Emprego de metilfenidato para o tratamento de déficit cognitivo em paciente com
seqüela de traumatismo cranioencefálico
Introdução
O traumatismo craniencefálico (TCE) é a principal causa de morte e deficiência
em jovens (Silver et al., 2004). Além das conseqüências neurológicas do TCE, os
problemas comportamentais, cognitivos e sociais acarretam prejuízo
significativo. A patofisiologia do TCE é um processo dinâmico de longo prazo.
Os aspectos clínicos e fisiológicos do processo de recuperação podem se
estender por anos (Grafman e Salazar, 1996). Além do dano cerebral direto
resultante do trauma, ocorre uma série de eventos que contribuem para maior
extensão dos danos neuronais. Por exemplo, rapidamente instala-se um
desequilíbrio entre demanda e oferta de energia, isto é, paralelamente ao
aumento da necessidade de energia pelos neurônios afetados há redução do fluxo
sangüíneo cerebral. As células afetadas também são mais vulneráveis à hipoxia.
Secundariamente, ocorrem alterações no fluxo de cálcio, processos inflamatórios
são desencadeados, ocorre liberação de excitotoxina, há ativação de fosfolipase
e de protease. Também ocorre liberação de radicais livres e de glutamato, que
contribuem para o aumento do dano celular (Silver et al., 2004).
A patologia do TCE pode ser classificada em quatro componentes:
lesão focal;
lesão axonal difusa;
hipoxia/isquemia superimposta;
posteriormente, lesão microvascular difusa com perda da auto-regulação
(Grafman e Salazar, 1996).
As lesões focais acarretam deficiências relacionadas ao local da lesão. A
localização mais freqüente de contusões após aceleração/desaceleração são os
lobos orbitofrontal e temporal anterior. As seqüelas clínicas mais importantes
são anormalidades comportamentais e cognitivas relacionadas a essas regiões. A
lesão axonal difusa, uma das causas mais importantes de déficit neurológico
persistente grave, é decorrente de lesões mecânicas e/ou químicas de axônios na
substância branca cerebral. A isquemia é um dos principais fatores
determinantes da evolução clínica. O dano microvascular difuso é acompanhado de
perda da auto-regulação cerebrovascular. Em seguida, ocorrem danos teciduais
secundários. Eventos bioquímicos desencadeados pelo trauma podem, em última
análise, ser o principal responsável pela perda tecidual cerebral (Silver et
al., 2004).
O TCE é uma causa comum de anormalidades neuropsiquiátricas (Silver et al.,
2004; Grafman e Salazar, 1996; Vakil, 2005). Alterações muito variadas podem
ocorrer, mas tipicamente há comprometimento da personalidade e da cognição
social, memória, atenção e funcionamento executivo. O paciente pode perder
inibições sociais, comportar-se de forma irrefletida, ignorar convenções
sociais e não avaliar adequadamente as conseqüências de seus atos. O TCE afeta
uma ampla gama de aspectos da memória. Geralmente ocorrem amnésia pós-
traumática, que pode persistir por semanas a meses, e amnésia retrógrada. As
alterações de atenção são freqüentes no TCE, particularmente a redução da
capacidade de concentração. O paciente pode ter dificuldade em focalizar
novamente a atenção após período de espera e em inibir respostas a estímulos
previamente associados. Outros problemas freqüentemente encontrados em
pacientes com TCE são a dificuldade em formação de conceitos e a perseveração.
Pode ainda haver mudanças do humor, agressividade e violência, bem como
transtornos afetivos e de ansiedade, psicose e transtornos do sono.
Vários medicamentos têm sido propostos para o tratamento dos déficits
cognitivos dos pacientes com TCE, entre eles dextroanfetamina, metilfenidato,
levodopa, bromocriptina, amantadina, antidepressivos tricíclicos, modafinil,
atomoxetina, bupropiona, inibidores da acetilcolinesterase e memantina (Silver
et al., 2004; Napolitano et al., 2005). Entretanto, os poucos estudos
controlados têm pequeno número de pacientes, abrangem populações em diferentes
etapas de evolução e, freqüentemente, não avaliam resultados em longo prazo
(Silver et al., 2004).
