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BrBRHUAp0102-30982009000200002

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National varietyBr
Year2009
SourceScielo

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Vulnerabilidade do lugar vs. vulnerabilidade sociodemográfica: implicações metodológicas de uma velha questão

"What makes people vulnerable?" Esta é a pergunta que abre a introdução do livro Mapping vulnerability: disasters, development & people (HILHORST; BANKOFF, 2004, p.1), a qual é, sem dúvida, uma das mais importantes questões contemporâneas: como compreender os mecanismos e processos que produzem riscos e perigos, tornando as pessoas vulneráveis? Desde que vulnerabilidade, risco e perigo tornaram-se termos fundamentais para compreender e discutir as transformações na sociedade contemporânea, tem havido uma busca tanto por uma melhor compreensão teórica acerca dos processos e significados que conformam situações de risco, quanto por métodos de medida e avaliação dos recursos que permitem diminuir ou aumentar a vulnerabilidade de diferentes grupos. Por outro lado, a importância da espacialidade (localizações e situações) também tem sido discutida, especialmente nos espaços urbanos e em questões ambientais, situações em que é mais evidente a dimensão espacial da existência social. Os lugares, portanto, também podem ser entendidos como vulneráveis ou expostos a riscos.

No contexto dos estudos de população e ambiente, os dois lados da questão (espacialidade e produção social) aparecem na seguinte formulação: o foco está nas pessoas (demografia) ou no espaço (geografia)? Esta dúvida reproduz um antigo debate da relação homem-meio, que tem seus primeiros registros com Hipócrates e acompanha toda a filosofia e ciência ocidental (RATZEL, 1990; HASSINGER, 1958). A Geografia, ciência que tradicionalmente se coloca nessa interface, tem se esforçado em construir teorias e estratégias conceituais e empíricas de trabalhar com essas esferas sem dicotomizá-las, embora nem sempre com sucesso. Com o advento das ciências sociais, no entanto, a esfera humano- social foi apropriada como sendo de sua alçada, marcando uma ruptura que seria transgredida em alguns raros momentos, o que propiciou uma leitura mais conjuntiva da sociedade em seu ambiente.

A velha questão está na natureza dessa relação: população (P) vs. ambiente (A)? O sentido da flecha de ação é P→A ou A→P? Seriam os lugares que mudam as pessoas ou as pessoas que mudam os lugares? No contexto dos estudos sobre vulnerabilidade, essas questões retornam com muita força por conta dos fatores que interferem na produção dos perigos e na composição da matriz causal da vulnerabilidade. Encontramos diferentes soluções e aportes teórico- metodológicos para o estudo de tais fenômenos, que em outros trabalhos (HOGAN; MARANDOLA Jr., 2005; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2006b) identificamos enquanto ligados a uma tradição de análise sociológica, que se relaciona aos estudos sobre a pobreza, e outra linha que é herdeira das primeiras preocupações modernas com os impactos do ambiente sobre a sociedade, mais geográfica, ligada aos perigos naturais e que, mais recentemente, se configuraram enquanto questão ambiental. Embora não haja um corte necessariamente disciplinar nessa leitura, a influência de uma abordagem que prioriza os fatores ecológicos e espaciais é mais evidente entre os segundos, enquanto as estruturas sociais são preponderantes entre os primeiros. O resultado são duas abordagens da vulnerabilidade que se distanciam ou se tocam em certos pontos, priorizando um e outro ângulo: vulnerabilidade ambiental ou do lugar e vulnerabilidade social ou sociodemográfica.

Esse debate é extremamente pertinente para o contexto dos estudos sobre população e ambiente, na medida em que a questão que o anima é a mesma.

Compreender como se , em determinado espaço-tempo, a relação de grupos demográficos específicos com seu ambiente passa, necessariamente, por uma concepção da natureza dessa relação, nem sempre explicitada mas efetivamente construída a partir do instrumental metodológico e conceitual utilizado nas análises. Nos estudos de população e ambiente, temos notado influências da economia política, da ecologia humana, da sociologia ambiental e da própria geografia (MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2007). Essas influências, no entanto, pouco dialogam e permanecem relativamente paralelas. Entendemos que, do ponto de vista metodológico, é fundamental que haja maior discussão dessas matrizes para que se possa avançar em termos de uma construção mais robusta e consistente desse campo de investigação.

Este artigo é fruto de inquietações que têm permeado nosso trabalho no Núcleo de Estudos de População,1 especialmente no contexto de um projeto interdisciplinar,2 na senda de uma interlocução mais estreita entre Geografia e Demografia, que envolve estas questões em tela, passando pelos estudos sobre vulnerabilidade, especialmente na perspectiva ambiental e urbana, mas com foco na reflexão metodológica. Ao se aproximarem duas ciências com diferentes tradições e formas de ver/ler o mundo, a dificuldade de adequação, em primeiro lugar, vem da necessidade de afinar o "como ver" e o "como analisar". Tendo o campo de população e ambiente como a seara comum de investigação, nossos trabalhos têm procurado uma trilha que permita não apenas compartilhar um caminho ou uma pesquisa, mas aproveitar o que de melhor um estudo interdisciplinar pode propiciar: a interpenetração de temas, conceitos e perspectivas, que devem se coadunar numa abordagem conjuntiva do ponto de vista metodológico.

Seguimos assim a sugestão de Hauser e Duncan (1959), que indicaram a importância de compreender a Demografia para além de seu núcleo duro, abrindo- se para análises qualitativas que se desenvolvem nas suas fronteiras com outras ciências. Os autores afirmam que nessa área fronteiriça é necessário um diálogo metodológico em busca de soluções para problemas comuns, ocorrendo a interpenetração das temáticas e métodos. População e ambiente é uma das fronteiras de interação entre Geografia e Demografia por excelência, permitindo o desenvolvimento de uma demografia espacial e ambiental, com enfoque qualitativo significativo.

Em vista disso, temos trabalhado com uma abordagem qualitativa a partir da Geografia Humanista e Cultural, de filiação fenomenológica, como arcabouço teórico-metodológico no estudo da vulnerabilidade (ENTRIKIN, 1980; HOLZER, 1996; BONNEMAISON, 2005), o que coloca a experiência dos fenômenos como foco principal, encarando a experiência espacial como a principal mediação do indivíduo com o ambiente (TUAN, 1983). Este é entendido de forma ampla, incluindo o mundo de significados onde a pessoa está inserida, desde as esferas mais imediatas (família, grupo, bairro, cidade) até as mais distantes (país, etnia, mundo). É uma perspectiva que busca interligar as esferas sociais a partir da experiência, permitindo abordar as questões nem pelo ambiente nem pela sociedade, mas a partir de sua relação. Esse é um dos grandes desafios postos aos estudos de população e ambiente (LUTZ; PRSKAWETZ; SANDERSON, 2002), e esta trilha se apresenta como promissora.

