Pobreza e humanismo salvador: mediações subjacentes
O reconhecimento dos extremados índices de desigualdades socioeconômicas na
sociedade brasileira funda-se, recorrentemente, nas diferenças quanto ao acesso
à renda e à precária qualidade dos serviços sociais básicos oferecidos aos
segmentos da população que deles dependem. Contudo, a diferenciação
socioeconômica intensifica-se pela segmentação de universos de cognição e pela
produção de barreiras de comunicação interpessoal e institucional entre os
diversos e hierarquizados segmentos populacionais. Os que estão integrados sob
precariedades materiais, por isso mesmo, também o estão por suspeitas de
produção de riscos sociais e de fragilidades morais.
Como recurso compensatório da exacerbada segmentação social, que se
convencionou denunciar como exclusão social1, o voluntariado filantrópico tem
se expandido e se consagrado, não só pela transferência de recursos materiais,
mas principalmente pela criação controlada de canais de comunicação e de
redimensionamento social dos pobres por eles selecionados ou projetados como
bem-aventurados2.
As concepções filantrópicas que qualificam os termos pobresepobreza, associadas
ao relativo voluntarismo orientado, assumido pelos fiéis que aderem aos
procedimentos de objetivação de sistemas de crenças cristãs, são elaboradas em
consonância com a definição de modos de gestão social das acentuadas
desigualdades socioeconômicas. Constituem-se, assim, mediante significações que
caricaturam as polarizadas posições denunciadas: pobres e ricos3. Elas
representam um patrimônio cultural da humanidade ocidental e fundam um celeiro
ideológico para constituição de textos (orais ou escritos) de projetos
políticos, que registram as formas de ordenação social vislumbradas. O maior ou
menor reconhecimento e a legitimidade desses projetos caminham na ordem inversa
à constituição ou à expansão das práticas estatais concorrentes, isto é, também
destinadas à reconstrução da ordem social. Circunscrevem-se, entretanto, aos
fenômenos de expressão de desigualdades socioeconômicas que não coloquem em
xeque a ordem pública.
A presença de instituições filantrópicas responde ao aparecimento, à ampliação
ou ao reconhecimento político da miséria popular. A exposição das mazelas
sociais pelos pobres,em contraposição, suscita o aparecimento de idéias
populistas ou reformadoras e de instituições caritativas. Estas próprias
instituições estimulam a expressividade da miséria e a migração daqueles que
devem sobreviver sem as alternativas complementares aos baixos, esporádicos ou
inexistentes salários. Concentradas nas grandes cidades, suas presenças assim
configuradas colaboram para a visibilidade dos pobres, porque os tornam mais
expostos4.
As instituições filantrópicas vêm ainda encontrando expressiva expansão no
contexto de produção de debates sobre a constituição de novas referências para
criação de formas de solidariedade entre os socioeconomicamente desiguais. A
expansão ancora-se no recrutamento de ações organizadas em torno de associações
mantidas e reproduzidas pela utopia voluntarista, utopia legitimada pela
ideologia da solidariedade, pelo militantismo cristão e pela reivindicação de
uma humanidade única, universalizada em Cristo.
Além disso, e concomitantemente, a prática assistencialista estatal tem se
orientado pela constituição de parcerias ou de alianças políticas com
instituições filantrópicas, sob o argumento da conquista da governança5. As
alianças e os compromissos fundamentam-se na capacidade mobilizadora dos
titulares dos sistemas institucionais de crenças religiosas, razão pela qual
eles são estimulados a confluírem para o reconhecimento de sistemas de trocas e
adesões.
A despeito de o processo de constituição de instituições filantrópicas
acompanhar os de urbanização, sendo boa parte delas anterior à década de 1980,
momento de recrudescimento da visibilidade e reconhecimento de pobres
publicamente expostos sob condições de vida miseráveis, muitas delas foram
reordenadas e revitalizadas nesse contexto, e outras tantas emergiram sob o
ideário político da associação entre cidadania e solidariedade. Diversas
campanhas sociais vêm sendo concertadas para a produção de versões
mobilizadoras, agregando assim cidadãos comuns e representantes de organizações
das mais diversas ordens. Muitas dessas ações objetivaram-se em sintonia com (e
a partir de) mobilizações políticas encetadas diante da calamidade oficialmente
reconhecida pelo Mapa da Fome, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada ' IPEA da Secretaria de Planejamento do governo federal. Por este
mapa, elaborado e divulgado em 1993, foram contabilizados 32 milhões de pessoas
vivendo em situação de indigência no país.
A fome, reconhecida massiva por efeitos das campanhas, vem sendo provisória ou
pontualmente saciada. Inúmeros cidadãos, nesses termos caracterizados como não-
famintos, demonstraram a disposição para se engajar em "campanha disposta a
resgatar a solidariedade como ato humano e político e não apenas a desenvolver
ações de caráter emergencial" (Jacobi, 1995:28). A solidariedade, as ações em
parceria e a descentralização impuseram-se como referências para ação pública;
ou como temáticas mobilizadoras do engajamento dos reais ou potenciais doadores
ou redistribuidores de bens e serviços. Os políticos, nos planos legislativo e
executivo, tiveram que incorporar, por vezes só nos textos discursivos,
propostas similares, embora muitos deles dissimulassem as ações caritativas ou
tentassem diferenciar os modos de transferência de bens. Celebrou-se o combate
à fome, como demonstra o sucesso das transferências de produtos não-perecíveis,
mas não à pobreza, mesmo aquela que se apresentava como miserável e,
posteriormente, como justificativa para objetivação de programas de
redistribuição de renda, sob rótulo Fome Zero.
