Bases sociais e intérpretes da "tradição trabalhista" no Rio Grande do Sul
As narrativas de consagração do trabalhismo efetuadas por protagonistas
políticos encarregados e interessados na eternização da "tradição política" são
elementos de fixação de identidades e de explicitação de rivalidades e
alinhamentos. As estratégias de ativação, apropriação e transmissão de valores,
ícones e símbolos que conferem sentido à idéia de continuidade constituem
importantes veículos de formação de uma comunidade afetiva (Halbwachs, 1994),
mas revelam também o processo de disputas e negociações relativas ao uso da
memória política (Pollak, 1989). O foco deste artigo está centrado nas
disputas, invenções e reinvenções da "tradição trabalhista" no Rio Grande do
Sul.
A utilização do passado trabalhista na política contemporânea gaúcha pós-regime
militar não pode ser caracterizada simplesmente como um trabalho de memória
institucional e oficial (integrante da memória consagrada pelo Estado), nem
tampouco como uma memória subterrânea silenciada durante décadas que emerge em
um novo cenário histórico. Porém, essa utilização da memória possui elementos
que aproximam duas modalidades de enquadramento da memória identificadas por
Pollak (idem). Por um lado, o "legado getulista" ' e, por conseqüência, a
apropriação trabalhista feita dele ' contém fatores de identificação que
remetem à construção da memória nacional por meio da consagração, nos discursos
oficiais, do dirigente político e estadista. Por outro, tais elementos se
fundem, no Rio Grande do Sul, com as narrativas de lutas e resistências que
atravessaram o século XX, produzindo "heróis" que ascenderam politicamente,
enfrentando eleitoral e militarmente inimigos políticos.
A partir do final da década de 1970, o padrão de celebração dos ícones da
"tradição" ganha novo impulso, depois de duas décadas de regime militar. Os
políticos identificados com o trabalhismo, que militaram no MDB* e foram
cassados ou exilados, transmitiram suas lembranças no quadro familiar e nas
redes de sociabilidade afetiva e política1. Contudo, não se pode sustentar que
essas lembranças fossem "proibidas", "indizíveis" ou "vergonhosas"; elas apenas
formavam um estoque de referências cuja utilização pública exigia triagens,
sínteses e omissões e relegava a valorização e enunciação de determinados
eventos, símbolos e ícones ao lugar de lembranças "zelosamente guardadas em
estruturas de comunicação informais" (idem:8). A emergência de uma conjuntura
favorável, com a abertura política e a reintegração dos principais quadros do
trabalhismo na cena política nacional, configura a ocasião para que parte dessa
memória se situe novamente no espaço público, inclusive como objeto de disputa.
Uma série de agentes e partidos se autorizou, através de itinerários e recursos
distintos, para acionar essa memória. Esse trabalho de memória inclui a
utilização do passado como estratégia de garantir não só a coesão das
coletividades e a complementaridade entre as partes, mas também as "oposições
irredutíveis" (idem:9). Tal esforço está presente nas práticas que visam
homenagear e redefinir o "espólio político".
A ativação do passado é, assim, obra de múltiplos agentes e instituições que
estabelecem simultaneamente quadros de referência e um trabalho de
enquadramento. Os quadros de referência são os sentidos a serem disputados e
sobre os quais se alicerça o "passado comum", definindo as fronteiras sociais e
políticas que circunscrevem os postulantes à herança. Como tal, não sucumbem à
arbitrariedade dos discursos, pois exigem a justificação das práticas e dos
usos, assim como impõem o "imperativo da coerência" nos discursos sucessivos.
Como sustenta Pollak:
"O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material
fornecido pela história. Este material pode sem dúvida ser
interpretado e combinado a um sem número de referências associadas;
guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais,
mas também modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o
passado em função dos combates do presente e do futuro. Mas assim
como a exigência de justificação [...] limita a falsificação pura e
simples do passado na sua reconstrução política, o trabalho
permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência
de credibilidade que depende da coerência dos discursos sucessivos".
(idem:10)
Além disso, nesse processo de invenção, recepção e apropriação da herança, a
consagração dos heróis da "tradição política" desempenha papel primordial. É
pela proximidade e pela lealdade demonstrada que os candidatos a sucessores
buscam justificar sua pretensão a tal posto, propagando, para tanto, sinais e
imagens capazes de associá-los aos líderes que compõem as referências comuns.
Como indica Coradini, estão em jogo, nessas disputas e homenagens, além de
lutas políticas, "os princípios de aferição da excelência 'humana' e, portanto,
de hierarquização social" (1998a:211-212). Os heróis celebrados encarnam os
recursos sociais e culturais dominantes e extraordinários, os valores culturais
passíveis de conferir um conteúdo de canonização e a busca de um sentido para a
luta política, mediante o reconhecimento e a identificação nas relações sociais
e nos esquemas de classificação acionados.
Este artigo segue algumas diretrizes apontadas por Coradini (idem:227-229) para
o cenário sul-rio-grandense no que diz respeito às modalidades de legitimação
presentes na associação com o passado e na eficácia política dessa associação.
Em primeiro lugar, a localização fronteiriça do estado, a herança do caráter
escravista e hierarquizado da sociedade gaúcha ' na qual o exercício da
dominação se realizava através das armas ', e as guerras de facções que
marcaram os conflitos políticos são aspectos que contribuem para a construção
da imagem dos "heróis militares". Em segundo lugar, a emergência de setores da
"pequena burguesia" dotados de capital cultural e integrados por descendentes
de famílias de imigrantes se reflete nos investimentos que visam à "reafirmação
e redefinição da identidade étnica", e na criação de uma "nova simbologia" que
exalta a "ideologia do trabalho" e da "ascensão social". Em terceiro lugar, a
expansão das vias de escolarização e a propagação de "ideologias e posições
ditas de esquerda" repercutiu na afirmação de novos mediadores e na
proliferação de reinterpretações da história local e de invenções de "novas
mitologias". Para Coradini (idem:232), o processo de transmissão do "poder
político" em condições periféricas como as do contexto brasileiro, e
especificamente o gaúcho, se dá mediante uma concepção de política que combina
o princípio da "reciprocidade" ou do "dom" com a personificação de
"qualidades". Por conseguinte, a concepção social hierarquizante e a
naturalização da diferenciação entre representante e representado, bem como o
peso dos princípios de legitimação carismática e da personificação dos trunfos,
criam as condições de transmissão através da fidelidade do séquito e pela
encarnação do carisma. As tentativas dos "candidatos a herdeiros" de
estabelecer uma maior ou menor proximidade social e ideológica com os líderes e
heróis consagrados, pautadas nas dinâmicas sociais e nos princípios de
hierarquização elencados acima, conformam as disputas pelas "heranças", a
apropriação dos "legados" e a perpetuação dos patrimônios.
Nessa dupla vinculação (ao líder heroicizado e aos critérios de seleção em
pauta) age também o que Hélias (1979:747) denominou troca simbólica, envolvendo
as homenagens aos mortos. Instaura-se, para o morto, uma condição de credor e,
para os vivos, uma condição de devedores. A homenagem, como sinal de gratidão,
não é correlativa à dívida estabelecida e, por isso, não encerra a
reciprocidade exigida dos vivos em relação aos mortos. Como afirma Hélias: "A
troca simbólica não contém nenhuma reciprocidade que possa ser dissolvida, uma
vez que se encontra desestabilizada entre um crédito que sempre pode se
avolumar e uma dívida impagável dos devedores" (idem:749). Isso decorre do fato
de a fonte da dívida residir na "vida dada" pelo morto (credor) e da
necessidade dos vivos cumprirem a sua missão ' a dívida só deixa de existir com
a morte desses últimos. A eficácia ideológica das homenagens reflete-se na
"valorização da morte guerreira", incidindo na valorização dos personagens e
nos modelos de condutas a serem seguidos pelos vivos. Portanto, as homenagens e
"resgates" aqui analisados adquirem o conteúdo de reafirmação da lealdade por
meio do reconhecimento da dívida. Afora isto, são modalidades de afirmação do
"legado", externalizando a crença na herança como um patrimônio a ser gerido, o
culto à memória comum como identidade coletiva e a renovação da filiação aos
signos que atestam a continuidade.
Os protagonistas engajados no culto à "tradição", à herança, à memória, à
filiação etc. maximizam, nas lutas políticas e eleitorais, sua inscrição nesse
"legado". Conforme Coradini: "dependem diretamente da eficácia de elaboração e
difusão de imagens sociais e, assim, a própria imagem pode ser herdada por
associação ou aproximação com heróis já consagrados" (1998a:232). Os usos da
memória, porém, não se resumem a essas associações ou aproximações propagadas,
mas também às alianças horizontais e verticais que possibilitam no presente, e
às dívidas de reciprocidade e lealdade que estabelecem para o futuro. Entre as
formas de captar tais estratégias, optou-se pelo exame de produções escritas
(livros, artigos e textos) de homens políticos que visam a "resgatar" o
"legado" e inscrever os agentes em sua "genealogia".
A utilização adotada aqui de invenção da tradição segue o tratamento dado por
Neiburg, segundo o qual o uso da expressão invenção
"[...] nada tem a ver com um juízo acerca da artificialidade das
interpretações, menos ainda com qualquer suposto a respeito da
liberdade ou da eficácia das vontades individuais na construção dos
fatos sociais [...], busca simplesmente acentuar uma perspectiva não
substancialista, atenta à dimensão produtiva das ações sociais sobre
a 'realidade' social" (Neiburg, 1997:16).