Este artigo é um balanço dos resultados, potencialidades e limitações de nossas pesquisas por esta abordagem. Colocam-se em discussão algumas premissas e caminhos que o grupo de pesquisa tem desenvolvido, refletindo sobre seu alcance e possibilidades em permitir uma análise de mão dupla P←→A, sem prevalência de um polo sobre o outro. A expectativa é poder contribuir para o debate dessa velha questão, apresentando possibilidades de interlocução e lacunas que ainda precisam ser enfrentadas pelos estudiosos de população e ambiente, de maneira geral, e pelos interessados nos estudos sobre riscos, perigos e vulnerabilidade, de modo particular.

Lugar e população na análise da vulnerabilidade A pergunta "vulnerabilidade a que?" é primária nos estudos sobre riscos e perigos. Nos estudos populacionais, essa pergunta se direciona a grupos demográficos que estão sujeitos a determinados perigos, ou seja, as "populações em situação de risco". Estes podem estar relacionados às características da dinâmica demográfica ou à sua situação socioeconômica, ligadas ao ciclo vital, à estrutura familiar ou aos aspectos migratórios do grupo. O campo de população e ambiente acrescentou a dimensão espacial à problemática, considerando a posição e a situação (relacionais e relativas) componentes dos elementos que produzem perigos ou que fornecem condições de enfrentá-los. Notam-se, de um lado, a influência de uma abordagem ecológica, que entende o meio como um conjunto físico-social que influencia e é influenciado pela população, e, de outro, a presença de postulados materialistas, que concebe a relação sociedade- natureza como um devir histórico-social pautado pela produção contraditória e desigual do espaço e da sociedade.

Na sociologia urbana, os estudos ecológicos datam de quase um século, influenciados pelas contribuições seminais da chamada Escola de Chicago (PARK; BURGESS; McKENZIE, 1925; BURGESS; BOGUE, 1964; SHORT, 1971). Nesses estudos, a importância da localização e da posição relativa é trazida para o estudo social na medida em que revelam ou promovem relações e posições ecológicas que tanto expressam uma organização quanto favorecem uma situação. Posição e situação, noções caras à geografia tradicional francesa (DOLFUSS, 1973), são entendidas pelos sociólogos da ecologia humana como componentes do chamado efeito de vizinhança, que envolve a dimensão propriamente ecológica da estrutura e do entorno do bairro, bem como de sua posição e relação com a estrutura da cidade.

O efeito de vizinhança está na base da constituição das identidades, comunidades e na promoção de coesão social e cultural.

Estes estudos, ligados a uma visão organicista da cidade, revelaram a densidade e a coesão de vários bairros que se constituíam em verdadeiras comunidades devido a uma identidade étnica, histórica ou migratória. A sociologia urbana americana deu muita envergadura e atenção a estes estudos e à importância de tais comunidades na manutenção de valores, no enfrentamento de situações econômicas e sociais adversas ou mesmo na explicação da pobreza e de outros fatos sociais (BLOKLAND, 2003). O bairro foi considerado unidade de análise privilegiada para a compreensão da interação social e até para planejamento e empoderamento da população (SAMPSON; MORENOFF; GANNON-ROWLEY, 2002; Atkinson, 2006).

Segundo Freiler (2004, p.3), existem três principais razões para a ênfase nos bairros e sua retomada nos últimos anos: (1) "Concern about growing neighborhood concentrations of poverty and disadvantage and their effects on individuals and the broader community"; (2) "Increasing recognition that cities and urban regions are socially, environmentally, and economically critical to the well-being of individuals, regions and countries"; e (3) "The 'discovery' of social capital and its potential as a building block for social cohesion and to finding local solutions to problems". Embora a teoria dos capitais seja um dos arcabouços movimentados para o estudo da vulnerabilidade tanto nos estudos ecológicos/espaciais quanto nos sociais/demográficos (WATTS; BOHLE, 1993; CUNHA et al., 2006), é interessante notar que, entre os primeiros, ainda pouca utilização do enfoque no estudo de comunidades e bairros.

Os efeitos de vizinhança possuem relações para além de aspectos econômicos ou de mera proximidade, potencializando relações e interações que têm natureza espacial. As variáveis ecológicas não se limitam a aspectos racionais que podem ser contabilizados, mas envolvem também simbolismos e identidades construídas em torno de lugares que, mesmo degradados social ou economicamente, podem manter sua capacidade aglutinadora e atratora de população (FIREY, 2006).

Alguns dos mais bem-sucedidos processos de recuperação de bairros se deram a partir de movimentos culturais iniciados pelos próprios moradores, numa deliberada recondução da orientação e da morfologia de seus bairros (JACOBS, 2000). Associar pobreza e degradação urbanística com vulnerabilidade, portanto, pode ser uma relação causal simplista, que não se sustenta quando se presta atenção aos efeitos da vizinhança na capacidade das pessoas de lidarem com os perigos a que estão expostas.

Em vista disso, estudos que buscam uma abordagem qualitativa em uma escala menor de análise têm sido reclamados como necessários para melhor compreensão da vulnerabilidade, tanto para entender a dimensão sociocultural e demográfica de sua composição, quanto para aprofundar a compreensão da importância do lugar e das comunidades territorialmente centradas.

Comunidade não é o mesmo que bairro, é evidente. Este termo tem sido usado desde a sociologia clássica, em geral de forma vaga e imprecisa. Serviu a diversos fins em diferentes contextos, carregando as noções de desintegração, integração e coesão, desde o sentido da intimidade, da profundidade emocional, do envolvimento moral, da coesão social, até, mais recentemente, da sustentabilidade (BLOKLAND, 2003). Faz-se uma conexão imediata e rasteira entre comunidade e bairro-vizinhança, embora sua efetivação não seja tranquila nem simplista. Apesar de vivermos uma época de ênfase no local (BORDIN, 2001), isso na verdade é um paradoxo que se coloca à medida que a busca pela comunidade é a própria denúncia de que ela está escassa na experiência contemporânea.