Os autores deste artigo relatam um caso de em prego do metilfenidato para o
tratamento de alterações cognitivas em paciente com cerca de dois anos de
evolução pós-TCE.
Relato de caso
F., sexo masculino, universitário, sofreu acidente automobilístico aos 23 anos,
em junho de 2003. Foi internado com TCE, edema cerebral difuso e fratura dos
ossos frontal esquerdo e da face. Esteve em coma por, aproximadamente, quatro
semanas com diagnóstico de lesão axonal difusa grave. Recebeu alta com quadro
de tetraparesia espástica e alterações cognitivas globais.
Dois meses após o acidente, a tomografia encefá lica mostrou hipodensidade nas
regiões frontal e temporal direitas e hipotrofia cortical frontal bilateral.
Nessa época, a avaliação neuropsicológica evidenciou alterações comportamentais
relacionadas às funções executivas, envolvendo dificuldades na auto-regulação
comportamental, flexibilidade cognitiva e memória de trabalho. O paciente
recebeu diagnóstico de transtornos de personalidade e comportamentais devidos à
doença, lesão e disfunção cerebrais, segundo a Classificação Internacional de
Doenças 10 ([CID-10] F07.8). Após quatro meses, o exame de ressonância
magnética cerebral mostrou contusões múltiplas e micro-hemorragias secundárias
à lesão axonal difusa.
Após um ano do acidente, familiares e o paciente relatavam períodos de
heteroagressividade, alterações de comportamento e déficit de concentração. Em
nova avaliação neuropsicológica, evidenciaram-se alterações de memória, déficit
de concentração, alterações de linguagem e lentificações motora e do
pensamento.
Em tratamentos psiquiátricos prévios, o paciente fez uso de diversos
psicofármacos para controle de episódios depressivos e períodos de
agressividade, particularmente fluoxetina, pipotiazina, tioridazina,
olanzapina, quetiapina e risperidona, além de benzodiazepínicos.
Em novembro de 2004, 17 meses após o TCE, em virtude da história de alteração
de humor caracterizada por excitação, impulsividade, irritabilidade,
explosividade, agressividade, logorréia e insônia, bem como episódios
depressivos, foi aventada a hipótese de transtorno de humor orgânico (CID-10
F06.3) e iniciado tratamento com oxcarbazepina. Houve melhora significativa do
quadro de humor. Persistiam, entretanto, as queixas relacionadas ao déficit
cognitivo.
Em junho de 2005, dois anos após o acidente, o exame neurops icológico revelou
memória visuoespacial aquém dos limites da normalidade e dificuldades relacio
nadas ao efeito de distratores retroativos e proativos. As habilidades de
memória e aprendizagem auditivo-verbal encontravam-se no limite inferior da
normalidade. As tarefas que envolviam memória de trabalho, flexibilidade
cognitiva, planejamento e solução de problemas encontravam-se abaixo dos
limites da normalidade. Comparado ao exame realizado 22 meses antes, próximo ao
acidente, constatou-se manutenção das dificuldades apresentadas pelo paciente
em termos cognitivos.
Em agosto de 2005, iniciou-se metilfenidato na tentativa de melhorar os
aspectos cognitivos do paciente. Em termos subjetivos, nos dois meses seguintes
de tratamento, o paciente relatou melhora significativa de suas dificuldades
cognitivas. Afirmou estar mais atento durante leituras, relatou melhora na
capacidade de manter a atenção em conversas, pois antes se distraía com certa
facilidade, percebeu redução no número de vezes em que perdia objetos e também
uma melhor capacidade no acompanhamento de filmes. Relatou, como efeito
colateral, pequeno aumento da irritabilidade nas primeiras duas semanas de
tratamento.
Em termos objetivos, foi realizado novo exame neu ropsicológico das funções de
atenção sustentada e controle inibitório, tendo sido utilizado o paradigma
Continuous Performance Test-II. O exame foi realizado em setembro de 2005,
cerca de 40 dias após início do metilfenidato, e evidenciou melhora substancial
nas medidas de velocidade de processamento, erros por omissão e por comissão
(Figuras_1 e 2).
