticas de enfermagem
pediátrica. Por meio da pesquisa torna-se possível obter evidências científicas
norteadoras da práxis, contribuindo para que o cuidado de crianças e suas
famílias seja sempre reavaliado e aa trajetória de busca, produção e
gerenciamento do cuidado à saúde realizada pelo indivíduo e seus familiares,
seguindo uma determinada lógica. Tem como base as redes de cuidado existentes
na saúde e estas devem ser capazes de oferecer sustentabilidade às famílias no
processo de adoecimento(6). Assim, definiu-se como objetivo deste estudo o de
conhecer o itinerário percorrido pela família da criança internada em unidade
hospitalar.
MÉTODO
Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, de natureza qualitativa,
realizado no setor de internação pediátrica do Hospital Universitário Regional
de Maringá (HUM), instituição com 123 leitos, referência para os 30 municípios
que compõe a 15ª Regional de Saúde do Estado. A unidade de pediatria possui 15
leitos que atendem crianças de zero a 13 anos, onze meses e vinte nove dias de
vida. Três leitos são destinados exclusivamente aos recém-nascidos provenientes
da UTI Neonatal e os outros 12 são distribuídos em quatro enfermarias com três
leitos cada.
Os dados foram coletados pelo período de uma semana durante o mês de outubro de
2011, por meio de entrevista semiestruturada, com a seguinte solicitação:
Descreva o caminho percorrido por você até o internamento do seu (sua) filho
(a) nesta unidade. Os informantes do estudo foram familiares acompanhantes das
crianças hospitalizadas na clínica pediátrica durante o período de coleta de
dados. Cabe salientar que nesse período havia uma criança em isolamento e por
essa razão os outros dois leitos da mesma enfermaria não estavam disponíveis
para internação na unidade. Assim, participaram do estudo 10 acompanhantes das
crianças internadas.
Após a anuência dos sujeitos, as entrevistas foram gravadas em um MP3 e
transcritas na íntegra. Para as interpretações das informações adotou-se
análise temática que consiste em três etapas: pré-análise, exploração dos
dados, tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Na pré-análise as
entrevistas foram transcritas na íntegra e realizadas múltiplas leituras com a
finalidade de exaustão das informações. Em seguida, realizou-se o mapeamento
das falas assinalando os principais pontos para facilitar a visualização do
material como um todo. Na etapa seguinte foram identificadas as unidades de
registro e realizados os recortes necessários. Por fim, buscou-se apreender as
informações contidas nos relatos para estabelecer as unidades categoriais do
estudo(7).
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisas
com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (Parecer n° 660/2011) e
realizada de acordo com as normativas fixadas pela Resolução 196/96-CNS do
Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes assinaram o termo de
consentimento livre e esclarecido em duas vias. Para assegurar o anonimato dos
sujeitos do estudo, estes estão identificados com nomes fictícios.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Todos os acompanhantes eram do sexo feminino, sendo sete mães, duas avós e uma
tia. Ao serem abordadas com relação à temática do estudo, foi possível
depreender de suas falas os sentimentos de apreensão e preocupação familiar que
circundam o processo de doença e hospitalização da criança. Tais sentimentos
começam a aflorar antes mesmo do diagnóstico, levando a família a passar por
diferentes estágios de enfrentamento da doença.
Os relatos evidenciaram que o período compreendido entre a identificação dos
primeiros sintomas da doença, no domicílio, até a tomada de decisão da família
de buscar assistência médica, pode ser bastante variável e a trajetória
percorrida até a resolução do problema nem sempre é rápida e fácil.
Do processo de análise dos discursos, foi possível a identificação de duas
categorias temáticas: O papel da família na identificação de desvios de saúde
na criança, e (Des)preparo dos serviços de saúde: impactos sobre o atendimento
à saúde infantil, as quais serão descritas a seguir.
