Contrapontos da história da hanseníase no Brasil: cenários de estigma e
confinamento
Vi alguns pacientes que estavam doentes há dez e doze anos, já medonhamente
desfigurados, mas suportavam [a moléstia] alegremente. Parece que, de fato, um
espírito cheio de esperança, e uma vida livre e generosa, foram os meios de
retardar os efeitos da moléstia; mas não sei de ninguém que se tivesse curado.
(Henry Walter Bates, The naturalist on the River Amazon, 1863)
Conhecida há séculos como uma moléstia que caminha lentamente, com alterações
morfológicas e fisiológicas, até hoje a hanseníase desafia conceitos e
convicções sobre tratamento e propagação. A doença passou a fazer parte da
dramaturgia do sofrimento humano desde a Antigüidade, mas sua identidade
etiológica remonta apenas ao final do século XIX, quando o médico norueguês
Gerhard Henrik Armauer Hansen, ao analisar material de lesões cutâneas,
descobriu a Mycobacterium leprae, bacilo causador da doença e que pertence ao
mesmo gênero do bacilo que ocasiona a tuberculose. A falta de conhecimentos
clínico-imunológicos ensejou, antes da descoberta, hipóteses que apontavam o
caráter hereditário da hanseníase. Em inícios do século XX, começou a ser vista
como uma "enfermidade" merecedora de atenção médico-social, de acumulação de
conhecimentos científicos e de medidas de contenção. Mas os aspectos
cognitivos, preventivos e terapêuticos representaram, como poucas enfermidades
daquela época, um terreno movediço e sujeito a profundas controvérsias.
Hoje, o estudioso não deverá surpreender-se ao constatar que, a despeito de a
descoberta de Hansen remontar a 1873, a lepra não constou, por muito tempo, das
relações de doenças de notificação compulsória no Brasil.
O presente trabalho focaliza, inicialmente, o surgimento da hanseníase no
cenário do Brasil republicano. Este é nosso primeiro marco temporal. Na jovem
República, as disposições normativas revelavam a hanseníase como um "problema
de saúde pública", mas havia certa ambigüidade nas classificações e prescrições
legais. A enfermidade não constou como doença de notificação compulsória desde
cedo, em vista das dificuldades do diagnóstico clínico precoce, isto é, da
verificação da doença em sua fase inicial. Como se sabe, a enfermidade
apresenta características fisiopatológicas cujas expressões clínicas enredavam
os médicos daquele tempo, a saber: a) uma parte dos indivíduos tem resistência
imunológica ao agente etiológico e outros não, daí derivando modalidades de
apresentação clínica e repercussões médico-sanitárias distintas; b) por essas
razões, durante séculos "leproso" era não só o indivíduo hoje considerado
"hanseniano", mas todos os casos clínicos em que se revelassem manifestações
cutâneas ao longo da evolução de uma enfermidade.
A segregação de todos tinha implicações perversas: enfermos com hanseníase
passavam a conviver com indivíduos portadores de outras enfermidades, os quais,
ao cabo e ao fim, adquiriam a hanseníase e vice-versa.
A favor da hipótese da dificuldade de diagnóstico clínico apontam os termos
utilizados ao se introduzir a lepra como doença de notificação compulsória
("lepra ulcerada"), que constam das Instruções para o Serviço de Higiene de
Defesa da Capital da República, de 18/09/1902, e que regulamentavam o Decreto
nº. 4.464, de 12/07/1902, na gestão do médico Nuno de Andrade. O instrumento
normativo acrescentava, então, a enfermidade "ulcerada" à notificação
obrigatória da varíola, difteria, tifo, febre tifóide, tuberculose "aberta" e
das chamadas enfermidades "pestilenciais" (febre amarela, peste e cólera, como
regra) (BRASIL, 1902). Mais tarde, sob a inspiração de Oswaldo Cruz, que
assumira a Diretoria Geral de Saúde Pública, em 23 de março de 1903, o Código
Sanitário dava "novo Regulamento aos Serviços Sanitários a cargo da União", por
meio do Decreto nº. 5.156, de 8 de março de 1904 (BRASIL, 1904). As disposições
mantinham a lepra no elenco de doenças de notificação compulsória, mas
acrescentavam algumas outras, entre elas o impaludismo e infecções de caráter
nosocomial, como a infecção puerperal nas maternidades. Note-se que não se
tratava, apenas, da "defesa sanitária" da capital da República; agora eram
incluídos os serviços sanitários a cargo da União, que abrangiam a defesa de
todos os portos nacionais - por certo, normas com pouca eficácia fora do Rio de
Janeiro e das principais capitais do país.
A criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), em janeiro de 1920,
tendo à frente Carlos Chagas, reforçava os rumos de crescente ação pública na
área de saúde, com a adoção dos programas de profilaxia rural em vários estados
de responsabilidade federal, a disseminação de postos e centros de saúde
urbanos e a superação de uma visão emergencial ou localizada. A presença
crescente do Estado Nacional nas políticas de saúde culminou, nos anos 40, já
em pleno Estado Novo, na criação ou reorganização de vários serviços nacionais,
entre os quais, a programação de um Serviço Nacional da Lepra. Este período, ao
demarcar o início de um efetivo processo de ordenamento burocrático do setor de
combate à hanseníase, representa o segundo marco temporal, que encerra o
presente estudo.
Tempos de institucionalização
Os tempos do cientista e sanitarista Carlos Chagas marcaram a suplantação das
doutrinas e práticas de "polícia" sanitária. Todavia, era inevitável que
espaços de ação médico-policial se mantivessem em relação a moléstias para as
quais o próprio conhecimento sobre a disseminação era escasso e controvertido.
Era este, seguramente, o caso da lepra, objeto de atenção das autoridades
sanitárias - ou talvez mesmo de alerta máximo -, diante da pandemia que
grassava em vários estados. O sistema adotado baseava-se em três elementos:
notificação obrigatória; exame periódico dos comunicantes; e isolamento em
colônias agrícolas, asilos, hospitais ou no próprio domicílio do doente. O
isolamento no domicílio era aceito pela autoridade sanitária, desde que não
oferecesse grandes riscos de contágio. O doente e seus familiares eram, no
entanto, mantidos sob rigorosa vigilância e submetiam-se a exames periódicos.
A notificação compulsória da hanseníase foi reafirmada, em 1923, pelo Decreto
n. 16.300, de 31 de dezembro, artigo 445, inciso X, do Regulamento do
Departamento Nacional de Saúde Pública. Essa legislação tornava obrigatória a
notificação de outras doenças, além do mal de Hansen, tais como febre amarela,
peste, cólera, tifo, varíola, alastrim, tuberculose, tracoma, leishmaniose e
impaludismo. O artigo 446 do Regulamento especificava:
Incumbe fazer a notificação: a) ao médico assistente ou conferente,
e, em sua falta, ao chefe da família ou parente mais próximo que
residir com o doente ou suspeito, ao enfermeiro ou pessoa que o
acompanhe; b) nas casas de habitação coletiva, aos que as dirigirem
ou por elas responderem, ainda que a notificação já tenha sido feita
pelo médico, ou outra pessoa; c) ao que tiver a seu cargo a direção
de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, colégio,
escola, asilo, casa de saúde ou hospital, creche, maternidade,
dispensário, policlínica ou estabelecimentos congêneres onde estiver
o doente ou suspeito. Nos casos de lepra a notificação incumbe também
ao próprio doente.
Os artigos 447 e 448 previam punições severas para médicos que não cumprissem
as disposições contidas no artigo precedente. De acordo com o artigo 447, o
médico que infringisse as disposições seria declarado suspeito pelo
Departamento Nacional de Saúde Pública, sendo todos os doentes por ele
visitados sujeitos à verificação por parte da autoridade sanitária. O artigo
448 previa multa de 100$ a 500$, dobrada nas reincidências, aos que deixassem
de fazer as notificações exigidas pelo regulamento (BRASIL, 1923).
Era freqüente, até as primeiras décadas do Brasil republicano, o cenário de
famílias inteiras de leprosos, como ciganos errantes por estradas e cidades,
sobrevivendo ao descaso das autoridades sanitárias diante da exclusão e do
estigma. As questões da nacionalidade, às quais se associavam o "problema da
raça" e o "melhoramento eugênico", passaram a demandar a eliminação da mancha
da hanseníase no Brasil republicano. Após o descaso sobreveio a punição
institucional: além do estigma, os doentes ressurgiram então como corpos
policiados, vítimas de políticas de institucionalização quase sempre cruéis.
"Asilar" era, no entanto, um verbo que abrigava certa polissemia. A crueldade
não era uma constante. As colônias agrícolas, em alguns estados, revelavam uma
concepção de organização social de "vida em comunidade" que, para muitos
internos, seria impossível no mundo que a própria medicina ajudara a
transfigurar, reforçando as concepções do normal e do patológico. No Brasil,
alguns estados destacavam-se nas estatísticas de casos mórbidos (São Paulo e
Minas Gerais, no Sudeste, e os estados da Amazônia); um deles - o Maranhão -
cedo ocupou a atenção de sanitaristas, pesquisadores e autoridades da saúde.
Em meados da década de 20, havia uma pandemia de hanseníase não só no Maranhão,
mas em vários estados brasileiros. As estatísticas da época, por certo
estimativas grosseiras e subestimadas, apontavam aproximadamente 15 mil
hansenianos em todo o país, sendo 90% pobres ou miseráveis. São Paulo,
possivelmente com menor proporção de casos não-notificados, apresentava 4.500
leprosos, Minas Gerais cerca de 500; no Norte, o Pará listava 2.500
notificações, Amazonas registrava 800 e o Maranhão, cerca de 600 (MAGALHÃES;
ROJAS, 2005). Como se verá adiante, medidas sanitárias foram adotadas, pelos
governos federal e estaduais, tais como: criação de preventórios para as
crianças que hoje se chamariam "de risco"; isolamento compulsório dos doentes
em leprosários (classificados em colônia agrícola, hospital, asilo e sanatório)
ou no próprio domicilio; notificação obrigatória, já referida; e exame
periódico dos comunicantes (SILVA ARAÚJO, 1927, p. 195-253).