A "tradição política" revelada nos debates e conflitos, por sua vez, permite ao
pesquisador apreender "a gênese dos agentes sociais que se constituíram por
meio deles, as instituições a partir das quais falaram, as formas de produção
cultural que procuraram consagrar" (idem:16).
Para apreender como o trabalhismo se transformou em objeto de debates e
disputas entre atores que procuraram se inscrever nessa história, é importante
pôr em relação alguns dos seus intérpretes, analisando as bases sociais da sua
militância e os alinhamentos políticos que efetuaram. Neste artigo, examinam-se
três formas de avaliar o "legado trabalhista", suas origens, seus conteúdos e
sua natureza. As perspectivas sustentadas por atores políticos que optaram pelo
PDT, pelo PMDB e pelo PT condensam alguns dos repertórios de identificação
existentes, indicam as bases de mobilização da agremiação e do seu líder,
revelam as estratégias de afirmação dos autores no interior da sua facção
política e sinalizam os princípios de hierarquização social e política em luta
e as bases culturais de sua legitimação.
A diversidade das opções partidárias dos quadros políticos que reivindicam de
alguma forma a continuidade da "tradição trabalhista" traduz três processos
interligados. Em primeiro lugar, as fidelidades ou disputas fomentadas ainda no
PTB, renovadas no interior do MDB e/ou transmitidas a este e que emergiram
novamente, com maior nitidez, na divisão entre PMDB e PDT e também entre o PMDB
e o PT. Em segundo, as redes de lealdade e as clivagens construídas no interior
do MDB, que pautaram as escolhas pelas novas siglas, bem como condicionaram a
manutenção de bases políticas, o reingresso na arena eleitoral (sobretudo para
cassados e exilados) e a emergência de novas lideranças2. Em terceiro, os
princípios concorrentes de hierarquização social e de critérios de aferição da
"excelência humana" em pauta no contexto sul-rio-grandense, que são
reconvertidos para o espaço político e criam afinidades entre homens políticos,
funcionando como parâmetros para a reconstrução da "tradição", para a
heroicização dos ícones e para a localização de diferentes correntes políticas
(ou siglas) e de seus líderes, como continuadores do "legado".
Serão analisados textos produzidos por três agentes que se lançaram no esforço
de interpretar a "tradição" e seu "legado", logo situando-se entre os pretensos
herdeiros da mesma, cotejando-se as leituras produzidas sobre o trabalhismo
presentes em dois livros escritos por Miguel Bodea (1979; 1992), na
apresentação de Pedro Simon (1994) a uma coletânea de textos de Alberto
Pasqualini organizada por Simon e, finalmente, em três artigos de Tarso Genro
(1976a; 1976b; 1976c), lançados durante a década de 1970 em um "jornal
alternativo" dirigido a militantes de esquerda. Ao apresentar as narrativas de
Miguel Bodea, Pedro Simon e Tarso Genro, não se pretende contemplar o conjunto
de leituras possíveis, mas antes proceder no sentido de revelar "a definição do
objeto de referência [...], a identidade social de cada sujeito debatedor [...]
e as várias expectativas de cada um deles nas relações entre objeto e sujeito"
(Neiburg, 1997:46). Há, entre eles, o reconhecimento mútuo acerca da autoridade
pessoal e política de cada um para expressarem, como porta-vozes de uma
"corrente de opinião", uma leitura sobre o objeto; compartilham, igualmente, a
crença no "legado" e nos seus elementos formadores e comungam o sentido de
"resgate" como fundamentação das tomadas de posição nas lutas políticas
contemporâneas. Ao perseguir os argumentos de autoridade desses protagonistas,
é possível captar não só os recursos e as lógicas legitimadores da posição
social dos agentes e instituições que reinterpretam a "tradição política", como
também o espaço social e cultural que deu origem a essa tradição e fez emergir
os agentes a ela identificados.
A seguir, são examinadas as narrativas desses atores à luz das suas origens
sociais, dos seus recursos pessoais e das suas fidelidades políticas. Os três
intérpretes apresentam origens diferentes para o trabalhismo ("positivismo
castilhista", "catolicismo pasqualinista" associado ao "nacional-
desenvolvimentismo varguista" e "populismo"), selecionam a centralidade de
alguns vultos, estabelecem uma triagem entre os elementos a serem apropriados
nas lutas futuras, nomeiam as correntes políticas (o "socialismo democrático"
do PDT, a "socialdemocracia" com componentes de "solidarismo cristão" do PMDB
do Rio Grande do Sul e o "socialismo" em uma vertente que reivindica a
centralidade do "método científico marxista") e os atores responsáveis pela
gestão do patrimônio ou por sua superação (o que não deixa de significar
continuidade), e se inscrevem nessa "tradição". Ao mesmo tempo, convergem sobre
elementos como o "projeto de desenvolvimento", o "nacionalismo como bandeira",
a bifurcação originária entre os dois fundadores (Vargas e Pasqualini), o
"legado" da valorização partidária e a crença na especificidade da política
regional como "raiz" da particularidade das formas de fazer política no Rio
Grande do Sul.
MIGUEL BODEA E O PDT: VALORIZAÇÃO DO POSITIVISMO, AFIRMAÇÃO INTELECTUAL E
"RETOMADA DO FIO DA HISTÓRIA"
A versão mais difundida e dominante acerca do "espólio" trabalhista sustenta a
centralidade de Leonel Brizola como herdeiro de Getúlio Vargas e João Goulart.
Contribuem, para tanto, o itinerário construído pelo personagem e as leituras
retrospectivas feitas sobre ele, assim como o proselitismo dos seguidores do
seu projeto partidário, o PDT. A seguir são demonstrados alguns elementos
importantes presentes na sua trajetória e o trabalho de "resgate" e de
localização de Leonel Brizola, do PDT e dos seus adeptos nesse continuum
histórico desempenhado por um dos seus seguidores, Miguel Bodea.
Leonel Brizola obteve êxito em se constituir como continuador da "tradição" que
se iniciou com Getúlio Vargas e teve prosseguimento com João Goulart. À
vinculação pessoal e familiar que conquistou junto aos líderes da "linhagem",
somou a construção do carisma com base em uma biografia de ascensão social e de
realizações "heróicas". Começou a exercer sua liderança estudantil no Centro de
Estudantes Universitários de Engenharia ' CEUE da Faculdade de Engenharia do
Rio Grande do Sul, ingressando na militância partidária por meio da Ala Moça do
PTB. De seu itinerário político até a instalação do regime militar constam os
seguintes cargos: eleito deputado estadual constituinte em 1947; reeleito em
1950 (o mais votado no PTB) e escolhido líder da bancada; candidato derrotado à
prefeitura de Porto Alegre em 1951; secretário de Obras do governo de Ernesto
Dornelles; deputado federal em 1954 (o mais votado do estado); prefeito de
Porto Alegre em 1955; governador do Rio Grande do Sul em 1958; líder do
Movimento da Legalidade em 1961; deputado federal pelo Rio de Janeiro em 1962;
político cassado pelo regime militar. A capacidade de "comunicação com as
massas" e a "competência administrativa", bem como o cunho social e
nacionalista dos programas que desenvolveu, são elementos articulados à sua
imagem. Além disso, a ligação pessoal com Getúlio Vargas e o vínculo familiar
com João Goulart (por meio do casamento com uma de suas irmãs) são elementos
decisivos.
O percurso de Leonel Brizola e a apresentação dos seus trunfos permitiram que,
no momento do golpe militar, sua liderança como um dos protagonistas do
trabalhismo no Brasil estivesse consolidada. No interior do PTB, contou com os
elos pessoais mantidos com Getúlio Vargas e João Goulart, sedimentados mediante
posicionamentos e alinhamentos que demonstravam fidelidade e reforçavam as
alianças. Contudo, sua afirmação e ascensão política se apóiam igualmente na
construção do seu carisma. Somou a construção da figura do político responsável
pela seqüência da "tradição de enfrentamentos" (inclusive armados) celebrada no
Rio Grande do Sul à inscrição pessoal (política e familiar) na "linhagem".
Ademais, fixou o "estilo de comunicação" com os eleitores invulgares, marcado
pelo "didatismo" e pela "linguagem acessível", assim como pela utilização de
meios inovadores para o proselitismo político, principalmente o rádio e mais
adiante a televisão. Ademais, foi capaz de combinar, em seu itinerário pessoal,
a origem familiar ligada às lutas políticas e militares do Estado, a conquista
de títulos escolares e posições políticas de destaque (inclusive no plano
nacional) a partir de uma "origem humilde", e a constituição de um perfil de
político "planejador" e voltado para as "questões sociais" e as "bandeiras
nacionalistas". Essa concordância de trunfos provenientes de origens diversas
se mostrou decisiva nos embates externos e principalmente nas lutas internas ao
PTB e à "família política", notadamente aquelas travadas com José Diogo
Brochado da Rocha e Fernando Ferrari no período que se encerra em 1964, e com
Pedro Simon e Ivete Vargas no período que se inicia em 1979.