O papel da família na identificação de desvios de saúde na criança
O escopo principal desta categoria foram os relatos das famílias acerca do
processo de percepção do adoecimento da criança, bem como a descrição dos
caminhos percorridos em busca do diagnóstico e do tratamento da doença. O
percurso efetuado pela família inicia-se quando o familiar, em geral a mãe,
consegue identificar que algo não está bem com a criança. Os pais, e em
especial a mãe, são os principais cuidadores das crianças e os maiores
conhecedores de seus hábitos e características comportamentais, o que os torna
mais aptos a identificar qualquer alteração da normalidade.
O desejo de ver restabelecida a condição de saúde da criança impulsiona a
família, a estabelecer estratégias de enfrentamento com base em suas crenças e
valores. O próprio ato de cuidar constitui uma construção cultural pautada em
uma aprendizagem que leva em conta as experiências de vida e as informações
passadas de geração a geração. Por isso, é comum verificar uma certa
resistência das famílias em buscar a ajuda profissional logo aos primeiros
sinais da doença. Em geral, essa decisão é adiada até que se avalie se as
condutas tomadas no ambiente doméstico surtiram ou não os efeitos esperados.
Os relatos a seguir revelam a forma como tomar decisões relacionadas com a
saúde da criança teve início para algumas das famílias entrevistadas.
Ele começou sentir dor na barriga e eu achava que era o estômago. Na
segunda ele acordou com dor; na hora que veio da escola, ele vomitou
muito [...] suando frio [...] Em casa não deixei comer comida pesada
e fiz uma sopa. Ele tomou a sopa e vomitou de novo. Fui à casa da
minha cunhada, peguei remédio para vômito e dei para ele, mas ele
vomitou umas quatro vezes durante a tarde, na terça-feira eu levei no
médico. (Laura - mãe de João, 9 anos, apendicite aguda, 3 dias de
internação)
Ele amanheceu na segunda-feira com dor na barriga, mas uma dor mais
leve. Dei Luftal porque achei que poderia ser gases [...] Ele não
quis comer e o pouquinho que ele provou, vomitou, ficou meio
desanimado. Não teve febre e a gente resolveu esperar mais um
pouquinho. Na madrugada de segunda para terça, ele começou com muita
dor e na terça cedo nós fomos ao postinho. (Jamyle mãe de Jonas, 6
anos, apendicite, 12 dias de internação)
Os relatos evidenciam algumas das concepções da família, construídas
socialmente e repassadas ao longo das gerações. Algumas práticas reveladas
pelas famílias como por exemplo, a postura expectante, a busca de indicações ou
orientações de familiares, a utilização de medidas caseiras, como a oferta de
sopas em lugar de comidas pesadas, ou a oferta de medicamentos que deram certo
em casos similares, ou ainda, o fato de associar a gravidade do quadro ao
aparecimento de um sintoma específico como a febre, constituem motivos para
protelar a procura da assistência profissional. Estas práticas são reveladoras
de alguns dos paradigmas que norteiam o comportamento familiar diante de alguma
intercorrência.
Os cuidados à saúde, por tradição, são compreendidos e visualizados como algo
limitado, tanto pelos usuários, quanto pelos profissionais da área. Acontecem
em duas diferentes esferas relacionadas entre si: a rede oficial de serviços,
que conta com o conhecimento científico e tecnologias modernas, e a rede
informal, em que se destaca a família, portadora do conhecimento empírico,
utilizado segundo suas crenças e inserção cultural(8).
Os itinerários terapêuticos são definidos como um percurso sempre envolto por
planejamentos e estratégias para alcançar o objetivo de sanar a aflição causada
pela doença. Para atingir essa meta deve contar com a participação da
enfermagem nesse processo de escolhas(9).