A hanseníase gerou uma preocupação pela saúde pública e se tornou uma área
importante da atuação do Estado. Em virtude do forte impacto público da doença,
ou, por outra, por sua dramaticidade e pelo indesejado "conteúdo simbólico",
academias de medicina e centros de pesquisa engajaram-se no debate sobre as
medidas necessárias de prevenção e controle. A hanseníase, assim, somava-se à
ancilostomíase, à febre amarela, à tuberculose e à malária, como uma ameaça a
mais à civilização, à raça e à nação (CASTRO SANTOS, 1985, p. 193-209; LIMA;
HOCHMAN, 1996, p. 23-40; HOCHMAN, 1998).
Todavia, não constituía uma ameaça, digamos, "brasileira", pois incomodava as
elites e as autoridades sanitárias em toda a América Latina. Trinta anos depois
das "pandemias" brasileiras, a tomada de consciência sanitária em relação à
lepra se disseminou por todo o continente. Diários de motocicleta, filme
dirigido por Walter Salles, inspirado nos diários do jovem Ernesto Guevara,
durante sua primeira viagem pela América Latina, mostra como a lepra era
estigmatizada em toda parte e como era forte a defesa do isolamento compulsório
pelo saber médico da época. Prestes a se formar em Medicina, Guevara decide
cruzar a América Latina, ao lado do amigo bioquímico Alberto Granado. Uma cena
importante de Diários de motocicletase passa num leprosário, em San Pablo, na
Amazônia peruana, em junho de 1952. Após quase duas semanas na colônia, Che
descreve os momentos da despedida:
Um grupo de pacientes da colônia veio até a sede, para uma festa de
despedida para nós dois. [...] Diversos deles nos deram adeus com
lágrimas nos olhos. Seu apreço veio do fato de que nós não usamos
sobretudos ou luvas, de que apertamos suas mãos [...], sentamos ao
seu lado, conversamos sobre assuntos variados e jogamos futebol com
eles. [...] O benefício psicológico de essas pobres pessoas [...]
serem vistas como seres humanos normais é incalculável, e o risco de
ser contaminado, incrivelmente remoto (GUEVARA, 2001, p.160 e 166).
A colônia rural, habitada pelas vítimas da hanseníase, pode ser vista como
símbolo da segregação na América Latina. Obregón mostra que, na Colômbia, até
início dos anos 50, nenhuma doença foi tão estigmatizada. A imagem da
hanseníase estava profundamente arraigada à cultura colombiana. Mas não era o
único problema de saúde que as autoridades sanitárias teriam que enfrentar no
país. Como no Brasil, a ancilostomíase, a sífilis, a tuberculose e a malária
também acometiam com grande violência as populações pobres. Segundo a autora,
as autoridades colombianas traçaram uma estratégia geral de saúde pública, de
tal modo que o combate à hanseníase passou a fazer parte de um plano mais amplo
de saneamento. Essas doenças eram consideradas um retrato de um país enfermo e
um entrave ao processo de modernização do país. Também como tantas outras
doenças infecciosas, acreditava-se que a hanseníase havia penetrado no país com
a imigração européia e com os negros africanos. As autoridades médicas
procuravam seguir um plano geral de controle e preconizavam a destinação de
recursos não somente para campanhas de combate à lepra, mas também à
ancilostomíase, à malária e à tuberculose (OBREGÓN, 1996 e 2003).
O isolamento compulsório dividia a opinião médica. Para muitos, era ineficaz
como método de prevenção e tratamento. No Brasil, desde os tempos da monarquia,
eram abundantes os relatórios e documentos que ilustravam a situação deplorável
a qual estavam submetidos os doentes nos hospitais, leprosários e dispensários,
em vários estados brasileiros. Como no Hospital de Lázaros, em São Cristóvão,
na capital federal, médicos descreviam as péssimas instalações, o sofrimento
dos pacientes, os tratamentos ineficazes (SANTOS, 2003, p. 419). Desde 1828,
neste hospital, denunciavam-se os maus tratos aos pacientes (SANTOS, 2003, p.
416). Em São Paulo, as péssimas condições do Hospital dos Lázaros levavam o
presidente da província, já no Segundo Reinado, a conclamar: "fechai aquele
sepulcro ou abri as portas de um hospital regular, indo em auxílio da caridosa
irmandade [...] que o tem a seu cargo" (EGAS, 1926, p. 302). Na Santa Casa de
Misericórdia de São João Del Rei, entre 1879 e 1880, as instalações destinadas
aos lázaros "se localizavam no fundo do quintal da instituição" (SANTOS, 2003,
p. 416). No decorrer do período republicano, ao mesmo tempo em que se firmavam
as propostas da corrente segregacionista, as instâncias de práticas
institucionais disciplinares e inumanas se multiplicavam em vários estados,
como se verá na discussão do "modelo" paulista, mais à frente.
Mas havia os que defendiam o aprimoramento e humanização desse tipo de prática,
em instituições isoladas do mundo urbano; havia os que postulavam a construção
de modernos hospitais para leprosos em áreas urbanas e escolas para crianças
portadoras. Pesquisas epidemiológicas e bacteriológicas enfatizavam a
importância dos vários tratamentos para diversos tipos da doença. Mesmo quando
se propunha o controle da hanseníase através da segregação, defendia-se a
necessidade de novas terapias.
De todo modo, não foram tranqüilos os caminhos percorridos em busca de
alternativas de tratamento para uma doença caracterizada por forte estigma e
preconceitos (OBREGÓN, 1996, p.159-178). De maneira geral, a medicina latino-
americana debatia a enfermidade em seus aspectos sociais (ainda que não
focalizasse seus determinantes); da mesma forma, caracterizava como
"enfermidades sociais" a sífilis, a loucura, a tuberculose, cujas conseqüências
mais evidentes eram e degeneração física e moral do indivíduo. Neste sentido,
médicos e higienistas passaram a utilizar argumentos científicos da época -
dosados por fortes conotações raciais -, diante dos comportamentos e hábitos da
população pobre latino-americana. Essas enfermidades sociais, de certo modo
mais ainda do que as populações pobres, representavam grandes entraves à
modernização.
No período estudado, o empenho de médicos, sanitaristas e higienistas no
combate às enfermidades sociais, entre as quais se destacava a lepra, mostra a
construção de uma concepção de atenção à saúde, que ficou conhecida como
"higienista". Esta proposta tornou-se importante nos países da América Latina,
apontando para iniciativas públicas na área social. Mais do que isto, o debate
em torno de questões como raça, miscigenação e cultura gerou um ambiente
propício a alguns movimentos reformistas. A saúde passou a ser vista como uma
questão nacional, com desafios que os movimentos de mudança procuraram
enfrentar (FARIA; PAIVA, 2007, p. 203-218).
Como a doença se manifesta?
Retomemos alguns aspectos sublinhados na introdução. Doença infectocontagiosa
de notificação compulsória, a hanseníase também é conhecida como morféia, tem
caráter crônico e afeta a humanidade desde eras remotas. O contágio é
relativamente difícil, pelo contato íntimo e prolongado com pessoas infectadas
- pelas vias aéreas ou pelo contato direto com ferimentos. O maior número de
casos encontra-se nos países tropicais e subtropicais - Índia (75% dos casos
mundiais), Nepal, Brasil, Sudão, Moçambique, Madagascar e Angola. Segundo
Magalhães e Rojas, na atualidade não resta dúvida de que a distribuição da
lepra está mais concentrada nesses países e associa-se fortemente a condições
sociais e higiênico-sanitárias desfavoráveis. Nas palavras das autoras, "a
relação entre pobreza e lepra ratifica o papel da deterioração social em sua
produção, não obstante em alguns países considerados hiperendêmicos, estudos
detalhados em áreas muito pobres terem encontrado prevalências muito baixas, o
que sugere a existência de condições que não propiciaram a entrada ou
sobrevivência do agente patogênico" (MAGALHÃES; ROJAS, 2005, p. 2-3). Tudo
indica que a existência de fatores de ordem biológica ou de fatores não
diretamente "sociais" deve ser considerada e estudada.
A doença atinge a pele e o sistema nervoso periférico, apresentando duas formas
principais: a hanseníase cutânea e a hanseníase nervosa. A primeira é menos
grave, com manchas na pele e progressiva perda de sensibilidade cutânea. Na
outra forma, conhecida como lepromatosa, aparecem nódulos, os nervos se
transformam em cordões nodosos e sobrevêm fortes dores, insensibilidade e
deformidade. Finalmente, o bacilo ataca os tecidos, consumindo as mãos, os pés,
o nariz, os olhos. O período de incubação é, em geral, prolongado - de dois a
cinco anos entre o contágio e o aparecimento dos primeiros sintomas. Manchas
cutâneas de diferentes tipos e em pontos diversos do organismo, insensíveis ao
calor, constituem um sinal da infecção (CRM-SP, 2006).
Eidt (2004, p. 77) sustenta uma posição polêmica: "se o Mycobacterium
lepraeacometesse somente a pele, a hanseníase não teria a importância que tem
em saúde pública" . Do ponto de vista antropológico, a existência de
preconceitos de "marca", em sociedades latino-americanas, dificilmente
corroboraria tal afirmação, tomada de modo absoluto. No entanto, é inegável que
a cons- tituição da enfermidade como problema de saúde pública deveu-se também
ao acometimento do sistema nervoso periférico, de modo a se traduzir em
incapacidades físicas permanentes (EIDT, 2004, p. 76-88).
Na forma cutânea, o bacilo se multiplica de maneira rápida. A mão em forma de
garra é assinalada nas descrições da patologia, assim como as lesões ósseas e
articulares, as mutilações pela destruição e a perda de parte ou totalidade dos
dedos. São freqüentes, ainda, a úlcera da sola do pé e a atrofia dos músculos
da face. Na hanseníase nervosa, os nervos são atacados, sendo muito importante
para o diagnóstico a nevrite cubital, que acomete pessoas com alta resistência
ao bacilo; as lesões são poucas, com ausência de sensibilidade.
Na história da hanseníase era comum entre os portadores acreditarem que haviam
contraído a doença apenas quando esta se manifestava na sua forma cutânea, mais
adiantada, "que transforma, que transfigura, que aniquila a fisionomia
individual. Freqüentemente, diz um estudioso, a população nega e descrê da
moléstia quando se manifesta sob a forma nervosa" (MENDONÇA, 1923, p. 19).
A atuação do Departamento Nacional de Saúde Pública e a criação de uma
legislação sanitária
Desde 1920, o Departamento Nacional de Saúde Pública, no âmbito do Ministério
da Justiça e Negócios Interiores, abrigava uma Inspetoria de Profilaxia da
Lepra, das Doenças Venéreas e do Câncer, primeiro órgão federal destinado à
campanha contra a hanseníase no país. Era uma peça-chave da reforma
institucional empreendida por Chagas. A Inspetoria nos estados atuava por meio
da antiga Diretoria de Saneamento Rural, em cooperação com os governos
estaduais. As atribuições do novo Departamento permitiram que várias regiões
mais pobres pudessem contar com apoio federal para evitar a expansão da doença.