Cassado em 1964 e exilado durante o regime militar, organizou ainda focos de
resistência armada a partir do Uruguai. A morte de João Goulart em 1976 e a
perspectiva de reabertura política avistada na segunda metade da década de 1970
convergem para a transmissão da "herança" e para a ativação da memória
política. A estratégia de reconstrução do PTB e sua liderança no futuro partido
ampararam-se na biografia pessoal do líder e na idéia de continuidade do
trabalhismo. Nesse processo, dois personagens se constituíram em adversários e
concorrentes na disputa pelo "legado trabalhista": Ivete Vargas e Pedro Simon.
Os trunfos acionados por ambos são elucidativos da disputa pelo uso do passado
como um recurso político. Ivete Vargas aliou às suas redes de relações no
governo federal o uso do sobrenome e do parentesco, que a ligavam a Getúlio
Vargas, para disputar a legenda, obtendo êxito. Pedro Simon utilizou o papel
desempenhado como líder do MDB (sigla que abrigou os trabalhistas durante o
regime militar) no Rio Grande do Sul para mobilizar os quadros que se auto-
intitulavam trabalhistas no sentido de permanecerem no PMDB, no estado
considerado "berço do trabalhismo".
Após perder a legenda, Leonel Brizola fundou o Partido Democrático Trabalhista,
que teve como móbil de identificação o esforço de mostrar que o partido era o
elo possível com a "história trabalhista" nele mesmo encarnada. Acrescente-se a
isso o período de exílio e a circulação internacional, que lhe permitiram
constituir uma rede de contatos com líderes socialistas e socialdemocratas de
várias partes do mundo, fazendo que a imagem do líder contivesse, em um só
golpe, o potencial político de um "mobilizador das massas" e a disposição para
o combate, certificados pela "origem" e pela "biografia", os quais se somavam
ao trânsito internacional. Esses elementos colaboram para a afirmação da figura
do "homem político" inscrito no padrão de legitimação local condizente com a
"história gaúcha", padrão dotado de exemplaridade e marcado pela composição de
lógicas regionais, nacionais e internacionais na encarnação de um "projeto".
Assim, elegeu-se duas vezes governador do Rio de Janeiro e disputou em duas
ocasiões a presidência da República (sem sucesso) pelo PDT3.
Miguel Bodea nasceu em Minas Gerais. Oriundo de um grupo familiar com
significativos investimentos escolares, é filho de diplomata, e sua irmã,
Bárbara Freitag, é doutora em sociologia (identificada com o marxismo) e
professora aposentada da Universidade de Brasília ' UnB. Bodea estudou no
Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ' UFRGS,
formou-se em economia em Cambridge (Inglaterra) e obteve o título de mestre em
ciência política pela Universidade de São Paulo ' USP. Sua circulação
internacional possibilitou, além da formação em economia, a participação em
institutos de estudos ligados a partidos políticos, como o Partido
Socialdemocrata Alemão, e a conclusão de um curso de graduação em ciências
sociais na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Aliou sua
formação escolar a funções políticas, como as de assessor do MDB na Assembléia
Legislativa do Rio Grande do Sul, na década de 1970, e do governador do Rio de
Janeiro pelo PDT, Leonel Brizola, na década de 1980. Tais inserções
contribuíram para sua "liderança política e intelectual" no Brasil, onde foi um
dos idealizadores do Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais '
IEPES do MDB e consultor do Instituto Latino-Americano do Desenvolvimento '
ILDES, órgão vinculado à Friedrich Ebert-Stiftung (instituição alemã ligada à
socialdemocracia).
O acesso e o contato com líderes da socialdemocracia européia e sua militância
dentro do trabalhismo são registros que se mesclam na legitimação das suas
tomadas de posição. A opção pelo PDT, com a reorganização partidária pós-regime
militar, se alicerça nos vínculos anteriores cultivados (como assessor da
bancada do MDB) e na aproximação da sigla e de seu líder com dirigentes (Mário
Soares, Willy Brandt, François Miterrand, entre outros) e organismos
classificados como socialdemocratas ou socialistas. Sua contribuição e sua
relevância política se amparam nos títulos, laços e competências para
reinterpretar a "história do trabalhismo" sob o duplo registro de continuidade
com a "tradição política gaúcha" (leia-se positivismo) e de formulação de um
"projeto político" (o PDT de Leonel Brizola).
Os prefácios a seus dois livros que tratam do tema são elucidativos. Otávio
Caruso Brochado da Rocha ' filho e sobrinho de lideranças do PTB e neto de um
líder do PRR ', considerado um dos principais dirigentes e "teóricos" do
trabalhismo, saudou a publicação do ensaio de Miguel Bodea intitulado A Greve
Geral de 1917 e as Origens do Trabalhismo Gaúcho (1979). No prefácio, enfatiza
os títulos escolares do autor e sua dedicação à "práxis política [...] na
qualidade de assessor das oposições gaúchas" (Brochado da Rocha, 1979:7).
Identifica a origem da "motivação" do autor no "pulsar das bases oposicionistas
gaúchas" e na sua necessidade de entender por que "ressoava em todos [...] a
carta-testamento de Getúlio? Ou perpassava nas concentrações partidárias o
pensamento de Pasqualini e a tragédia de Jango? Ou estrugiam nos comícios as
ovações permanentes a Brizola?" (ibidem). Além disso, justifica a relevância da
pesquisa pela centralidade que nela assume a figura de Getúlio Vargas, como
"ponte" entre períodos históricos e partidos (PRR e PTB), acrescentando: "Não
se trata contudo de arqueologia política, mas de pesquisa a viver para o
futuro, pois Getúlio ainda vive, pela carta-testamento, tanto no afeto das
massas quanto na consciência do povo exilado" (Brochado da Rocha, 1979:9).
José Álvaro Moisés, por sua vez, em prefácio ao livro de Bodea publicado com o
título de Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul (1992), definiu tal
esforço como resultante da crença na "continuação de uma experiência correta de
mudanças sociais, no caso, o PDT de Leonel Brizola" e de seu esforço, realizado
"com grande eficiência e sentido profissional", para "fazer a ligação entre
movimentos sociais e políticos locais com seus congêneres europeus, no caso,
com tendências da socialdemocracia européia, mesmo quando os grupos nacionais
não tinham nenhuma ligação com o PDT" (Moisés, 1992:13).
A leitura das origens, da especificidade do "legado" e do percurso do
trabalhismo feita por Bodea permite perceber uma das modalidades de estratégias
de definição identitária da rede política liderada por Leonel Brizola e suas
ramificações, mediante o trabalho de memória e as justificativas para suas
tomadas de posição. A interpretação dada estabelece a associação de repertórios
que condensam a "herança" em pauta, como sinônimo de "resgate" e de "evolução",
ao mesmo tempo em que relaciona os investimentos escolares e militantes do
autor, visando a valorizar seus recursos pessoais, sua biografia e suas
possibilidades de intervenção.
Coradini já demonstrara que, na sustentação por Bodea da tese de que o
trabalhismo seria o "herdeiro" do positivismo, "se trata, simultaneamente, da
legitimação de um processo, visto teleologicamente, a formação do trabalhismo,
e da posição do 'intelectual' que o apresenta" (Coradini, 1998b:118). Nessa
estratégia, é acionada a "analogia entre 'positivismo' e 'modernização', em
oposição ao tradicional" e a vinculação entre "esquerda" e "positivismo" como
algo moderno (idem:121). Da mesma forma, posições relativas ao regionalismo
reaparecem sob a "idéia de 'peculiaridade' positiva na história política
regional" e os embates entre "positivistas" e "católicos" são lidos pelos
alinhamentos partidários "imersos numa lógica evolutiva teleologicamente
pressuposta" (idem:122).
Os dois textos escritos por Miguel Bodea sistematizam sua leitura sobre a
"história do trabalhismo". Baseados na mesma idéia central, aquela que afirma a
continuidade entre o "republicanismo castilhista" e o "trabalhismo", os ensaios
oferecem elementos de fixação da persistência de linguagens e valores na
passagem do positivismo de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros para o
trabalhismo de Getúlio Vargas e Alberto Pasqualini, sem deixar de apontar seus
desdobramentos e invariâncias nas gerações subseqüentes (como em João Goulart,
Leonel Brizola e seus seguidores).
No primeiro trabalho, Miguel Bodea parte da greve geral ocorrida em 1917 '
durante uma das gestões de Borges de Medeiros à frente do executivo gaúcho ' e
pretende explicar "as razões" que levaram a "elite política gaúcha" a
"desempenhar um papel de relevo na Revolução de 1930 e nos processos políticos
que desembocariam no chamado 'ciclo de Vargas' da história republicana" (Bodea,
1979:17). Os posicionamentos de Borges de Medeiros perante o movimento grevista
são avaliados pelos conteúdos das iniciativas (linguagem incomum entre as
elites da República Velha) e pela "rapidez" (Bodea chega a supor que os
decretos estavam prontos mesmo antes da eclosão do movimento) com que atendeu
grande parte das reivindicações (idem:37). Na argumentação de Bodea, as medidas
tomadas por Borges de Medeiros configurariam "uma nítida intervenção no
mercado, contrariando as normas do laissez-faire, laissez-passer defendidas
pelo liberalismo clássico" (idem:39). A adoção de uma "aliança de cima para
baixo" estaria amparada na doutrina "hegemônica" no PRR: o positivismo. Na
reconstrução de Bodea, "intervenção estatal" e "aliança com o operariado" são
elementos estabelecidos no seio da cúpula do partido e "prenunciam [...] o
ideário que caracterizaria o trabalhismo gaúcho" (idem:41). A seguir, Bodea
classifica o evento como "um pré-ensaio do fenômeno populista e, mais
especificamente, do trabalhismo, principalmente na sua variante gaúcha" (idem:
45), identificando nos documentos a afirmação do "pioneirismo regional [...] de
uma doutrina e uma práxis [...] em termos quase proféticos [...] predestinados
a se generalizarem a nível nacional" (ibidem).