Qual a relação entre bairro, comunidade e vulnerabilidade, principalmente nas grandes cidades contemporâneas? Em ambientes intensamente modificados pelo homem, a matriz causal de riscos e de elementos que podem interferir na vulnerabilidade é consideravelmente maior, dificultando a apreensão de relações de causalidade entre determinados perigos e certas características do grupo demográfico. Vivemos um enfraquecimento do bairro e da vizinhança. O estilo de vida contemporâneo, fluido ou líquido, para usar a expressão de Bauman (2007) acerca do atual estágio da modernidade, é pautado na não-permanência, na mudança constante e na alta mobilidade. Essa tendência diminui a pausa necessária para a experiência e a densificação dos lugares (TUAN, 1975), alterando a forma como as pessoas se relacionam com o espaço urbano. A territorialização, necessária para atingir a segurança existencial, tem que ocorrer tanto em movimento quanto no lugar, transformando as estratégias de proteção e os riscos assumidos, redesenhando a vulnerabilidade e os próprios perigos urbanos (MARANDOLA Jr.; 2008a).

Em vista disso, olhar para os perigos e a vulnerabilidade do lugar é uma estratégia que permite, em microescala, apreender os elementos que interferem na produção, aceitação e mitigação dos perigos. A dimensão ecológica é re- significada ao incorporar a dimensão existencial e fenomênica do lugar, entendendo os grupos demográficos em sua relação de envolvimento e pertencimento ao seu espaço vivido.

A partir de uma série de trabalhos empíricos desenvolvidos no Projeto Vulnerabilidade, do Nepo/Unicamp, procuramos discutir as possibilidades dessa perspectiva teórico-metodológica, que utiliza uma prática qualitativa de campo e uma orientação geográfica na construção de um diálogo mais estreito entre Geografia e os estudos populacionais, a partir do campo População e Ambiente.

Vulnerabilidade do lugar enquanto proposta metodológica de pesquisa A abordagem do lugar, no estudo dos perigos ambientais, possibilita uma análise integrada dos elementos físicos e sociais, considerando a relação população- ambiente e não um ou outro polo. Incorporam-se à mesma discussão a mensuração do risco biofísico (ambiental), a produção social do risco e as capacidades de resposta, tanto da sociedade (grupos sociais) quanto dos indivíduos (CUTTER, 1996). Parte-se de um contexto social e geográfico onde o perigo ocorreu ou é potencial. Risco, as ações de mitigação (respostas e ajustamentos) e a vulnerabilidade do lugar são o resultado da interação particular destes elementos nos termos daquele espaço-tempo.

O aumento das ações mitigadoras poderá significar a diminuição do risco e, consequentemente, implicará a redução da vulnerabilidade do lugar. Por outro lado, o risco poderá aumentar se houver alterações no contexto geográfico ou na produção social, que poderão incorrer no crescimento da vulnerabilidade biofísica e social e da vulnerabilidade do lugar. Esse processo poderá ser iniciado também por meio do aumento do perigo potencial, que tanto pode ser resultado quanto condicionante da elevação ou diminuição da vulnerabilidade (MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2005).

A importância desse enfoque reside no fato de permitir um olhar propriamente geográfico da vulnerabilidade, e não apenas sua "espacialização" (utilizada como sinônimo de localização). Esta abordagem parte das dinâmicas que configuram uma dada espacialidade e procura circunscrever sua escala (uma região, uma cidade, um ecossistema, um bairro), identificando nas interações sociedade-natureza os riscos e perigos que atingem o lugar. Não se trata de entender esta espacialidade enquanto substrato físico independente da sociedade. Antes, a abordagem busca na delimitação escalar-espacial uma unidade de referência para compreender o contexto da produção social do perigo em conexão com o contexto geográfico. O resultado desta relação - suas tensões, aberturas, estruturas de proteção e risco - permite identificar a vulnerabilidade (MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2006a).

A vulnerabilidade é, portanto, um qualitativo, ou seja, envolve as qualidades intrínsecas (do lugar, das pessoas, da comunidade, dos grupos demográficos) e os recursos disponíveis (na forma de ativos) que podem ser acionados nas situações de necessidade ou emergência. Assim, tanto o contexto social quanto o geográfico possuem atributos que fornecem elementos para pessoas e lugares estabelecerem seus sistemas de proteção. A relação entre o coletivo (o que não está ao alcance direto de intervenção individual, pois é produzido socialmente e historicamente) e o particular (aquilo que pessoas e lugares podem construir de forma direta) é uma chave importante para compreender o desenho das diferentes vulnerabilidades.

Nem o contexto social nem o geográfico são completamente coletivos ou individuais. Ambos interferem diretamente nas duas escalas, fragilizando ou protegendo. O primeiro pode ser tanto de longo prazo e de influência nacional, quanto as características próprias do ciclo vital, classe social, família ou das escolhas do padrão de mobilidade que uma família faz. Da mesma forma, o contexto geográfico pode ser tanto o ecossistema, as dinâmicas de formação e transformação da geomorfologia (topografia) e da hidrologia (drenagem), a dinâmica climática ou até geológica (terremotos, vulcanismo, etc.), quanto os atributos particulares do lugar, como o rio que passa por ali, um bosque, um morro, etc.

Podemos entender a vulnerabilidade como neutra: não é negativa em si mesma, mas refere-se à interação risco-perigo em um determinado lugar, onde certos grupos e coletividades serão afetados (MARANDOLA Jr., 2008a). São os recursos e as estratégias que estes terão para responder ao perigo (próprios ou externos, coletivos), absorvendo seus impactos e danos, que determinarão como aquele perigo afetará o espaço.

Quando o perigo supera a habilidade da população ou do lugar em responder ao evento, pode configurar-se um desastre. A partir deste, a vida normal é quebrada e necessidade de recompor as perdas e danos. Essa recomposição (retornar ao estado de vida normal) dependerá de capacidade acumulada para tal regeneração, que é chamada de resiliência, um dos conceitos fortes que surgiram na década de 1990 nos estudos sobre vulnerabilidade.

Outra resposta ao desastre é a adaptação, tanto individual quanto social, que em muitos casos necessidade de adaptar a forma de construção, o padrão de ocupação do solo, os hábitos em determinadas situações, adoção de protocolos de emergência, etc. (Janssen; Ostrom, 2006). Ambas visam retomar o dia-a-dia pré-desastre, reordenando o território e recuperando a chamada vida normal (WISNER et al., 2004). Contudo, em nossa sociedade contemporânea, a normalidade parece ser o risco: não vida sem a ameaça. Em muitos lugares e para muitas pessoas, conviver com o risco é a vida normal (Figura_1).

Nossa leitura de lugar está atrelada ao entendimento humanista que contribuiu para o seu redimensionamento na ciência geográfica. Uma leitura de autores como Edward Relph (1976), Yi-Fu Tuan (1975, 1980 e 1983) e Anne Buttimer (1980) leva a uma compreensão fenomenológica do lugar enquanto categoria de análise geográfica. Compondo a partir das diferentes contribuições, teremos uma definição mais ou menos complexa e abrangente, passando a entender o lugar como a menor célula espacial, na escala do corpo, que se relaciona com a casa, o confinamento, a proteção e a identidade.

