De "filho do dono" a dirigente ilustre: caminhos e descaminhos no processo de
construção da legitimidade de sucessores em organizações familiares
1. INTRODUÇÃO
As empresas familiares podem ser caracterizadas pela existência de relações
entre a família e a empresa que não se limitam ao âmbito da gestão, mas
abrangem especialmente a esfera da propriedade e da influência da família sobre
a condução dos negócios. Apesar de essas duas dimensões parecerem distintas,
estudos e pesquisas mais aprofundados sobre a empresa familiar revelam que
conhecer a cultura, o contexto e o modo de viver, tanto da empresa como da
família, são fundamentais para ampliar a compreensão sobre as particularidades
dessas organizações.
O momento da sucessão é comumente referenciado como crítico para as empresas
familiares, especialmente quando não planejado. Dentre as dificuldades citadas
pela literatura, incluem-se as questões pessoais, profissionais e familiares
daquele que está se afastando da condução dos negócios, os problemas associados
à escolha do sucessor, as dificuldades para encaminhar um processo deflagrado
de forma súbita e, às vezes, traumática para a família e a empresa. E, também,
os conflitos familiares, o eventual despreparo e a inexperiência de sucessores,
os conflitos de geração e diversos outros. Os resultados costumam estar
associados a sérias crises financeiras e de gestão, ameaças à sobrevivência e à
continuidade dos negócios, conflitos e rupturas familiares, com profundas
implicações para todos aqueles que, de alguma forma, se implicam na arena do
conflito e do cotidiano da família e da empresa.
Grande parte das publicações sobre organizações familiares trata a questão da
sucessão de forma mais pragmática no sentido de elucidar as dimensões
relevantes de um processo de sucessão e de identificar elementos -
particularmente aqueles relacionados ao planejamento da sucessão - que
contribuam para o que comumente é referido como uma sucessão bem-sucedida. A
proposta nesta pesquisa foi algo diferente dessa perspectiva, embora se
reconheçam sua relevância e atualidade. Buscou-se aqui, por meio da fala de
sucessores, identificar como ocorre o processo de construção da legitimidade do
herdeiro-sucessor.
Parte-se do pressuposto de que a autoridade legal conferida pelo direito à
herança de que herdeiros e sucessores dispõem não lhes garante aceitação, em
termos do exercício da autoridade do cargo de gestor e da ocupação de um lugar
dentro da organização familiar. Poder e autoridade, como já ensinou Max Weber,
são coisas distintas, embora interligadas. Para além do direito à propriedade,
os sucessores terão de construir sua legitimidade junto à própria família, ao
sucedido, aos empregados, aos clientes e aos fornecedores da empresa e, talvez,
o mais importante, em relação a si próprios. Legitimidade aqui será tratada no
sentido de aceitação, de justificação técnica, profissional e social para que
um indivíduo ocupe determinado lugar, o que inclui necessariamente a
perspectiva do próprio sujeito e do outro sobre esse processo.
Analisar o processo de construção da legitimação de sucessores de empresas
familiares constitui, assim, o objetivo central nesta investigação. Buscar-se-á
investigar como os sucessores foram socializados para assumir a empresa da
família, como vivenciaram, na infância, a relação com a família empresária, de
que forma os valores foram transmitidos no âmbito da família e da empresa, como
os sucessores se veem, os conflitos e desafios que enfrentam nesse processo,
seus sonhos e suas aspirações.
Este estudo encontra-se alicerçado em uma abordagem qualitativa, que permitiu
um aprofundamento da realidade social das organizações estudadas,
fundamentalmente a partir do ponto de vista dos atores envolvidos no processo
social. Adotou-se como método o estudo multicasos, aplicado a duas empresas
familiares mineiras de grande porte, o que possibilitou um exame intensivo do
processo de construção da legitimidade dos herdeiros-sucessores nessas
organizações, sendo uma do setor de transportes e outra do setor cafeeiro. O
corpus da pesquisa foi constituído por dirigentes familiares pertencentes às
duas empresas pesquisadas, tendo sido realizadas nove entrevistas. Foram também
coletados e analisados dados secundários disponíveis em diversas fontes sobre
as organizações estudadas. Como técnica de análise, recorreu-se à análise de
conteúdo categorial ou temática (BARDIN, 1977).
O presente artigo está estruturado em quatro partes, incluindo esta introdução.
Na próxima seção, discutem-se a questão da sucessão na empresa familiar e a
problemática da legitimidade. Posteriormente, são apresentados os caminhos
metodológicos percorridos, a análise das informações coletadas e a discussão
dos resultados. Por fim, analisam-se os aspectos considerados particularmente
relevantes neste trabalho, especialmente com o objetivo de contribuir para
estudos futuros.
2. A EMPRESA FAMILIAR E A PROBLEMÁTICA DA SUCESSÃO
As organizações familiares, além da complexa dinâmica organizacional,
configuram-se como um sistema social e político no qual as relações entre os
atores englobam racionalidades, conflitos, interesses, afetividades e
sentimentos (PIMENTA e CORRÊA, 2008). Assim, pensar a empresa familiar implica
também compreender a dinâmica da família, uma vez que ela constitui a base das
relações sociais e torna-se, conscientemente ou não, uma das mais importantes
referências dos indivíduos ao longo de toda sua vida (LIMA, PIMENTEL e SOARES,
2008). A família orienta o indivíduo em sua socialização, "mapeando
comportamentos desejáveis e indesejáveis em relação sempre a um determinado
grupo, em um processo de controle ou ajustamento social" (CARRIERI, 2005,
p.15). Ela atua como elemento mediador entre o indivíduo e a sociedade,
valendo-se de aspectos afetivos e emocionais que configurarão padrões morais,
éticos e socialmente aceitos. A família atua, então, como o locus da primeira
socialização que um indivíduo experimenta. Para Berger e Luckmann (2004,
p.175), a socialização corresponde a uma "ampla e consistente introdução de um
indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela". Dessa forma,
a família, como instância de socialização, auxilia a adequação dos indivíduos a
papéis culturalmente padronizados e à formação da personalidade individual
(CARRIERI, 2005). Além da socialização primária, há também aquela considerada
secundária, que corresponde aos processos de socialização subsequentes à
primária. Está associada à interiorização de submundos que se apresentam como
realidades parciais, nas quais os indivíduos absorvem conhecimentos
específicos.
Outros tipos de interações sociais que não apenas com a família são
experimentados pelo indivíduo ao longo da vida. A empresa familiar, nesse
sentido, corresponde a um espaço institucional privilegiado de socialização uma
vez que os membros da família empresária convivem desde a infância com a
influência das questões empresariais na dinâmica da família. Embora a dimensão
familiar seja fundamental para que se possam compreender as relações sociais
que se estabelecem em empresas de propriedade familiar, é relevante refletir
também sobre a situação inversa, isto é, em como a empresa pode também
influenciar algumas dinâmicas familiares. Como os membros de uma família
empresária são simultaneamente submetidos a uma dupla dinâmica social - o
universo do trabalho e as relações no âmbito familiar (DAVEL e COLBARI, 2000) -
, a inserção dos filhos nos negócios, a educação, a tradição familiar, dentre
outras, são questões que perpassam as socializações, tanto na família como na
empresa.