Muitas vezes, a procura de uma solução mais rápida e acessível para um
distúrbio de saúde, ou mesmo nos casos de doenças mais graves, leva familiares
ou mesmo a pessoa doente a buscar alternativas dentro de sua religiosidade e
também fora dela. São comuns referências de busca de curandeiros, rezadeiras,
garrafeiras, raizeiros como possibilidades para a obtenção de orientação,
diagnósticos e tratamentos alternativos(10).
Antes do enfrentamento da adversidade de uma doença, a família ou a pessoa
envolvida passa por etapas que precedem o conhecimento do diagnóstico(11).
Quando isso acontece, os familiares tendem a iniciar a trajetória em busca de
soluções para o problema de saúde. Nesse percurso, as famílias podem ter acesso
a um diagnóstico rápido ou se defrontar com obstáculos e contratempos que
tornam essa trajetória mais lenta e difícil.
[...] ela começou com muita febre. Eu dava remédio para ela e a febre
cortava [...]. Aí eu vi que tinha que ir para o médico [...] e levei
ao hospital. (Giovanna - mãe de Marina, 10 meses, exantema +
hepatoesplenomegalia+linfod enomegalia, 17 dias de internação)
Este e outros relatos similares demonstram que a família tem um papel crucial
na identificação dos primeiros sinais e sintomas da doença na criança. Embora
consiga perceber com relativa rapidez a presença de alguma anormalidade ou
desvio do estado de saúde da criança, é comum a adoção de uma postura
hesitante, buscando soluções alternativas antes de se decidir a procurar ajuda
profissional. Os pais usualmente baseiam sua decisão em conhecimentos próprios,
pautados em experiências prévias ou em algo que lhes foi transmitido por
familiares ou pessoas próximas, consolidando seu referencial de cuidar, que é
repassado de geração em geração.
Cabe salientar que os profissionais de saúde, com destaque para médicos e
enfermeiros, podem ter um papel preponderante na construção do referencial de
cuidar das famílias, à medida que escutam e valorizam suas necessidades de
saúde, explicam como se dá a instalação da doença e seu tratamento, esclarecem
suas dúvidas e fornecem informações que capazes de subsidiar ações momentâneas
e futuras.
Em função do modelo assistencial vigente, o qual ainda é muito médico-centrado,
priorizando as atividades curativas, em geral a população tende a
sobrevalorizar a atuação e as orientações do profissional médico. Contudo,
especialmente após a implantação da Estratégia Saúde da Família, o trabalho do
enfermeiro vem sendo valorizado em todos os campos de atuação. O enfermeiro
aparece como o profissional mais disponível para acolher e compreender as
necessidades da população e esclarecer suas dúvidas relacionadas com a saúde
(12)-(13).
O referencial de cuidar da família determina o itinerário terapêutico por ela
adotado, que é subsidiado pelas relações estabelecidas entre o doente, sua
família e vizinhos, terapeutas populares, organizações religiosas, serviços de
saúde e outros grupos inseridos no relacionamento familiar no decorrer de suas
vidas. Assim, os cuidados passam a ser determinados pela lógica e pela
avaliação da manutenção da saúde ou do combate à doença(14).
A família está inserida dentro de um contexto sociocultural e, quando interage
com outros membros, compartilha e fortalece suas crenças, valores, símbolos,
práticas, saberes e significados. Nessa perspectiva, para visualizar o cuidado
à saúde da criança e do adolescente os profissionais de saúde devem compreender
as demandas de saúde da família e sua cultura(15).
No presente estudo constatou-se que a assistência profissional ou formal,
representada por médicos, postos de saúde ou hospitais, é buscada apenas nos
casos em que a melhora não é alcançada. Outra situação observada foi o fato das
mães procurarem ajuda de pessoas mais experientes, na perspectiva de encontrar
alternativas para solucionar os problemas de seus filhos, como ilustra o relato
a seguir.