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Discussão
Déficits de atenção e das funções executivas são freqüentemente relatados após
comprometimentos do córtex pré-frontal. Pacientes com esse padrão de
comprometimento geralmente apresentam dificuldades em tarefas que demandam
organização, planejamento, solução de problemas, controle inibitório,
flexibilidade cognitiva e memória de trabalho (Silver et al., 2004; Grafman e
Salazar, 1996; Vakil, 2005). Essas deficiências cognitivas são observadas no
dia-a-dia em prejuízos acadêmicos, profissionais, sociais (Lehtonen et al.,
2005) e econômicos (Spinella et al., 2004), semelhantes aos apresentados pelo
paciente.
O uso de metilfenidato mostrou-se útil na redução de déficits cognitivos
resultantes de TCE, particularmente alterações da atenção, mesmo quando
introduzido cerca de dois anos após o acidente.
Há vários relatos de casos sobre os benefícios do metilfenidato em pacientes
com déficits cognitivos pós-TCE (Napolitano et al., 2005). Além disso, estudos
controlados avaliaram a eficácia e a segurança do emprego desse medicamento no
tratamento do déficit cognitivo e alterações de comportamento em crianças e
adultos com TCE.
Em geral, os resultados sugerem a utilidade do metilfenidato na melhora de
memória, atenção, concentração e velocidade do processamento mental, embora nem
todos os aspectos sejam evidenciados ao mesmo tempo e em todos os estudos
(Napolitano et al., 2005; Lee et al., 2005; Plenger et al.,1996; Whyte et al.,
1997 e 2004). Além do mais, alguns estudos mostram resultados negativos (Speech
et al., 1993; Mooney e Haas, 1993). Esses efeitos parecem ser independentes da
atuação em sintomatologia depressiva associada (Lee et al., 2005).
O metilfenidato, geralmente, é bem tolerado. Os eventos adversos mais comuns
são cefaléia, perda de apetite, epigastralgia, dispepsia, insônia, ansiedade e
irritabilidade. No caso relatado, o medicamento foi muito bem tolerado,
acarretando apenas leve irritabilidade no início do tratamento. Recomenda-se o
tateamento da dose para avaliação do sur gimento de efeitos adversos e
avaliação da eficácia. Inicia-se com dose de 10 a 20mg/dia, em duas tomadas,
com reajuste a cada três dias, no caso do metilfenidato de liberação imediata,
ou com dose de 18-20mg/dia e reajuste semanal, no caso de medicações de
liberação controlada ou estendida. A dose máxima recomendada é de 60mg/dia de
metilfenidato, podendo ser aumentada em situações especiais (Bezchlibnyk-Butler
e Jeffries, 2005).
Pacientes com história de TCE têm risco aumentado para depressão maior,
distimia, transtorno de pânico, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC),
transtorno fóbico e abuso/dependência de drogas (Silver et al., 2001). Há
também relatos de mania pós-TCE (Burstein, 1993).
O paciente do presente relato de caso vinha em tratamen to bem-sucedido de
alterações do humor resultantes do TCE com o emprego de oxcarbazepina.
Ressalta-se que a introdução do metilfenidato não provocou alterações na
estabilidade do humor. Também não há relato de interação medicamentosa entre as
duas substâncias (Bezchlibnyk-Butler e Jeffries, 2005).
Evidentemente fatores inespecíficos (evolução natural, efeito placebo, entre
outros), impossíveis de serem controlados em um estudo de caso, podem ter sido
os responsáveis pela melhora do paciente. Entretanto, seria pouco provável a
ocorrência de melhora aguda em um caso estável em relação aos déficits
cognitivos há cerca de dois anos, conforme documentado por exames
neuropsicológicos.
Conclusão
O presente relato também ilustra a importância das avaliações neuropsicológicas
no acompanhamento clínico de pacientes com TCE, para documentar os déficits
cognitivos e intelectuais, auxiliando no esclarecimento diagnóstico e no
estabelecimento de condutas terapêuticas (Malloy-Diniz, 2001). Em síntese, este
relato corrobora a literatura, sugerindo que o emprego de metilfenidato pode
ser benéfico na redução de alterações cognitivas em pacientes com seqüela de
TCE. São necessários ensaios clínicos controlados com placebo para determinação
de dose ótima, melhor fase do TCE para se iniciar o tratamento, duração do
tratamento e efeitos em longo prazo em pacientes com TCE leve, moderado ou
grave.