Ainda que marcado por limitações institucionais e financeiras, o DNSP
sinalizava uma "inflexão" nas ações da esfera pública, pois, até então, nenhuma
ação de governo fora tomada para combater a difusão da hanseníase no território
nacional. Existiam, na capital e em alguns estados, hospitais para leprosos,
mantidos por associações privadas ou pelos governos estaduais, mas não havia
uma legislação sanitária visando a profilaxia da doença. No Distrito Federal,
os serviços eram diretamente executados pela Inspetoria. Nos estados, dada a
organização política do país, a execução era feita mediante acordo com os
respectivos governos, que, segundo Oscar da Silva Araújo (inspetor de
Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas), "deveriam respeitar e fazer
cumprir, dentro de seu território, a legislação sanitária federal" (SILVA
ARAÚJO, 1927, p. 196).
Em função do alto custo para detecção e tratamento dos doentes, a hanseníase
assumiu uma feição de política "federal", uma questão de saúde pública diante
da qual o poder central deveria organizar uma estrutura de prevenção e
tratamento. A Reforma Carlos Chagas incluía entre suas propostas:
estabelecimento de estatísticas mais precisas sobre os óbitos de lepra;
providências sanitárias nos domicílios onde houvesse óbito por lepra; criação
de leprosários e dispensários; e organização de campanhas de educação sanitária
(BRASIL, 1923).
O Regulamento Sanitário - Legislação Sanitária
O Regulamento Sanitário teve origem na Legislação Federal que criou o
Departamento Nacional de Saúde Pública, em setembro de 1920. Foi o sifilógrafo
Eduardo Rabelo, nomeado diretor geral da nova Inspetoria de Profilaxia da Lepra
e das Doenças Venéreas, quem elaborou a primeira legislação brasileira que
tratava especificamente dessas enfermidades (CARRARA, 1996). No exame da
evolução histórica da legislação, feito anteriormente, já nos referimos às
disposições normativas sobre aquelas doenças.
Um estudo pioneiro, no Brasil, indicava o mérito da reforma Carlos Chagas, por
abranger parcelas cada vez maiores da população, mas, ao mesmo tempo,
sustentava que se tratava de uma política autoritária. Esse autoritarismo, na
verdade, dizia respeito às disposições sobre o controle da lepra contidas no
Regulamento elaborado por Eduardo Rabelo, que facultava a requisição de força
policial para obrigar os suspeitos ao exame e ao isolamento compulsório
(SINGER; CAMPOS; OLIVEIRA, 1978). No entanto, a análise histórica, a nosso ver,
não deveria negligenciar o estágio rudimentar do conhecimento científico sobre
a moléstia naquele momento. Não era outra a política nem eram outras as
limitações, fora do Brasil.
O Regulamento prescrevia, em resumo, as seguintes medidas relativas à moléstia:
a) notificação obrigatória; b) levantamento do censo de leprosos; c)
isolamento obrigatório em domicílio, colônias agrícolas, sanatórios,
hospitais ou asilos; d) vigilância sanitária dos doentes isolados em
domicílio; e) vigilância sanitária dos suspeitos; f) vigilância
sanitária preventiva dos comunicantes; g) assistência pecuniária aos
leprosos isolados ou às suas famílias; h) proibição do exercício, por
leprosos, de ofícios ou profissões [...] perigosos à coletividade; i)
proibição da entrada no território nacional de estrangeiros leprosos;
j) proibição da amamentação natural pelas mulheres leprosas; [...];
m) segregação imediata dos filhos nascidos de pais leprosos; [...];
q) educação higiênica popular no sentido de tornar conhecidas as
condições de contágio da doença (SILVA ARAÚJO, 1927, p. 198-199).
Primeiras ações institucionais
As primeiras colônias agrícolas foram instaladas nas áreas dos grandes focos ao
norte e ao sul do país. No Estado do Pará, em 1923, segundo o sifilógrafo Oscar
da Silva Araújo - ou em junho de 1924, segundo estudo recente -, foi inaugurada
a primeira colônia agrícola para leprosos no Brasil, chamada Lazarópolis do
Prata, a 150 km da capital (SILVA ARAÚJO, 1927, p. 206; SANTOS, 2003, p. 425).
Nesta mesma época, foi iniciada a construção de um hospital de isolamento no
Maranhão, com verbas previstas pelo governo federal. Mas, durante anos, a obra
ficou paralisada em virtude da falta dos recursos federais (SILVA ARAÚJO, 1927,
p. 195-253).
A capital federal não foi a primeira a acolher os doentes em "leprosarias"
porque as autoridades temiam, segundo Oscar da Silva Araújo (1927, p. 207), que
houvesse uma demanda incontida por parte dos estados vizinhos, com
hospitalização inadequada. Não obstante, afirmava o estudioso, "ainda hoje [em
1927] se verifica que 50% dos doentes existentes no Distrito Federal, [no
Hospital dos Lázaros e no Hospital São Sebastião], não são aqui domiciliados"
(SILVA ARAÚJO, 1927, p. 207). Não haveria como retardar a iniciativa por muito
tempo: em 1928 foi inaugurado o Hospital Colônia de Curupaiti, no bairro de
Jacarepaguá (SANTOS, 2003, p. 423). O DNSP planejou a construção de uma grande
colônia agrícola no Pará e duas outras em Minas Gerais. Em São Paulo, o próprio
governo estadual já vinha providenciando a construção de uma colônia em Santo
Ângelo.
No início de suas atividades, o DNSP firmou acordo com 18 estados, com exceção
de São Paulo, para trabalhos de saneamento rural e de combate à lepra e doenças
venéreas. Ocupava a Presidência da República Artur Bernardes. As diretrizes de
seu governo, no tocante à organização da saúde pública, se explicitaram em
mensagem apresentada ao Congresso Nacional, em 03 de maio de 1923.
Os serviços sanitários, entre nós, foram organizados sob o critério
fundamental de centralização, a fim de atender a condições especiais
do País, concernentes à difusão e intensidade das endemias rurais e à
deficiente capacidade técnica ou financeira de algumas unidades da
federação, sem meios para assumirem a responsabilidade integral do
saneamento de seus territórios (BERNARDES, 1923).
À União cabia administrar, organizar e financiar metade das despesas dos
serviços de profilaxia rural e de programas de educação nos estados
brasileiros. Além da profilaxia das doenças rurais, cabia à União a
responsabilidade pela assistência hospitalar às pessoas infectadas pelas
endemias.
As primeiras medidas sanitárias incluíram: realização de censos em todos os
estados; registro dos doentes; estabelecimento de um regime de vigilância
sanitária para os leprosos que permanecessem em domicílio; aplicação do óleo de
chalmugra (na época a planta era conhecida como chaulmoogra); e construção de
colônias agrícolas (SILVA ARAÚJO, 1927). Naquele momento, o tratamento era o
recurso mais empregado na campanha anti-hanseniana. Para o DNSP, o tratamento
se combinava à profilaxia preventiva, pois esta visava evitar a reclusão ou o
isolamento obrigatório. O tratamento precoce evitaria tanto a progressão da
doença quanto o contágio.
Além do desempenho de funções previstas no Regulamento da Legislação Sanitária,
a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas já constituía um
importante centro de estudos e pesquisas, em cujos laboratórios buscavam-se
criar medicamentos destinados ao tratamento da doença. Em 1923, a Inspetoria
criou o Serviço de Visitadoras. Um curso intensivo de seis meses sobre doenças
venéreas e lepra foi organizado para formação e orientação de um grupo de
senhoras, que posteriormente foram substituídas por enfermeiras regularmente
diplomadas. As visitadoras ficaram encarregadas de levar à população carente
noções e conceitos de higiene (SILVA ARAÚJO, 1927, p.211; BARROS BARRETO, 1942,
p.169-215).
A propagação da moléstia levou o Departamento Nacional de Saúde Pública a
realizar, na capital do país, a Primeira Conferência Americana da Lepra, em
1922, de cuja organização ficou encarregada a Inspetoria. Participaram
delegados de quase todos os países americanos e de alguns países europeus. Essa
Conferência significava uma nova área de atuação e, sobretudo, de estímulo ao
intercâmbio e ao associativismo profissional na América Latina e em outros
continentes. A Conferência reuniu médicos, sanitaristas, intelectuais e
autoridades sanitárias, para debaterem as estatísticas e os modos de
diagnóstico e prognóstico da doença.
O debate sobre a qualidade das estatísticas, como já referido, era um elemento
crucial para as políticas sanitárias, dada a inexistência de dados seguros
sobre a trajetória da hanseníase em inúmeros estados brasileiros. Os arquivos
de higiene traziam ligeiras referências sobre a penetração da enfermidade, sua
expansão e o número de pessoas afetadas (MENDONÇA, 1923).
Como já salientado, não raro se associa a figura de Carlos Chagas à preferência
por medidas impositivas, voltadas à exclusão e reclusão dos hansenianos. A
nosso ver, este é um julgamento cediço. Na reforma de Chagas, a preocupação com
a prevenção e a educação foi um aspecto fundamental. O Regulamento do DNSP, de
31 de dezembro de 1923, enfatizava a importância de uma campanha de propaganda
e educação higiênica e o tratamento profilático dos doentes em dispensários ou
hospitais. Nos artigos 108 e 109 do Regulamento especificavam-se as normas de
divulgação da propaganda sanitária. Ao Serviço de Propaganda e Educação
Sanitária competia promover ampla divulgação das noções de higiene pessoal e
pública. O Serviço ficaria encarregado da organização de folhetos e cartazes e
da publicação de um pequeno jornal ilustrado, destinado à educação popular.
Caberia ainda a publicação periódica de um ou mais boletins destinados a
divulgar, entre os médicos e profissionais de saúde publica, os recentes
progressos da cultura sanitária especializada. O artigo 173 do Regulamento
indicava a extensão das atribuições que cabiam à Inspetoria:
a Inspetoria de Profilaxia da Lepra promoverá larga propaganda de
educação higiênica popular no sentido de tornar conhecidas as
condições de contágio da doença, o perigo do charlatanismo médico e
farmacêutico a ela referentes e os meios de prevenção aconselhados
(BRASIL, 1923).
