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BrBRCVHe0047-20852006000100012

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National varietyBr
Year2006
SourceScielo

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Emprego de metilfenidato para o tratamento de déficit cognitivo em paciente com seqüela de traumatismo cranioencefálico

Introdução O traumatismo craniencefálico (TCE) é a principal causa de morte e deficiência em jovens (Silver et al., 2004). Além das conseqüências neurológicas do TCE, os problemas comportamentais, cognitivos e sociais acarretam prejuízo significativo. A patofisiologia do TCE é um processo dinâmico de longo prazo.

Os aspectos clínicos e fisiológicos do processo de recuperação podem se estender por anos (Grafman e Salazar, 1996). Além do dano cerebral direto resultante do trauma, ocorre uma série de eventos que contribuem para maior extensão dos danos neuronais. Por exemplo, rapidamente instala-se um desequilíbrio entre demanda e oferta de energia, isto é, paralelamente ao aumento da necessidade de energia pelos neurônios afetados redução do fluxo sangüíneo cerebral. As células afetadas também são mais vulneráveis à hipoxia.

Secundariamente, ocorrem alterações no fluxo de cálcio, processos inflamatórios são desencadeados, ocorre liberação de excitotoxina, ativação de fosfolipase e de protease. Também ocorre liberação de radicais livres e de glutamato, que contribuem para o aumento do dano celular (Silver et al., 2004).

A patologia do TCE pode ser classificada em quatro componentes: • lesão focal; • lesão axonal difusa; • hipoxia/isquemia superimposta; • posteriormente, lesão microvascular difusa com perda da auto-regulação (Grafman e Salazar, 1996).

As lesões focais acarretam deficiências relacionadas ao local da lesão. A localização mais freqüente de contusões após aceleração/desaceleração são os lobos orbitofrontal e temporal anterior. As seqüelas clínicas mais importantes são anormalidades comportamentais e cognitivas relacionadas a essas regiões. A lesão axonal difusa, uma das causas mais importantes de déficit neurológico persistente grave, é decorrente de lesões mecânicas e/ou químicas de axônios na substância branca cerebral. A isquemia é um dos principais fatores determinantes da evolução clínica. O dano microvascular difuso é acompanhado de perda da auto-regulação cerebrovascular. Em seguida, ocorrem danos teciduais secundários. Eventos bioquímicos desencadeados pelo trauma podem, em última análise, ser o principal responsável pela perda tecidual cerebral (Silver et al., 2004).

O TCE é uma causa comum de anormalidades neuropsiquiátricas (Silver et al., 2004; Grafman e Salazar, 1996; Vakil, 2005). Alterações muito variadas podem ocorrer, mas tipicamente comprometimento da personalidade e da cognição social, memória, atenção e funcionamento executivo. O paciente pode perder inibições sociais, comportar-se de forma irrefletida, ignorar convenções sociais e não avaliar adequadamente as conseqüências de seus atos. O TCE afeta uma ampla gama de aspectos da memória. Geralmente ocorrem amnésia pós- traumática, que pode persistir por semanas a meses, e amnésia retrógrada. As alterações de atenção são freqüentes no TCE, particularmente a redução da capacidade de concentração. O paciente pode ter dificuldade em focalizar novamente a atenção após período de espera e em inibir respostas a estímulos previamente associados. Outros problemas freqüentemente encontrados em pacientes com TCE são a dificuldade em formação de conceitos e a perseveração.

Pode ainda haver mudanças do humor, agressividade e violência, bem como transtornos afetivos e de ansiedade, psicose e transtornos do sono.

Vários medicamentos têm sido propostos para o tratamento dos déficits cognitivos dos pacientes com TCE, entre eles dextroanfetamina, metilfenidato, levodopa, bromocriptina, amantadina, antidepressivos tricíclicos, modafinil, atomoxetina, bupropiona, inibidores da acetilcolinesterase e memantina (Silver et al., 2004; Napolitano et al., 2005). Entretanto, os poucos estudos controlados têm pequeno número de pacientes, abrangem populações em diferentes etapas de evolução e, freqüentemente, não avaliam resultados em longo prazo (Silver et al., 2004).