No caso das famílias empresárias, na maioria das vezes a socialização perpassa
a ideia de comprometimento com a continuidade do negócio da família. Dessa
forma, faz-se necessário discutir a problemática da sucessão, que é considerada
pela literatura um eixo fundamental para a compreensão das empresas familiares
e uma das situações mais delicadas vivenciadas pelos membros da organização,
sobretudo por ser preponderante para sua longevidade. Como ressalta Machado
(2008, p.186), a complexidade desse processo vai além do preparo dos sucessores
e do planejamento do processo, por refletir a "existência de influências
sociais e culturais que estabelecem fronteiras invisíveis" entre o indivíduo, a
família e a empresa.
A sucessão é entendida como um processo contínuo e multigeracional que envolve
a transferência da propriedade e da gestão da empresa para as gerações futuras
ou para profissionais não familiares. A noção de sucessão como processo é
também assumida por Lambrecht (2005) que, levando em consideração a
reincidência da necessidade de sucessão ao longo da trajetória da empresa
familiar, afirma que a sucessão deve ser apreendida como um processo contínuo
de transferência que satisfaça às gerações futuras, traduzido em um plano de
transição multigeracional. Assim, a família passa a ser entendida como uma
esfera social, cultural e estratégica para a organização e pode ser capaz de
identificar, compreender e elaborar o próprio modo de transferência da
organização e de seus ativos reais e simbólicos pelas gerações presentes e
futuras. Isso significa que a família passa a assumir um papel ativo na criação
de um padrão para a condução do atual e dos futuros processos sucessórios,
sendo ainda responsável por fomentar a educação, os valores e a formação dos
sucessores.
A sucessão representa um dos momentos mais críticos vivenciados no contexto da
empresa e da família empresária, marcado pela transferência do poder e do
controle dos negócios (ou pela perda dele) entre os herdeiros (LEONE, 2005). No
âmbito da sucessão patrimonial, observa-se uma reestruturação societária na
qual os novos atores (membros da família) assumem sua condição de proprietários
(não necessariamente de gestores). Por outro lado, a sucessão na gestão está
associada ao momento em que o proprietário-gestor transmite ao sucessor o poder
que o cargo lhe confere (GRZYBOVSKI, HOFFMANN e MUHL, 2008).
A sucessão envolve, então, múltiplas esferas que não podem ser deixadas de lado
quando tal processo se aproxima, dado que o afastamento do predecessor das
atividades de gestão requer ações cuidadosas, tanto para auxiliar o sucedido
nesse difícil momento de desligamento quanto para construir um ambiente no qual
o sucessor possa assumir completamente o cargo, desempenhar seu trabalho e
conquistar sua legitimidade. Nesse sentido, o planejamento sucessório e a
profissionalização surgem como práticas capazes de nortear a família e a
empresa, bem como de minimizar conflitos.
O planejamento pode permitir que critérios sejam estabelecidos a priori de
forma a prevenir que rivalidades, ciúmes, vaidades e disputas comprometam a
continuidade do negócio. Lansberg (1999) enfatiza a relevância de se conduzir a
sucessão a partir de um processo planejado e contínuo que valorize a preparação
e o aprendizado. Da mesma forma, Leone (2005) aponta para a importância de que
a sucessão não seja implementada abruptamente, mas por meio de um processo que
tenha como pilares o planejamento e a organização e que o sucessor seja
preparado para assumir o cargo, ao mesmo tempo que o sucedido seja capaz de
simplificar esse processo, compartilhando com a família os critérios utilizados
para a escolha do sucessor.
No que tange à preparação dos possíveis sucessores, a profissionalização surge
como alternativa para aquelas empresas familiares que buscam integrar as
habilidades profissionais e técnicas à sua gestão. Nesse sentido, a
profissionalização envolveria a preparação do grupo familiar a fim de
possibilitar que esses indivíduos desenvolvam a visão e as ferramentas
indispensáveis para nortear sua compreensão acerca de questões complexas nas
esferas da família, da propriedade e da gestão. Ressalta-se que a
profissionalização da gestão de uma empresa familiar também pode dar-se pela
contratação de profissionais que conduziriam os negócios.
A problemática da sucessão e da profissionalização encontra-se, portanto,
nitidamente entrelaçada ao processo de construção da legitimidade. Para
Bernhoeft (2003), a condição de sucessor traz consigo a exigência de uma
legitimação, no sentido de que o sucessor, além de ter sido escolhido, precisa
ser reconhecido como tal pelos demais membros da família e da empresa.
A legitimidade dos sucessores da qual se trata aqui não é aquela legal,
vinculada à questão formal da herança. Apesar de ter a autoridade legal
conferida pelo direito à herança e à futura propriedade da empresa, o herdeiro-
sucessor terá de construir sua legitimidade junto à própria família (BARACH et
al., 1988) e a si próprio, em relação ao sucedido, aos subordinados e aos
demais stakeholders. Discute-se aqui a legitimidade como um processo que se dá
na interação com o outro e envolve a conquista de espaços e de reconfiguração
das relações de poder no cerne da organização. Assim, parte-se do pressuposto
de que a legitimidade é uma construção sócio-histórica, imersa nas relações
sociais e consistentemente ligada a crenças, normas e valores compartilhados
pelos atores relevantes a um dado universo organizacional.
Para Weber (2000), um dos precursores da discussão da legitimidade como um
fenômeno social, a legitimidade, como processo social, refere-se tanto à ordem
social quanto ao sentido subjetivamente dado pelo indivíduo a tal ordem. Dessa
forma, a validade de uma ordem social ocorre na medida em que ela reflete as
crenças dos atores e, simultaneamente, as normas são incorporadas ao
comportamento do indivíduo. Por sua vez, o descumprimento das normas
acarretaria sanções. Weber (2000) observa ainda que, mesmo que os indivíduos
não compartilhem totalmente regras, valores e crenças dos grupos sociais com os
quais convivem, seu comportamento torna-se orientado por uma ordem subordinada
a regras e crenças que ele presume serem aceitas pelos outros. Como a ordem
social conta com um suporte coletivo, ela encontra-se reforçada como uma norma
social válida e objetiva.
A concepção weberiana é adotada por muitos estudiosos da temática, que
compartilham a noção de que a legitimidade é uma construção coletiva da
realidade social, na qual os elementos dessa ordem estão em consonância com
normas, valores e crenças que o indivíduo presume serem compartilhadas
(JOHNSON, DOWD e RIDGEWAY, 2006). Nesse sentido, o termo legitimidade remete a
crença, aceitação e interpretação dos agentes de que algo é considerado
legítimo.
Para Berger e Luckman (2004), a legitimação permite que os indivíduos
interpretem o contexto, especialmente quando suas significações não fazem tanto
sentido de forma isolada e eles precisam vivenciar processos por meio dos quais
os significados sejam partilhados para que sejam considerados plausíveis. O
processo de legitimação constitui, portanto, um processo de explicação e
justificação, como detalhado pelos autores:
"A legitimação 'explica' a ordem institucional outor-gando validade
cognoscitiva a seus significados objetivados. A legitimação justifica
a ordem institucional dando dignidade normativa a seus imperativos
práticos [...]. Em outras palavras, a legitimação não é apenas uma
questão de 'valores'. Sempre implica também 'conhecimento' [...] é
preciso primeiro haver 'conhecimento' dos papéis que definem tanto as
ações 'certas' quanto as 'erradas', no interior da estrutura" (BERGER
e LUCKMANN, 2004, p.128).