Segundo Sérgio Carrara (1996, p. 218-220), a base da profilaxia proposta pelo
Regulamento Sanitário assentava-se sobre dois pilares: uma ampla campanha de
propaganda e educação higiênica (individual e coletiva) e o tratamento
profilático dos doentes (o mais generalizado possível) em dispensários e
hospitais especializados. Ou seja, visava, de um lado, impedir o contágio
através do diagnóstico precoce e tratamento do doente e, de outro, proteger os
indivíduos sadios, esclarecendo-os quanto aos modos de transmissão conhecidos
na época e alertando-os para os primeiros sintomas ou sinais. Daí a ênfase na
junção da propaganda à educação higiênica. O controle dos graves problemas
sanitários exigia a ação educativa e a adoção, pela população, de medidas
preventivas de cuidado com o corpo e com o meio ambiente (FARIA, 2007).
Na área da profilaxia, a educação sanitária e a propaganda higiênica,
conduzidas nos dispensários, leprosários, asilos e hospitais por meio de
cartazes, folhetos e artigos nos jornais e exposições, foram instrumentos
poderosos. O combate não apenas à hanseníase, mas também às doenças venéreas,
ao câncer e à sífilis incluía aspectos de educação sanitária.
A proposta de prevenção pela educação popular sofreu forte influência dos
padrões e métodos de trabalho dos higienistas norte-americanos, que se
difundiram no Brasil no mesmo tempo de sua expansão por alguns países do
continente europeu. Na França, desde 1917, os pesquisadores e sanitaristas da
Fundação Rockefeller estabeleceram parcerias para a operação do Comité National
de Défense contre la Tuberculose (MURARD; ZYLBERMAN, 1987, p. 257-281). Sob
este ângulo, a atuação da Fundação Rockefeller no Brasil foi emblemática. Ainda
que não tivesse atuado no campo da hanseníase, ao aqui chegar, em 1916, a
Fundação Rockefeller reforçou, no país, uma concepção de saúde pública baseada
na profilaxia de doenças infecciosas e estimulou novos padrões de educação
sanitária e de formação de profissionais de saúde pública (FARIA, 2007).
O "exemplo paulista" e uma política maranhense de profilaxia
As discussões em torno de uma política profilática centrada na exclusão
compulsória dos portadores da hanseníase eram antigas. A Primeira Conferência
Internacional da Lepra, ocorrida em Berlim, em 1897, foi palco dessas lutas, no
que diz respeito tanto à produção de conhecimentos sobre a doença quanto ao
direcionamento das políticas de saúde que possibilitaram a implantação, em
alguns países, de uma política baseada na segregação. Numa época em que não
havia medicamentos realmente eficazes e não se conheciam com segurança os modos
de transmissão da doença, Hansen propôs o isolamento como medida necessária.
Para os partidários desse esquema segregacionista, o combate à lepra só seria
possível através do isolamento dos leprosos em suas colônias (PANDYA, 2003, p.
161-177; MACIEL, 2004, p. 110).
No Brasil, dadas as discordâncias quanto aos melhores meios de ação, não é de
se estranhar que até a década de 20, quando foi criado o DNSP, as iniciativas
relativas ao combate à hanseníase e às doenças venéreas tenham sido incipientes
e raras. São Paulo representava uma referência neste aspecto. Para Monteiro
(1987, p.1-7; 2003, p.95-121), as políticas de saúde implantadas no Brasil, no
início do século XX, no tocante à doença de Hansen, foram fortemente
influenciadas pelo "modelo" adotado em São Paulo, que previa, entre outros
pontos, o isolamento compulsório de todos os portadores de hanseníase em
colônias agrícolas. Mesmo aqueles que não possuíam a forma contagiosa da doença
eram obrigados ao internamento. Segundo a autora, "o que nós chamamos de
'modelo paulista' serviu como fonte de inspiração e, em maior ou menor
extensão, determinou uma política de profilaxia para a doença em vários estados
brasileiros" (MONTEIRO, 2003, p.97). Enquanto o isolamento era uma prática
alternativa em alguns estados brasileiros - alternativa essa defendida por uma
parte dos médicos presentes nos congressos nacionais e internacionais sobre
lepra -, em São Paulo era uma medida compulsória para todos os indivíduos
diagnosticados com a doença.
É importante frisar que na Primeira Conferência Americana da Lepra, reunida em
outubro de 1922, no Rio de Janeiro, foram firmadas algumas medidas de defesa ou
de proteção aos leprosos que não visavam o isolamento compulsório em colônias.
Segundo Maciel (2004, p. 116), "São Paulo e Minas Gerais eram dos poucos
estados que aplicavam a política de isolamento compulsório com rigor, inclusive
com casos de denúncia, como forma de controlar a doença".
Do ponto de vista das redes de relações sociais, as autoridades pareciam não
temer dissolvê-las ou fragilizá-las, quando exigiam o internamento de um
doente. Não se dava importância, segundo a autora, à manutenção dos laços
familiares. O impacto, ao longo de toda uma vida, sobre a autoestima dos
internados e a criação de uma ou mais gerações de estigmatizados não se
colocavam como desafios importantes de saúde pública. A história dramática de
um hanseniano, nascido em Minas Gerais e internado aos 16 anos, em 1934, é
reproduzida, de modo exemplar, a partir de depoimento colhido em 2002 (MACIEL,
2004). O objetivo da internação e do isolamento compulsórios era evitar a
propagação da doença a qualquer custo.
Por outro lado, não há como negar o recurso a procedimentos menos desumanos,
por muitos defensores de colônias agrícolas; falava-se em cotidiano saudável,
em ambiente campestre, em certa comunhão solidária entre os internados. Do sul
ao norte, prevalecia uma proposta de pequena comunidade urbano-rural, para os
hospitaiscolônias de confinamento. A exemplo do Hospital Colônia de Itapuã, em
Viamão, fundado em 1940, no Rio Grande do Sul, os internos, envolvidos na
estrutura administrativa das colônias, assumiam funções que dificilmente eles
poderiam ocupar entre os "normais" (MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA DO RIO GRANDE
DO SUL, 2007). A visão do médico maranhense Sálvio de Mendonça, que será
apresentada mais adiante, ilustra bem essa postura até certo ponto idílica,
sobre a organização social das colônias e a vida autônoma dos internos.
Em São Paulo, a defesa do isolamento gerou conflitos e discussões científicas,
institucionais e profissionais. Segundo seu contemporâneo Vital Brazil, Emílio
Ribas, à frente do Serviço Sanitário paulista, conseguiu "impulsionar o
movimento social em favor dos leprosos" (VITAL BRAZIL, 1933, p. 5). Ribas
defendia o isolamento dos leprosos, mas era exigente quanto à boa organização e
administração dos leprosários e dispensários. Em um de seus trabalhos, assim
escrevia: "acho indispensável o isolamento; sou de parecer que essa medida só
deve ser executada, depois de feitas instalações realmente capazes de oferecer
conforto, higiene e cuidados médicos". (RIBAS apudMOURA, 1993, p. 1).
Quando Geraldo Horácio de Paula Souza - sanitarista e diretor do antigo
Instituto de Higiene de São Paulo - assumiu a direção do Serviço Sanitário, em
1922, propôs uma reformulação dos serviços de saúde. Entre outras providências,
criou, no estado, a Inspetoria de Profilaxia da Lepra. Seu primeiro diretor,
José Maria Gomes, avesso, como Paula Souza, ao isolamento hospitalar, traçou um
programa de tratamento ambulatorial da doença. Na época, foi criticado por suas
idéias. Paula Souza bateu-se pela revogação do art. 654 do Código Sanitário
paulista, que tornava compulsório o isolamento do doente de lepra quer em
domicílio, quer em hospital (MASCARENHAS, 1973, p. 446; CAMPOS, 2002, p. 105-
106; FARIA, 2007, p. 60,86).
Havia dissensões, como se disse. Em 1931, Francisco de Salles Gomes Jr. -
médico e especialista em hanseníase, do grupo opositor a Paula Souza - assumiu
a direção do Serviço Sanitário. Do ponto de vista operacional, aponta Yara
Nogueira Monteiro (1987, p. 1-7), São Paulo concentrou nas mãos do diretor do
Serviço Sanitário e do Serviço de Profilaxia da Lepra amplos poderes de decisão
e definição de políticas e programas. Ao ocupar o cargo, Salles Gomes procurou
imprimir outros rumos à organização dos serviços de combate à lepra. O formato
institucional preponderante buscava verticalizar as ações sanitárias,
separadamente por doença.
Assim, os serviços específicos seriam "o modelo" ou padrão típico de
organização sanitária, que acompanhariam, no plano estadual, os rumos da
atenção federal aos serviços da lepra, tuberculose e malária (FARIA, 2007).
Salles Gomes era um fervoroso defensor do isolamento compulsório. Houve medidas
de segregação não apenas para a lepra, mas também para tuberculose e doenças
venéreas, durante toda a década de 30 (MONTEIRO, 1987, p.1-7; 2003).
As décadas de 40 e 50 trariam novos rumos: com o avanço dos medicamentos
quimio-terápicos, as sulfonas, o controle da doença deixou de ser realizado, em
grande medida, pelo isolamento e segregação dos doentes (AVELLEIRA; NERY, 1998,
p. 2-3; EIDT, 2004, p.76-88; MACIEL, 2004). Ressurgiam, então, as propostas de
tratamento nos ambulatórios, como pregavam Paula Souza e José Maria Gomes.
É possível dizer, com base em relatórios e trabalhos científicos publicados no
Maranhão no início do século XX, que as autoridades sanitárias daquele estado
tentaram seguir o caminho adotado por São Paulo, mas com menos rigor em relação
aos doentes que supostamente apresentassem a forma contagiosa da doença. A
questão do isolamento compulsório era discutida entre médicos e autoridades
maranhenses. Os relatórios do diretor do Serviço de Saneamento e Profilaxia
Rural no Maranhão, dr. Cássio Miranda; do chefe do Serviço de Profilaxia da
Lepra e das Doenças Venéreas, dr. Sálvio Mendonça; do chefe do Posto de
Cururupu, dr. Attico Seabra; do dr. Heitor Pinto, chefe do Posto de Profilaxia
de Caxias; do dr. Hamleto Godóis, chefe do Posto da capital, defendiam, de modo
geral, a construção urgente de leprosários para confinamento dos doentes, o que
evitaria, segundo pensavam, a difusão da doença pelo estado.