Outro componente "ideológico permanente", o nacionalismo, seria adicionado à
"crítica ao liberalismo" e à "questão social". E, para comprovar as origens
republicanas e castilhistas do trabalhismo, Bodea utiliza o desfecho de outra
greve, ocorrida também em 1917, promovida por ferroviários, que culminou com a
estatização da Viação Férrea do Rio Grande do Sul ' VFRGS, até então controlada
por uma concessionária belga. Tal episódio é interpretado como uma nova
manifestação do tipo de "aliança de cima para baixo" patrocinada pelo PRR, e
mais uma vez são projetadas semelhanças com posicionamentos futuros: "É [...]
notório o parentesco entre a linguagem dos boletins grevistas de outubro de
1917 e a linguagem que caracterizaria o trabalhismo getulista várias décadas
mais tarde, sintetizada [...] na carta-testamento de Vargas" (Bodea, 1979:60).
A perenidade desses códigos é acompanhada da apresentação de um personagem
responsável tanto pela tarefa de perpetuar tais valores e símbolos quanto de
renová-los e "projetá-los" nacionalmente. Bodea situa, dessa forma, o papel de
Getúlio Vargas no interior de um processo de sucessão política no qual "Borges,
a exemplo do que lhe fizera Júlio de Castilhos ao passar-lhe o cetro da
liderança republicano-positivista, precisava ungir um herdeiro de comprovada
fidelidade. Sua escolha recaiu sobre Getúlio Vargas" (idem:86). A apropriação
da herança é legitimada pelo protagonista, que relata o processo através de um
duplo movimento: sinais de continuidade em relação à "tradição" e demonstração
de competência (biografia e habilidades) para administrar e renovar o estoque
de códigos de adesão. Bodea enfatiza, nesse momento, a participação destacada
de Getúlio Vargas em lutas armadas em que os republicanos se envolveram e a sua
experiência como negociador, conquistada no exercício dos cargos de deputado
federal e de ministro da Fazenda. Além disso, classificando o líder político
simultaneamente tanto como depositário dos códigos de disciplina e fidelidade
que marcam a sua "tradição partidária" quanto dos recursos de trânsito que
fixam a capacidade de negociação e de estabelecimentos de alianças, procura
demonstrar a "pré-aptidão da elite gaúcha para o exercício do poder nacional"
(idem:87).
A referência ao personagem mítico singularizado por qualidades excepcionais é
reforçada pela exemplaridade desse em personalizar e maximizar trunfos e
características, lidos como decorrentes da especificidade regional e da "pré-
aptidão" desfrutada por uma geração de quadros políticos formados no PRR. Bodea
sintetiza seu argumento defendendo que os positivistas haviam formulado "de
forma embrionária" experiências que vieram a se generalizar no país,
identificando a "herança positivista" na legislação trabalhista e em um "novo
modelo de desenvolvimento nacional", que incluiria a "mobilização dos
trabalhadores" e a "bandeira do nacionalismo e do desenvolvimentismo" (idem:
93).
Em trabalho posterior, Bodea (1992) aprofunda suas teses. Apoiando-se nos
conceitos de "intelectual orgânico" e de "hegemonia" de Gramsci e na noção de
"interpelações democrático-populares" de Laclau, Bodea busca assinalar os
mesmos elementos (aproximação com setores populares, nacionalismo,
desenvolvimentismo, intervenção estatal e especificidade gaúcha) em um
continuumque se estende da afirmação de Vargas e de sua "herança positivista",
passa pela complementaridade ou divisão de tarefas entre Vargas e Pasqualini e
chega à reprodução dessas funções, compartilhadas por João Goulart e Leonel
Brizola.
A descrição da confluência de três vertentes na formação do PTB ' denominadas
por Bodea (1992:21) "corrente sindicalista", "corrente doutrinária-
pasqualinista" e "corrente pragmático-getulista" ' estrutura a articulação dos
elementos selecionados pelo autor. Perseguindo o entrecruzamento entre tais
vertentes, estabelece um modelo evolutivo no qual elas se integram no "PTB
gaúcho". A articulação entre "elite política" (corrente pragmático-getulista),
"setores populares" (corrente sindicalista) e condução de "intelectuais
orgânicos" (corrente doutrinária-pasqualinista) possibilitaria a ligação com a
"herança positivista" e a transmissão do "legado", que se encaminha para o
nacionalismo e o socialismo4. Para ele, os futuros líderes do partido ' entre
eles os denominados herdeiros de Vargas e Pasqualini, João Goulart e Leonel
Brizola ' processariam "uma espécie de simbiose política entre as três
vertentes formadoras do partido" (idem:45).
Na sua leitura, teria ocorrido, no seio do PTB do Rio Grande do Sul, uma
"divisão de tarefas" entre Vargas e Pasqualini, os quais se diferenciariam e se
complementariam, segundo ele, em relação à estratégia política (projeto
nacional e projeto partidário), à esfera geográfica de atuação (nacional e
regional) e à divisão de funções político-partidárias (estrategista político e
doutrinador e teórico). O projeto político de Vargas é percebido com base em
"tendências modernizantes", identificadas como o prosseguimento do "ideário
positivista e castilhista". Nesse trabalho, Bodea situa Pasqualini nessa
"tradição", afirmando que valores como "cooperação" e "equilíbrio social"
seriam condizentes com a "mesma matriz que orienta o ideário de Vargas e seus
principais companheiros da Revolução de 1930: o republicanismo castilhista do
PRR, fortemente influenciado pelo pensamento positivista" (idem:153).
Novamente, a triagem de elementos recai sobre a intervenção estatal, a crítica
ao imperialismo e ao liberalismo e a mobilização popular. O caráter
complementar da liderança nacional de Vargas e da liderança regional de
Pasqualini é explicado com base no pressuposto da especificidade da política
gaúcha: "maior organicidade e consistência dos partidos" e ocorrência de um
"padrão de evolução histórica" (idem:173), pelos quais as lideranças são
projetadas nacionalmente, estabilizando, em decorrência da experiência política
ímpar que acumulam no plano regional, o sistema partidário. Em seguida, o autor
projeta nas gerações futuras a possibilidade de ascensão a posições centrais e
resguarda para as lideranças locais o papel de intérpretes e guardiões da
"coerência ideológica". Encerrando, Miguel Bodea caracteriza a formação do
partido político como resultado das tarefas doutrinárias e de produção de
consenso "no momento da sociedade civil" (obra de Alberto Pasqualini) e de
estratégia política "no nível do aparelho de Estado" (tarefa visualizada em
Getúlio Vargas) (idem:181). A partir deles, Bodea procura afirmar o conteúdo
"reformador" e "modernizante" do trabalhismo com "raízes" no "positivismo", o
qual teria como padrão de "evolução" um "populismo operário e socialista",
concepção que se contrapõe às interpretações negativas sobre o populismo.
É possível uma dupla linguagem de legitimação dos "herdeiros": 1) um elo
estabelecido com o passado e 2) uma ruptura no processo de evolução que estava
em curso. Assim sendo, observa-se a justificação e a valorização dos chamados
herdeiros do trabalhismo da seguinte maneira: "os próprios herdeiros de Vargas
e Pasqualini no trabalhismo, ou seja, Jango e Brizola, reproduzem [...] o
padrão de divisão de tarefas característico das lideranças gaúchas" (idem:196).
E a fundamentação e o "resgate" de um percurso "quebrado" aciona narrativas
como esta: "A queda do regime constitucional provoca [...] uma quebra profunda
no processo de evolução do trabalhismo de massas. [...] seria possível
argumentar que o tempo histórico [...] foi insuficiente para o pleno
desenvolvimento do trabalhismo" (idem:209).
A linguagem utilizada por Bodea nessa obra lança mão de termos como "caráter
incomum" e "especificidade", os quais são vinculados aos de "prenúncio", "pré-
ensaio", "parentesco" etc. Nessa combinação de "resgate" com tentativa de
sistematização do "fio da história", Bodea sustenta a continuidade e a
relevância do projeto político ao qual é filiado, assim como a centralidade do
líder político ao qual é ligado, Leonel Brizola. Da mesma forma, ao conceber a
"tradição política" como depositária de uma história regional ímpar e a
complementaridade positiva entre "práxis" e "formulação teórica" afirma a sua
posição nessa "genealogia".