Em suas interações cotidianas, os indivíduos constroem significados acerca do
que consideram correto, aceitável, adequado ou desviante. O conjunto desses
significados constitui o universo simbólico, que consiste no espaço de
significações compartilhadas, o que possibilita o desenvolvimento das
interações sociais. Esses significados estão em constante processo de
construção e reconstrução, tornando o processo de legitimação de determinada
ação ou instituição dinâmico e socialmente repactuado, levando-as a ser aquilo
que deveriam ser (BERGER e LUCKMANN, 2004).
Envolto por esse universo simbólico, o processo de construção da legitimidade
do(a) herdeiro(a)-sucessor(a) pode ser discutido no contexto dos domínios da
realidade trabalhados por Berger e Luckman (2004). Os homens, em suas
interações cotidianas, constroem significados em relação às instituições,
definindo, por exemplo, as características de comportamentos considerados
adequados ou desviantes. O conjunto desses significados constitui o universo
simbólico, que consiste no espaço de significações compartilhado que
possibilita o desenvolvimento de interações sociais. Esse universo integra
todos os domínios separados da realidade, unificando-os em uma totalidade
dotada de sentido que os explica e talvez também os justifique. Nesse sentido,
os diferentes grupos de indivíduos constituintes das instituições família e
empresa podem manifestar interesses e valores diferentes e, dessa forma,
construírem subuniversos compartilhados entre eles, mas diferentes do universo
em questão. A trajetória nem sempre linear percorrida por alguns desses
herdeiros no processo de construção de suas legitimidades será analisada nas
seções seguintes, após uma breve descrição dos caminhos percorridos pela
própria pesquisa.
3. PERCURSO METODOLÓGICO
Na pesquisa realizada buscou-se compreender como se dá o processo de
legitimação dos sucessores em empresas familiares, na perspectiva dos próprios
sucessores e de outros indivíduos diretamente a eles ligados. Trata-se de uma
pesquisa qualitativa, abordagem pertinente por possibilitar a apreensão dos
significados das construções, ações e relações humanas.
A fim de evidenciar algumas dimensões que estão presentes no processo de
legitimação do sucessor, utilizou-se o método multicasos (YIN, 2005), para que
se pudesse obter maior aprofundamento e detalhamento da dinâmica vivenciada no
âmbito das empresas pesquisadas, bem como a apreensão das especificidades da
dinâmica desse processo.
O corpus da pesquisa foi constituído por dirigentes familiares pertencentes a
duas empresas familiares mineiras de grande porte. As duas empresas pesquisadas
vinculam-se a famílias empresárias que compartilham uma longa tradição nos
setores econômicos em que suas empresas estão inseridas. A primeira empresa
pesquisada pertence ao setor de transportes, no qual a família empresária tem
quase cem anos de tradição. A segunda organização concentra suas atividades no
setor cafeeiro e é constituída por duas famílias empresárias: a primeira já
atua no setor há mais de 60 anos e a segunda, há mais de 150.
Os entrevistados foram ouvidos de forma intencional, dentre os membros das
gerações atuais de dirigentes familiares que se encontram à frente da gestão
das organizações. Foram realizadas cinco entrevistas na empresa de transportes,
uma das quais com o presidente e fundador e quatro com diretores membros da
família, estes pertencentes à segunda geração. Na fábrica de café, foram
realizadas quatro entrevistas, duas das quais com membros da quarta geração de
uma das famílias controladoras, uma com um membro da terceira geração da outra
família e uma com um profissional de mercado, não pertencente às famílias
proprietárias. Todos os entrevistados exercem cargos de diretoria na empresa.
As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e analisadas.
De forma complementar às entrevistas, foram analisados documentos das empresas
(estatutos, atas de reuniões, relatórios internos, manuais e códigos de ética e
de conduta), a fim de obterem-se informações adicionais sobre as empresas e o
processo de sucessão. Também foram coletados dados secundários às organizações
estudadas, dentre os quais se destacam recortes de jornais, informações
disponibilizadas nos sites das companhias, artigos, dissertações e outras
publicações acadêmicas relacionadas às organizações em questão.
As variáveis utilizadas para estruturação da pesquisa, tanto sob o aspecto
teórico como também o empírico, foram sucessão e socialização. Essas duas
variáveis foram operacionalizadas por meio das dimensões detalhadas no quadro a
seguir.
Variáveis e Dimensões da Pesquisa
![](/img/revistas/rausp/v48n1/03q01.jpg)
Para análise das entrevistas, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, que
permite acessar as "realidades subjetivas das re-presentações simbólicas"
(RODRIGUES e LEOPARDI, 1999, p.19). Buscou-se, assim, apreender o sentido
atribuído pelos sujeitos a determinado fenômeno, que se concretiza na prática
social e se manifesta a partir das representações cognitivas, valorativas,
sociais e emocionais, de forma contextualizada (PUGLISI e FRANCO, 2003).
Considerando as várias modalidades de análise de conteúdo (MINAYO, 2008), será
adotada neste estudo a análise categorial ou temática, que é descrita por
Bardin (1977) como o processo de análise do texto a partir de unidades
categorizadas e agrupadas analogicamente em relação aos eixos temáticos. A
análise compreendeu as três fases operacionais apresentadas pela autora. A pré-
análise correspondeu à etapa de sistematização do plano de análise, contando
com a constituição do corpus, representado, no caso, pelo conjunto das
entrevistas. A fase da exploração do material envolveu o tratamento dos dados
por meio da codificação dos trechos de entrevistas empregados na análise. A
terceira etapa correspondeu à interpretação inferencial dos resultados,
estabelecendo-se as relações entre as análises empíricas e as questões que
nortearam a pesquisa.
3.1. A empresa de transporte
A empresa de transporte localiza-se no sul do estado de Minas Gerais. Fundada
em 1959, iniciou suas atividades com apenas um caminhão, utilizado inicialmente
para carretos na região. Ao longo dos dez primeiros anos, o fundador
desempenhou todas as funções relacionadas ao negócio. No final da década de
1960 e início da de 1970, a empresa enfrentou uma grave crise, causada, dentre
outros fatores, pela desorganização administrativo-financeira e por prejuízos
advindos de investimentos em outras empresas. A entrada da filha mais velha no
negócio remonta a esse período, quando ela tinha apenas 13 anos, e começou
organizando as contas da empresa. A partir da década de 1980, mais dois filhos
do fundador iniciaram suas atividades na organização, de forma similar à
inserção da irmã mais velha, primeiro em funções mais operacionais e
gradativamente se inserindo nas atividades administrativas da empresa. A década
de 1990 é marcada pela maior participação dos filhos na gestão, fase em que o
fundador passa a delegar gradualmente maiores responsabilidades e autoridade a
seus sucessores. Em 1996, mais uma filha do fundador é inserida no negócio e,
assim, quatro dos sete filhos passam a trabalhar no negócio da família. Entre
2000 e 2009, todos os cargos de gestão são gradativamente assumidos pela
segunda geração, e o fundador não exerce mais cargo formal algum, embora seja
uma presença importante na empresa e continue a atuar no sentido de assessorar
e aconselhar seus filhos diretores.