Como se pode concluir, as formas de participação dos agentes no campo
institucional do voluntariado filantrópico são extremamente dinâmicas,
acompanhando a diversidade de percepções e a engenhosidade de soluções
paliativas para a pobreza intolerável ou assustadora. No atual contexto, os
modos de constituição deste campo de mediação de empreendimentos
redistributivos, postos em prática para comunicação e provisão da convergência
de interesses entre benfeitores e beneficiários, são devedores das condições em
que se complementam e se contrapõem as práticas da caridade estatal e
voluntária.
Independentemente da diversidade, os significados atribuídos à caridade6, em
plano geral concebida como atos de entrega ou doação de si (tempo, sentimentos,
atenção) mediante ou não transferência de bens materiais, estruturam uma
relação de troca fundada na desigualdade de acesso a recursos de dimensões
múltiplas. Apresentam-se como uma referência para comportamentos, diante do
reconhecimento de que os homens, mesmo que sua prática vise negar o que
moralmente possa ser abominável, estão organizados sob extrema desigualdade.
Eles sinalizam, assim, a construção de princípios estruturantes de um sistema
de posições relacionais. Eles suscitam a construção de discursos sobre os
benfeitores ou benévolos, especialmente aqueles que são providos de meios de
verbalização da imagem autoconstruída sobre a posição ocupada; ou que desejam
tê-la legitimamente reconhecida, a ponto de, em nome da filantropia ou do amor
à humanidade, propor projetos coletivos de redimensão dos homens e, com isso,
da sociedade.
A partir de tais significados, vêm sendo explicitadas as alianças e os
confrontos sustentados nas potencialidades acumuladas por agentes estatais e
filantropos, hetero- ou auto-outorgados à construção e ao enfrentamento das
questões sociais vinculadas à pobreza sob miserabilidade.
O ENCONTRO ENTRE CARENTES, FILANTROPOS E ABASTADOS
Para analisar alguns dos modos de objetivação de projetos políticos
anteriormente aventados, proponho-me, neste artigo, a examinar as condições de
constituição de um campo de negociação e intervenção, articulado pela crença no
humanismo salvador. De um lado, os voluntários filantrópicos, que recriam
condições de comunicação e circulação de bens entre pobres. De outro, os que
reivindicam a condição de necessitados ou carentes e galgam este reconhecimento
mediante cadastramento institucional, que formaliza a posição estabilizável do
beneficiário. Dessas posições relacionais, mobilizam-se os abastados, isto é,
os que se pensam em condições e obrigações da transferência de bens e de
reafirmação da irmandade em Cristo. Este espaço de intercomunicação,
constituído por relações tecidas em alegadas situações limítrofes de fronteiras
culturais e de encontro de desiguais (no sentido socioeconômico), configura-se
como um campo de mediação. Como nas interações que no campo ganham sentidos
reafirmam-se teatralmente as diferenças, sua análise pode revelar os termos de
gestão desta comunicação provisória e espacializada. Constituída por interesses
diversos e até divergentes, a intercomunicação ancora-se na produção de
sentidos que aí entram em concerto relativo. Ela, por conseguinte, não se
limita ao contato imediato, mas se constitui a partir da adoção comum de certos
termos e categorias, cujos significados nesse campo são partilhados ou
construídos para esta partilha. As trocas comunicativas estabelecidas pela
adoção de termos comuns permitem o trânsito e o encontro específico de
universos diferenciados de significação.
Correntemente, o termo mediação tem sido interpretado de forma essencialista,
enquanto ponto de união do diverso e não-correspondente, perdendo o seu caráter
processualista e dialético para ressaltar aspectos sistêmicos ou até
mecanicistas. Por esta perspectiva, o termo alude à conciliação diante de
divergências ou da intervenção de outrem com o objetivo de propor o acordo ou o
compromisso. Faz ressaltar a objetivação de sistemas de regulação instituídos
para reduzir a dissonância entre visões de mundo e formas de comportamento de
distintos segmentos constitutivos das sociedades complexas. Equivale à
institucionalização de um sistema de regras destinadas a assegurar a hegemonia
de uma ordem consagrada ou em busca de consagração. Contempla fenômenos cuja
objetividade põe em jogo relações sociais estruturadas por interações ou
interseções, ou que agregam redes que se intercruzam ou se confundem.
Sob uma perspectiva analítica processualista, o termo mediação pode aludir a
engajamentos e à mobilização de segmentos selecionados para reordenação de
modos de conduta e de visão de sua posição social. Contempla os modos de
constituição e objetivação de um conjunto de princípios-guias para as
interpretações que tornem possível a comunicação intencionada, interessada, por
isso, negociada entre agentes vinculados a universos de significados diversos e
divergentes. Instaura um patrimônio comum para esta comunicação, constituindo
os laços que permitem relativizar as propriedades sociais de cada agente que,
por contraposição, aí acede. Opera como espaço de institucionalização do que
pode ser partilhado, de modo a permitir a interação pelo debate ou o diálogo em
torno de temas comuns que propiciem a experiência de interseção7.
Tanto no caso da reordenação ou afirmação de determinados modos de integração,
como nos contextos de questionamento da ordem instituída, os investimentos para
a interseção de agentes ' dotados de interesses divergentes e visões de mundo
por vezes contraditórias ' só alcançam resultado pela negociação dos meios de
concorrência ou de disputa. Portanto, nessas circunstâncias, campos de mediação
devem ser constituídos para permitir o trânsito entre fronteiras de universos
sociais, assim concebidos por explicitarem a interseção e não a homogeneização.
Neste texto, valorizo os atos de mediação cultural orientados pela produção de
adesão ou de consentimento (mesmo que provisório e pontual) entre benfeitores e
beneficiários afiliados à Sociedade Espírita Fraternidade (doravante SEF).
Esta, entre outras instituições participantes do campo da filantropia que foram
por mim pesquisadas, está sediada na cidade de Niterói, Estado do Rio de
Janeiro8. Nesta instituição, observou-se diretamente a interação entre os
patronos voluntários e os clientes beneficiários, situação na qual eram
explicitados pontos de vista e construídas imagens e representações
recíprocas9.