PEDRO SIMON E O PMDB: INFLUÊNCIA DO CATOLICISMO, AFIRMAÇÃO DO MDB E O "LEGADO
PASQUALINISTA"
O reconhecimento e a consagração dos "herdeiros" e da "tradição" são igualmente
tributários dos trabalhos de apropriação e reivindicação do "legado" por parte
de diferentes protagonistas, e dos conflitos que se estabelecem entre os porta-
vozes do trabalhismo no Rio Grande do Sul, principalmente com aqueles
classificados como dissidentes. Entre esses, os casos de maior notoriedade são
os de José Diogo Brochado da Rocha, Fernando Ferrari e Pedro Simon. Os três
apresentam carreiras intimamente ligadas ao antigo PTB e às suas vinculações
com Getúlio Vargas e Alberto Pasqualini, assim como também disputaram, em
diferentes momentos, o espólio do trabalhismo no Rio Grande do Sul. As origens
familiares, os itinerários políticos e os desfechos, em termos das adesões
conquistadas, sinalizam o entrecruzamento entre estrutura e bases do patrimônio
político familiar, dos alinhamentos políticos, das inserções em redes, do
cultivo de lealdades e dos trunfos pessoais de disputa política. Além disso, os
três se associam de diferentes maneiras e com diferente intensidade à imagem
dos ícones da "tradição". José Diogo Brochado da Rocha investiu, sobretudo, na
proximidade social e política, como membro de uma "família" integrante dos
círculos de elites sociais e políticas que precedem a redemocratização de 1945,
e na antiguidade dos laços dele e de sua rede de parentesco com os adeptos do
"varguismo". Fernando Ferrari e Pedro Simon apostaram na identificação com
Pasqualini, ressaltando suas origens ligadas à imigração, sua vinculação ao
catolicismo e seu itinerário social e político. Ao contrário de José Diogo
Brochado da Rocha e Fernando Ferrari, Pedro Simon obteve sucesso como
dissidente de Leonel Brizola no trabalhismo gaúcho. Para tanto, contou com a
relação de parentesco por aliança com seu cunhado Siegfried Heuser, com a
dissolução do PTB e a formação do MDB no regime militar e com o potencial de
mobilização e de continuidade do trabalhismo que tornaram essa sigla um caso
ímpar no país.
Pedro Simon nasceu em 1930 e é descendente de imigrantes libaneses que chegaram
à serra gaúcha em 1922. Filho de um mascate, oriundo de uma família
profundamente vinculada ao catolicismo e que passou por significativa ascensão
social, Pedro Simon tornou-se um líder estudantil, elegendo-se primeiramente
presidente do grêmio do Colégio Rosário, em Porto Alegre, em seguida, do
Diretório Acadêmico Maurício Cardoso na Pontifícia Universidade Católica ' PUC-
RS, chegando, posteriormente, à presidência de duas entidades nacionais: União
Brasileira dos Estudantes Católicos ' UBEC e União Nacional dos Estudantes '
UNE. Nesse período já se identificava com Alberto Pasqualini (freqüentava
reuniões na casa do irmão desse, Arlindo Pasqualini, juntamente com Otávio
Caruso Brochado da Rocha e Flávio Ramos, entre outros, nas quais ouviam
palestras do líder) e o acompanhou quando do ingresso da União Social
Brasileira no PTB.
Em 1958, Simon defendeu, como líder da Mocidade Trabalhista, a candidatura ao
governo do Estado de Loureiro da Silva, que concorria internamente, no PTB, com
Leonel Brizola, em uma das primeiras demonstrações da rivalidade existente
entre Simon e Brizola. Em 1962, concorreu a deputado estadual (foi o 19º da
bancada do PTB). Com a extinção dos partidos políticos, filiou-se e foi um dos
organizadores do MDB, juntamente com Siegfried Heuser, Brusa Neto e Francisco
Caruso Brochado da Rocha, entre outros. Reelegeu-se em 1966 e disputou, em
Caxias, os votos pelo MDB com João Brusa Neto (líder sindical, jornalista,
membro da União Social Brasileira e secretário particular de Alberto
Pasqualini). Nessa legislatura, foram cassados, entre outros, João Brusa Neto e
Siegfried Heuser. João Brusa Neto era um dos grandes líderes do trabalhismo em
Caxias do Sul, e Siegfried Heuser era líder da bancada e presidente do MDB.
Pedro Simon herdou o reduto do primeiro e a liderança do partido e da bancada
do segundo.
Ungido sucessor de Siegfried Heuser na presidência do MDB e na direção da Ala
Majoritária do partido5, Simon reelegeu-se deputado estadual em 1970 (o mais
votado daquela legislatura) e em 1974 (novamente o mais votado). Em 1978 é
alçado ao Senado. No final da década de 1970, entra em choque com Leonel
Brizola, devido às divergências quanto ao destino partidário dos quadros
identificados com o trabalhismo, o que culminaria na divisão entre o PMDB de
Pedro Simon e o PDT de Leonel Brizola.
Pedro Simon apoiou-se no capital político acumulado durante o período de
bipartidarismo. Assim, já pelo PMDB, foi candidato a governador em 1982,
ministro da Agricultura, governador do Rio Grande do Sul eleito em 1986,
novamente senador em 1990 e 1998, líder do governo Itamar Franco no Senado e
candidato à presidência do Senado. Em 2002, chegou a ser pré-candidato à
presidência da República e à vice-presidência na chapa de José Serra. Mesmo com
a cisão local, manteve sua liderança no Rio Grande do Sul e tornou-se uma das
lideranças nacionais do PMDB.
A interpretação referente à "história do trabalhismo" e seu "legado" fornecida
por Pedro Simon, como não poderia deixar de ser, tem como referência o próprio
itinerário do "homem político". A sistematização do "resgate" e a definição da
"herança" são explicitadas em texto intitulado "Pasqualini, o mestre e o
exemplo" (1994), publicado como apresentação à obra Alberto Pasqualini: Obra
Social e Política, uma coletânea de textos e discursos do líder partidário
organizada por Pedro Simon. Na apresentação, Simon enfatiza, por um lado,
aspectos já destacados por Bodea (1992): o papel de doutrinador e teórico
(nesse caso chamado de "pregador" e "evangelizador") de Pasqualini; a
importância que assumem, para tanto, suas duas campanhas ao governo do estado
(1946 e 1954); o caráter complementar da sua liderança em relação à liderança
de Getúlio Vargas ("pragmática"); sua "ideologia nacionalista" e a continuidade
do "ideário", por meio da sua face partidária ' o PTB ', considerada ímpar no
país. Por outro lado, Simon aciona novas linguagens, e uma combinação distinta
de elementos fundamenta a sua versão da apresentação do processo de afirmação e
continuidade do trabalhismo, versão que situa a sua posição como intérprete e
herdeiro da "tradição política". Nesse sentido, são destacados elementos não
considerados ou tomados de forma periférica na leitura de Bodea (1992), como a
influência da região de origem de Pasqualini (colonizada por imigrantes
italianos); sua passagem pelo seminário católico e sua "formação cristã"; a
defesa dos imigrantes e dos "pequenos colonos"; a compatibilidade entre
catolicismo, trabalhismo e socialdemocracia; e os posicionamentos morais, como
a valorização do trabalho e a condenação do "jogo", do "vício" e da busca de
"vantagens pessoais". Além desses elementos, temas como a "batalha pela
Petrobrás", a "defesa da reforma bancária", as formulações sobre assuntos
ligados à economia (os juros e a inflação) e tomadas de posição sobre questões
como o "poder militar", o "funcionalismo", as "leis", a "reforma agrária", a
relação entre produtores e intermediadores, o "sistema econômico", a educação,
a democracia e a imprensa são enunciados com base na opção partidária, nos
posicionamentos conjunturais e nos valores éticos, religiosos e políticos do
autor do texto.
A respeito da possibilidade de convivência de diferentes versões sobre o
"fenômeno do trabalhismo e do populismo", Coradini (1998b:122) demonstra que,
paralelamente a "leituras" como a de Bodea, que sustenta a continuidade entre
positivismo, trabalhismo e socialismo, outras modalidades de apresentação são
possíveis. Isto é, "com base nas versões do 'comunitarismo orgânico', é
facilmente possível a defesa da idéia de que Pasqualini seria o resultado de
sua formação católica [...] [ou] da incorporação de novos segmentos sociais não
mais provenientes da 'campanha', mas das 'colônias' e, portanto, mais
autênticas". Segundo Coradini, em ambas as versões, se observa "uma
reivindicação, explícita ou não, de afiliações a 'heranças', daí o permanente
sentido de 'resgate'" (ibidem).
O cotejo das versões produzidas por Miguel Bodea e por Pedro Simon revela
mecanismos de afiliação e de "resgate" díspares e contrastantes, segundo as
posições a partir das quais falam. Desse modo, Pedro Simon estabelece como
fatores que influenciaram o pensamento de Pasqualini "a região em que nasceu" e
sua formação com os "jesuítas do Seminário Nossa Senhora da Conceição" (Simon,
1994:20). Partindo dessas duas ligações, Simon expõe uma série de
posicionamentos de Pasqualini, apresentando-o como o "intrépido defensor dos
descendentes de italianos e alemães" (idem:27) que, por ser "filho do campo,
jamais esqueceu os pequenos colonos" (idem:28). A "inclinação" para a justiça
social estaria alicerçada, por sua vez, na "filosofia cristã". Sua formação
religiosa é exaltada também como fonte da integração entre "humanismo",
"solidariedade cristã" e "trabalhismo". Simon chega a afirmar que Pasqualini
"demonstrou a coincidência do trabalhismo com as encíclicas papais" (idem:20).
A orientação religiosa das suas tomadas de posição faz do "teórico do
trabalhismo", na perspectiva desse intérprete, um personagem hábil e capaz de
revelar sua "erudição" e utilizá-la para derrotar adversários políticos e
sustentar seus posicionamentos políticos.
Dessa forma, são privilegiadas as passagens que associam o trabalhismo
simultânea ou alternadamente ao catolicismo e à socialdemocracia. Segundo
Simon, Alberto Pasqualini, "Socialdemocrata, na década de 20, antecipando-se em
70 anos à teoria dominante hoje na maioria dos países, passou toda a vida a
pregar sua concepção de trabalhismo, muito próxima do solidarismo" (idem:23).