3.2. A fábrica de café
A origem da fábrica de café está ligada à história de duas famílias
tradicionais no setor cafeeiro que se uniram, em 2004, para a fundação do
negócio. Uma das famílias tem cerca de 150 anos de tradição no ramo cafeeiro,
figurando, atualmente, no ranking dos principais produtores de café do Brasil.
A tradição da outra família remonta a 60 anos de experiência no processo de
torrefação e no comércio de café. A aquisição de um maquinário de café por essa
última família foi o ponto de partida para iniciar, em 2003, o projeto de
abertura da nova fábrica de café. Assim, as duas famílias, que já formavam
parcerias em outros empreendimentos, iniciaram a negociação para a abertura da
fábrica de café, inaugurada em 2004, na região metropolitana de Belo Horizonte.
A administração da nova fábrica de café ficou, desde o início, a cargo dos
filhos dos membros de cada família empresária. Dois anos após a inauguração, a
fábrica despontou entre as três primeiras indústrias de café de Minas Gerais e
entre as dez maiores no ranking nacional. Embora a fábrica de café tenha menos
de uma década de existência, é importante considerar a tradição no segmento
cafeeiro das duas famílias vinculadas ao negócio. A fábrica de café configura-
se como uma sociedade limitada, restrita a dois grupos familiares, em que cada
grupo responde por 50% da propriedade. A sociedade é composta por quatro sócios
de uma família e quatro sócios da outra.
3.3. O processo de construção da legitimidade
A concepção weberiana de legitimidade racional-legal fornece as bases para
pensar-se a legitimidade no sentido de aceitação do exercício do poder, que
pode ser assegurada aos sucessores pelo direito à propriedade e pelo cargo que
irão assumir. Essa concepção, também, consubstancia a análise da legitimidade
como um processo histórico-social associado às crenças culturais, às normas e
aos valores compartilhados (WEBER, 2000). Dessa forma, alguns elementos
mencionados pelos entrevistados podem ser identificados no processo de
legitimação, dentre os quais, aparecem de forma destacada: a inserção dos
sucessores no negócio, a construção de sua identidade profissional, o
reconhecimento dos membros da família e dos funcionários, a relação com o
sucedido e/ou com o pai, a forma como se deu a transferência de poder, o papel
do sucedido no processo sucessório e as disputas pelo poder, dentre outros. Em
ambos os casos, é possível delinear um percurso de legitimação dos sucessores,
embora as dimensões identificadas apareçam de forma absolutamente particular em
cada um deles. Inicialmente, analisar-se-á a forma de inserção dos sucessores
no negócio da família.
No contexto das empresas familiares, os pais, por vezes, influenciam os filhos
desde cedo a reconhecerem-se como proprietários de uma empresa, levando-os a
seguir o caminho dos pais, o que corrobora o argumento de Berger e Luckmann
(2004, p.176) de que a família atua como o locus privilegiado da primeira
socialização de um indivíduo. Dessa forma, os papéis a serem desempenhados, os
comportamentos e as posturas esperados são explicitados a esse indivíduo por
seus pais e, no caso de uma família empresária, a forma como a realidade é
apresentada pode levar o indivíduo a identificar-se com a empresa da família,
justamente por esse filho ser socializado tendo como referência o trabalho
realizado pelos pais desde a fundação do negócio, muitas vezes convivendo com o
universo da empresa desde a infância.
É possível inferir que esse processo pode ser identificado como um dos fatores
responsáveis pelo interesse das futuras gerações em dar continuidade à
administração do negócio da família. Assim, o contato dos sucessores com a
empresa, ainda na infância, aparece como um elemento importante para a criação
de laços de afeto e de identificação com a empresa, conforme salientam Berger e
Luckmann (2004). Na socialização primária, não há problema de identificação,
pois a criança não pode escolher quem serão os responsáveis por inseri-la no
mundo. Como resultado, a criança identifica-se automaticamente com seus pais e
com a realidade apresentada por eles, o que, em tais casos, inclui a empresa
como parte essencial do mundo em que ela irá habitar. Em ambos os casos, os
entrevistados relataram o contato estabelecido na infância com os
empreendimentos da família como um dos fatores que influenciaram sua opção de
carreira e seu comprometimento com os negócios da família. Também fica claro
que, com o tempo, foram desenvolvidos laços de afeto e de identificação com os
negócios reforçados pelas expressões "eu fui me apegando, criando o amor pela
empresa e paixão mesmo por aquela empresa que eu vi crescer", destacadas nos
fragmentos apresentados a seguir.
(01) "Desde novo, desde criança mesmo, eu já sempre gostei de estar
na empresa... Sempre porque a empresa era perto da casa onde nós
morávamos, então já era normal, sem meu pai pedir, eu ir pra empresa
e com isso eu acho que fui me apegando, criando amor pela empresa e
aí não, aí já passou a ser uma obrigação. Desde que eu não tivesse
nada de trabalho de escola ou ter que estudar, eu realmente tinha que
ir para a [empresa], mas esse 'ter que ir' nunca foi encarado como
uma obrigação e sim como um prazer de estar ali na empresa ajudando
meu pai" (E03). (Empresa de Transportes - negritos dos autores do
artigo)
(02) "O contato que eu tive era pra ir lá pra fazer bagunça,
entendeu? [...] Era uma coisa assim... Eu nasci em 1984 e [a
torrefação do avô] foi adquirida em 1984. Então minha infância foi
toda lá, eu desde pequeno estava lá. Toda sexta-feira eu saía da aula
e ia pra lá, ficava lá... Como meus pais trabalhavam de oito da
manhã, até as dez da noite, eu ia pra lá pra ficar com eles, ficar
lá... Então eu tinha muito dessa... dessa paixão mesmo por aquela
empresa que eu vi crescer. Vi a construção de todos os prédios.
Participei da instalação do maquinário, meu pai ia lá e me levava com
ele. Então tinha muito... As festas todas que tinha na empresa...
Então eu participei muito disso" (E07). (Fábrica de Café - negritos
dos autores do artigo)
Pode-se inferir que a empresa se apresenta como uma instância de socialização
para esses entrevistados, uma vez que os membros da família empresária convivem
desde a infância com a influência das questões empresariais na dinâmica
familiar. Assim, ainda na infância, os membros da família incorporam papéis que
irão direcionar seus caminhos profissionais na empresa, pois a rotina dos pais
apresenta-lhes uma realidade que os vincula diretamente com o negócio da
família. Isso mais tarde tende a criar vínculos tão intensos que auxiliarão
funcionários e familiares a construir uma imagem do sucessor como o candidato
legítimo para dar continuidade à organização. Nem sempre a aproximação com os
negócios da família aparece de forma natural ou prazerosa para o herdeiro-
sucessor. Um dos entrevistados da fábrica de café ressalta seu contato forçado
na adolescência com a fazenda de café da família como um elemento de forte
influência para sua posterior inserção nesse universo, porém vivida
inicialmente quase como um castigo.
(03) "Eu acho que o primeiro ponto que eu comecei a ser obrigado a
viver o café foi por causa de uma re-beldia de adolescência. Eu fui
forçado a... Eu fui corrigido pelo meu pai trabalhando, ao invés dele
me bater, ao invés dele agir de outra forma... Ele falou: 'Não! Já
que você tá fazendo errado, eu vou te ensinar é trabalhando pra você
ser homem!'. Eu aprendi a ir pro campo, aí eu fui aprendendo e fui
tomando gosto por aquilo. E aí eu comecei a ver alguns desafios.