Formalmente ou aparentemente, as relações em jogo no campo organizado por
trocas caritativas orientam-se pelo respeito recíproco entre doadores e
receptores, pela deferência e pela obediência comum a preceitos. No entanto, o
consentimento, neste campo de fato constitutivo da representação da posição
dominada, apresenta-se como um investimento do qual o subordinado espera a
obtenção de bens ou o atendimento de interesses próprios. As respostas
encenadas, mesmo que orientadas por relações paternalistas, não podem ser
entendidas pela passividade. Há um jogo exercido sob clivagens próprias; há
cumplicidades assumidas entre os que comandam e os comandados; há articulação
de relações de vizinhança e parentesco, impostas pelos dependentes; há recursos
de dramatização ostentados nas situações de desqualificação da dominação ou do
dominante, denunciando comportamentos inadequados, atitudes inesperadas,
posturas desviantes, qualificadas como antiéticas.
Por isso mesmo, na análise do campo de mediação para instaurar a comunicação e
a redistribuição entre filantropos e carentes, levo em conta a definição que
estes dois agentes dão de si mesmos e da situação que desejam projetar,
reproduzir ou reordenar. Invisto atenção especial sobre o que eles revelam e
ocultam, mas também como eles concebem os modos mais adequados de funcionamento
das relações institucionais (cf. Moore Jr., 1987; Weber, 1977).
A diversidade de pontos de vista e interesses dos diferentes agentes que
constituem o campo de mediação, ou que ocupam as posições centrais (voluntários
filantrópicos e demandantes de ajuda ou pedintes), deriva não só dessa
polaridade situacional aí assumida: benfeitor abastado e beneficiário carente.
Ela também está sustentada nas diferentes formas de concepção dos direitos
humanos à sobrevivência e à luta por reconhecimentos sociais, embora sejam
fatores que possibilitam aos beneficiários uma participação mais significativa
e até reversiva quanto às concepções e às regras que aí são hegemônicas. Por
isso, na análise, considero os diferentes e coexistentes campos de ação e de
significação que aí se imbricam, a agregação mediada de redes de relações e,
por conseqüência, os modos contrapostos de institucionalização de regras para
redistribuição de recursos. As regras e os recursos respondem, sob certa
plausibilidade, a estes interesses distintos e divergentes dos representantes
das diversas posições aí assumidas. No decorrer do exercício de redistribuição
de recursos, tanto há a reafirmação de regras e princípios construídos para
nortear a relação, provisória e contextualmente celebrada, como também são
constantemente redefinidas as condições de construção de diferentes referências
identitárias10.
Contrapondo alternativas constituídas pela participação em redes de
instituições concorrentes e de amizades, estas mesmas criadas para que os
usuários possam se integrar ao campo institucional da filantropia, tais agentes
tentam conquistar certa autonomia. Esta autonomia é importante para tomada de
decisões sem o aval dos tutelares benfeitores e para compensar a instabilidade
e a inventividade adaptativa que caracterizam a estruturação das instituições
em foco. A autonomia é de fato relativa porque só se torna possível se os
usuários forem capazes de garantir a afiliação a outras instituições destinadas
à redistribuição filantrópica. As diversas afiliações propiciam a obtenção de
recursos materiais e imateriais que consideram básicos, mas eles também
canalizam os resultados para atender a formas de apropriação pretendidas.
A análise das relações dinâmicas que ocorrem entre os diversos agentes que
participam do campo institucional organizado pelo voluntariado filantrópico não
pode, por conseguinte, perder de vista a dimensão da provisoriedade. Esta
provisoriedade é sistematicamente organizada no tempo, exatamente para
reafirmar a perspectiva temporal da adesão e os riscos da descontinuidade da
relação11.
Na concorrência organizada a partir desses diferenciados projetos de ordenação
social, há investimentos para distinguir as lógicas das ações da prática
caritativa estatal e as da filantropia destas próprias ações em contraposição
às destinadas a implementar a seguridade social. Contudo, os projetos têm sido
associados e complementados segundo a ideologia das ações em parceria (ver
Neves, 2002a). Os recursos que vêm se tornando disponíveis pela prática de
redistribuição originária do Estado brasileiro, diante do reconhecimento do
problema social articulado à insegurança alimentar, têm se assemelhado aos
postos em circulação pelos representantes de instituições filantrópicas. Ambos
projetos são elaborados para integrar ações destinadas à redistribuição
seletiva e pontual de recursos equivalentes a cestas básicas, ora computadas
por produtos alimentícios não-perecíveis ou, mais recentemente, por valor
correspondente em crédito ou dinheiro imediato. Nesse caso, a oferta de bens
mínimos tem sido então dissimulada (bolsa-escola, cheque-cidadão, bolsa-família
etc.), dada a própria concorrência quanto à inventividade da solução ou à
descaracterização da ação assistencial e paliativa12. A ação estatal
diferencia-se, contudo, pela reivindicada outorga de instância coordenadora e
estimuladora dos valores norteadores da integração solidária e das associações
comunitárias.
Os recursos financeiros estatais transferidos como auxílio continuado a
indivíduos considerados improdutivos (do ponto de vista médico: velhos,
deficientes físicos e mentais) têm demonstrado sua eficácia pela reordenação
dos papéis desses familiares incapacitados para o trabalho. O exemplo mais
abrangente é o das avós, como demonstram várias pesquisas voltadas para as
condições de reprodução física e social da população que sobrevive mediante
deficiência de recursos materiais13. Contudo, tais medidas ainda têm
contemplado uma pequena fração da população que sobrevive sob a ajuda de
terceiros, ou que conseguiu ter acesso à previdência ou aos benefícios
prescritos pela Lei de Assistência Social ' Loas (1993)14.