Essa passagem mostra que, ao trabalho de "resgate", mistura-se o conteúdo de
predição (tal como no relato de Bodea analisado anteriormente). Tanto no
esforço de "reconstituição histórica" quanto na demonstração da qualidade de
"visionário" do protagonista, é possível verificar o trabalho de seleção e
triagem de símbolos.
As citações em que Pasqualini valoriza a formação do Partido Trabalhista
Brasileiro, como "idéia" e "organismo político" capazes de "sobreviver aos
indivíduos" (idem:26), e a "obra social" do presidente Vargas, pela qual "a
idéia e a diretriz [...] devem ser continuadas, desenvolvidas e concretizadas"
(idem:27), vinculam os personagens a uma mesma "tradição política" que se
desdobra no tempo. O trabalho de "resgate" justifica-se na lógica do argumento
pela contribuição que pode trazer às situações presentes e às gerações
políticas em atuação. Do conjunto de artigos de jornais e pronunciamentos
reunidos, Pedro Simon seleciona aqueles que avalizam seus posicionamentos
pessoais e políticos nas últimas décadas. Sendo assim, consagra o
"homenageado", revelando a "atualidade" das suas idéias e seu "pioneirismo" e
"antecipação", ao mesmo tempo em que legitima as suas próprias posições. A
socialdemocracia, a idéia do Mercosul, a integração dos imigrantes, o problema
petrolífero, os mecanismos de controle da inflação etc. são temas aos quais
Pasqualini teria se dedicado e sobre os quais Pedro Simon justifica a
pertinência de "reler Pasqualini" e a coerência dos alinhamentos que ele mesmo
adota.
Exemplar é a associação entre a implementação do Plano Real e a "influência
pasqualinista" identificada no governo de Itamar Franco (do qual Simon foi
líder no Senado). Segundo Simon, Pasqualini havia chamado atenção, "com visão
profética", para "a cobertura de déficits [...] pelo estado", assinalando:
"Foram precisos quarenta anos de inflação desenfreada para que o presidente
Itamar Franco ' discípulo à distância de Pasqualini e, por isso mesmo, muito
preocupado com as questões sociais ' instituísse esse controle como uma das
bases do Plano Real" (idem:35).
A apresentação do "legado" e a constituição do "herdeiro" não poderiam deixar
de contemplar a auto-apresentação de Pedro Simon como membro desse processo e a
localização, nessa "família política", das siglas que liderou. Sua atuação como
acadêmico no centro universitário, como coordenador da campanha a governador,
ou sua participação em reuniões no apartamento de Pasqualini, em que jovens
acadêmicos discutiam questões nacionais e discorriam sobre temas variados, são
referidas como comprovação da sua vinculação ao personagem classificado de
"mestre e exemplo". Por seu turno, aponta, como "legados de Pasqualini", a
"consciência social", os "princípios" e a "moralidade". Retomando o discurso da
especificidade, sustenta que sua influência pode ser observada em seus
discípulos e na política do Rio Grande do Sul, "onde o trabalhismo se mantém
vivo porque tem base ideológica. [...]. [e onde] não nos incomodamos em
ficarmos ensangüentados porque já estamos acostumados à fatalidade. O que não
aceitamos é a lama que desmoraliza" (idem:53). Além de demarcar traços de
"especificidades da política gaúcha" e dos políticos do estado, enfatiza o
papel do PMDB (como uma continuação do MDB) na sucessão dos valores
identificados no "legado" de Pasqualini e do trabalhismo: "O PMDB gaúcho que
emergiu do PTB é um partido de princípios, de idéias e, por isso, mesmo no
regime arbitrário, nunca cedeu, jamais se atemorizou" (ibidem).
Nesse relato, evidencia-se o sentido de associação entre Pedro Simon-PMDB e
Alberto Pasqualini-PTB. A proximidade social e de valores entre os
protagonistas políticos de gerações diferentes é reclamada e acionada por
diversos símbolos e sinais. Pedro Simon ressalta sua participação no círculo de
adeptos das "idéias de Alberto Pasqualini", sem deixar de identificar elementos
no "ícone da tradição" presentes na sua imagem, como a origem social ligada à
imigração, o catolicismo, o nacionalismo e a defesa da socialdemocracia. Tais
relações se amparam, ademais, na inscrição de ambos na "genealogia
trabalhista", demonstrando-se a vinculação entre Pasqualini e Vargas por meio
do PTB, entre PTB e seu sucedâneo no Rio Grande do Sul, o MDB, e entre esse e o
PMDB liderado por Pedro Simon. Finalmente, essa inscrição é alicerçada na
valorização da especificidade da política gaúcha e nos sinais de
excepcionalidade dos seus líderes, pelos quais Pedro Simon procura se localizar
e posicionar o PMDB. Nessa tripla associação, o autor da homenagem justifica
sua condição ao mesmo tempo de porta-voz e de herdeiro do "legado".
TARSO GENRO E A LEITURA MARXISTA: TRANSMISSÃO FAMILIAR, "SUPERAÇÃO DO
POPULISMO" E AFIRMAÇÃO DE UM NOVO DISCURSO
O percurso dos políticos da família Genro tem como origem, assumida e
reivindicada, o "passado trabalhista". As ligações políticas e partidárias de
Adelmo Genro, descendente de grandes proprietários rurais da Fronteira Oeste do
Rio Grande do Sul, começam no período do declínio econômico do grupo familiar,
por intermédio dos contatos e das relações herdadas com as "famílias" Vargas e
Goulart (formada por grandes proprietários de terra) em São Borja. Adelmo Genro
foi um dos coordenadores da primeira campanha eleitoral de João Goulart, que o
levou à Assembléia Legislativa em 1947. A forte ligação de Adelmo Genro com
João Goulart contrastava com suas divergências em relação à liderança de Leonel
Brizola. Afora isso, as relações cultivadas com outro líder do PTB, originário
da Metade Sul e seu contemporâneo de ginásio em Santa Maria, permitiram a sua
nomeação como diretor da principal escola estadual de Santa Maria.
A atuação como professor e diretor do Colégio Manoel Ribas, o "Maneco",
constituiu a base da reputação eleitoral e o trampolim para a carreira política
de Adelmo Genro, que despontou na política eleitoral ao se eleger vereador e,
posteriormente, vice-prefeito, de Santa Maria pelo PTB. O fato de ter sido
cassado pelo regime militar quando ocupava a prefeitura interinamente
transformou-o em um dos símbolos da "luta contra o regime militar" na cidade.
Durante a ditadura, atuou como advogado e conquistou posições de liderança na
seção local da Ordem dos Advogados do Brasil. Em 1980, filiou-se ao PMDB (assim
como seus filhos), partido do qual foi presidente, chegando a concorrer ao
cargo de vice-prefeito em 1982. Posteriormente, filiou-se ao PSB, sendo seu
presidente de honra no Rio Grande do Sul.
Nas décadas de 1960 e 1970, seus filhos Tarso Genro (ex-presidente da Mocidade
Trabalhista local) e Adelmo Genro Filho militaram no MDB e foram vereadores
pelo partido. Adelmo Genro era nessa época uma das "referências" da oposição no
município, e a "casa dos Genro", "território" de aglutinação de militantes,
tendo como um de seus freqüentadores mais ilustres Pedro Simon. Além disso,
Tarso Genro e Adelmo Genro Filho foram dirigentes da Juventude, órgão criado e
apoiado por Pedro Simon, e de organizações de esquerda que atuavam no interior
do MDB. Integraram no final da década a tendência Oposições Populares, liderada
pelo presidente do Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais ' IEPES
André Forster, formada por jovens lideranças e intelectuais com posições
ligadas ao marxismo e que faziam uma "leitura crítica do trabalhismo",
qualificando-o de "populista".
Assim, a notoriedade do grupo familiar e o ambiente político levaram dois dos
seus filhos à militância partidária e eleitoral. Tarso Genro foi eleito
vereador em 1968, e Adelmo Genro Filho em 1976, ambos pelo MDB. O primeiro
iniciou sua militância política partidária na Ala Moça do PTB, após ter
acompanhado as campanhas do pai na infância. Elegeu-se vereador pelo MDB em
1968, com vinte anos, e passou a fazer parte da Ala Vermelha do Partido
Comunista do Brasil. Exilou-se no Uruguai no início da década de 1970 e, no
retorno ao Brasil, passou a residir em Porto Alegre, atuando como advogado
trabalhista, escritor, poeta e crítico literário. Nesse período, juntamente com
seu irmão Adelmo Genro Filho, militou no PRC e ingressou no PMDB.
Posteriormente, filiou-se ao PT, no qual liderou algumas tendências
classificadas de "moderadas". Concorreu, em 1986, ao cargo de deputado federal
constituinte; em 1988, a vice-prefeito (elegendo-se); em 1990, a governador
(não se elegendo); e, em 1992 e 2000, a prefeito (sendo eleito). Depois de ter
sido deputado federal, vice-prefeito, candidato a governador e duas vezes
prefeito de Porto Alegre, concorreu em 2002 ao governo do Estado (perdendo no
segundo turno). Seu último cargo ocupado foi o deministro da Educação.