Desafio de aprender a como plantar o café, desafio de como beber um
café, como conhecer o defeito de um grão. E eu fui aprendendo e tomei
gosto, logo em seguida. E quando eu tomei gosto, eu vi que esse mundo
era grande, que ele tinha um grande potencial, investi muito nisso e
colhi frutos disso tudo" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos
autores do artigo).
Nesse sentido, torna-se evidente que a aproximação com a empresa, vivenciada na
infância, exerceu um papel importante não apenas para a socialização dos jovens
sucessores, mas também para levá-los a perceber o negócio como o sustentáculo
financeiro responsável pela sobrevivência de toda a família. Assim, ao
assumirem algumas tarefas na empresa, surgia a possibilidade de perceberem-se
como corresponsáveis pelo sustento da família, entendendo as dificuldades
associadas aos ganhos financeiros. Além disso, em ambos os casos a empresa
aparece ligada até mesmo aos momentos de lazer da família, permeando não apenas
a jornada de trabalho, mas também todo o universo familiar. Dessa forma, a
família e a empresa confundem-se como instâncias socializadoras dos membros de
uma família detentora de uma organização empresarial. Ainda na infância, o
indivíduo internaliza o mundo de seus pais e é iniciado dentro de valores,
normas e comportamentos encorajados pela família (BERGER e LUCKMANN, 2004). É
possível inferir que, em ambos os casos, a empresa funciona como um elo entre
os filhos e o legado dos pais, incentivando-os a inserirem-se nos negócios e a
representarem papéis relacionados ao universo de seus pais, continuando a saga
da família, agora como herdeiros dos negócios.
Outro aspecto importante para a compreensão do processo de legitimação é a
relação sucedido-sucessor e/ou pai-filho. No caso da empresa de transportes, o
fundador foi capaz de repassar seus conhecimentos para a segunda geração, cujos
membros passaram por todas as áreas e funções relacionadas ao negócio. O papel
desempenhado pelo sucedido em questão aproxima-se da definição de big manitu
apresentada por Lambrecht (2005), em sua visão processual da sucessão. O
repasse dos conhecimentos e da experiência do fundador a seus sucessores, desde
os primeiros passos na empresa, foi um dos fatores que fomentaram não apenas a
capacitação desses filhos, como também sua legitimação, ao conquistarem
gradualmente a confiança do pai, dos funcionários, dos clientes e dos
fornecedores.
(04) "Eu vi esses dois moleques trabalhar, eu falo e eu choro, eu
vejo a imagem de nós descarregando o caminhão. Como se fosse hoje
assim. A gente des-carregava o caminhão. Não tinha esse negócio de
mandar o seu ajudante, não... Já saía lá fora, ali eu já passava os
conhecimentos pra eles e pra [irmã], e eu ia, subia no caminhão e
desembolava. Enquanto eles gastavam dez, vinte minutos pra desenrolar
o caminhão, eu gastava cinco. Eu tinha uma agilidade..." (E01).
(Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).
(05) "Comecei com treze anos. E aí eu comecei na parte
administrativa. Onde, como nós temos conhecimento de transporte, que
é como se fosse uma nota fiscal, eu fazia essa parte de colocar
conhecimento em ordem, ajudar no faturamento e com o tempo passei a
mexer na parte de cobrança, onde uma estratégia que meu pai adotou
era colocar tanto eu quanto meu irmão pra fazer cobrança, que seria
pra identificar, pra conhecer o perfil de cada cliente. Tanto o bom
pagador, o mau pagador e a característica de cada um" (E03). (Empresa
de Transportes - negritos dos autores do artigo).
A fábrica de café, em contraposição, apresenta uma relação pai-filho bastante
distinta. Existe um conflito intrafamiliar entre o dirigente membro de uma das
famílias e seu pai, membro do Conselho de Acionistas da Fábrica. Nesse caso,
verifica-se a dificuldade de separar os papéis profissionais dos papéis
familiares, gerando situações em que os papéis de pai e filho se confundem com
os de acionista e gestor. Dessa forma, o conflito evidenciado está nitidamente
entrelaçado ao processo de construção da legitimidade do sucessor, visível a
partir da busca pelo reconhecimento de sua capacidade e de sua autoridade pelo
pai, perante todos os stakeholders. Nesse sentido, a interferência do pai e
acionista da empresa em relação à gestão realizada pelo filho é apontada como
uma ameaça à sua autoridade diante dos funcionários da fábrica de café.
(06) "É, o conflito no começo foi muito forte. Geramos altos
conflitos, não foi fácil administrar. É igual briga de pai e filho,
não adianta, mas ao longo do tempo cada um aprendeu a respeitar o que
cada um tem de bom. Então hoje eu tenho uma credibilidade com meu pai
que ele sabe que o que eu falo e ele pode me ouvir, às vezes ele tem
alguma dúvida, ele até questiona, mas ele não bate de frente. Ele
sabe que ali tem algum fundamento, existe alguma experiência por trás
daquilo ali que eu estou falando. Então ele já me escuta, às vezes
ele até toma a decisão baseada no que eu falo" (E06). (Fábrica de
Café - negritos dos autores do artigo).
(07) "É, tinha muita presença [do meu pai] no dia a dia. Às vezes até
interferindo um pouco na minha tomada de decisão em torno da gestão.
Eu ia perdendo um pouco do meu poder de gerência para ele, gerando
alguns conflitos, mas, ao mesmo tempo, isso foi minimizado ao longo
do tempo porque todo mundo viu que a gente tinha credibilidade pra
assumir tal experiência e tal desafio que foi dado" (E06). (Fábrica
de Café - negritos dos autores do artigo).
Pode-se argumentar que a construção da legitimidade do sucessor tende a ser
amplamente influenciada pela vivência familiar e pela forma como ele se
relaciona com outros membros da família que atuam no negócio, sobretudo o
sucedido e/ou o pai. Questões familiares como vaidade, rivalidade, disputas e
ciúmes podem dificultar a legitimação do sucessor, principalmente por transpor
para o universo da empresa questões internas da família. Além disso, como no
caso em questão, o sucedido pode apresentar dúvidas ou resistência quanto ao
repasse do cargo de gestão para o filho, interferindo nas decisões estratégicas
tomadas pelo sucessor e esvaziando sua autoridade perante os demais membros da
organização.
(08) "Não é tão simples, porque meu pai tem uma vida profissional
100% ativa. Meu pai está com 53 anos e tem uma vida ativa muito
forte. E parar de trabalhar, ele não pensa nunca. Porque, ao mesmo
tempo em que eu tento trabalhar e mostrar pra ele o sucesso que está
tendo aqui, ele tem uma resistência. Talvez aquele sentimento ainda
de 'Tô perdendo o emprego!', né? É uma pessoa que começou do zero ali
e falar: 'Nossa! Eu vou delegar isso pro meu filho, vou perder o
emprego!'". (E09). (Fábrica de Café - negritos dos autores do
artigo).
A discussão sobre o processo de legitimação dos sucessores levanta diversas
questões relacionadas ao processo de sucessão. Conforme salientam Barach et al.