Mas mesmo a política de institucionalização não atendia aos apelos do corpo
médico. Diferentemente de São Paulo, o Maranhão não possuía serviços sanitários
ou assistência médica e hospitalar sistemáticos e eficazes. No tocante ao
atendimento aos leprosos, o Hospital dos Lázaros de Gavião, na capital, a cargo
da Santa Casa, funcionava apenas como um lugar de recolhimento. Não havia
tratamento ou medicamentos necessários. Em 1923 sobre esse local escrevia o
médico Sálvio Mendonça (1923, p. 248; 253):
As medidas de profilaxia ainda não podem ser rigorosas sobre esses
doentes, pela razão de não haver leprosário para recolhimento dos
doentes ambulantes. O leproso mendigo e esfarrapado não se recolhe ao
Hospital dos Lázaros, verdadeiro cemitério de vidas, porque esse
hospital não lhes oferece conforto, nem mesmo lhes facilita a
entrada, pois não existe lotação para isso, e esse mesmo doente não
pode ser obrigado ao isolamento domiciliário, porque nem casa tem
para o fazer. [...] Os leprosos do estado fogem desse hospital,
aterrados pelas suas tradições e mesmo pelo seu estado atual.
Já em São Paulo, durante toda a década de 30, foram construídas várias colônias
para leprosos, com apoio também de particulares (MONTEIRO, 2003, p.95-121). É
importante chamar a atenção para o fato de que, em São Paulo, o número de casos
registrados, em parte devido à melhor qualidade da produção de estatísticas,
era considerado alarmante no início dos anos 20 e continuou a crescer durante a
década de 30. Essas condições por certo suscitavam o autoritarismo do governo
paulista.
A hanseníase no Maranhão: o drama na periferia da nação
Historicamente, quanto mais nos afastamos dos tempos atuais, menos confiáveis
são as estatísticas epidemiológicas. São, portanto, sempre sujeitos à revisão
os dados disponíveis para a pesquisa historiográfica. Magalhães e Rojas (2005)
indicam que, no final do século XIX, teriam sido registrados 1.640 casos de
lepra no país. Se considerarmos esses dados, os estados do Maranhão, Pará e
Amazonas concentravam 14% dos casos totais, com uma população, na época, de 6%
em relação aos outros estados brasileiros. Chamam a atenção, segundo as
autoras, os dados estatísticos de 1926, que apontam para um quadro agravante
para aquela região. Neste ano, aqueles estados concentravam 13% dos casos
totais de lepra, mas representavam agora apenas 1% da população brasileira.
Até a criação do DNSP, não havia, a rigor, uma política federal para os
estados, com exceção dos serviços de profilaxia rural. Nos primeiros anos da
década de 20, seriam cerca de mil os hansenianos no Maranhão. A maioria dos
municípios não tinha condições de cuidar efetivamente dos problemas da saúde
pública; basicamente, só havia serviços sistemáticos e regulares na capital do
estado e em alguns municípios atendidos pelos postos do Serviço de Saneamento e
Profilaxia Rural. O perigo de alastramento da doença de Lázaro mobilizou as
autoridades sanitárias e políticos na busca de soluções. O estudo da história
pregressa e da distribuição geográfica da hanseníase no Maranhão, nas primeiras
décadas do século XX, era falho. Segundo Sálvio de Mendonça (1923, p. 8),
delegado maranhense na Conferência Americana da Lepra, "não nos coube saber de
quando apareceu a moléstia no Maranhão, de quando começa ali a sua invasão
[...] degradante, no espetáculo funambulesco de suas mutilações".
Apesar da carência de informações precisas sobre o número de doentes e a
extensão da propagação da doença, o médico Sálvio de Mendonça fornece alguns
dados referentes a municípios maranhenses. Segundo ele, em 1923, o contingente
de leprosos no estado, em torno de mil pessoas, era registrado em função da
procura aos dispensários. Naquela época, apenas onze municípios haviam sido
recenseados, mas cinco focos principais podiam ser detectados, áreas "de grande
freqüência e grande propagação" (MENDONÇA, 1923, p.251-252): São Luiz, com 189
leprosos recenseados (em uma população total de 60 mil); Anajatuba, com 87
doentes em uma população de 10 mil habitantes, "sendo o mais intenso foco";
Viana, com 94 doentes e 23.000 habitantes; Macapá, com 41 leprosos e 7.000
habitantes, "o maior centro de lepra na zona do Recôncavo"; e Caxias com 48
doentes, com uma população aproximada de 50.000 habitantes (AZEVEDO, 1951, p.
27). Para o total de municípios recenseados, havia 501 leprosos, sendo 329
homens e 172 mulheres. Deste total, 58% dos casos eram da forma nervosa, 16% da
forma cutânea e 25% da forma mista (MENDONÇA, 1923, p. 4-5).
No início do século XX, as baixadas dos Rios Mearim e Pindaré e o recôncavo de
uma pequena parte da costa e do vale do Rio Itapecuru eram considerados
verdadeiros focos de contágio. "Porque aí foram os primeiros pontos da
imigração (sic) negra", afirmava um estudioso em 1923, "o fato é que a lepra
acompanha a trilha dos rios e das costas" (MENDONÇA, 1925, p. 251). Essas
regiões, maiores centros de agricultura e lavoura do Maranhão, com pequenos
núcleos de habitações rurais, praticamente não possuíam serviços de higiene ou
assistência médica e hospitalar. Na região do Rio Mearim tomou a moléstia
grandes proporções, em localidades como Viana, Matinha, Penalva, Monção e São
Luiz Gonzaga. Nessa região, em que viviam quase 20 mil pessoas, foram
recenseados cerca de 150 hansenianos.
Um dos focos mais ativos da moléstia, que se disseminava por todo o Maranhão,
era representado pela terra natal de Nina Rodrigues - Anajatuba. "É um lugarejo
sórdido pela sua localização, por suas condições telúricas, por seus meios de
comunicação, por suas condições de vida e de trabalho" (MENDONÇA, 1923, p.12).
A migração interna, de maranhenses e nordestinos, contribuía para o
alastramento da doença, com maior ou menor intensidade. Caxias e São Luiz eram
importantes centros regionais afetados pela enfermidade. Em 1922, o discurso de
Sálvio de Mendonça, na Conferência Americana da Lepra, assim como de outros
delegados, alertava as autoridades sanitárias para a necessidade de uma
profilaxia sistematizada de controle da doença. Um dos estudiosos da história
da medicina no Maranhão sentenciava: o péssimo estado de salubridade do
Maranhão dava, mesmo à sua capital, uma má fama, de cidade suja e insalubre
(MEIRELES, 1993).
As estatísticas e relatórios sobre a região, na época, apontavam uma situação
lastimável, sendo a precariedade das condições de saúde um dos traços mais
adversos. Os delegados da Conferência Americana da Lepra já conheciam os
resultados de um levantamento realizado em 1919 e 1920 pela Junta Sanitária
Internacional da Fundação Rockefeller, com a colaboração de médicos e
autoridades brasileiros. Foi justamente um especialista maranhense e delegado
na citada conferência, o dr. Ático Seabra, o coordenador do health
surveypromovido pela Rockefeller e que detectou, além do "problema alarmante"
da lepra em muitas regiões do estado, as taxas mais altas de prevalência da
ancilostomíase de todo o país. O levantamento denunciava, ainda, a difusão da
malária, em sua forma mais perniciosa, por todo o interior. A peste bubônica
tomara de assalto a capital ainda no início da centúria, mas havia sido
debelada; no entanto, por ocasião do levantamento sanitário, havia um surto de
febre amarela e a varíola se tornara endêmica (FUNDAÇÃO ROCKEFELLER, 1919-1920;
MEIRELES, 1993, p. 55).
As primeiras medidas profiláticas. A terapêutica
A impossibilidade de a maioria dos estados enfrentar os problemas de saúde, sem
o apoio material e financeiro do governo federal, contribuiu para que este
interferisse de forma direta apenas nos momentos de surgimento ou
recrudescimento de crises epidêmicas, abrindo caminho, por outro lado, para o
estabelecimento de parcerias - tanto estaduais como federal - com a agência
filantrópica de atuação mais expressiva na época, no setor da saúde pública,
que era a Fundação Rockefeller. Acordos foram firmados entre a Rockefeller e os
governos dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, além do
Distrito Federal. O Maranhão foi o único estado nordestino a receber auxílio da
Fundação, antes de 1920, que orçou em pouco mais de 16 mil dólares, em valores
correntes da época. No entanto, como já salientado anteriormente, as condições
complexas de controle da lepra, enfermidade endêmica cuja sintomatologia,
profilaxia e tratamento não eram conhecidos com segurança, desestimulavam os
investimentos federais ou a cooperação internacional. A verba destinada pela
Rockefeller ao Maranhão foi direcionada, basicamente, para estudos e campanhas
de prevenção da malária, que incluíam o levantamento sanitário realizado em
todo o estado, entre 1919 e 1920, coordenado pelo dr. Ático Seabra,
especialista em lepra (CASTRO SANTOS; FARIA, 2003).
Desde os primeiros tempos republica-nos, existia naquele estado um débil
movimento favorável à criação e organização de serviços de saúde. Um Serviço
Sanitário estadual reuniu as antigas "repartições" de higiene, pela Lei nº.
301, de 19/04/1901. Ainda no governo de Colares Moreira (19021906), vice-
governador empossado após renúncia do governador eleito, uma primeira medida
legislativa foi a aprovação da Lei nº. 322, de 26 de março de 1903, que previa
a construção de um hospital para leprosos. A história maranhense reserva
sucessivos episódios de adiamento de medidas concretas, quando outras
enfermidades se antepunham à lepra, tornando-se prioridades para a política
administrativa.
Desde outubro de 1903, multiplicaramse as notificações dos casos de peste
bubônica em São Luís. A epidemia provocou a interferência da Diretoria Geral de
Saúde Pública, que enviou do Rio de Janeiro primeiramente um bacteriologista de
Manguinhos, Henrique Marques Lisboa, e mais tarde dois outros higienistas,
auxiliados por médicos vindos de São Paulo e, nas palavras de um estudioso, por
"um grupo de apoio da terra" (MEIRELES, 1993, p. 67). Os trabalhos de controle
da epidemia, finalmente debelada em maio de 1904, abriram caminho para a
primeira reorganização do Serviço Sanitário (Lei nº. 358, de 9 de junho de
1904), cuja direção coube a um dos integrantes da equipe médica paulista,
Augusto Militão Pacheco (MEIRELES, 1993, p. 68). Nos governos seguintes, apesar
de a demanda de óleos vegetais, a partir da Primeira Guerra Mundial, ter
ativado a economia do babaçu no estado, sem contar certo dinamismo da produção
de algodão e das fábricas de tecidos (AZEVEDO, 1951, p. 26), a saúde pública
não chegou a representar uma prioridade para as sucessivas administrações.