Os artigos de Tarso Genro analisados nesta seção foram escritos no período de
sua militância no MDB, que teve como desdobramentos sua participação, inclusive
como dirigente, no PRC, seu engajamento inicial no PMDB e, posteriormente, no
PT, pelo qual foi deputado federal, vice-prefeito, prefeito de Porto Alegre
(duas vezes) e candidato a governador do Rio Grande do Sul (em duas ocasiões).
Considerado um dos principais intelectuais da "esquerda gaúcha" e a principal
liderança das "correntes moderadas" do PT, os artigos examinados abaixo
explicitam alguns usos da "tradição trabalhista" no processo de afirmação do
protagonista no plano estadual.
Tarso Genro situa suas tomadas de posição mediante a combinação de definição da
"herança" e de demarcação das formas de "superação", ou "críticas", dos
"limites históricos e teóricos". Tal como se verifica nas narrativas de Miguel
Bodea e Pedro Simon, as estratégias do agente buscam o "resgate" e a
"evolução", imputando um sentido de continuidade com o passado e de legitimação
dos seus recursos específicos de luta política. Há, assim, uma adequação (não
necessariamente consciente ou calculada) entre a utilização de laços e móbiles
de identificação prévios com os alinhamentos presentes e a distinção no espaço
político.
Os três textos tomados aqui, publicados em 1976, expressam as interpretações
sobre o sentido da "herança trabalhista" para o MDB e, mais especificamente,
para a "esquerda gaúcha", por meio da contextualização do papel de três
lideranças dessa "tradição política": Getúlio Vargas, Alberto Pasqualini e João
Goulart. No ensaio intitulado "Reflexões sobre o Populismo", Genro (1976a)
sustenta que a especificidade do "líder populista brasileiro" Getúlio Vargas em
relação aos seus congêneres latino-americanos ' Juan Domingo Perón, Lázaro
Cárdenas, José Battle e Haya de La Torre ' residiria na "herança positiva"
legada em termos de formação de um partido e no ideário nacionalista de Vargas.
Já no artigo denominado "Alberto Pasqualini: Um Socialista no PTB?" o mesmo
autor (1976c), procura estabelecer a "grandeza" e as "limitações" da
contribuição da "pregação pasqualinista" e da sua "luta ideológica".
Finalmente, no depoimento "Sobre um presidente" (Genro, 1976b), descreve sua
convivência com João Goulart no Uruguai e expõe o "papel histórico" que, na sua
acepção, o ex-presidente teria desempenhado.
Ao analisar o "líder populista" e o "getulismo" no Brasil, Tarso Genro (1976a:
5) assume sua preocupação com a "conjuntura atual" ou "situação presente".
Partindo da caracterização do populismo como "síntese [...] de interesses de
classes sociais antagônicas, mas que, por interesse imediato, mantêm a luta
amortecida", passa a comparar as experiências latino-americanas e os
"testamentos" de seus líderes. Para ele, as grandes contribuições de Vargas
residem nas "bases de um partido populista comprometido com determinadas noções
fundamentais [...] do nosso tempo: a posição em relação à hegemonia econômica
americana e a necessidade de fortalecer a indústria nacional" (ibidem).
Classificando o "legado" partidário e o discurso nacionalista como a "herança
positiva" e o "diferencial de Vargas e do PTB", indaga: "Poderá o MDB [...]
herdar toda a força do trabalhismo e através de uma crítica modernizadora
transformar-se num partido de massas, com predomínio dos interesses dos
assalariados?" (ibidem). Propondo a defesa "em princípio" dos assalariados e
uma aliança com a indústria nacional, além da adoção de uma postura de
"revolta" em relação à "dependência desde a época colonial", postula:
"perspectivas de formação de um partido democrático, [em] que o populismo
serviria de base, mas não o deveria dominar" (ibidem). O "resgate" da
especificidade do trabalhismo, da formação de uma base partidária e do discurso
nacionalista é combinado com a afirmação de uma posição de cunho marxista, com
base na qual reivindica a leitura e a orientação da "evolução".
Essa estratégia de afirmação política e a lógica de autorização das suas
posições a partir do domínio da linguagem marxista tornam-se mais claras no
artigo sobre Pasqualini (Genro, 1976c). Nesse texto, Tarso Genro (idem:7)
inicia sua argumentação sustentando a relevância histórica de Pasqualini no
"seu tempo", devido à "pregação pasqualinista e à luta ideológica proporcionada
pela sua militância anticapitalista e não socialista, mas socialdemocrata e
modernizadora [que] foi a definição de amplos setores sociais em favor das
reformas". Rejeitando a classificação do "teórico do trabalhismo" como
"pensador socialista", a leitura das suas teses feita por Tarso Genro propõe
que ele defendia uma "posição intermediária entre o socialismo e o
capitalismo", aspecto que, na sua opinião, retrata uma linha política "bem mais
avançada do que a linha do tradicional trabalhismo" (ibidem). Porém, a posição
imputada a Pasqualini receberia a denominação de "utópica", em contraposição à
posição "científica" fornecida pelo marxismo. A leitura crítica feita por Genro
sobre a crença de Pasqualini em "um capitalismo sem dominância burguesa"
ampara-se no pretenso conhecimento das "leis da história" possibilitado pelo
marxismo, assinalando que o projeto político avaliado era "inviável em termos
históricos" (ibidem).
"Sua grandeza é indiscutível, como são igualmente suas limitações,
quiçá por ausência de um método científico para analisar as relações
sociais. Mas a partir das suas teses pode ser montado um programa
[...] desde que se adapte e se modernize alguns conceitos que hoje
são chaves para uma análise concreta da nossa realidade histórica"
(ibidem, ênfases minhas).
Nota-se como o caráter "indiscutível" do personagem e das suas limitações se
baseia em uma avaliação que é enunciada e justificada mediante o domínio e o
conhecimento de um "método científico". Além disso, a contribuição ("legado")
das suas teses seria obra de atores capazes de modernizá-la e adaptá-la dentro
de um "programa" dotado de "conceitos" e "chaves" de "análise da realidade
histórica". Logo, Tarso Genro situa-se como intérprete do passado, do presente
e do futuro e como condutor de um programa, alicerçando-se na sua capacidade de
manipular e decifrar "realidades", "conceitos" e "métodos científicos".
As referências ao trabalhismo nos posicionamentos do futuro líder político
apóiam-se também na proximidade pessoal e familiar com João Goulart. Em um
depoimento igualmente publicado no semanário Informação ' dirigido por seu
irmão Adelmo Genro, seu primo Daniel Herz, sua cunhada Letícia Pasqualini e
outras jovens lideranças de Santa Maria ', Tarso Genro expõe seu último
encontro com o ex-presidente. Descreve, então, o percurso que o levara até a
fazenda de Jango no Uruguai (já visitada em outro momento, segundo a
narrativa), sua estada junto ao líder político exilado e o diálogo que
travaram. Sobre a acolhida, enfatiza: "Sou recebido de forma paternal, como
Jango recebia a quase todos. Pergunta pelo meu pai, tenta lembrar quando foi a
última vez que falamos" (Genro, 1976b:11). Tarso Genro retrata a imagem, muito
utilizada na apresentação de Jango, de um líder que trata as pessoas de "forma
paternal", acrescentando os detalhes da amizade desse com seu pai (Adelmo
Genro) e da convivência anterior de que desfrutara. Em relação ao teor do
diálogo sobre a política brasileira, o depoimento centra-se na análise
retrospectiva das razões e motivações que levaram ao golpe militar de 1964.
Mais uma vez harmonizando a perspectiva de "crítica" com o "resgate", pontua:
"critico-lhe sua postura populista, seu assessoramento irresponsável e a falta
de clareza na relação que mantinha com as forças que lhe apoiavam" (ibidem). Ao
interpretar o "papel histórico" do protagonista e do trabalhismo, apresenta-se
como detentor do "saber" acerca do processo histórico. E conclui seu depoimento
da seguinte forma:
"Na verdade, ele cumpriu um papel histórico que terminou por superar
o populismo como estilo de liderança e como viabilidade para a
reforma social. É verdade que as posições de Jango estavam além das
possibilidades históricas concretas [...] mas o que é preciso ter
claro é que Jango foi deposto por estas motivações imediatas que não
subtraem da história seu posicionamento progressista. Afinal, algumas
horas depois de sua queda foi revogada a 'lei de remessa de lucros'
que limitava os lucros das empresas estrangeiras no Brasil". (ibidem,
ênfases minhas)
A maneira como os relatos são organizados informa a relação do autor com os
ícones. Getúlio Vargas é caracterizado pelo "espólio" partidário e nacionalista
a ser superado e aprofundado pelos "setores progressistas" do MDB. A "herança
positiva" da "trajetória de Vargas" é acionada com vistas às disputas internas
ao MDB, às quais Tarso Genro passava a se dedicar como um dos líderes da
corrente partidária Oposições Populares (situada à esquerda do espectro de
posições existentes no interior do MDB e que aglutinava estudantes, professores
e profissionais liberais). Na definição de Alberto Pasqualini proposta por
Genro, o "teórico do trabalhismo" é objeto de interpretação e crítica no plano
do "método científico" e dos "conceitos", em busca da "modernização" do
"programa" e da "análise concreta da [...] realidade histórica". Por fim, na
apresentação sobre João Goulart, aparece, por sua vez, ao lado da associação do
líder com os anseios de reforma social, a proximidade entre as "famílias" e a
intimidade desfrutada pela jovem liderança com uma das estrelas da política
gaúcha. Esse capital de relações sociais derivado do meio familiar foi um
recurso também utilizado por Genro na sua última campanha para o governo do
Estado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os três intérpretes e as narrativas que os mesmos oferecem sobre a "tradição
trabalhista" permitem desvendar a relação entre as transformações nos
princípios de hierarquização social em pauta e as oposições entre critérios de
construção e consagração de ascendentes políticos, assim como a afirmação de
líderes políticos a partir do "resgate" de uma herança, acionando trunfos
distintos ligados às suas origens sociais e aos seus itinerários.