O lugar é conceituado na dimensão da experiência, perpassando as escalas individual e coletiva, nas suas diversas esferas, e consubstanciando também as escalas espaciais de ocorrência dos fenômenos físicos, sociais e identitários.

O lugar é, portanto, centro da afetividade e da razão sensível, constituindo-se no foco da experiência humana. No entanto, o lugar também possui uma dimensão coletiva, que diz respeito às relações históricas que a comunidade estabelece e demarca no espaço. Em vista disso, monumentos, ruas, edifícios, parques, rios, árvores, florestas, bancos de praça, um mastro ou mesmo uma paisagem podem constituir lugares relacionados à historicidade, à memória e à identidade de certo grupo. As experiências históricas são assim compartilhadas tanto pela religiosidade ou mística do lugar, quanto pelos fatos vinculados ou impressos naquela paisagem ou ambiente. É o que Jöel Bonnemaison (2002) chamou de geossímbolos.

Essa cumplicidade entre o eu e o mundo foi expressa por Eric Dardel (1952) pela sua noção de geograficidade estabelecida seja entre a comunidade e o lugar, seja entre o indivíduo e o seu meio. Mais tarde, Tuan (1961), claramente influenciado por Dardel, desenvolveu a noção bachelardiana de topofilia, que expressa os laços afetivos e de envolvimento do homem com o ambiente, constituindo-se, a partir deste envolvimento, o lugar.

No entanto, esse entendimento do lugar não o limita a uma dimensão existencial ou afetiva. A ênfase nessa dimensão torna-se fundamental no contexto científico de então, em que o positivismo e o cientificismo haviam retirado qualquer possibilidade de considerar tais fenômenos essencialmente humanos na investigação científica, em geral, e geográfica, em particular. As demais dimensões da vida humana também tinham seu lugar, principalmente a partir da noção de mundo vivido, trazida por Buttimer (1976) da fenomenologia de Husserl: The place-environment component of the lifeworld may be equal in value to the social, economic, and psychological dimensions that have received more academic attention in the last several decades. In short, one can again say without embarrassment that people are as much geographical beings as they are social, cultural, or economic.

(SEAMON, 1980, p.194, grifo do autor) Ênfase maior em outros aspectos da relação do homem com seu ambiente também foi dada na obra de Relph (1976) e na sua conceituação dos placeless e placelessness.3 O autor complexifica a discussão sobre o lugar, pensando medidas diferenciadas de relacionamento com ele (posições em relação ao lugar) e na sua própria constituição. Para isso, Relph diferencia lugares de placelessness a partir dos conceitos filosóficos de autenticidade e inautenticidade.

Para compreender a autenticidade dos lugares, Relph prioriza a produção do espaço, principalmente por meio da ação do poder público, que cria e produz lugares. Estes, quando representam uma descontinuidade em relação à historicidade da comunidade, rompem a relação orgânica de produção da cidade e de construção de lugares, constituindo-se, segundo o autor, em uma atitude inautêntica, manifesta pela ruptura e pela não preocupação com o sentido do lugar. Em situações como essa, com a fraca aderência entre pessoas e lugar, a vulnerabilidade pode ser potencializada pela sua própria formação material e simbólica.

Olhando para o lugar, nas suas várias escalas, tem-se uma unidade de análise que permite abordar os riscos e perigos em sua dimensão fenomênica, ou seja, em sua unidade essencial. Essa abordagem é importante para aumentar a compreensão da vulnerabilidade em sua concretização na vida das pessoas. As teorias sociais, enquanto teorias, servem para estimular nosso pensar sobre a realidade, mas não podemos abdicar de uma discussão empírica dos riscos e perigos. O grande desafio é articular escalas de ocorrência e análise dos fenômenos e suas dimensões.

Lugares e perigos na Região Metropolitana de Campinas Entendendo os lugares como unidades espaciais densas que são construídas na intersubjetividade, historicidade e geograficidade, uma região se torna um conjunto de lugares hierarquizados, de diferentes naturezas, que estabelecem ou não relações entre si (FRÉMONT, 1980). Desse ponto de vista, quando se tem como referência uma região metropolitana, que possui aspectos institucionais que a delimitam, procuramos enfocar sua dimensão experiencial, vivida. Para nós, independente da discussão que se possa desenvolver em torno do recorte oficial, é importante compreender as tramas espaciais que constroem aquela região enquanto um espaço vivido, o que nos permite pensar os lugares dentro desse contexto. Em vista disso, o primeiro desafio foi compreender a Região Metropolitana de Campinas (RMC), nosso campo de análise, enquanto uma região vivida, interligada no âmbito do cotidiano, nos espaços de vida e na lida diária das pessoas (MARANDOLA Jr., 2005, 2006; MARANDOLA Jr.; DE PAULA; PIRES, 2006).

Essa perspectiva da experiência nos permitiu olhar para a região como um conjunto orgânico, um espaço heterogêneo de densidades variadas, composto por caminhos, trajetos, lugares, conexões. Alguns espaços são mais densos e intensos, outros mais dispersos e rarefeitos. As cidades e seus fragmentos não pulsam no mesmo ritmo, mas regiões que estão sintonizadas na mesma frequência. A dinâmica que anima essas variações está associada a formas específicas de relação população-ambiente, com níveis diferentes de peso de um e de outro lado.

O resultado são situações e posições específicas que permitem compreender o lugar em uma perspectiva contextual. A escolha de alguns lugares para pesquisa procurava selecionar diferentes situações que trariam questões pertinentes para a análise do lugar em si (seus atributos e relações) e para a compreensão da região (aquilo que ele possui de exemplar). Como se trata de uma região com mais de dois milhões de habitantes, qual recorte delimitaria lugares com maior aderência a uma identificação individual, sem abstrações? O bairro nos pareceu uma boa unidade de trabalho, por constituir aquele meio imediato à casa, o lugar por excelência, não raro tornando-se extensão da própria residência enquanto foco principal da experiência urbana, o ponto zero de todo o espaço de vida. Por outro lado, compreender a formação dos bairros e as questões referentes à sua inserção na cidade e na região congregaria outros aspectos relacionados à organização espacial da metrópole, suas possibilidades e riscos, conectando a dimensão mais íntima (casa, vida privada) à social (comunidade, vizinhança), permitindo-nos ampliar o diálogo com toda a tradição de estudos da ecologia humana e seus trabalhos sobre bairros e comunidades (Figura_2).