A convergência quanto aos valores ideológicos que constroem a legitimidade da
redistribuição assistencial patenteia a forma como a precariedade de vida da
massa da população empobrecida tem sido considerada. Os programas são
assistenciais e emergenciais, posto que as decisões quanto à redistribuição são
periodicamente revistas e suspensas, se a renda per capita individual na
família ultrapassar um quarto do valor do salário mínimo. Eles, outrossim,
fundamentam-se em valores humanísticos que referenciam a solidariedade social.
A noção de cidadania que comumente informa e dissimula tais práticas de
definição de pertencimentos, mas assegura a participação de indivíduos assim
reordenados para integrar o campo da filantropia, prescinde das ações
implementadas por agentes do Estado. Por ela também são revitalizadas as
associações privadas e voluntárias. A noção abrange a reclassificação dos
benfeitores, atores das práticas solidárias de atendimento emergencial, e seus
pobres, os beneficiários.
SOCIEDADE ESPÍRITA FRATERNIDADE
A SEF foi fundada em 4 de setembro de 1980, a partir do projeto de um grupo de
14 associados da Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro ' Feerj,
visando objetivar uma proposta autônoma de intervenção na sociedade, mediante a
elaboração e o reconhecimento de um problema social digno de controle e
prevenção. Segundo registros de memória preservada pelos seus fundadores, eles
decidiram entregar-se à assistência a crianças faveladase seus familiares, e o
fizeram obedecendo à enunciação de um espíritoque vaticinara a um dos médiuns a
sua missão, para a qual contaria com outros ' companheiros 'integrantes do
sistema de crenças, todos destinados a realizar tal projeto de melhoria das
condições de vida material e moral de crianças pertencentes a famílias
empobrecidas.
O projeto de intervenção social configurou-se por um sistema de crenças e
atitudes orientado pelo espiritismo, visão de mundo codificada por Allan
Kardec, que nega o reconhecimento de uma única dimensão da vida na sociedade,
qualificada como materialista. Os seus elaboradores e seguidores vêm se
consagrando a construir o reconhecimento de uma visão de mundo que preconiza
vida além do corpo físico e social. A definição, entretanto, comporta outras
segmentações, como a diferenciação do espiritualismo ' variação da crença na
reencarnação ritualizada nas práticas identificadas como (ou nesse caso
acusadas de) umbandistas. Os seguidores deste sistema de interpretação da vida
humana também colocam em prática trabalhos paralelos de assistência social e
material. A importante diferenciação social, em um primeiro plano, coloca em
distinção a reivindicação de uma fé raciocinada ou refletida, princípio pelo
qual a diretoria institucional valoriza a formação, o estudo, a auto-reflexão
dos fiéis.
No contexto da enunciação daquela missão, eram menos constritas as trocas
hierarquizadas e as formas de sociabilidade que agregavam segmentos da classe
média identificados à posição de benfeitores e aqueles diferenciados como
pobresou beneficiados, por residirem em favela.
Osfundadores da SEF, respaldados pelo pertencimento a grupos doutrinários da
Feerj, iniciaram seu trabalho, ainda sem objetivação física da instituição, nos
lares dos moradores da Favela do Gás,em Niterói (RJ). Dado o recrudescimento da
violência decorrente de disputas entre rivais comerciantes de drogas e destes
com policiais, o trabalho de evangelização in loco foi interrompido. Os
beneficiários foram então convidados a freqüentar as dependências físicas das
sucessivas edificações da sede da SEF.
Este desdobramento indica mudanças nos padrões relacionais de inserção das
camadas da população que sobrevivem com escassos recursos materiais. Para
algumas famílias, o isolamento social produzido pelas condições de
relacionamento interclasses tem se ampliado, com a interrupção de visitas
domiciliares diante do recrudescimento das disputas nos aglomerados
populacionais qualificados como favelas. Para outras, este mesmo isolamento
atuou na mobilização de estratégias para formulação de demandas junto aos
dirigentes das instituições. Os dirigentes, por seu lado, também investiram no
sentido de minimizar o desconhecimento ou aplacar os efeitos das visões
preconceituosas, construídas por posições cada vez mais externalizadas diante
de um mundo social de regras próprias. O caso também indica mudanças nas formas
de dominação que orientam as práticas filantrópicas, minimizando o caráter mais
pessoal e ampliando o formal das práticas institucionais.
A SEF (no contexto do trabalho de campo: outubro de 1997 a março de 1998)
contava com mais de 200 sócios, diferenciados em: a) fundadores, na ocasião
apenas quatro, responsáveis pela elaboração e reprodução da doutrina e dos
princípios orientadores dos serviços prestados e da reprodução da instituição;
b) mantenedores, encarregados da reprodução simbólica e material do
empreendimento social, através de contribuições financeiras e prestação de
serviços como voluntários; c) contribuintes, voluntários na transferência de
recursos financeiros ou materiais, mas sem responsabilidade quanto às condições
de aplicação da proposição institucional. Os sócios fundadorese
mantenedoreseram elegíveis e elegiam o conselho administrativo e a diretoria,
conforme política de sociabilidade e governabilidade constituída pelos
participantes; mas também segundo a legislação pertinente ao reconhecimento
oficial deste tipo de instituição. Todos eram trabalhadores da casa,incluídos
mediante papel na divisão social das atividades internas à instituição.
A composição social dos participantes diferenciadamente posicionados podia,
grosso modo, ser caracterizada como originária de segmentos de classe média,
especialmente de categorias profissionais mais intelectualizadas. Destacava-se
a presença de professores e alunos de universidades, condição que permitia a
instituição diferenciar também a assistência social prestada, não só em termos
materiais, mas em serviços especializados.