(1988), o simples repasse do cargo do sucedido a seus herdeiros não garante nem
implica a transferência automática de seu poder e autoridade. O sucessor não
herda o mesmo respeito e a mesma confiança de seu antecessor, devendo
conquistar sozinho a confiança da família, dos funcionários, dos fornecedores e
dos demais públicos relacionados à esfera de atuação da empresa (BARACH et al.,
1988). Esse processo constitui a essência da construção da trajetória de
legitimação do sucessor, que em muitas empresas familiares, como nos casos
estudados, precisa competir com uma história de empreendedorismo, sacrifícios
pessoais e perseverança do fundador, uma verdadeira saga que os envolvidos
geralmente projetam para o sucessor. A forma como esses processos de sucessão
aconteceram e os princípios que os nortearam em cada uma das empresas
pesquisadas revelam processos de legitimação que apresentam traços bastante
distintivos.
No que se refere especificamente ao processo de construção da legitimidade,
pode-se considerar que um deles pode ser caracterizado como gradual, enquanto o
outro parece mais complexo, porque envolve a relação entre dirigentes de duas
famílias diferentes. A entrada dos sucessores nos primeiros anos da empresa de
transportes não apenas os muniu dos valores e dos conhecimentos sobre o
negócio, como também fez com que se tornassem corresponsáveis pela continuidade
da organização, compartilhando os percalços e inscrevendo os próprios feitos na
trajetória da empresa. Dessa forma, a construção da legitimidade dos membros da
segunda geração ocorreu como resultado de interações e negociações constantes
com os demais atores, todos eles membros de uma mesma família. Assim,
gradativamente, ao se legitimarem, os sucessores foram conquistando espaço e
forjando uma contínua reconfiguração nas relações de poder no interior da
organização.
(09) "Na época eu posso dizer que foi assim, não foi difícil, não.
Porque a [minha irmã], ela já tinha um bom tempo na empresa. Então
assim ela já tinha... a responsabilidade tava quase toda na mão dela.
Quando nós entramos, até hoje, o pai é muito ativo... Mas a [minha
irmã] já tinha mais tempo com ele... Então algumas coisas da parte
administrativa já tava com ela. Então foi assim, como nós começamos
aos 12... Vamos falar assim... Aos 15 a gente já estava cuidando da
operação junto com ele... e o negócio foi migrando pra gente, sabe?
Foi bem tranquilo" (E04). (Empresa de Transportes - negritos dos
autores do artigo).
(10) "Então no nível de empresa, tem um histórico todo de tempo aqui
dentro, tem uma coisa de paixão e empenho muito grande" (E05).
(Empresa de Transportes - negritos dos autores do artigo).
No caso da fábrica de café, percebe-se que o conflito in-ter-familiar existente
entre os sócios tornou o processo de legitimação dos sucessores ainda mais
complexo e moroso. Esse conflito decorria do fato de cada um dos gestores
pertencer a uma família empresária diferente. Assim, os sucessores já traziam
visões distintas sobre o negócio, acarretando uma disputa pelo poder, em que
estavam em jogo não apenas os próprios interesses, mas também a busca pelo
reconhecimento da autoridade de cada sucessor perante sua respectiva família.
(11) "Então entre eu e [meu sócio] a principal questão é que a gente
tinha no início uma questão de disputa por poder. [E a disputa
ocorria] em re-lação a tudo, em relação a todos. Então era uma
questão de falta de maturidade mesmo, as próprias famílias já tinham
isso aí, a gente já carregou das famílias" (E07). (Fábrica de café -
negritos dos autores do artigo).
Por outro lado, a disputa entre os sócios chega a ser apontada por um dos
entrevistados, no fragmento (12), como um ponto positivo, responsável também
por sua motivação e perseverança na busca por uma posição de destaque na
organização.
(12) "A disputa ela existe, não é? Ela não vai acabar nunca porque
por ele ser sócio, eu sou sócio, ele é de uma família e eu sou de
outra. Todo mundo aqui está disputando e, se eu não tivesse uma con-
corrência, talvez eu não teria chegado onde eu cheguei. Eu acho que
foi o meu maior motivador, pra eu mostrar pra todos que eu tinha a
capacidade de crescer" (E06). (Fábrica de Café - negritos dos autores
do artigo).
A percepção por parte do dirigente e membro de uma das famílias de que a
competição seria o caminho para a conquista do reconhecimento e para a ascensão
ao cargo de diretor da fábrica de café pode ser mais bem entendida no contexto
das sucessões ocorridas na trajetória da própria família. Quando o entrevistado
relata outros processos de sucessão ocorridos na família, a competição aparece
em seu discurso como um elemento inerente ao próprio processo de transferência
do negócio entre as diferentes gerações de sua família, corroborando a ideia de
Leone (2005) de que a sucessão envolve, dentre outros, o conflito entre
sucessores pela disputa de poder. A escolha do sucessor aparece associada,
dentre outras, a sua capacidade para lidar com o conflito e aquele que
apresenta o melhor desempenho naturalmente passaria a liderar o negócio da
família, tal como no processo de seleção natural. A competição entre os
herdeiros, somada a critérios meritocráticos, aparece, assim, como a prática
utilizada por uma das famílias para identificar os sucessores mais aptos para
futuramente assumirem o negócio. Nesse sentido, pode-se inferir que o atual
dirigente internalizou esse princípio e, a partir de sua vivência nos negócios
da família, o levou consigo para a realidade da fábrica de café.
(13) "Isso aí eu nunca aprofundei na história da família, mas eu
acredito que foi repassado naturalmente. Não é uma coisa que foi
assim forçada, porque é uma coisa que acontecia, a 'seleção natural',
que a gente fala. Os filhos foram despontando no negócio e acabou que
o negócio ficou tão grande que foi uma seleção natural. E também
depois a gente, com os nossos pais, foi também uma seleção que foi
natural. A gente não teve uma data definida pra começar a trabalhar e
nem uma data definida pra assumir o negócio. É uma coisa que acontece
no dia a dia... E também acredito que do outro lado da família com
meu tio também, com os filhos também, vai ocorrer uma seleção
natural, quem desponta como o melhor perfil para aquela função, vai
ganhando espaço e vai crescendo" (E06). (Fábrica de Café - negritos
dos autores do artigo).
Para essa família, a competência técnica aparece como uma dimensão importante
da legitimidade, traduzida pela capacidade de lidar com o conflito, a
assertividade das decisões e o perfil competitivo dos sucessores. Ressalta-se
que a adoção de critérios meritocráticos para a escolha do sucessor pode
representar uma estratégia selecionada pelo sucedido para evitar o peso da
escolha entre um de seus filhos e, ao mesmo tempo, fomentar sua aceitação
perante o restante da organização, ao apresentar razões objetivas no lugar de
razões pessoais para a escolha do novo dirigente.
Ainda na empresa de café, um entrevistado enfatiza o significado, por vezes até
pejorativo, atribuído aos indivíduos que atuam na organização e têm relação de
parentesco com os donos da empresa. Nesse contexto, é como se o sucessor
estivesse apenas ocupando um lugar formalmente herdado. A expressão filho do
dono carrega um conjunto de significações que podem indicar como os
funcionários percebem a trajetória do sucessor dentro da organização. Como
obviamente o fato de ser o filho do dono não é suficiente para construir a
legitimidade do sucessor, ele terá que a construir em diferentes esferas, num
espaço social em que diferentes atores participam do processo. Nesse sentido, o
fragmento abaixo retrata como um herdeiro-sucessor vivenciou esse momento e
como foi consolidando relações de confiança, o que possibilitou gradativamente
que os demais membros da empresa (re-)significassem a ideia preconcebida de que
ele era apenas o filho do dono.