O primeiro local estudado foi a Ponte Preta, bairro consolidado de Campinas, ao lado da região central, componente dos antigos arrabaldes da cidade (DE PAULA, 2005; MARANDOLA Jr.; DE PAULA; FERNANDEZ, 2007). Esse estudo foi fundamental para ajudar a delinear muitos dos aspectos que seriam importantes nas pesquisas seguintes.

Um primeiro aspecto importante foi perceber que, para a discussão qualitativa da vulnerabilidade e dos riscos, seria necessário um primeiro estágio de pesquisa em que a aproximação e o envolvimento com o lugar teriam que ser buscados. Sem uma certa imersão e intimidade com a dinâmica do lugar, seu "balé" (SEAMON, 1980), não seria possível compreender as tramas espaciais que envolvem a forma como as pessoas lidam com as situações a que estão expostas.

Esta prática é reconhecida como essencial nos estudos qualitativos, o que nos permitiu uma base de apoio metodológico de trabalho (ZALUAR, 1986; LAPLATINE, 1988). Mas, para o estudo da vulnerabilidade, uma maior densidade era necessária.

De fato, pode-se dizer que, para uma abordagem qualitativa do espaço, de qualquer temática, a etapa de conhecimento e envolvimento é o primeiro e crucial passo. Nessa fase, delinear-se-á a base sobre a qual o pesquisador irá construir sua pesquisa. Se essa primeira etapa for queimada, substituindo-se a construção experiencial em campo por revisão bibliográfica, informações secundárias ou de terceiros, grande parte do potencial de uma investigação baseada no vivido será perdida, pois a base continuará sendo aquela mediada, construída de fora para dentro. O esforço nesse tipo de trabalho é deixar que o lugar se revele, que a experiência do pesquisador em campo contribua fundamentalmente para a produção do conhecimento. Esta é a postura fenomenológica de pesquisa, que busca o conhecimento tal como aparece na experiência (MERLEAU-PONTY, 1971; HEIDDEGER, 2002).

Pensar o lugar enquanto unidade de estudo da vulnerabilidade, portanto, passa inicialmente por se perguntar acerca da constituição fenomenológica daquele lugar, que envolve tanto os atributos físicos quanto a produção social e simbólica da intersubjetividade.

O trabalho de campo experiencial foi tomado como referência em todas as pesquisas desenvolvidas. Este se insere na tradição de estudos fenomenológicos em Geografia e nas ciências sociais, cujo fundamento é a compreensão da experiência vivida (ROWLES, 1978; BERGER; LUCKMAN, 1979; MANEN, 1990), aliando uma perspectiva hermenêutica (interpretativa) dos relatos orais (narrativas) com a descrição fenomenológica da experiência (GEORGE; STRATFORD, 2005). Isso implica transcender a separação sujeito-objeto, promovendo o entrelaçamento do ser com o outro (homem, lugar, ambiente). A meta destas pesquisas é a compreensão do mundo vivido, ou seja, a experiência vivida, que envolve a volição, a intencionalidade e o conhecimento intuitivo, imediato, oriundo do encontro do ser cognoscente com o mundo (MERLEAU-PONTY, 1971).

Neste contexto, a descrição é um procedimento que não se refere a uma enumeração banal. Antes, envolve o cuidado de permitir ao objeto aparecer, ou seja, ser revelado tal como é vivido (HUSSERL, 1986). A descrição fenomenológica implica um trabalho de escavação dos sentidos mais originais em busca de sua essência, mesmo que se mantenha a dúvida sobre o êxito final de alcançá-los (ALES BELO, 1998).

A pesquisa engloba, portanto, a experiência dos pesquisadores, que estão comprometidos com o conhecer espacialmente os lugares estudados, implicando um envolvimento que vai além da verificação ou de meras impressões (MANEN, 1990).

Os significados são compartilhados - a intersubjetividade (SCHUTZ, 1979) -, estando a pesquisa fenomenológica atenta à forma não como estes sentidos são construídos, mas, sobretudo, como eles aparecem em experiências vividas.

Estes pressupostos epistemológicos, convertidos em prática de campo, trazem implicações latentes, tais como as discutidas por Rowles (1978): envolvimento com os participantes; investimento de longo tempo; pequeno número de participantes (pesquisados e pesquisadores); e inferência indutiva. Estas implicações refletem-se tanto na condução (uma atitude diante da pesquisa e dos temas em questão) quanto na forma de apresentar os resultados oriundos dela.

Por serem experiências vividas e pela presença significativa da indução, muitas das questões levantadas não são passíveis de mensuração nem de experimentação.

A pesquisa reverbera os fenômenos estudados tal como aparecem (o sentido da palavra fenomenologia) na experiência, buscando nas camadas de mediação e de sentidos, nas quais estamos todos imersos, os sentidos originais e permanentes que constroem, coletivamente, o significado dos fenômenos (MARANDOLA Jr., 2005a).

Para adensar alguns aspectos referentes à vulnerabilidade na Ponte Preta, realizamos pesquisa sobre a Praça das Águas, um dos poucos espaços públicos do bairro, inaugurado durante a pesquisa. Foi muito importante acompanhar o processo de abertura de um espaço em meio à densidade construída e de ruas estreitas do bairro, sua apropriação intensa no início e o subsequente declínio (MARANDOLA Jr., 2005b).

Hoje, a praça encontra-se muito abandonada e a necessidade de incorporar o espaço público ao espaço privado das casas e apartamentos foi superada pelo medo e pela repulsa que a condição deteriorada da praça causou. O que no início foi um feliz encontro com o espaço tornou-se em pouco tempo um reencontro com o risco, e as críticas ao projeto e à forma de gestão daquele lugar superaram a necessidade que o bairro tinha dele. A intervenção de cima-para-baixo, produzindo um placelessness, mostrou-se, no final, uma pretensão governamental por não ter incorporado as demandas sociais do lugar.

Nossos estudos subsequentes levaram em conta isso, aprofundando aspectos distintos da constituição dos lugares e procurando abarcar diferentes bairros para poder ampliar o escopo das questões. Se a Ponte Preta nos mostrou que os espaços públicos, como a Praça das Águas, são fundamentais para compreender um lugar e que um bairro pode conter uma unidade simbólica sob a toponímia, mas não as mesmas condições de vida (a fragmentação da paisagem produz diferentes lugares dentro de um bairro), o São Bernardo trouxe um exemplo mais bem acabado da fragmentação intrabairro. Dividido em dois, internamente, Alto e Baixo São Bernardo compõem lugares diferentes para os-de-dentro, embora sejam vistos como um bairro para os-de-fora. Com territórios vividos de forma distinta, são paisagens específicas separadas e que não se misturam. E são justamente seus espaços públicos que expressam a diferença entre as duas vizinhanças: as praças e ruas do Alto São Bernardo não dão abrigo aos seus moradores, ao contrário do Baixo São Bernardo, que tem ruas e praças sempre ocupadas pelas pessoas do lugar. Nesta área, o espaço público é extensão do espaço privado da casa, incorporado à proteção, enquanto na parte alta o espaço público é o lugar do risco, separado por grades altas e sistemas de segurança do espaço privado (DE PAULA; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2007a).