A elaboração do projeto de intervenção social pressupõe a constituição de
condições de visibilidade pública, expressas na contínua expansão e na
edificação de sedes institucionais, cuja magnitude ou simplicidade são
reveladoras do sucesso ou dos constrangimentos enfrentados na objetivação de
tal proposta. Por isso, na construção da memória da trajetória do projeto e do
grupo que o implementa, é valorizada a referência à construção da sede própria
e à contínua elaboração de projetos de segmentação e expansão dos serviços,
acompanhadas de edificações de subsedes. O alcance de tais intenções é
dependente dos efeitos práticos da mobilização e conquista de adesões ou
sócios. Estes se engajam na transferência de recursos financeiros, sob a forma
de doações ou prestação de serviços, e na conquista do reconhecimento social da
importância da missão.
A SEF integra um complexo institucional que abarca uma sede própria, em São
Domingos, e uma subsede, Colônia Remanso Fraterno, em Várzea das Moças, bairros
de Niterói. Com esta infra-estrutura, o corpo de sócios atendia em média, no
contexto do trabalho de campo, 115 crianças e 150 adultos. A sede está situada
em edifício de três andares, com salas para evangelização e salão para
palestras e preces, secretaria, biblioteca e cozinha, bem equipados em termos
de mobiliário. A estrutura imobiliária da Colônia encontrava-se em construção
no momento do trabalho de campo, já tendo sido erguidos os espaços
correspondentes ao serviço administrativo, ao posto médico e ao serviço
educacional. Um conjunto composto por cozinha, refeitório e armazém estava em
fase de finalização.
Pelo projeto em si, a diretoria da instituição reconhecia as deficiências de
órgãos do Estado na oferta de serviços sociais a segmentos da população que não
contam com rendimento financeiro para remunerá-los se oferecidos por empresas
privadas. Portanto, como tantas outras instituições assistenciais ou
filantrópicas, a SEF vem sendo organizada para concorrer e complementar
serviços anteriormente atribuídos a instituições públicas, criadas e
referenciadas pelo, entre nós inalcançado, ideário de objetivação do Estado de
Bem-Estar.
Os serviços prestados na SEF eram organizados por departamentos cuja
identificação expressava o leque dos recursos materiais e imateriais
transferidos e trocados: possui departamento de doutrina e evangelização,
assistencial, de obras, editorial, de divulgação, da infância e da mocidade. A
distribuição dos departamentos era reveladora da divisão de trabalho e de
responsabilidades. A administração da sociedade estava pautada na
redistribuição de decisões por colegiados. Os múltiplos serviços eram
concatenados por coordenadores.
Como recurso que tornasse viável a evangelização das crianças e adolescentes,
os dirigentes da SEF ampliaram as linhas de ação, oferecendo meios de
mobilização e engajamento dos pais, alternativa também estendida para outros
interessados. Aos domingos, dia dos carentes,todos participavam de sessões
pedagógicas, orientando os usuários quanto à construção de novas percepções
sobre o mundo e sobre si mesmos. O projeto pedagógico também se sustentava na
oferta de bens materiais, como almoço e algumas cestas básicas, roupas,
calçados e medicamentos.
O almoço, acompanhado de refrescos e sobremesa, era a última etapa do encontro
dominical, oferecido após o ritual do passe. Mantendo-se sentados, todos
recebiam o prato, o talher, o copo; podiam repetir; e aguardavam a sobremesa. A
seguir, os participantes retiravam-se, alguns para formarem a fila para receber
as bolsas de comprasou bolsas de alimentos; outros para deixarem a instituição.
As bolsas eram redistribuídas ao final do encontro dominical, enquanto o salão
estava sendo limpo e arrumado, atividade dos trabalhadores da casa, que
recebiam ajuda de algumas das usuárias.
A repetitiva seqüência de atividades que compunham o encontro dominicalera por
vezes questionada pelo usuário, que reconhecia o acesso à bolsa de compras
condicionado ao processo de internalização de outra visão de mundo. Outrossim,
os agentes institucionais também reconheciam que muitos dos usuários só
participavam das palestras pedagógicas para se fazerem dignos do acesso à
refeição e à bolsa de compras.
O reconhecimento das motivações diversas e dos investimentos díspares
fundamentava a construção de formas de negociação orientadas pelo princípio de
reciprocidade que, por sua vez, se pautava em concessões de ambos os agentes na
ritualização comportamental da convivência fraterna positivamente reproduzida.
Os recursos para o preparo das refeições eram obtidos por doações de
contribuintes individuais e de gerentes de supermercados. Por vezes, tais
recursos ultrapassavam a necessidade do preparo das refeições. Os agentes
institucionais preparavam então cestas para que alguns usuários pudessem levar
produtos alimentícios para o domicílio. Além disso, alguns dos usuários levavam
caixas de plástico para aproveitar as sobras de refeição para familiares que
haviam permanecido em casa. Por fim, as sobras podiam ser também redistribuídas
aos não-cadastrados ou retardatários, que permaneciam fora do prédio por terem
chegado após o fechamento do portão, realizado 10 minutos antes do horário
marcado para o início do encontro dominical.
O sistema de distribuição de cestas de alimentos sustentava-se em uma
administração racional do descartável e dissolvia as pressões sobre os
supermercados e hortifrutis, para onde os que desejavam ser reconhecidos como
carentesafluíam, demandando os produtos perecíveis desclassificados para a
venda. Doando tais encalhes às instituições filantrópicas para redistribuição a
seus usuários, os dirigentes de supermercados e hortifrutis também conquistavam
a posição de fornecedores privilegiados para as compras que tais instituições,
com recursos dos sócios, passavam a colocar em prática15.
Torna-se importante destacar como os usuários, diante deste e de outros
projetos institucionais de redistribuição de alimentos, foram expropriados das
iniciativas espontâneas em busca do lixo reaproveitável. Embora este controle
possa responder aos atos de repulsa decorrentes da observação dos pobres
coletando lixo, ele também foi retraduzido em atos de ressocialização ou de
incorporação de novos valores e modos de comportamento, todavia, nem sempre
incidentes sobre os reais coletores, mas sobre os que têm condições de
responder aos critérios de seleção para esta nova forma de redistribuição.