(14) "É isso, é uma coisa desafiante porque, quando você assume um
cargo na empresa, você entra como o filho do dono e todo mundo te
respeita ali porque você é filho do dono. E a gente sente isso muito
nítido, o funcionário, ele te participa das coisas porque você é
filho do dono, te deve satisfação. Mas, ao longo da sua construção,
da sua confiança na gestão, todo mundo vê seu crescimento, vê seu
desejo de crescer, vê sua humildade e começa a entender que você está
ali porque você almeja um cargo de diretor e não porque você é filho
ou sucessor. Então isso foi um desafio pra mim, que eu encarei com
muita seriedade desde o começo. Até porque eu enfrentei dois
desafios, eu não só vim pra cá pra começar a trabalhar como filho do
dono, mas vim também pra trabalhar com outra família que não faz
parte da minha família e que tem uma visão que diverge muito da minha
família. Então foram dois desafios que eu enfrentei, não foi só ser
filho do dono. O primeiro passo foi vencer esse, o segundo foi como
mostrar pra outra família que eu tinha competência também pra ficar
no negócio. E graças a Deus eu consegui convencer os dois lados.
Estou aqui e consegui convencer os colaboradores também. E também
consegui passar respeito, não adianta só ter confiança. Então a minha
credibilidade foi tão grande que eu consegui realmente superar
inclusive as minhas expectativas" (E06). (Fábrica de Café - negritos
dos autores do artigo).
Outro aspecto relacionado ao processo de construção da legitimidade dos
sucessores diz respeito ao papel do sucedido em relação à transferência da
gestão. Na empresa de transportes pesquisada, a autoridade do fundador pode ser
identificada com o tipo tradicional e carismático descrito por Weber (2000). A
imagem que os funcionários têm dele e a confiança nele depositada não emanam
apenas de seu direito legal sobre a empresa ou na autoridade de pai perante a
família, mas principalmente da construção social estabelecida em suas relações
com todo o universo de atores da organização, reforçada pela trajetória de
fracassos e conquistas protagonizados e institucionalizados como mitos no
cotidiano da empresa. Na fábrica de café, por outro lado, observa-se a
centralização do poder nas mãos dos fundadores da nova fábrica que, apesar de
terem entregado a gestão para seus sucessores, ainda detêm a palavra final
sobre as decisões mais importantes da empresa. De acordo com Weber (2000), é
possível afirmar que, além de racional-legal, a autoridade também pode ser
entendida como tradicional, sobretudo pela concentração de poder nas figuras
dos patriarcas das famílias envolvidas.
No caso da empresa de transportes, a entrada precoce dos sucessores propiciou-
lhes conquistar a confiança necessária por parte do sucedido, tornando o
processo de transferência da gestão mais negociado e aceito pelo fundador.
Aliado a isso, o perfil do sucedido é descrito pelos sucessores como o de um
professor ou entusiasta quanto à entrada dos filhos no negócio. Nesse sentido,
a passagem da primeira para a segunda geração de dirigentes familiares nessa
empresa leva uma marca importante de seu fundador descrito nas entrevistas como
o responsável por uma transição realizada sem grandes conflitos.
(15) "Não há dúvida, ele é o grande facilitador... É o grande
entusiasta de que os filhos estivessem aqui e isso é tudo de bom que
uma pessoa poderia deixar pros seus sucessores" (E05). (Empresa de
Transportes - negritos dos autores do artigo).
(16) "Eu acho que a transição foi muito tranquila, porque nós
começamos cedo, então o professor estava do nosso lado. Então, a
transição, digamos assim, a gente nem viu que existia uma transição,
porque meus irmãos começaram crianças, a [minha irmã] começou criança
e eu também, então foi uma coisa muito tranquila" (E05). (Empresa de
Transportes - negritos dos autores do artigo).
No caso da fábrica de café, são identificados conflitos de natureza
intrafamiliar e interfamiliar, que tornam mais complexas as relações em todas
as dimensões. Dessa forma, a disputa pelo poder, a meritocracia e a competição
aparecem como traços característicos do processo sucessório em si e podem ser
considerados componentes importantes do processo de legitimação.
Na empresa de transportes, todas as funções foram exercidas pelo fundador nos
primeiros anos do negócio. Seu espírito empreendedor e sua capacidade de
operacionalizar as tarefas destacaram-se em relação aos conhecimentos técnicos
e ao domínio dos processos formais de gestão. A entrada da segunda geração no
negócio não levou automaticamente a uma maior profissionalização da empresa,
pois, devido ao pequeno número de funcionários e à pouca idade dos sucessores,
os papéis que cada um desempenhava continuaram pouco formalizados, sem a
delimitação de suas atribuições em relação à administração do negócio. A
passagem dos herdeiros-sucessores por todos os setores da organização é, porém,
ressaltada como fundamental para o conhecimento do negócio e pode ser
considerada uma etapa fundamental ao processo de construção da legitimidade.
(17) "Quando a empresa era menor, a gente fa-zia de tudo. Então, eu e
o [meu irmão], a gente dividia as funções, a gente fazia de tudo. Só
que aí foi surgindo a necessidade de uma maior definição, aí
realmente ficou dessa forma..." (E04). (Empresa de Transportes -
negritos dos autores do artigo).
Da mesma forma, na fábrica de café, o conhecimento e a vivência dos sucessores
em todas as áreas da empresa aparecem como uma condição imprescindível para sua
capacitação e para a construção de seu processo de legitimação.
(18) "Depois, com meus 19 anos, eu vim pra indústria e aí eu comecei
o trabalho na indústria do zero, até então eu não conhecia nada de
indústria. E aqui eu aprendi também todo o processo de torra, moagem,
empacotamento, distribuição, vendas, sistema de gestão, tomada de
decisão, relatório gerencial e aí foi onde eu consegui realmente
chegar no cargo de direção da empresa" (E06). (Fábrica de Café -
negritos dos autores do artigo).
(19) "Eu passei por todas as áreas da empresa e isso me ajudou muito.
Isso em 2006, a gente comprou um sistema que não se adaptava, tivemos
que fazer a troca do sistema, ficamos seis meses trabalhando toda a
parte financeira, de produção. Aí a empresa mudou, começou a crescer.
Isso já entre 2005 e 2007. Depois eu assumi o Comercial. Foi uma
experiência pra mim, porque daí eu comecei a entender que produzir é
fácil, o difícil é vender. O difícil é sentar com cliente, é bater
meta, é motivar a sua equipe a vender e eu comecei a enxergar isso"
(E07). (Fábrica de Café - negritos dos autores do artigo).