A diferença de uso e característica do espaço público, na verdade, expressa formas distintas de proteção e interação social, qualidades intrínsecas aos lugares e paisagens dos dois fragmentos do bairro.

Mas qual a natureza da constituição desses diferentes fragmentos territoriais? O estudo sobre os DICs (Distritos Industriais de Campinas) nos permitiu avançar nesse sentido, identificando nos diferentes territórios vividos elementos comuns que davam ao conjunto dos DICs (na verdade, um conjunto de pequenos bairros planejados pela Cohab-Campinas e várias invasões) uma unidade enquanto sentido de vizinhança. A identidade territorial é construída a partir da memória urbana e da experiência coletiva de um devir histórico e geográfico comum, que se estabelece no desenvolvimento do bairro e liga a história pessoal à história urbana.

A mobilidade e a permanência são elementos centrais para compreender esses processos, que o bairro foi constituído enquanto periferia no seu sentido pejorativo, com todas as carências sociais e infraestruturais, mas mesmo assim foi capaz de reter sua população ao longo do tempo. Esta encara como vitoriosa sua permanência, pois o lugar foi densificado e significado ao longo do tempo, recebendo atributos (físicos, sociais e afetivos) que lhe dão condição de território capaz de fornecer segurança a seus moradores (DE PAULA; MARANDOLA Jr., 2007; DE PAULA; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2007b).

Discutimos o reverso dessa permanência a partir de pesquisa realizada no condomínio Residencial Parque dos Sabiás, localizado na cidade de Sumaré (MARANDOLA Jr., 2008b). Esse condomínio de classe média reúne uma população de maioria migrante com alta rotatividade. Grande parte mudou-se para a cidade por motivo de trabalho e tem todo seu espaço de vida organizado a partir das rodovias que cortam a região. A opção por um condomínio, mesmo que não de alto padrão, é justificada pela segurança, que, por não conhecerem a cidade, acabam não se sentindo seguros em escolher residências nos bairros. O condomínio não oferece nenhum item de segurança além dos muros e da guarita, mas esta condição é suficiente para justificar sua escolha.

A partir desse estudo, pudemos perceber melhor que o conhecimento espacial do lugar é fundamental na constituição da vulnerabilidade, que os migrantes (os de fora) não possuem referências espaciais locais para orientar-se, o que torna todos os lugares potencialmente perigosos, diferente dos estabelecidos, que, utilizando-se da tradição e da memória, possuem os lugares seguros preestabelecidos ou construídos ao longo do tempo, podendo usufruir de uma condição herdada que lhes oferece estratégias e recursos (sociais, físicos e existenciais) de alcançar a segurança. Migrantes de estratos médios e superiores tendem a buscar os lugares de segurança no circuito metropolitano de lugares globais, mantendo-se não raro à parte do sistema do lugar e dos moradores mais antigos, o que expõe cada grupo a riscos e perigos diferentes e resulta, consequentemente, em vulnerabilidades distintas.

Esses estudos foram avanços no sentido de melhor compreender a importância do lugar na constituição das diferentes vulnerabilidades. Contudo, precisávamos aprofundar estas questões, o que foi feito tomando-se novas localidades como foco da vulnerabilidade do lugar.

Escolhemos três lugares na RMC que pudessem trazer diferentes questões referentes aos riscos e perigos e à própria natureza dos lugares: Jardim Amanda, em Hortolândia; o bairro Mansões Santo Antonio, em Campinas; e o trecho da Via Anhanguera entre Campinas e Sumaré. Agora na segunda etapa do estudo, estes lugares nos ajudaram a dissipar as dúvidas que restavam sobre as variáveis ecológicas da vulnerabilidade, trazendo novas e importantes orientações metodológicas. Em primeiro lugar, projetos idênticos foram tomando rumos próprios, obedecendo às particularidades dos lugares.

O Jardim Amanda é um conhecido bairro que carrega a imagem de periférico no município de Hortolândia, que, por sua vez, também possui esta imagem no imaginário da RMC. Ali, à semelhança dos DICs, um bairro com acentuadas carências sociais passa por um processo de consolidação, ainda não concluído, que melhora sensivelmente as condições de vida do bairro e torna-o passível de retenção de população. Com aproximadamente 50.000 habitantes, é um bairro de proporções de cidade que mantém elevados índices de pendularidade, principalmente para o centro metropolitano (DE PAULA, 2008; DE PAULA, MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2008). No entanto, pela sua posição (fica descolado do centro de Hortolândia e às margens da rodovia que liga Campinas à cidade de Monte Mor), é provável que seus moradores tenham padrões de mobilidade variados em diferentes direções.

Além da importância da memória e da história migratória no desenho das vulnerabilidades, o estudo do bairro tem revelado outros aspectos que se referem à condição duplamente periférica (cidade e bairro) e aos processos sociais e espaciais do próprio lugar em se transformar e em promover, ao longo do tempo, segurança, fatores especificamente demográficos que ainda estão sendo investigados (DE PAULA; MARANDOLA Jr., 2009).

O estudo do bairro Mansões Santo Antônio traz outros elementos que enriquecem as análises. Local de contaminação do solo por uma indústria de solventes desativada em meados dos anos 1990, essa bem localizada área de Campinas tem sofrido nos últimos dez anos um intenso processo de incorporação e especulação imobiliária. Sua paisagem, de chácaras de lazer ou pequenas moradias, tem se modificado intensamente, com o surgimento de edifícios residenciais de alto padrão que marcam o skyline da cidade.

O caso da contaminação veio à tona quando a construção de um edifício foi realizada sobre o terreno da antiga indústria, acumulando gases na garagem do prédio. A imprensa acompanhou o processo, gerando muita especulação sobre os altos investimentos na região. No entanto, a exemplo de outros casos de contaminação, um hiato entre a identificação do risco, a percepção da população e a sua comunicação, as quais obedecem a diferentes lógicas. A vulnerabilidade do lugar não pode ser apenas a equação das análises de risco, devendo considerar também a questão do estigma e da própria desvalorização econômica.