Complementando o sistema de trocas, por vezes eram oferecidos cursos de
alfabetização para adultos, conforme programa organizado pela Associação dos
Funcionários do Banco do Brasil. Por ocasião das festas natalinas, um almoço de
confraternização era realizado em uma escola pública próxima, e cestas de
alimentos eram transferidas. A participação neste almoço de confraternização
era de tal forma valorizada pelos usuários, que eles, neste período, tendiam a
intensificar a aproximação com a instituição, visando usufruir de um cardápio
organizado segundo a concepção de repasto de festa natalina adotado por
segmentos da classe média: maionese, peru, farofa etc. Além disso, as crianças
recebiam roupas e calçados novos, brinquedos etc. Eventualmente, segundo a
apresentação de receita médica e assiduidade do usuário nos encontros
dominicais, ele podia ser contemplado com o atendimento da demanda para
tratamento médico.
Os serviços e bens a serem transferidos diversificavam-se e estendiam-se
conforme os contextos de maior ou menor resposta a tais transferências no seio
da sociedade. Ampliavam-se por ocasião das festas natalinas, de baixa brusca de
temperatura, de campanhas de reconhecimento do mal-estar entre os pobres. A
dinâmica da expansão de serviços é então valorizada como expressão do sucesso
do projeto de intervenção. A relação com os usuários é sugestiva para a criação
de serviços; os sócios propõem, assim, formas próprias de participação na
divisão social de trabalho e de serviços.
A SEF é uma instituição de reconhecimento público, conforme controle e normas
elaboradas por instituições estatais: é dotada de estatuto, inscrições fiscais
e autorização municipal para funcionamento. Além dos recursos financeiros já
citados que a mantêm, os dirigentes valem-se do serviço de produção e difusão
de conhecimentos doutrinários. Contando com um sócio que é reconhecido como
dotado da capacidade de psicografar doutrinas, ensinamentos e mensagens
elaboradas por espíritos evoluídos, agrega-se à SEF uma editora especializada,
que detém o relativo monopólio na produção destes bens culturais (livros,
vídeos, áudio e CDs sobre palestras proferidas pelo intermediário mentor).
A instituição, segundo seus dirigentes e no contexto do trabalho de campo,
encontrava dificuldades para obter recursos de organizações governamentais,
não-governamentais e empresas, dado o preconceito constituído pela hegemonia de
outros credos, especialmente certos segmentos de protestantes e católicos. Este
preconceito era reinterpretado pelos fiéis como produto da sua postura ética e
da autenticidade da objetivação dos princípios religiosos, que impedem que os
serviços sejam convertidos à condição de mercadoria. Dessa forma, as acusações
eram reelaboradas e transferidas para desqualificação de outros credos.
A desqualificação dos outros credos denuncia a hegemonia que vem sendo
conquistada pelos evangélicos, não só na administração das instituições
públicas, especialmente aquelas voltadas para a assistência social e o
reordenamento do comportamento social dos pobres, como também na construção de
comportamentos e legitimidades que permeiam a concentração do capital. Muitas
das grandes empresas são dirigidas por administradores evangélicos que, por sua
vez, privilegiam a inserção de trabalhadores portadores do mesmo credo no
mercado de trabalho.
A mesma denúncia tem vindo a público por representantes da Igreja católica.
Através de artigos publicados no Jornal do Brasil, Dom Eugênio Sales, em defesa
do catolicismo, sistematicamente reivindicava o reconhecimento da precedência
da instituição no campo e na articulação com o Estado. Reivindicava, assim, a
maior abrangência de recursos materiais e imateriais, em consonância com a
complexidade da concepção do fenômeno da pobreza miserável. O acesso a esse
espaço de comunicação já é revelador dos sistemas de hierarquia de
reconhecimento dos diversos credos.
Como a instituição religiosa espírita não havia sido constituída a partir de
uma relação estreita com porta-vozes do Estado, seus dirigentes encontraram
dificuldades para obter reconhecimento do projeto de moralização, especialmente
no que tange à concorrência com outras instituições destinadas a colocar em
prática o sistema de ensino. Além disso, como a profissionalização do
magistério permitiu aos professores a reivindicação da autonomia da prática de
ensino e da diversidade dos vínculos religiosos, as instituições de ensino,
cuja diretoria se encontra afiliada ao credo espiritualista, não têm conseguido
se consolidar. Diante dos preconceitos em relação à prática espírita, os
dirigentes institucionais os reelaboram como problemas a serem administrados,
de modo a conquistar o espaço no campo religioso e a adesão dos fiéis. Abrir as
portas a interessados sem demandar fidelidade a credos é de fundamental
importância para o processo de construção do engajamento de uma rede mais ampla
de adeptos.
O POBRE MERECEDOR DE AJUDA: CONCORRÊNCIA E SOLIDARIEDADE
As formas de construção das versões sobre a dignidade do pedido constituem
material importante para a compreensão das relações sociais que estruturam o
campo de mediação, espaço de gestão da convergência de interesses diversos
entre beneficiários e estes e seus benfeitores. Os discursos aqui considerados
para análise foram construídos a partir da indignidade do pedido, mas seus
autores também levaram em conta a presença do pesquisador, geralmente
identificado pela convergência de interesses e pela adesão aos princípios
defendidos pelos agentes institucionais. Foram produzidos coletivamente, diante
da presença e avaliação de outros usuários. Sustentavam-se na capacidade de o
interlocutor construir a defesa para uma acusação a prioriatribuída: não ser
tão pobre como diz. Por isso, tanto as representações enunciadas pelos
benfeitores como os depoimentos dos usuários são acusatórios e reproduzem em
parte uma visão consagrada do pobre moralizado. Ao mesmo tempo, tais discursos
visam produzir critérios para a exclusão do outro, do concorrente,
correspondendo, então, às acusações que sobre os pobres pairam. Em decorrência,
tais versões constituem peças paradigmáticas de produção de moralidades,
mediante o repertório de acusações anunciadas e o aprendizado da construção do
pedido.