Os autores deste artigo relatam um caso de em prego do metilfenidato para o tratamento de alterações cognitivas em paciente com cerca de dois anos de evolução pós-TCE.

Relato de caso F., sexo masculino, universitário, sofreu acidente automobilístico aos 23 anos, em junho de 2003. Foi internado com TCE, edema cerebral difuso e fratura dos ossos frontal esquerdo e da face. Esteve em coma por, aproximadamente, quatro semanas com diagnóstico de lesão axonal difusa grave. Recebeu alta com quadro de tetraparesia espástica e alterações cognitivas globais.

Dois meses após o acidente, a tomografia encefá lica mostrou hipodensidade nas regiões frontal e temporal direitas e hipotrofia cortical frontal bilateral.

Nessa época, a avaliação neuropsicológica evidenciou alterações comportamentais relacionadas às funções executivas, envolvendo dificuldades na auto-regulação comportamental, flexibilidade cognitiva e memória de trabalho. O paciente recebeu diagnóstico de transtornos de personalidade e comportamentais devidos à doença, lesão e disfunção cerebrais, segundo a Classificação Internacional de Doenças 10 ([CID-10] F07.8). Após quatro meses, o exame de ressonância magnética cerebral mostrou contusões múltiplas e micro-hemorragias secundárias à lesão axonal difusa.

Após um ano do acidente, familiares e o paciente relatavam períodos de heteroagressividade, alterações de comportamento e déficit de concentração. Em nova avaliação neuropsicológica, evidenciaram-se alterações de memória, déficit de concentração, alterações de linguagem e lentificações motora e do pensamento.

Em tratamentos psiquiátricos prévios, o paciente fez uso de diversos psicofármacos para controle de episódios depressivos e períodos de agressividade, particularmente fluoxetina, pipotiazina, tioridazina, olanzapina, quetiapina e risperidona, além de benzodiazepínicos.

Em novembro de 2004, 17 meses após o TCE, em virtude da história de alteração de humor caracterizada por excitação, impulsividade, irritabilidade, explosividade, agressividade, logorréia e insônia, bem como episódios depressivos, foi aventada a hipótese de transtorno de humor orgânico (CID-10 F06.3) e iniciado tratamento com oxcarbazepina. Houve melhora significativa do quadro de humor. Persistiam, entretanto, as queixas relacionadas ao déficit cognitivo.

Em junho de 2005, dois anos após o acidente, o exame neurops icológico revelou memória visuoespacial aquém dos limites da normalidade e dificuldades relacio nadas ao efeito de distratores retroativos e proativos. As habilidades de memória e aprendizagem auditivo-verbal encontravam-se no limite inferior da normalidade. As tarefas que envolviam memória de trabalho, flexibilidade cognitiva, planejamento e solução de problemas encontravam-se abaixo dos limites da normalidade. Comparado ao exame realizado 22 meses antes, próximo ao acidente, constatou-se manutenção das dificuldades apresentadas pelo paciente em termos cognitivos.

Em agosto de 2005, iniciou-se metilfenidato na tentativa de melhorar os aspectos cognitivos do paciente. Em termos subjetivos, nos dois meses seguintes de tratamento, o paciente relatou melhora significativa de suas dificuldades cognitivas. Afirmou estar mais atento durante leituras, relatou melhora na capacidade de manter a atenção em conversas, pois antes se distraía com certa facilidade, percebeu redução no número de vezes em que perdia objetos e também uma melhor capacidade no acompanhamento de filmes. Relatou, como efeito colateral, pequeno aumento da irritabilidade nas primeiras duas semanas de tratamento.

Em termos objetivos, foi realizado novo exame neu ropsicológico das funções de atenção sustentada e controle inibitório, tendo sido utilizado o paradigma Continuous Performance Test-II. O exame foi realizado em setembro de 2005, cerca de 40 dias após início do metilfenidato, e evidenciou melhora substancial nas medidas de velocidade de processamento, erros por omissão e por comissão (Figuras_1 e 2).