Assim como em Cubatão ou em Adrianópolis, onde as populações negaram a contaminação entendendo que admiti-la ou dar-lhe ênfase seria uma forma de denegrir seu próprio lugar (HOGAN, 1993; DI GIULIO, 2006), também no bairro Mansões Santo Antônio o risco associado à contaminação não é valorizado por seus moradores, que não consideram o fato um problema ou preferem não dar destaque a ele (FOGLIARINI, 2008). A vulnerabilidade do lugar, ali, precisa incorporar o processo de comunicação do risco e a sua construção social em pelo menos dois contextos: dos moradores antigos do bairro (que ainda estão nas chácaras) e dos novos moradores que chegaram depois. O envolvimento dos dois grupos com o lugar é evidentemente outro, e isso interfere não apenas na sua percepção do risco, mas também na sua vulnerabilidade.

Por fim, o terceiro lugar que estamos investindo nesse momento é o trecho metropolitano da Rodovia Anhanguera entre Campinas e Sumaré, que constitui a parte de maior intensidade de conexão e interações espaciais na região, com conurbação e o convívio de dois trânsitos: o regional e o local-orgânico.

Propomos pensar a Anhanguera como lugar por conta de seu papel simbólico e estrutural no espaço urbano das duas cidades, especialmente no de Sumaré. A Anhanguera estrutura o espaço da cidade, sendo mais central para a maior parte dos seus mais de 230.000 habitantes. Por todo o trajeto entre as duas cidades, a rodovia corta a área do município, organizando não apenas o trânsito e a malha viária dos bairros, mas também a vida cotidiana. Ela é o grande eixo que liga os bairros das áreas do Matão, Maria Antônia, Área Cura, Nova Veneza e Dallorto, exercendo mais centralidade do que o próprio centro tradicional. Em virtude da distância, esses bairros possuem uma ligação muito próxima com o centro de Campinas, que é acessado pela rodovia, o que faz dela o grande eixo estruturador da região (MARANDOLA Jr., 2008a).

Contudo, ao mesmo tempo em que conecta e permite aglutinar, a rodovia exerce um papel desagregador e segregador (ROSAS, 2008; ROSAS; HOGAN, 2009). Bairros de um lado e do outro da Via Anhanguera são lugares distintos, sem conexão. As várias passarelas ou viadutos não são suficientes para promover a integração dos fragmentos, o que resulta em diferentes condições de acessibilidade que, em áreas de urbanização dispersa, podem significar acesso a bens, serviços ou até ao mercado de trabalho. Em vista dessa fragmentação, a experiência da rodovia é muito diferencial para aqueles que moram no seu entorno e para aqueles que apenas passam por ela (ROSAS; MARANDOLA Jr.; HOGAN, 2008). O meio de transporte utilizado é a diferença central, trazendo distintos perigos dependendo do tipo, frequência e até horário em que se utiliza a rodovia. Nesse caso, aprofundar as possibilidades de envolvimento com o lugar-rodovia é fundamental para podermos compreender as diferentes situações de risco e as estratégias e capacidades de resposta aos perigos.

Todos esses trabalhos tinham uma liga comum: estavam concentrados na sede e numa porção da RMC que, por vários motivos e critérios, pode ser encarada como a mais intensa e de relação mais orgânica - a microrregião noroeste. O estudo dessa região nos permitiu produzir um amálgama entre os estudos dos lugares, contextualizando cada um num todo, numa escala mais próxima daquela primeira perspectiva da experiência da RMC como um todo.

Essa microrregião, centralizada por Americana e composta por Nova Odessa, Santa Bárbara d'Oeste e Sumaré, apresenta relações orgânicas mais fortes internamente do que com o centro metropolitano. Os espaços de vida nessas cidades conformam um mesmo conjunto de trajetos e itinerários, apresentando-se como um todo urbano único, onde as funções e equipamentos são complementares entre as cidades. Apesar de ter um centro e de manter as relações com Campinas, como maior referência, no âmbito da experiência pouca hierarquia entre elas, apresentando-se como alternativas igualmente viáveis dependendo da situação (MARANDOLA Jr., 2008a).

De fato, a potencialidade da mobilidade não é apenas um dos pontos-chave que conduziram a microrregião à sua atual integração e conurbação, mas é sobretudo um dos seus pontos ambivalentes de risco-proteção mais significativos. A mobilidade, ao invés de se constituir enquanto risco (desagregação do lugar, enfraquecimento dos laços comunitários e de vizinhança, fragilização da casa e da família), é também estratégia de segurança, à medida que permite aproximar e mobilizar recursos (sociais, físicos e simbólicos) distantes no espaço. Assim como o lugar não é mais a única forma de estar seguro, a mobilidade também não significa mais o risco total (MARANDOLA Jr., 2008a; 2008b).

Pensando a região como espaço vivido e a mobilidade como contraponto ao lugar, temos assim uma possibilidade de interlocução entre os diferentes lugares estudados. Os espaços de vida estruturam as interações espaciais e permitem olhar para a região a partir da experiência, ajudando a conectar experiências individuais a construções coletivas. Os territórios, construídos entre lugares (pausas) e trajetos (mobilidades), são fundamentais para compreender a constituição da segurança-insegurança com bases espaciais, individuais e coletivas. A casa, nesse contexto, apresenta-se como elemento importante na medida em que é o ponto zero de onde partem os deslocamentos e o lugar a partir do qual organizamos todo nosso cotidiano. Por outro lado, a tendência de que ela se torne o único ponto fixo da metrópole (ASCHER, 1998) aumenta sua importância na constituição da vulnerabilidade, sendo fundamental olhar para ela, em todas as suas dimensões, para podermos pensar a vulnerabilidade num sentido que ultrapasse o estritamente físico ou populacional, permitindo buscar a relação orgânica entre eles.

Novas questões e uma agenda de pesquisa Mesmo que esses estudos tenham apontado aspectos importantes para a compreensão da vulnerabilidade do lugar, notamos dificuldade em operacionalizar, em cada caso, aspectos mais fortes ou mais evidentes que fossem diretamente ligados à vulnerabilidade. Isso se mostrou, para nós, como uma indicação de que é provável que o problema seja a forma como estávamos encarando a vulnerabilidade. Em primeiro lugar, não se estuda a vulnerabilidade, algo intangível e conceitual. Ela se revela por meio de outros elementos que, estes sim, são escrutinados pela pesquisa. Riscos e perigos são o foco, as estruturas e os qualitativos disponíveis para que o lugar (pessoas, comunidades) possa movimentar-se quando em risco ou em face do perigo. Assim, a discussão sobre vulnerabilidade sempre nos conduz a pensar sobre insegurança e sistemas de proteção, que abrem uma perspectiva fundamental para que possamos identificar elementos que ajudam a compor a vulnerabilidade.