Os discursos demonstram os efeitos eficazes das ações de rotulagem. São também
expressões das interações informais que se produzem com vistas a construir
outras modalidades de pertencimento. Por isso, os carentes devem uma parte de
suas características aos atributos da posição aí constituídos, isto é, também
em parte sob interdependência com as concepções dos dirigentes das
instituições, que, publicamente, explicitam diagnósticos e os tratam
seletivamente. Os discursos demonstram ainda os modos de construção do
convencimento, ou os efeitos das sobredeterminações dos modos de percepção de
especialistas na assistência social. Os acusados, pelo menos quando estão
diretamente integrados aos eventos institucionais, deixam-se, no exercício da
posição atribuída, contaminar pelas acusações. Da mesma forma, os discursos
emitidos também demonstram a importância da participação dos beneficiários em
grupos neste campo de concorrência reafirmados, recursos através dos quais eles
se credenciam ao exercício de construção do caso digno de atenção e das trocas
materiais. Os discursos, então, tornam-se produtos da acirrada concorrência que
se estabelece entre os beneficiários.
Procurando compreender as relações menos formalizadas que os usuários
estabelecem com os agentes institucionais, os pesquisadores que se dedicaram ao
trabalho de campo não só os entrevistavam no período que antecede ao encontro
dominical, como ali permaneciam observando e participando dos temas das
conversações emergidas no contexto da espera. Recolheram informações sobre
critérios de avaliação e tentaram compreender os padrões de sociabilidade
estabelecidos entre eles. No tempo que antecedia ao encontro, delineava-se a
melhor situação de pesquisa, pois que, durante o culto, a fala era monopolizada
ou concedida a partir de induções dos agentes que coordenavam o ritual. Após o
encerramento, todos os participantes retiravam-se apressadamente para suas
casas ou para participar de outras situações de redistribuição de bens aos
reconhecidos carentes.
À guisa de demonstração, mas constrita ao número de páginas equivalentes a um
artigo, descrevo uma das situações de obtenção de dados por entrevistas abertas
e observação:
Certo dia, colocando-me, como sempre, na ordem da fila de espera que os
assistentes constituem para a entrada no prédio, aberto exatamente para o
encontro dominical, dirigi-me a uma das usuárias para justificar as razões da
presença dos pesquisadores. E, logo após, solicitei que me explicasse a
importância da instituição para ela. Imediatamente, destacou que freqüentava a
instituição há três meses, e que foi uma vizinha que lhe informou sobre tal
alternativa. Logo após, sua vizinha, no contexto qualificada como companheira
ou colega, chegou e ficou extremamente irritada com ela por ter me concedido
este tipo de informação.
Circulava entre os usuários uma norma de não-propagação da oferta dos recursos
institucionais e, para fazê-la cumprir, eles atribuíam a interdição aos
dirigentes institucionais. Na minha presença, a amiga, colegarecém-chegada,
confirmou a indicação, mas repreendeu a companheira inconfidente, lembrando que
elas fingiam não se conhecer durante o tempo em que se encontravam na
instituição. Havia uma orientação entre elas (a grande maioria constituída de
mulheres) no sentido de informar que cada uma descobriu a instituição por
acaso, quando passava de ônibus e percebeu o aglomerado de usuários.
Repreendendo incisivamente a vizinha, advertiu: "A gente avisa para você e você
fica espalhando para A, B, C". Justificou-se a acusada inconfidente que todo
mundo precisa, e que ela, por espírito de caridade, devia então informar a
outras pessoas que também precisam.
Portanto, mesmo que os dirigentes institucionais não controlassem os graus de
carência material, esta forma de avaliação presidia o comportamento dos
usuários, que criticavam moralmente o uso de tais recursos por quem não
considerassem carentes. Não havia explicitação sistemática do que fosse a
carência, mas situações, analisadas caso a caso, que acenavam para as
dificuldades de assegurar autonomia financeira para a sobrevivência: velhice,
ausência de esposo produtivo, doenças impeditivas de vinculação ao trabalho.
Entretanto, um sistema acusatório pairava sobre todos os usuários, exigindo que
cada um dispusesse de discurso legitimador da demanda por ajuda. Cada usuário
devia demonstrar perante os outros que de fato se tratava de um carente.
Na seqüência da conversa, a usuária desfilou seu conhecimento sobre o campo
institucional de redistribuição de bens para pessoas carentes, demonstrando que
tal saber derivava de sua astúcia e capacidade de observação. Sempre que
percebia acúmulo de pobres diante de qualquer instituição, procurava se
inteirar das condições de funcionamento do sistema de redistribuição. Informou-
me então que freqüentava outros centros espíritas, listando-os com seus
respectivos endereços. Após a demonstração de saber, tentou relativizar sua
inconfidência diante da pesquisadora e procurou controlar minhas intenções, com
receio de eu estar ali exatamente objetivando o controle sobre as infidelidades
institucionais. Na dúvida, assegurou que esta multiplicidade de inserções é a
norma do grupo dos usuários, e que se o controle dos dirigentes caminhasse para
uma suposta plenitude, no limite, inviabilizaria a vida institucional. E
concluiu: "a punir um, deveria punir todos e fechar as portas da instituição".