Durante a segunda metade do século XX, é possível observar no Rio Grande do Sul
a substituição das antigas elites advindas do "mundo da estância", e
tributárias de uma forma de dominação calcada na mescla de funções militares,
sociais e políticas, por elites políticas oriundas de grupos familiares ligados
à imigração (alemã, italiana, síria e libanesa, entre outras) e ao catolicismo
que passaram por significativas ascensões social e política (Grill, 2003).
Nesse processo, ocorrem tensões, osmoses e interpenetrações que atravessam os
grupos sociais e os próprios agentes (Phelippeau, 2002).
Como decorrência dessa diversificação social, há uma diferenciação quanto às
estratégias de apresentação desses agentes e dos seus grupos familiares, e na
concepção acerca da forma legítima de atuação política. Entre os descendentes
de segmentos mais "tradicionais", são consagrados atributos como a inscrição
dos antepassados nas principais disputas militares e políticas que marcaram a
sociedade gaúcha no século XIX e primeira metade do século XX, enaltecendo-se
os feitos heróicos e as qualidades como protagonistas de forma compatível com o
que Coradini (1998a:227) caracterizou de "congruência entre uma estrutura de
dominação social e um tipo de heroísmo militar, social e político". Procuram
associar o exercício da atividade política ao domínio de uma "erudição
humanista" e à capacidade de pronunciar-se sobre "temas genéricos". A
apresentação da continuidade no meio político é classificada como decorrente de
uma "vocação pública". Isso implica uma "situação [em que] o próprio exercício
político é visto como doação [...] e [na qual] a utilização de recursos para o
exercício político pode ser apresentada e vista como a 'doação' de alguém
estatutariamente situado num nível mais elevado" (idem:232).
Entre os descendentes de segmentos que se estabeleceram socialmente na primeira
metade do século XX e politicamente na segunda metade do século XX, predominam
a valorização da ascensão social e política e dos investimentos escolares e o
trabalho de reafirmação e redefinição da identidade étnica, religiosa e
regional. Esses aspectos, por sua vez, passam a demarcar outros elementos. As
tônicas empregadas são a ascensão social partindo de uma origem mais baixa ou
as dificuldades enfrentadas pelos primeiros imigrantes. São utilizadas também
uma série de expressões para definir a atuação política, as quais remetem a
idéias genéricas que frisam o "trabalho comunitário", o "catolicismo" e o
"atendimento". Os agentes, por sua vez, são classificados mediante critérios
que englobam qualidades pessoais, envolvendo valores de obtenção de estima
social, como o "empreendedorismo", o "pioneirismo", o "sucesso profissional", a
"capacidade de trabalho" e o "espírito comunitário", entre outros.
Os intérpretes do trabalhismo e as narrativas por eles produzidas ao mesmo
tempo expressam essa diversidade social e utilizam esses códigos para sustentar
a "herança política". O argumento de Miguel Bodea situa a origem do trabalhismo
na prática do castilhismo positivista ' isto é, nas lutas entre agentes
advindos do "mundo da estância" ' luta que evolui pela transmissão de uma
concepção de política na qual se combinam e se complementam um "projeto de
Estado" e uma "vocação doutrinária". O papel de Leonel Brizola seria avalizado
por suas características pessoais, seus elos com Getúlio Vargas e João Goulart
e seus feitos condizentes com a tradição "guerreira" e com a condição de
"estadista" adquirida. E a função do próprio Bodea como "intelectual orgânico"
seria garantida por suas qualidades intelectuais, e, conseqüentemente,
doutrinárias, para recompor, no interior do PDT, a simbiose já identificada em
outros momentos da história do trabalhismo.
Pedro Simon, por sua vez, exalta, a partir da figura de Alberto Pasqualini,
valores como "pioneirismo" e "comunitarismo", ligados à imigração e ao
catolicismo, que são agregados ao "legado partidário" e ao "nacionalismo". A
origem social (vinculada à imigração), o itinerário (de ascensão social) e a
carreira política (ligada a importantes momentos e líderes do trabalhismo)
seriam, no que tange à continuidade de bases sociais e de condutas, exemplares
e são fortalecidos pela carga simbólica conferida ao MDB na condição de
sucedâneo do PTB e de agregador de grande parte das lideranças de origem
trabalhista.
Por fim, Tarso Genro ressalta elementos comuns aos demais intérpretes, como o
"nacionalismo" e o "legado partidário", mas sustenta a necessidade de sua
superação. Para tanto, aciona dois trunfos de sua liderança. Em primeiro lugar,
a vinculação pessoal e familiar (conquistadas devido à sua origem no "mundo da
estância") com o trabalhismo e seus ícones (também presente em Leonel Brizola e
Pedro Simon); em segundo lugar, o domínio, devido à sua formação, de uma
linguagem de interpretação da realidade pretensamente dotada de
"cientificidade" e capaz de renovar o legado (inclusive incorporando-o a outras
organizações políticas), bem como de adaptá-lo às novas exigências fabricadas
no espaço político e intelectual brasileiro.
Como se observa nessas estratégias de resgate dos "ícones e da tradição",
ocorre um duplo movimento de atualização ou de renovação do "patrimônio" e de
afirmação de sucessores. Os relatos e narrativas exaltam os feitos, realizações
e atributos de antepassados e valores, que se procura associar à linhagem
mitológica (Hastings, 1992) ou à genealogia simbólica(Abélès, 1992). Nesses
mecanismos de consagração dos protagonistas políticos da "tradição", estão em
pauta, então, para os herdeiros, a associação, a propagação dos valores e a
caracterização da sua proximidade e semelhança com os antepassados, pelas
quais, "nas lutas políticas [...], a própria imagem pode ser 'herdada' por
'associação' ou aproximação com os heróis consagrados" (Coradini, 1998a:232).
Uma série de trocas simbólicas se evidencia nessa linhagem mitológica ou
genealogia simbólica.As alianças diacrônicas e sincrônicas entre ascendentes e
descendentes e entre agentes da mesma geração política que se engajaram nas
disputas políticas desde 1945 são ativadas por meio de relatos que visam a
descrever as origens e a coerência da "tradição" e prescrever o destino e o
caminho de forças políticas locais. Os intérpretes e porta-vozes da "tradição
política" se fixam, desse modo, como mediadores entre o passado, o presente e o
futuro. Executam igualmente uma ligação, interpretação e articulação entre as
lógicas locais de disputa política e os códigos e ideologias que extrapolam
essa dinâmica. Por fim, centralizam redes de seguidores, apontando novos
"projetos de sociedade" e autorizando-se sobre seus recursos de vinculação aos
ascendentes e à "linhagem". Nessa composição de elementos, afirmam seus trunfos
pessoais e redefinem os conteúdos da "tradição política". A perenidade de
determinados símbolos e as múltiplas combinações que revestem a "tradição
política" são produto das estratégias e das leituras sucessivas e concorrentes
desses mediadores entre períodos históricos, gerações, níveis de disputa e
versões.
NOTAS
1. Sobre o conjunto de "famílias de políticos" (suas origens sociais,
itinerários e alinhamentos) vinculadas ao trabalhismo e que se destacaram no
cenário político gaúcho na segunda metade do século XX em várias siglas, em
diferentes momentos e em diversos níveis de atuação política, ver Grill (2003).
A pesquisa mais ampla faz parte de uma tese de doutoramento defendida no
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul ' UFRGS, com o auxílio de bolsa fornecida pelo Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ' CNPq.
2. Sobre a composição de redes de famílias de políticos que aderiram à
liderança de Leonel Brizola e ao PDT ou à liderança de Pedro Simon e ao PMDB,
as rivalidades construídas ainda no período anterior a 1964 e as lealdades
construídas e mantidas no MDB e seus desdobramentos no espaço político gaúcho,
ver Grill (2003).
3. Sobre a importância de tais elementos para a afirmação do brizolismo, ver
Sento-Sé (1999).
4. Sento-Sé demonstra o imbricamento de três registros na afirmação do PDT e do
brizolismo ou do "projeto político" em pauta: a redefinição da tradição
trabalhista, o nacionalismo e a aproximação com correntes socialistas ou
socialdemocratas, por meio dos quais "a primeira confere ao projeto formulado
um lastro histórico, [e] os dois outros fornecem instrumentos necessários para
a formulação do projeto de futuro" (Sento-Sé, 1999:111).
5. Durante a década de 1960, dois grupos com origem no PTB, mas que divergiam
quanto à postura em relação ao regime militar, se opunham no interior do MDB: o
primeiro era liderado por Álvaro Petracco da Cunha, Lidovino Fanton e Wilmar
Taborda; o segundo, por Heuser, Brusa Neto e Simon, entre outros. O primeiro
grupo perdeu paulatinamente sua força no interior do MDB e somente voltou à
cena com o retorno do exílio de Brizola e a fundação do PDT. O segundo grupo
fortaleceu-se durante o regime militar e deu origem ao PMDB.