A frágil máquina administrativa do estado só se movia diante da emergência de
um surto epidêmico. Na ausência de epidemias, pouco se fazia. No governo de
Luís Domingues (1910-1914), a literatura indica, como feitos relevantes, a
criação de um Instituto de Assistência à Infância, de um hospital anexo
(chamado Moncorvo Filho) e de um curso de Enfermagem, realizado no Instituto de
Assistência e dirigido por duas enfermeiras inglesas, especializadas em
obstetrícia - Margareth Laurie e Gertrudes Colet (MEIRELES, 1993, p. 65-74).
Anos depois, foram a ameaça da chegada ao Maranhão da "gripe espanhola" e a
ocorrência de um surto de febre amarela e de novos focos de peste bubônica que
atraíram alguma atenção governamental à saúde pública.
O governador Urbano Santos, figura de expressão no jogo político nacional,
ministro da Justiça do presidente Delfim Moreira (1918-1919), eleito governador
para o período 1918-1922, não dispunha, no entanto, de um esquema de forças
políticas coesas, no Maranhão, que sustentassem um plano de modernização. Se a
ação do Estado, no plano sanitário, teve alguma expressão em seu governo, isto
deveu-se à presença crescente dos aparelhos do governo central em todo o Norte,
inclusive no Maranhão.
Desde 1918, mas particularmente após a criação do Departamento Nacional de
Saúde Pública, em 1920, o governo maranhense foi estimulado a adotar algumas
medidas no campo sanitário, pautadas nas disposições do novo órgão federal.
Esse cenário foi decisivo para criação de um Serviço de Saneamento e Profilaxia
Rural; pelo estabelecimento, em São Luís, ainda em 1919, de uma filial de
Manguinhos, sob a direção do médico bacteriologista Cássio Miranda; e pela
inauguração de um Dispensário da Lepra e Moléstias Venéreas. O Serviço de
Profilaxia não conseguiu, entretanto, levar adiante o projeto de construção de
um leprosário, "na margem esquerda da foz do Ibacanga" (MEIRELES, 1993, p.72).
As frentes de trabalho contra a lepra não atraíam, na década de 20, a atenção
que outras moléstias recebiam, por parte do governo federal.
Note-se que as comissões de Profilaxia Rural, em vários estados, são anteriores
à própria criação, no Distrito Federal, do Departamento Nacional de Saúde
Pública: desde abril de 1919, operava a Comissão de Profilaxia Rural no
Maranhão, sob a direção do sanitarista Raul de Almeida Magalhães - um dos
fundadores da Sociedade Brasileira de Higiene -, designado pelo governo federal
para assumir em São Luís tanto a coordenação daquela Comissão, como a Comissão
de Febre Amarela. Mais ainda, num procedimento típico da atuação federal nos
rumos da saúde dos estados, Magalhães acumulou também (de julho de 1919 a
fevereiro de 1920) a chefia do Serviço de Higiene do Estado do Maranhão
(MIRANDA, 1925, p.122).
A Comissão de Profilaxia da Febre Amarela foi extinta ainda em 1920, mas o
governo organizou nova Comissão, para a peste bubônica, em 1921. Em outubro de
1922 registrava-se o último caso, na capital do estado (MIRANDA, 1925,
p.122124). Houve alguns anos depois um surto epidêmico de varíola em várias
regiões do interior e na capital, durante o governo de Godofredo Mendes Viana
(1922-1926). A epidemia foi debelada após uma campanha de vacinação, conduzida
pela filial do Instituto Oswaldo Cruz, em São Luís (MEIRELES, 1993, p. 65-74).
Em 1923, reativou-se a campanha antiamarílica nos estados do Norte e Nordeste
por uma Comissão de Febre Amarela, organizada pela Fundação Rockefeller;
chegava ao Maranhão, em dezembro daquele ano, para chefiar os serviços de
combate à doença, o dr. José Figuerôa, encarregado pela Fundação (MIRANDA,1925,
p.83). Em alguns dispensários da capital, que tratavam da lepra e doenças
venéreas, cadastraram-se as meretrizes para o tratamento antivenéreo, por meio
do trabalho de enfermeiras visitadoras (MIRANDA, 1925, p.247). Havia,
igualmente, dispensários no interior do Estado.
Não há menção ao local de formação das enfermeiras visitadoras; talvez tivessem
sido treinadas nos cursos intensivos mantidos pelas inspetorias estaduais,
voltadas para a profilaxia da lepra e das doenças venéreas, em conformidade com
as disposições do DNSP; deve-se descartar a possibilidade de terem se originado
dos primeiros núcleos de ensino da Enfermagem no Maranhão, junto ao Instituto
de Assistência à Infância, em São Luís. Uma vez formadas, essas enfermeiras
eram empregadas no atendimento hospitalar, particularmente na área maternal e
infantil, como auxiliares de clínicos (LISBOA,1923, p. 142-143). No entanto,
não se pode descartar ter havido o aproveitamento de algumas profissionais
formadas pela nova Escola de Enfermeiras e Parteiras do Maranhão, criada no
início de 1922 por um grupo de médicos e tendo entre seus dirigentes e
professores nomes que atuavam no campo da lepra, como o médico Filogônio
Lisboa. Nessa nova escola, não se privilegiava apenas o ensino de noções de
cirurgia e obstetrícia. O projeto era formar enfermeiras hospitalares (LISBOA,
1923, p.143), mas houve diplomadas que prestaram serviços ao dispensário de
lepra e doenças venéreas, anexo ao Hospital da Profilaxia, bem como a um
Hospital de Doenças Rurais, aberto em 1921, nas antigas instalações do Hospital
Militar em São Luís (MIRANDA, 1925, p.222).
Um elemento importante dos trabalhos de saúde pública, as atividades da
enfermagem nos dispensários de lepra e moléstias venéreas não se resumiam em
aplicar injeções e curativos, estendendo-se ao que então se denominava o campo
da Higiene. Data dessa época a organização de uma Associação das Enfermeiras do
Maranhão, pelas enfermeiras diplomadas nos dois cursos ligados ao Instituto de
Assistência à Infância e à Profilaxia Rural (LISBOA, 1923).
Durante a administração do governador Godofredo Mendes Viana, o Serviço de
Saneamento e Profilaxia Rural esteve sob a chefia do médico Cássio Miranda. No
decorrer de 1923, segundo Miranda, foi restabelecida a "normalidade" dos
serviços de saneamento e profilaxia rural, que haviam sido afetados pelos
trabalhos de combate à peste bubônica (MIRANDA, 1925, p.241). Deve-se notar,
também, que o serviço da febre amarela, a cargo da Rockefeller, permitia uma
troca de experiências entre profissionais que destoavam do meio cultural e
científico "atrasado" da capital, lembrando a referência às futilidades de um
meio atrasado, feita por Filogônio Lisboa (1923, p.141). Nesses termos, a
referência à "normalidade" dos serviços, festejada por Miranda, não era de fato
uma frase auspiciosa.
Sálvio de Mendonça chefiava o Serviço de Profilaxia da Lepra e das Doenças
Venéreas do Maranhão, subordinado ao Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural.
Seu relatório dá conta de várias medidas, algumas novas, outras rotineiras.
Foram aplicadas 2.263 injeções do óleo de chalmugra, distribuiu-se
sistematicamente o preparado em gotas, foram melhoradas as condições higiênicas
do Hospital dos Lázaros, aumentada a vigilância sanitária em estabelecimentos
comerciais, domicílios e colônias. Foram tomadas, ainda, providências para
impedir com "medidas moderadas" as profissões de alguns doentes que pudessem
pôr em risco a saúde da população.
Havia um projeto de construção, pelo governo do estado, de uma leprosaria em
São Luís. Aquiles Lisboa - higienista, botânico, leprólogo e eugenista, figura
de destaque nos meios científicos nacionais, membro da Comissão Central
Brasileira de Eugenia e mais tarde governador do Estado - chamava a atenção
para a ausência, em São Luiz, de um abrigo de isolamento: "embora incompleto,
primitivo mesmo, sempre pode abrigar melhor tais infelizes. A Santa Casa de
Misericórdia tem [...], segundo somos informados, as suas enfermarias repletas"
(LISBOA, 1928, p.37).
À frente dos serviços da lepra, Sálvio de Mendonça tinha uma postura de
especialista, não a de um intelectual, ao modo de Aquiles: se este pontificava
sobre a lepra "como o mais perigoso dos inimigos da pátria" (PORTELA NUNES,
2000, p. 293), Sálvio tinha propostas concretas: seus escritos e palestras não
se limitavam a criticar um projeto de construção de um asilo-leprosário, um
prédio com pavilhão que, a seu ver, só faria sentido se abrigasse um pequeno
número de doentes. Em função de seu alto número, o Maranhão necessitava de uma
instituição "em tipo colônia, para mil e muitos leprosos, do conforto dos
campos, em vivendas familiares, no exercício de suas próprias atividades. A
colônia agrícola dá independência coletiva" (MENDONÇA, 1925, p.254). Sobre o
local ideal para o empreendimento:
O sítio Sá Viana, já destinado para essa leprosaria [...], presta-se
magnificamente a uma colônia agrícola. Completamente isolado de São
Luiz pelo rio Bacanga, formando quase que uma pequena ilha por um
afluente desse rio e a Baía de São Marcos (MENDONÇA, 1923, p.19).
As atividades do Serviço de Profilaxia da Lepra, de comunicação com o público,
contribuíram para aumentar a freqüência de doentes nos seis dispensários do
estado, sobretudo no Dispensário Central, dirigido pelo médico Filogônio
Lisboa, e no dispensário da Santa Casa de Misericórdia, chefiado pelo médico
Antonio Vieira de Azevedo. Note-se que esses estabelecimentos eram, também,
dedicados à chamada profilaxia "antivenérea", não se limitando aos portadores
do "mal-de-lázaro". Nos dispensários de Caxias e Viana funcionava um serviço de
assistência aos leprosos, sob a orientação do chefe do posto de profilaxia
rural, com um enfermeiro e uma enfermeira para atendimento aos doentes
(MIRANDA, 1925, p.79-84).