A vivência em todas as áreas permitiu que os sucessores desenvolvessem uma
visão mais ampla das empresas, calcada na acumulação das experiências que
tiveram ao transitar pelos diferentes setores e funções do negócio. Esse
percurso também é apontado pelos entrevistados como uma etapa importante para
seu amadurecimento em relação à tomada de decisões, permitindo uma análise mais
realista e bem fundamentada sobre os riscos e benefícios advindos das decisões
gerenciais. Esse conhecimento tácito pode ser uma dimensão legitimadora dos
sucessores em relação, por exemplo, aos funcionários. Ao iniciarem suas
atividades em funções mais operacionais e ir aos poucos conhecendo todas as
práticas administrativas e operacionais, os sucessores começam a conquistar
espaço dentro da empresa e, consequentemente, o respeito, a confiança e o
reconhecimento dos funcionários, que atribuem subjetivamente um sentido
positivo a essa trajetória dos sucessores.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo, buscou-se delinear o processo de legitimação dos sucessores de
duas organizações mineiras a partir dos desafios, dificuldades e conflitos
vivenciados por eles ao longo de sua trajetória na organização. Nesse sentido,
procurou-se analisar o processo de construção da legitimidade dos herdeiros-
sucessores a partir dos jogos de interesses, percalços e desafios enfrentados
por eles durante a busca por seu reconhecimento perante familiares e
funcionários.
Um aspecto relevante identificado neste estudo foi a participação da empresa
como instância socializadora dos sucessores desde a infância. A interação
indivíduo-empresa se fez muito presente ao longo da socialização desses
sucessores. Dessa forma, a cultura e os valores da família permitiram que esses
sucessores produzissem a si mesmos de forma a identificarem-se como parte dos
negócios da família e, portanto, comprometidos com sua continuidade. Nesse
sentido, os filhos foram socializados tendo como referência o trabalho
realizado pelos pais desde a fundação da empresa e acostumaram-se, desde a
infância, com o universo da empresa. Ainda no interior da família, já
perceberam os papéis dos pais e, muitas vezes, identificaram-se com essa
lógica, pois a rotina dos pais os vincula diretamente ao negócio da família. A
empresa, então, supostamente uma instância de socialização secundária, insere-
se também nos espaços de socialização primária, misturando-se ao universo que é
comumente restrito à família.
Foi possível evidenciar, nas organizações pesquisadas, a forte influência
desempenhada pelas relações entre pai e filho na construção da legitimidade
desses sucessores. As formas como esses relacionamentos se configuraram
interferiram na significação que os membros da família e os demais atores
envolvidos nessas empresas elaboraram sobre o sucessor. Os casos indicaram dois
diferentes caminhos para a legitimação: um a partir da construção gradual,
incentivada pelo sucedido e gerada por sucessivas crises enfrentadas pela
empresa, forçando precocemente a entrada da segunda geração (empresa de
transportes). E outro caminho, representado por um sucessor que já havia
internalizado em seu ambiente familiar (socialização primária) que a competição
deveria ser o principal fator a definir o processo sucessório, fazendo das
disputas de poder o caminho natural para legitimar-se.
Outro aspecto importante é a forma como ocorre a transferência do poder. A
condução da sucessão está diretamente entrelaçada ao processo de legitimação,
uma vez que a simples designação do sucessor para o cargo que deve assumir não
assegura sua legitimidade. Dessa forma, a construção da legitimidade dos
sucessores entrevistados ocorreu como resultado de interações e negociações
constantes com os demais atores. Assim, ao se legitimarem, os sucessores foram
conquistando espaço e forjando uma contínua reconfiguração nas relações de
poder no interior da organização. Nesse sentido, na fábrica de café, um dos
sucessores aponta que iniciou seu trabalho na empresa como o filho do dono,
sendo necessário comprovar sua competência para ser, então, aceito e ter seu
trabalho reconhecido por todos na organização. Além disso, pode-se inferir que
o processo de construção da legitimidade, nesse caso, foi marcado por disputas
e conflitos. Na empresa de transportes, por sua vez, a inserção precoce dos
sucessores possibilitou que eles se projetassem como corresponsáveis pelo
sucesso da organização, em um processo gradual de legitimação ante o sucedido e
os funcionários, minimizando a ocorrência de disputas entre os sucessores.
Ainda, pode ser mencionado o perfil do sucedido, que é apontado, nessa empresa,
como facilitador do processo e entusiasta em relação à continuidade do negócio
pelas próximas gerações.
Por fim, a experiência adquirida pelos sucessores devido à vivência em todas as
áreas das empresas pode ser uma dimensão legitimadora, sobretudo em relação aos
funcionários. Esse conhecimento tácito permitiu que os sucessores conquistassem
o respeito, a confiança e o reconhecimento dos atores envolvidos nas práticas
diárias da empresa. O processo de legitimação pelo qual passaram na busca pelo
reconhecimento de seu lugar de novo dirigente perante a família e os
funcionários envolveu uma construção simbólica complexa e árdua. Do lugar de
filho do dono até o de sucessor legítimo, os herdeiros precisaram enfrentar
inúmeras resistências, disputas e desafios. A construção da imagem do novo
dirigente, em substituição à figura, muitas vezes reverenciada, do pai nunca
será um processo simples, como evidenciaram os depoimentos dos herdeiros-
sucessores.
A partir deste trabalho, foi possível traçar, em ambos os casos, o percurso e
os percalços dos sucessores em busca de tornarem-se legítimos, aceitos,
respeitados e, quem sabe, até admirados. Na perspectiva dos próprios atores
desse processo, a inserção e a legitimação dos sucessores ocorrem a partir de
quatro eixos fundamentais: socialização primária, desejo pessoal, aptidão para
negócios e competência técnica adquirida por meio de treinamento formal. Mais
do que apenas identificar esses eixos, foi possível perceber como os sucessores
pesquisados vivenciam e sentem esse processo, que começa na infância e perpassa
a vida adulta dos indivíduos. Os casos apresentaram processos idiossincráticos
de construção da legitimidade, uma vez que as dimensões identificadas
apareceram de forma absolutamente particular em cada um deles, mas a análise
conjunta dos depoimentos revela elementos comuns a todos eles.
Estudos baseados na percepção do indivíduo, como o que foi realizado por esta
pesquisa, conduzem a dilemas metodológicos complexos. Maior aprofundamento nos
relatos levaria a realizar histórias de vida ou ainda casos clínicos, com a
utilização de técnicas psicanalíticas para identificação dos elementos
inconscientes que certamente influenciam suas escolhas pessoais e
profissionais. Embora atrativa, essa alternativa não apenas demanda formação
específica, mas também pode levar a um afastamento dos objetos de pesquisa
tradicionalmente associados à ciência administrativa.
A busca por extrair elementos comuns dos depoimentos para subsidiar a
compreensão acerca do que torna um processo de sucessão bem-sucedido, embora
inegavelmente útil para a gestão, não é o argumento que justificaria a
continuidade desta pesquisa. Assim, o desafio que encerram pesquisas dessa
natureza seria exatamente o de constituir um sujeito - não necessariamente no
campo psicanalítico - mas um sujeito organizacional, cujas percepções e
interpretações repercutem na forma de perceber, interpretar e conduzir a
organização. O próprio processo de reflexão desses indivíduos, ao relatarem sua
trajetória, pode contribuir para um melhor entendimento da intrincada rede de
relações que os gestores têm de enfrentar. No caso das empresas familiares, à
rede usual do negócio soma-se também a rede familiar, que traz consigo um
enorme complicador no campo do afeto e das relações. Embora de forma ainda
incipiente, nesta pesquisa buscou-se contribuir para ampliar a compreensão de
um fenômeno localizado no limiar entre o indivíduo e a organização, campo que
requer ainda grande esforço teórico e metodológico dos pesquisadores da área.