Eu percebi que tava meio altinho perto do pipi dele, só que eu achei
que não era nada, não dei remédio, não apertei, não fiz nada. Só
passei a mão por cima, para saber se era duro. Achei que como eu era
mãe de primeira viajem [...] era a urina dele que estava cheia assim,
depois sumiu. Perguntei para minha mãe e ela disse que talvez pudesse
ser hérnia [...] Aí levei ao médico. (Leonor mãe de Lucas, 2 meses,
hérnia inguinal, 4 dias de internação)
Verifica-se, principalmente entre populações mais humildes e desprovidas de
acesso facilitado aos serviços de saúde, a existência de uma concepção do
atendimento médico especializado como algo inatingível, o que contribui para
que protelem a procura pelos serviços de saúde, reservando essa conduta para os
casos mais complexos, não passíveis de solução pelo uso de medidas caseiras.
Os relatos permitiram apreender que a assistência formal é um divisor de águas
para a identificação de alterações clínicas visíveis. Nessas situações, os pais
sentem-se amedrontados e inseguros, porque desconhecem determinadas alterações,
o que os pressiona a procurar a assistência médica.
O (des) preparo dos serviços de saúde: impactos sobre o atendimento à saúde
infantil
A procura pela assistência médica para os filhos é sempre permeada por muitas
expectativas dos pais. As famílias mais experientes ou os pais mais bem
orientados tendem a procurar alternativas com a intenção de adiar a procura
pelo sistema de saúde.
Tal cenário evidencia pelo menos em parte, entre outros aspectos, o despreparo
de serviços e profissionais de saúde para realizar em tempo hábil avaliações e
encaminhamentos, principalmente nas situações em que os agravos apresentam
sintomatologia inespecífica(16). Isto é particularmente preocupante nos casos
de crianças, pois existem muitos sinais e sintomas que são comuns a várias
doenças típicas da infância.
Uma quarta-feira à tarde, foi aquela febre básica [...] na quinta-
feira persistiu a febre, a mãe dele levou no Zona Norte. Aí o médico
disse que não era nada, era só uma irritação, uma gripe comum.
Medicou, veio para casa, voltou a febre, eu levei novamente [...]
falou que era garganta, passou Ibuprofeno, melhorou, voltou para
casa. Aí, na sexta-feira, novamente nós levamos ele. Aí ele tomou uma
Benzetacil, melhorou. No sábado passou bem, no domingo ele piorou,
trouxemos de novo, foi para o Hospital Municipal e ficou internado.
Na segunda-feira já veio para cá e foi direto pra UTI (Edilaine - avó
de Douglas, 7 anos, pneumonia, 23 dias de internação).
A família de Edilaine vivencia diversas tentativas, muitas delas frustradas, no
processo de busca por uma solução definitiva para o agravo de saúde apresentado
pela criança. Os atendimentos realizados no âmbito da atenção primária
mostraram-se incompletos, com uma abordagem superficial do problema e sem a
devida valorização dos sinais e dos sintomas apresentados pela criança,
deixando margem para a evolução e o agravamento da doença. Um percurso muito
comum nesses contextos, em que a falta de efetividade do atendimento primário
acaba por gerar demandas para os níveis secundário e terciário, envolve a
utilização de serviços e recursos de maior complexidade, onerando sobremaneira
o sistema de atenção à saúde e penalizando a população usuária.
À Unidade Básica de Saúde (UBS) compete atuar como porta de entrada do paciente
no sistema de atenção à saúde, disponibilizando uma assistência integral ao
usuário, com vistas a solucionar as demandas mais frequentes em sua região de
abrangência, otimizando a utilização dos demais níveis de atenção(17).
A Saúde da Família é uma estratégia de reorientação do modelo assistencial,
operacionada mediante a implantação de equipes multiprofissionais dentro das
UBS. A função dessas equipes é atuar na promoção da saúde, na prevenção,
recuperação, reabilitação de enfermidades e agravos e na manutenção da saúde da
coletividade(18). Contudo, a população nem sempre reconhece a efetividade deste
nível de assistência, o que a leva a procurar outros serviços.