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Discussão Déficits de atenção e das funções executivas são freqüentemente relatados após comprometimentos do córtex pré-frontal. Pacientes com esse padrão de comprometimento geralmente apresentam dificuldades em tarefas que demandam organização, planejamento, solução de problemas, controle inibitório, flexibilidade cognitiva e memória de trabalho (Silver et al., 2004; Grafman e Salazar, 1996; Vakil, 2005). Essas deficiências cognitivas são observadas no dia-a-dia em prejuízos acadêmicos, profissionais, sociais (Lehtonen et al., 2005) e econômicos (Spinella et al., 2004), semelhantes aos apresentados pelo paciente.

O uso de metilfenidato mostrou-se útil na redução de déficits cognitivos resultantes de TCE, particularmente alterações da atenção, mesmo quando introduzido cerca de dois anos após o acidente.

vários relatos de casos sobre os benefícios do metilfenidato em pacientes com déficits cognitivos pós-TCE (Napolitano et al., 2005). Além disso, estudos controlados avaliaram a eficácia e a segurança do emprego desse medicamento no tratamento do déficit cognitivo e alterações de comportamento em crianças e adultos com TCE.

Em geral, os resultados sugerem a utilidade do metilfenidato na melhora de memória, atenção, concentração e velocidade do processamento mental, embora nem todos os aspectos sejam evidenciados ao mesmo tempo e em todos os estudos (Napolitano et al., 2005; Lee et al., 2005; Plenger et al.,1996; Whyte et al., 1997 e 2004). Além do mais, alguns estudos mostram resultados negativos (Speech et al., 1993; Mooney e Haas, 1993). Esses efeitos parecem ser independentes da atuação em sintomatologia depressiva associada (Lee et al., 2005).

O metilfenidato, geralmente, é bem tolerado. Os eventos adversos mais comuns são cefaléia, perda de apetite, epigastralgia, dispepsia, insônia, ansiedade e irritabilidade. No caso relatado, o medicamento foi muito bem tolerado, acarretando apenas leve irritabilidade no início do tratamento. Recomenda-se o tateamento da dose para avaliação do sur gimento de efeitos adversos e avaliação da eficácia. Inicia-se com dose de 10 a 20mg/dia, em duas tomadas, com reajuste a cada três dias, no caso do metilfenidato de liberação imediata, ou com dose de 18-20mg/dia e reajuste semanal, no caso de medicações de liberação controlada ou estendida. A dose máxima recomendada é de 60mg/dia de metilfenidato, podendo ser aumentada em situações especiais (Bezchlibnyk-Butler e Jeffries, 2005).

Pacientes com história de TCE têm risco aumentado para depressão maior, distimia, transtorno de pânico, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno fóbico e abuso/dependência de drogas (Silver et al., 2001). também relatos de mania pós-TCE (Burstein, 1993).

O paciente do presente relato de caso vinha em tratamen to bem-sucedido de alterações do humor resultantes do TCE com o emprego de oxcarbazepina.

Ressalta-se que a introdução do metilfenidato não provocou alterações na estabilidade do humor. Também não relato de interação medicamentosa entre as duas substâncias (Bezchlibnyk-Butler e Jeffries, 2005).

Evidentemente fatores inespecíficos (evolução natural, efeito placebo, entre outros), impossíveis de serem controlados em um estudo de caso, podem ter sido os responsáveis pela melhora do paciente. Entretanto, seria pouco provável a ocorrência de melhora aguda em um caso estável em relação aos déficits cognitivos cerca de dois anos, conforme documentado por exames neuropsicológicos.

Conclusão O presente relato também ilustra a importância das avaliações neuropsicológicas no acompanhamento clínico de pacientes com TCE, para documentar os déficits cognitivos e intelectuais, auxiliando no esclarecimento diagnóstico e no estabelecimento de condutas terapêuticas (Malloy-Diniz, 2001). Em síntese, este relato corrobora a literatura, sugerindo que o emprego de metilfenidato pode ser benéfico na redução de alterações cognitivas em pacientes com seqüela de TCE. São necessários ensaios clínicos controlados com placebo para determinação de dose ótima, melhor fase do TCE para se iniciar o tratamento, duração do tratamento e efeitos em longo prazo em pacientes com TCE leve, moderado ou grave.


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