A ideia de um atlas de lugares pode ajudar a pensar áreas grandes em termos de sua vulnerabilidade. Se estudos que priorizam a escala grande conseguem abarcar grandes áreas a partir da simplificação dos fatores envolvidos, estudos em pequena escala conseguem aprofundar elementos específicos em cada caso, permitindo, a partir da compreensão do fenômeno, pensá-los enquanto essências, ou seja, enquanto fatos do mundo. Uma amplitude considerável de lugares com diferentes características e situações, amarrados por um plano espacial mais amplo comum (como a região), permite esse tipo de análise, por compartilhar um mesmo contexto espacial e essencial (circunstancialidade) que lhes coesão.

Por outro lado, o lugar pode ser adensado à medida que aumentamos nossa capacidade analítica em outros campos. Em cada estudo que temos feito, uma dimensão demográfica pouco explorada, tais como as composições etárias, a organização da família e o ciclo vital. Estas variáveis são componentes essenciais dos lugares e ajudam na sua compreensão ecológica. As comunidades ou os territórios são fenômenos, o que implica uma perspectiva holística e integrativa na sua leitura, que focaliza a relação entre os elementos naquele determinado contexto em sua circunstancialidade. Esta é fundada numa dupla característica de singular e universal que permite olhar para lugares enquanto exemplares e ao mesmo tempo únicos, permitindo à pesquisa avançar a partir de casos específicos. Mas, para isso, é necessário abrir as possibilidades de incorporação de matrizes causais a perigos específicos. Mas quais riscos selecionar? Tomando a postura metodológica aqui desenvolvida, é necessário não delimitar os perigos a priori. Isso fecharia as possibilidades das inter-relações relevantes e de identificar os fatores que interferem na constituição da vulnerabilidade.

Talvez essa seja a maior diferença em orientar a pesquisa pela perspectiva da vulnerabilidade do lugar e não da vulnerabilidade social ou sociodemográfica. O lugar circunscreve uma situação da relação população-ambiente, permitindo acompanhar suas interações em dado espaço-tempo social e cultural. A pergunta "vulnerabilidade a que?" não é feita no início, pois a vulnerabilidade é entendida como qualitativo, neutra portanto, característica própria dos fenômenos diante de todas as situações.

Mas para que isso se efetive, é necessária profundidade no estudo dos lugares.

O envolvimento característico de pesquisas qualitativas exige tempo e constância para que o processo do pesquisador de ultrapassar a linha imaginária que separa os-de-dentro e os-de-fora possa se efetivar, conseguindo compreender os lugares pelo olhar do outro, daquele que o experiencia diretamente.

Em termos analíticos, entendemos que alguma forma de organizar os lugares a partir de tipos ideais seria de valia na tentativa de encontrar traços essenciais que possam ajudar a compreender os processos de maneira mais ampla.

Nesses primeiros estudos, podemos ensaiar uma aproximação preliminar com uma tipificação dos lugares estudados, conforme o Quadro_1. Os temas escolhidos para a tipologia permitem dar ênfase a certos aspectos, tornando visíveis diferenças ou semelhanças. É evidente que olhar por vários ângulos nos ajudará a identificar elementos diferentes revelados pelas especificidades dos lugares.

Por outro lado, a identificação daquilo que é mais essencial em cada um é importante para balizar as classificações, não caindo num montar e desmontar de um quebra-cabeça sem sentido.

Utilizamos variáveis ecológicas num esforço de identificar aspectos comuns que permitam a discussão dos lugares a partir de suas semelhanças e diferenças. Em vista disso, nesse primeiro esboço, uma prevalência de aspectos que caracterizam, no sentido da produção e organização do espaço, os lugares. Esses aspectos (como a situação quanto à incorporação, a posição na cidade e na região e o próprio uso do solo) expressam a espacialidade, ou seja, os aspectos materiais da reprodução social, que compõem a matriz causal da vulnerabilidade, servindo também de contextualização para uma análise dos lugares. Contudo, orientando-se pela fenomenologia, essa espacialidade é re-significada a partir da própria experiência, a qual atribui valores e redefine as distâncias e os ritmos utilizando outras lógicas e racionalidades.

Apesar dessa diferença, a espacialidade é parte integrante dos lugares, ajudando na composição da trama que os anima. Por outro lado, aspectos importantes como o tempo de residência nos lugares são fundamentais para podermos compreender os laços de envolvimento espacial das pessoas. Em vista disso, definir melhor a condição de migrante do próprio bairro (predominam migrantes ou não-migrantes?) e das pessoas (quantos anos são necessários para consolidar relações no lugar?) é necessário para melhor entender as condições e recursos que as pessoas dispõem para lidar com os perigos.

Outro aspecto a ser considerado refere-se ao fato de que as questões ambientais propriamente ditas dificilmente aparecem como relevantes sem que haja uma dedicação específica do pesquisador ou alguma situação muito significativa no lugar. Isso se deve principalmente à forma como ainda lidamos com o ambiente, que, apesar dos progressos em termos de tomada de consciência, ainda não faz parte da principal pauta de preocupações das pessoas.

Isso, de fato, não chega a ser um problema, desde que tomemos o ambiente no seu sentido mais amplo, envolvendo o ambiente construído tanto quanto aquele da natureza. As cidades são os ambientes humanos por excelência nesse século. Por isso, considerar as variáveis ecológicas, numa perspectiva relacional, nos permitirá discutir as relações referentes a população e ambiente a partir de questões que sejam pertinentes ao bem-estar e à qualidade de vida das pessoas, a preocupação que acompanha e motiva tais estudos.

Nossa velha questão, portanto, recebe outra dimensão. Pensar a flecha causal P→A ou A→P, hoje, envolve pensar a relação sociedade-natureza em seu significado humano radicalizado. O ambiente vivido, tecnificado e mediado não é aquele das relações regionais em ecossistemas tradicionais. A realidade brasileira apresenta desafios mais complexos aos estudos de população, que, mesmo nas grandes regiões agrárias ou florestais, têm de lidar com a presença da sociedade urbana. A velha questão, portanto, parece ter sido invertida na medida em que a influência do ambiente sobre os homens é vista na forma de males (riscos e perigos). Nos ambientes metropolitanos, foco de nossa investigação e reflexão, a espacialidade e a abordagem ecológica (trabalhada nos moldes fenomenológicos) têm apontado caminhos para pensar a relação P-A em seu duplo movimento, indicando a importância da abordagem do lugar por focar-se na circunstancialidade das interações P-A em dado contexto espaço-temporal, geográfico e demográfico.

Mesmo que não tenhamos novas respostas à velha questão, problematizá-la faz parte do caminho de redescoberta do sentido do habitar contemporâneo, expressão maior da relação da população em seu ambiente.


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