Ela começou com muita febre, eu dava remédio, a febre cortava, mas
logo voltava. Levei no Pronto Socorro de Cianorte, disseram que era o
dentinho dela que estava rasgando e que a febre era normal. Foi
correndo os dias, sempre 39º de febre [...] Daí ela começou a ficar
com o corpo todo vermelho e toda inchada. Levei para o pronto-
socorro e a médica disse que era normal, que o dentinho dela estava
rasgando. Na terça-feira, vi que o corpo dela começou a ficar
vermelho e quente, então levei para a Santa Casa, em Cianorte,
receitaram Tylenol e mais um remédio para cólica. Naquela noite ela
não dormiu, o corpo dela avermelhou todinho e eu dando dipirona. Na
quinta de manhã eu corri com ela e fiz uma consulta com o pediatra no
posto. Ele achou que fosse dengue hemorrágica, pediu exames, deu
alteração no sangue. Pediu para que internasse no mesmo dia, mas não
quiseram internar, pois tinha que consultar com outro pediatra para
poder autorizar a internação dela lá. Na sexta-feira de manhã ela já
acordou com os dois lados inchados, ela não abria a boca para nada
[...] foi feito tomografia, ultrassom, e não acharam nada. Ligaram
para cá para pedir uma vaga. (Giovanna - mãe de Marina, 3 anos,
exantema + hepatoesplenomegalia + linfoadenomegalia, 17 dias de
internação)
O relato de Giovanna descreve o drama vivenciado pela família, marcado por idas
e vindas e pela falta de resolubilidade no atendimento, tornando o percurso
terapêutico um evento traumático, extenuante e gerador de angústia e
sofrimento. No caso, não foi a falta de acesso a serviços de saúde o fator
determinante da trajetória da família, mas sim a falta de preparo do sistema no
que diz respeito à condução adequada do caso.
O segmento a seguir, desvela a vivência de outra família e a resistência,
muitas vezes presente no contexto da atenção em saúde, em que ainda prevalece
uma relação verticalizada entre profissionais e pacientes, com desvalorização
das opiniões e dos conhecimentos das famílias no processo de assistência.
Desde que nasceu, a gente percebia que algo estava errado e o médico
dizia que era normal. A gente dizia que o bebê não era normal: um
bebê não mamar e não acordar [...] a gente discutiu com ele 'forte'!
Ele mandou para um neuro em Maringá. Quando a gente chegou,
percebemos que viemos no médico errado, porque o doutor só atende
criança acima de 1 ano até 15 anos. Ele colocou as mãos na cabeça e
falou: "Meu Deus! Vocês estão no lugar errado! Pega o seu dinheiro de
volta e encaminhe essa criança para uma UTI. Essa criança está muito
mal!" Ficamos em desespero, começamos a chorar [...]. O doutor
encaminhou primeiro para a Santa Casa, mas como a gente não tinha
condições, ele encaminhou para o HUM, com ele quase morrendo. (Estela
- tia de Pedro, 12 dias de vida, Onfalite + Hemorragia subaracnóide,
12 dias de internação)
O relato de Estela evidencia a importância do familiar que, antecipando-se aos
profissionais, percebeu que havia algo de errado com a criança e buscou
respostas junto à equipe de saúde para a resolução das incertezas que lhe
causavam angústia. Ao mesmo tempo, é possível constatar importantes lacunas que
ainda persistem no fazer profissional, que não abre espaço para o diálogo e
para o estabelecimento de uma comunicação mais efetiva e uma relação mais
respeitosa e solidária entre aqueles que assistem e os que são (des)assistidos.
Ressalta-se que o vínculo advindo da comunicação entre profissional, família e
paciente, tão necessário para a prevenção e a promoção da saúde, constitui a
base para o fortalecimento das relações humanas. Na pediatria, é o que
possibilita a compreensão do processo de hospitalização para o acompanhante e a
criança(19).