Os médicos Heitor Pinto e Ângelo Leite eram, respectivamente, os inspetores-
chefes dos postos rurais, agregando as funções de chefia dos dispensários e dos
postos. No relatório de Heitor Pinto, evidencia-se a precisão das informações
de caráter histórico e censitário (realizou-se um recenseamento dos leprosos na
região), bem como a atenção à literatura sanitária estrangeira. Dela se extraem
ensinamentos para a profilaxia dos doentes maranhenses: "nos lazaretos da ilhas
Filipinas e de Havaí, [...] domina a preocupação do alimento sadio, dos
exercícios físicos, do asseio corporal, do cuidado para que não ocorram
infecções secundárias nas lesões" (PINTO, 1925, p.272). Como chefe do posto
rural em Caxias, a postura de Heitor Pinto em relação às verminoses e, em
especial, a ancilostomíase destoa da visão até certo ponto otimista sobre o
serviço da lepra.
São quase insuperáveis as dificuldades que se encontram para a
consecução [...] das providências profiláticas [...] de proteção do
homem contra a infestação [...] e de proteção do solo contra a
contaminação. [...] Essa infestação entre gente que nunca faz uso do
calçado é contínua, é diária, é habitual; enquanto que a medicação é
rara e espaçada. Nesse círculo vicioso, vence a endemia (PINTO, 1925,
p.198).
Em contraposição, a atitude é de alento diante do "movimento altruístico e
dignificante" da população de Caxias, para dotar a cidade de um abrigo para
assistência aos leprosos e para o trabalho de profilaxia (PINTO, 1925, p. 273).
O Maranhão no início do período getulista
Os primeiros anos da Revolução de 30 foram marcados, no Maranhão, pela
instabilidade política e paralisia administrativa, por força da indicação
federal de governos provisórios, chefiados por interventores sem respaldo na
política regional. A literatura destaca a eleição, pela Assembléia Constituinte
de 1935, do "sábio" Aquiles Lisboa (MEIRELES, 1993, p. 77; COSTA FILHO, 1964
p.13-18), que por ser "isento de paixões políticas" teria obtido o apoio
consensual. Na verdade, justamente a falta de laços políticos fortes, fosse com
a União Republicana Maranhense, fosse com o Partido Republicano, tornou-
o incapaz de proceder à indicação de cargos e prebendas sem enfrentar
oposições, que acabaram por lhe mover um impeachmentem junho de 1936 (MEIRELES,
1993, p. 77; PORTELA NUNES, 2000, p. 240). Aquiles Lisboa foi sucedido por
Paulo Martins de Souza Ramos, com bom trânsito entre as facções estaduais dos
"peerristas" e "unionistas". Governou até o início do Estado Novo; escolhido
por Vargas, permaneceu como interventor federal durante oito anos (1937-1945).
O novo governo consolidou as ações de saúde no espírito das propostas de João
de Barros Barreto, no Distrito Federal. Foi aberto um Centro de Saúde na
capital e novos postos de saúde espalharam-se pelo interior, que se somavam aos
que existiam desde a Primeira República. No Centro de Saúde, em São Luís,
passou a funcionar a Diretoria Geral de Saúde Pública estadual. O Hospital de
Doenças Rurais foi denominado de Hospital Geral do Estado. Foram abertos
hospitais para alguns dos chamados "flagelos sociais" da época, como a
tuberculose, as doenças mentais e, com atenção especial, a lepra (MEIRELES,
1993, p. 78; PORTELA NUNES, 2000, p. 240). Em outubro de 1937 fundou-se a
colônia-hospital do Leprosário do Bonfim, localizada em "local paradisíaco" da
Praia da Guia, na ponta do Bonfim, totalmente isolada da cidade. A Colônia do
Bonfim chamou-se, mais tarde, Aquiles Lisboa, médico considerado por muitos o
pioneiro do tratamento da hanseníase no Maranhão (PINHO, 2007, p.4).
Na verdade, os progressos conquistados no governo Paulo Ramos, que permitiram à
Santa Casa de Misericórdia reduzir ou compartir suas responsabilidades no
tocante ao isolamento e cuidado dos leprosos, doentes mentais e tuberculosos,
deviam-se em larga medida ao amadurecimento do debate sanitário no próprio
estado, isto é, a certa massa crítica constituída desde os anos 20 não somente
no estado, mas em todo o Norte e Nordeste do país. A Conferência Americana da
Lepra e os Congressos Brasileiros de Higiene, já mencionados, foram um exemplo
dessa efervescência do debate, em especial sobre a hanseníase. Nessa medida,
parece-nos discutível que a literatura destaque o "pioneirismo" de Aquiles
Lisboa; mais pertinente seria a referência a um grupopioneiro, no qual
militavam também Sálvio de Mendonça, Heitor Pinto, Filogônio Lisboa e Ático
Seabra, entre outros. Meireles faz um balanço do período:
na administração de Paulo Martins de Souza Ramos [...] só em São Luiz
o Estado mantinha nada menos que nove órgãos - um centro de saúde, um
pronto-socorro, um hospital geral, um hospital infantil, três outros
hospitais especializados, uma maternidade e um isolamento, enquanto
pelo interior se espalhavam postos de saúde nas principais cidades
(MEIRELES, 1993, p.78-79).
No entanto, as iniciativas, por certo tardias, não impediram o aumento de casos
de lepra no Maranhão. No final dos anos 30 e início da década seguinte, eram
cerca de 1.800 doentes de Hansen, uma freqüência de um por mil habitantes.
Praticamente dobrou o número de portadores no estado (RAMOS, 1940). Em parte,
deve-se assinalar que o melhor preparo na "melindrosa tarefa" de recensear os
doentes, tarefa assumida em Caxias, em censo cuidadoso, pelos próprios médicos
do Posto Rural (PINTO, 1925, p.197; 367), provavelmente resultou nas
estatísticas mais elevadas não só naquele município, mas em todo o estado,
pondo a nu uma realidade que jazia parcialmente encoberta. Nas palavras do
médico Heitor Pinto (1925, 367): pondo os recenseadores "na pista de vários
outros casos até então ignorados".
Os anos 40 e o Serviço Nacional da Lepra
Nos anos 40, os processos de centralização política e administrativa se
aceleraram sob o comando-maior de Vargas, no interior do Ministério Capanema,
entre 1934 e 1945 (PAIVA, 2004). Nessa medida, os contornos das políticas de
saúde nos estados do Norte se conformavam, progressivamente, à legislação e à
política sanitária geradas na Capital da República. A legislação federal sobre
lepra era, então, a que constava no Regulamento do antigo Departamento Nacional
de Saúde Pública, aprovado pelo Decreto n. 16.300 de 1923, conhecido como
reforma Carlos Chagas. Posteriormente, fizeram-se modificações importantes na
organização da saúde pública federal, não havendo, entretanto, na parte
referente à regulamentação da lepra, atualização legislativa substancial. Mas
em alguns estados foram decretados novos regulamentos sobre a lepra, sendo uns
incluídos nas reformas dos departamentos estaduais de saúde e outros elaborados
especificamente para o mal de Hansen.
Com a reorganização do Departamento Nacional de Saúde, em 1941, foi criado o
Serviço Nacional da Lepra. Neste ano, Gustavo Capanema, ministro da Saúde do
Governo Vargas, propôs alterações na estrutura do Ministério, procurando,
segundo Hochman e Fonseca (2000, p. 180), "tornar mais centralizada a atuação
dos órgãos federais de saúde nos estados e criando para tanto os serviços
nacionais de saúde". Vários serviços foram organizados para combate não apenas
à lepra, mas também à tuberculose, à febre amarela, à malária, ao câncer e à
peste. Nessa década, quando a leprologia cada vez mais se institucionalizava
como especialidade, iniciou-se uma política nacional de controle da doença no
país. A criação dos Serviços Nacionais ampliou substancialmente a esfera de
ação e autoridade do governo federal, dando maiores poderes para intervir nos
estados. A partir desse momento, todos os serviços de higiene, de saneamento e
de profilaxia rural dos estados estavam sob o controle efetivo do governo
federal.
Ao Serviço Nacional da Lepra caberia coordenar o plano de combate em todo o
país, constituindo-se, portanto, em centro orientador, coordenador e
fiscalizador das atividades dos serviços públicos e privados de prevenção,
diagnóstico precoce e assistência médica; a ele cabia também realizar estudos e
inquéritos sobre a doença; selecionar os casos para isolamento institucional ou
domiciliar; fiscalizar o tratamento no dispensário dos doentes não
contagiantes; exercer a vigilância sanitária assídua dos doentes isolados em
domicílio e das crianças internadas em preventórios; e, finalmente, recambiar
os doentes procedentes de outros distritos sanitários que viessem a residir na
área de ação dos centros de saúde, sem a permissão das autoridades sanitárias
(BRASIL, 1944, p. 83-85). Neste ponto devemos remeter os leitores às
considerações realizadas anteriormente, sobre o autoritarismo das disposições
legais, desde a reforma Carlos Chagas. Não resta dúvida de que os rudimentos de
conhecimento científico sobre a hanseníase, naqueles tempos, abriam pouco
espaço à superação das práticas de confinamento adotadas em todo o mundo.
Não obstante, houve uma atenção genuína à formação de recursos humanos para a
prevenção e controle, além da ênfase na educação sanitária. O Serviço Nacional
da Lepra tornou-se responsável pela formação de técnicos especializados. A
prevenção por meio da educação higiênica representou a pedra de toque das
políticas públicas. Nesse particular, aqui como em outros países, a importância
da educação sanitária era enfatizada pelas missões internacionais da Fundação
Rockefeller. Wilson George Smillie, membro do International Health Boardda
Fundação Rockefeller e parceiro do jovem parasitologista Samuel Pessoa, na
Faculdade de Medicina de São Paulo, desde a década de 20 já afirmava que "um
programa de educação sanitária requer a cooperação da população e só obterá
sucesso se tiver a aprovação total da comunidade" (FUNDAÇÃO ROCKEFELLER, 1919).
O objetivo era incentivar também, por meio da propaganda, a prática de exames
periódicos, de caráter preventivo.