A busca pela qualidade dos serviços públicos de saúde impõe um desafio a
profissionais e gestores para garantir não apenas a capacitação da equipe, mas
também a gestão adequada dos recursos, de modo a satisfazer as necessidades de
saúde dos usuários. Dentre as capacidades a serem desenvolvidas pelos
profissionais encontram-se as relações formadas com responsabilidade e
compromisso, tendo em vista a integralidade no atendimento, a autonomia dos
sujeitos envolvidos e resolubilidade. Para incidir efetivamente no estado de
saúde de uma coletividade, dois aspectos são extremamente relevantes: a
acessibilidade aos serviços e o bom acolhimento(20)-(21).
Nossa aqui é uma bênção (HUM), não é nada do que a gente escuta [...]
As meninas (técnicas de enfermagem) atendem bem, os médicos [...] é
aquele carinho, muito bom [...] graças a Deus. (Eliana avó de Fábio,
1 ano e 3 meses, 24 dias de internação)
O discurso de Eliana ratifica a importância da abordagem profissional adequada
às necessidades das famílias, em que se destacam a qualidade do relacionamento
interpessoal e o acolhimento como elementos essenciais à construção de uma
atenção humanizada. Os usuários consideram o acolhimento e a humanização como
eixos da assistência em saúde e uma responsabilidade inerente ao exercício
profissional das equipes(1). O papel da Enfermagem é primordial para auxiliar
no fortalecimento das redes de apoio à família mediante a abordagem educativa,
o apoio psicoemocional e social, de forma integrada e cooperativa. Juntamente
com a equipe multiprofissional, a Enfermagem pode criar espaços para que
favoreçam a autonomia e a participação familiar, bem como o enfrentamento da
situação de hospitalização(22).
CONCLUSÕES
O diagnóstico adequado de doença na infância é da maior importância, uma vez
que as possibilidades de cura aumentam substancialmente quando é realizado com
rapidez e eficácia. No contexto da atenção pediátrica, a trajetória percorrida
pelas famílias entre o momento de detecção dos primeiros sinais ou sintomas de
agravo à saúde até o diagnóstico e a implementação do tratamento é determinada
por uma série de fatores sobre os quais é necessário lançar luz.
O presente estudo permitiu evidenciar alguns comportamentos dos familiares
frente à situação de doença da criança. O primeiro deles, bastante comum, é a
tentativa de resolução da problemática com base em conhecimentos próprios ou
pautados em práticas familiares. A busca pela assistência profissional é
postergada na esperança de que tais estratégias mostrem-se suficientes ou
adequadas para a abordagem do problema. Tal conduta é justificada pelo receio
das famílias, principalmente daquelas economicamente desfavorecidas, de se
defrontar com obstáculos ou dificuldades insuperáveis na procura do atendimento
formal de saúde. No ideário dessas famílias persiste a crença de que existe um
abismo intransponível entre elas e os serviços de saúde.
Os receios e as angústias que levam muitas famílias a protelar a procura por
atendimento profissional tornam-se realidade para outras famílias que, mesmo
iniciando precocemente a busca por assistência no sistema formal, veem-se
diante da falta de competência e envolvimento dos profissionais na condução
adequada do problema de saúde.
Ambas as situações fizeram-se presentes nos relatos de sofrimento, apreensão e
angústia das famílias envolvidas. O itinerário por elas percorrido permitiu
evidenciar lacunas importantes no atendimento e na ação profissional das
equipes envolvidas. Tais lacunas remetem à necessidade de repensar não só a
gestão dos serviços, com vistas à torná-los mais acessíveis e verdadeiramente
inseridos na realidade das coletividades, mas também a capacitação profissional
das equipes, para que sejam preparadas e estimuladas a manter um contato mais
próximo, dialógico e efetivo com a população assistida.