Apesar da criação dos serviços de saúde e da maior participação federal nos
trabalhos de profilaxia rural, ainda eram falhos os dados sobre a distribuição
geográfica da hanseníase no país. O próprio Serviço Nacional da Lepra, em
relatório sobre a situação da doença no Brasil, dizia ser difícil "apresentar
dados numéricos reais", em virtude de não haverem sido recenseados todos os
municípios brasileiros. Desde 1940, o Serviço Nacional da Lepra vinha
organizando um censo, com as fichas de leprosos e comunicantes. Tal tarefa
contava com o apoio dos Serviços Estaduais de Profilaxia da Lepra (AGRÍCOLA,
1943).
O censo, prática já adotada nos serviços de profilaxia antes de 1930, foi uma
das primeiras medidas do Serviço Nacional da Lepra. Conhecidos os doentes,
localizados e classificados, do ponto de vista clínico e profilático, dar-se-ia
início às medidas para solução dos casos, por meio do isolamento dos casos
contagiantes, além de indigentes e mutilados, "não só por constituírem
espetáculo repulsivo e antiestético, como também, um dever sob o ponto de vista
da assistência social" (AGRÍCOLA, 1944, p.7). Como se vê, ainda que a visão
oficial adotasse o ponto de vista da assistência social, nos moldes franceses e
anglo-saxônicos, o estigma ou a repulsa, lá como cá, caminhavam juntos.
O Maranhão constituía uma das poucas exceções, com boa qualidade das
estatísticas. Também era o caso do Distrito Federal e dos estados do Rio Grande
do Norte, Alagoas, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, que tiveram seus
municípios totalmente recenseados; mas os estados restantes careciam de dados
completos. No estado do Amazonas - uma das áreas mais afetadas pela lepra -
somente seis, dos 28 municípios, haviam sido recenseados, em 1942. O Ceará,
outro exemplo de altos índices da doença, possuía 52 municípios sem censo, num
total de 79. As diferenças nos dados coletados eram bastante significativas
entre os estados de maior índice de contaminação: São Paulo, 21.270; Minas
Gerais, 10.227; Pará, 4.931; Amazonas, 2.127; Paraná, 1.747; Ceará, 1.403;
Maranhão, 1.267; Goiás, 1.154. Dentro de cada região, não se encontrava,
tampouco, um padrão uniforme. Se, nas regiões hoje conhecidas como Norte e Meio
Norte, o número de doentes fichados até 1942 era elevado, havia uma exceção,
que era o Piauí. No Nordeste, ante a situação aparentemente favorável de
estados como a Bahia e o Rio Grande do Norte, eram elevadas as estatísticas
para Ceará e Pernambuco. No Centro-Oeste, Goiás tinha o triplo de doentes do
Mato Grosso. No Sul, o Paraná apresentava um número mais elevado de doentes do
que o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, nesta ordem. Se havia alguma
uniformidade, esta era a de um padrão alto de ocorrências no Sudeste, não fosse
o caso excepcional - elevadíssimo - de São Paulo (AGRÍCOLA, 1943, p. 78).
O número de leprosários e o de doentes internados também variavam de estado
para estado. Em 1942, São Paulo possuía o maior número de unidades:
Pirapitinguí, com 2.371 internos; Padre Bento, com 891, Aimorés, com 1.272
internos, Santo Ângelo, com 1.779 e Cocais, com 1.854 internações. Minas
Gerais, Pará e Goiás tinham três leprosários cada um, Amazonas e Ceará possuíam
dois leprosários e Maranhão, Pernambuco, Espírito Santo, Paraná e Rio Grande do
Sul, um leprosário. No Leprosário de Bonfim, no Maranhão, havia 193 internados,
em 1942. A atuação do Serviço Nacional da Lepra nos estados era um fator
determinante para prevenir situações de abandono ou negligência, como ocorria
no Amazonas. Um relatório do médico João Batista Risi, enviado pelo serviço
federal a Manaus, em agosto de 1942, para inspeção das colônias do Aleixo e
Paricatuba, encontrou os enfermos "em situação de verdadeiro degredo", com
precário atendimento médico e total isolamento de Manaus (AGRÍCOLA, 1943,
p.65). Outra era a situação, por exemplo, em São Luís do Maranhão, onde o
Serviço de Profilaxia estadual contava com dois médicos para a Colônia e
Dispensário, ambos com curso de lepra, ou na Colônia gaúcha de Itapuã, com um
médico-chefe residente (AGRÍCOLA, 1943, p.78).
O número de preventórios também variava de um estado para o outro: Minas Gerais
possuía três unidades; São Paulo e Espírito Santos tinham dois cada um e os
outros estados contavam com um preventório para assistência às crianças, filhos
dos hansenianos. No Maranhão, o Educandário Santo Antonio, mantido pela
Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, abrigava 13
crianças. Os preventórios eram vistos, a partir do (des)conhecimento científico
da época, como uma parte importante do programa de profilaxia. Para o Serviço
Nacional da Lepra, o afastamento das crianças do convívio com os pais, ou dos
parentes portadores da doença, seria uma forma de assegurar o controle da
doença em médio prazo. O nome geralmente dado a essas instituições, de
"educandário", tornava manifesto o intuito dos poderes públicos de assistir ou
educar aquelas crianças; em um dos casos, em Minas Gerais, o preventório
buscava explicitamente o "aprendizado técnico-profissional" para os internos
(AGRÍCOLA, 1943, p. 62).
Em 1943, havia em todo o país 36 leprosários, compreendendo colônias agrícolas
ou hospitais-colônias, hospitais e asilos, além de 50 dispensários distribuídos
por alguns estados. Em 1943, Minas Gerais ultrapassou São Paulo em número de
leprosários. Além das colônias de Santa Izabel e Santa Fé e do Hospital de
Sabará, foram construídos a Colônia São Francisco de Assis, a Colônia Padre
Damião e o Sanatório Roça Grande. Vários estados, no entanto, não tinham meios,
ou lhes faltava o arcabouço político necessário, que os colocassem em sintonia
com a política nacional; continuavam carentes de hospitais, sanatórios, asilos,
colônias, dispensários e preventórios. Para os médicos e sanitaristas do
Serviço Nacional da Lepra, era flagrante o contraste entre os estados, no
tocante àquelas instituições.
Leprosários, dispensários e preventórios. Esse foi o tripé sobre o qual se
sustentou a atuação do Serviço Nacional da Lepra na profilaxia do mal de Hansen
em todo o país. Para Ernani Agrícola (1944, p. 6), inspetor dos Centros de
Saúde do Estado de Minas Gerais e mais tarde diretor do Serviço Nacional da
Lepra, "estas peças, perfeitamente organizadas, com funcionamento adequado e em
número suficiente, garantem um melhor e mais proveitoso trabalho para dominar a
expansão da lepra, sua redução e posterior desaparecimento como problema
sanitário". Considerando deficiente o número de leprosários, dispensários e
preventórios, o Serviço Nacional da Lepra incluiu em seu programa de ação para
os anos subseqüentes um plano de instalações dessas unidades, principalmente
nas zonas onde a incidência da doença era alta. Os dispensários eram
responsáveis pelo controle de cerca de 60% do total de doentes fichados e, além
da assistência clínica e terapêutica aos doentes não isolados em leprosários,
realizavam a vigilância sanitária, a descoberta de novos casos e a educação
sanitária nos focos (BRASIL, 1946).
Em 1946 o Serviço Nacional da Lepra construiu, concluiu ou ampliou
estabelecimentos naqueles estados em que mais intensa se apresentava a endemia.
Todas as unidades da Federação passaram a contar com um ou mais leprosários,
funcionando regularmente e destinados a isolar os doentes contagiantes. É
importante ressaltar que, em São Paulo, a construção destas unidades ocorreu
sem auxílio federal. A experiência paulista, tanto na questão da lepra como na
luta contra outras enfermidades ou flagelos, tinha uma face dupla, de
independência em relação à política federal, mas também de influência sobre
essa própria política. A política de isolamento, a implantação de vários
serviços específicos e a construção de colônias agrícolas foi o caminho
encontrado pelas autoridades sanitárias estaduais para conter a doença e tentar
eliminá-la (MONTEIRO, 2003, p.100102). Não era diferente o cenário em outros
centros regionais do país.
Errantes e reclusos: faces da segregação
No Brasil, o flagelo da hanseníase data dos tempos coloniais. No início do
Brasil Império efetuaram-se os primeiros recenseamentos precários, que
indicavam serem "numerosos" os portadores do mal, das Minas Gerais ao Mato
Grosso, de São Paulo ao Espírito Santo, de Pernambuco ao Maranhão e ao Pará,
perambulantes ou confinados nos poucos lazaretos existentes (SANTOS FILHO,
1991, p.229).
Se a doença havia penetrado no país, como se pensava, pela vinda dos escravos
para as fazendas, o estigma era inevitável, pois às deformações "medonhas"
acrescia a marca infamante da origem escrava. Há uma ironia fortuita no fato de
que, para superação da condição de errantes, segregados da sociedade, as
instituições do lazareto e da colônia agrícola, da Primeira República à era
getulista, impuseram-lhes outra forma de segregação, ainda que em busca de
tratamento e cura e com o fito de prevenir a propagação da moléstia.
Desde meados da década de 20, as inspetorias e serviços de profilaxia da lepra
enfrentavam a doença como um problema sanitário complexo, cuja solução exigia
um conjunto de medidas e órgãos especializados em níveis distintos de
intervenção: o leprosário ou colônia; o dispensário; o preventório. A história
dessa moléstia, da intervenção médica e de seus atores estigmatizados envolveu
um trabalho intenso de educação sanitária e da tentativa, quase sempre inócua,
mas generosamente buscada pelas autoridades sanitárias desde o primeiro período
republicano, de redução do estigma e de controle da doença.
Como o presente texto procurou indicar, os estados de São Paulo e do Maranhão
representaram experiências tipicamente brasileiras. São Paulo desfrutava da
presença privilegiada de recursos humanos, institucionais e financeiros. No
caso maranhense, em que pesem os revezes mais fortes que sofreu e as
deficiências de seus recursos durante toda a primeira metade do século XX, o
estado venceu desafios e superou dilemas no campo da saúde, por força da
atuação decisiva de seus sanitaristas e agentes de saúde. Por outro lado, não
foram poucos, no Maranhão como em todo o Brasil, os insucessos e limitações dos
programas governamentais no tocante à efetiva assistência e solidariedade aos
estigmatizados e doentes da lepra. Do norte ao sul do país, essa história
ficaria, para sempre, marcada pelo sofrimento social e individual de milhares
de hansenianos.