Reafirmou, então, a solidariedade entre os usuários, cada um informando aos
companheiros privilegiados em sua confiança. E para melhor controlar os efeitos
das informações prestadas, narrou o seu caso específico, destacando as razões
que julgava necessárias e válidas à condição de merecedora da assistência
social. Informou que ela não apanhava alimentos só para ela, mas também para as
filhas e noras. Acentuou, assim, um dos critérios de controle e de crítica
moral, qual seja, ser portador de olho grande, recolher mais do que pode ou
deve consumir ou até vender o excedente. Explicou que as noras e filhas eram
jovens e que os dirigentes das instituições as excluíam dos benefícios,
alegando que elas deviam trabalhar. Ela, idosa, como se classificou (as duas
usuárias em foco estavam com 58 e 61 anos), e acompanhada dos netos,
apresentava-se na condição de elegível segundo critérios institucionais. Além
de recolher os alimentos e estocá-los para ajudar filhas e noras, ela precisava
ser previdente, visto que as instituições, de vez em quando, interrompem seu
funcionamento. Por vezes ocorre também a diminuição da quantidade de recursos
redistribuídos. O acúmulo é, então, providencial para os períodos de escassez
relativa ou absoluta. Por fim, sentenciou a máxima que deveria presidir o
comportamento de todos os usuários: "Cada um tem que tratar de si e não se
importar com a vida dos outros". Desqualificou também outros usuários que se
dirigiam à instituição com a única finalidade de receber bens materiais,
diferente dela, que priorizava a participação religiosa. A obtenção de
alimentos, segundo ela, era contingencial. Construía-se, assim, como modelo
ideal de beneficiária ou carente.
Não conseguindo sobrepor o dever de guardar segredo à demonstração de seu saber
e de seu poder sobre aqueles que dela passam a depender, demonstrou,
comparativamente, as formas de atendimento de diversas instituições de
redistribuição de bolsas de alimentos e roupas. Destacou o constrangimento
imposto pelos dirigentes da SEF de só realizar cadastramento uma vez por ano, o
que dificultava o acesso e impunha a necessidade de investimento por longo
tempo, até ter assegurado o reconhecimento institucional pelo cadastramento.
Para esclarecer as razões pelas quais percorria outras instituições
assistenciais, contou que o marido morrera de câncer há quatro meses, que a
pensão estava atrasada, e ela se encontrava sem recursos financeiros.
Outrossim, autovalorizou-se pela demonstração que, até o final da idade
laborativa, trabalhou em casa de família. Reafirmou, para efeitos de meu
convencimento sobre a moralidade de seus argumentos e atos, a dificuldade
financeira dos filhos e seu papel positivo na colaboração com a provisão da
família extensa. Lembrou, então, que não podia contar com eles. Sustentavam
família numerosa e filhos totalmente dependentes. O marido da beneficiária que
empresta seu discurso a este texto, conforme sua avaliação, nunca fora exemplar
na contribuição financeira para o sustento da casa: era chefe da seção de
limpeza, funcionário da Prefeitura, podia contar com a estabilidade no acesso
ao salário, mas bagunçava arranjando mulheres na rua. Tanto que, embora
vivessem sob o mesmo teto, estavam praticamente separados16.
Quando lhe perguntei sobre o trabalho dos filhos, ela não quis especificar,
reduzindo a informação à resposta: "Eles trabalham para eles, são pobres, têm
muitos filhos e constantemente estão desempregados". Genericamente, explicou
que são funcionários de condomínio residencial. Alegou ainda ser ponto de
referência para os filhos porque nem sempre conseguem estabilizar-se em uma
mesma residência, em face da violência interna aos bairros periféricos.
Destacou, como exemplo, a recente mudança de um deles, pai de uma filha moça,
que teve que se deslocar de residência por causa da bandidagem.
Alegou ainda, dentre o rol de dificuldades que justificam a freqüência às
instituições filantrópicas, o fato de morar em um barraco junto à linha do
trem, razão pela qual a casa estava sempre danificada (paredes rachadas).
Definindo o local de habitação como situação de risco, ela nutria expectativas
de que fosse intimada a transferir-se de residência, condição a partir da qual
esperava auferir concessão pública de habitação sob melhores condições.
Como já destaquei e exemplifico com o relato anterior, as conversas entre a
pesquisadora e os beneficiários institucionais eram sempre encerradas
bruscamente, tão logo se aproximasse o horário de entrada no interior da
instituição. Aberto o portão, todos rapidamente dirigiam-se ao salão destinado
a receber os fiéis para o encontro dominical; as mulheres aglomeravam-se de um
lado, e os homens, a maior parte moradores de rua, sentavam-se do outro lado.
Além da regra institucional de separação dos fiéis por sexo, as mulheres
consideravam os homens abusados. Alguns, segundo elas, fingiam que dormiam para
cair sobre seus ombros. Na fila, elas comentavam o odor desagradável que deles
exalava.
Em síntese, para participar desse campo de redistribuição social, os usuários
sentem-se na obrigação de justificar para eles mesmos e para os agentes
institucionais a solicitação dos recursos redistribuídos, considerando: a) a
demonstração da necessidade material e das dificuldades de acesso a um
rendimento adequado; b) o respeito às demandas de todos e a negação da
concentração ou do acúmulo de bens; c) os supostos julgamentos morais em face
da infidelidade religiosa, ostentando comportamentos correspondentes às
diversas afiliações. A participação nas instituições exige deles um constante
estado de vigília sobre a concorrência, de modo a não se deixarem passar para
trás. Exige ainda atenção sobre os modos de construção das suspeitas e
desabonos, temas presentes nos discursos para demonstrar que sobrevivem sob as
condições de risco e desqualificantes que sobre eles são projetadas: habitação
precária, violência, inclusive sexual, maridos irresponsáveis e alcoólatras,
mulheres se responsabilizando sozinhas pela prole etc.
OS TERMOS DE MEDIAÇÃO NA REDISTRIBUIÇÃO CARITATIVA
A convivência sob vários códigos simbólicos ou expressões de modos de vida nem
sempre pode ser facilmente estudada. Uma das condições mais adotadas é a opção
por situações de conflito, de deboche, de crítica ou de escolha de adaptações
exemplares, que explicitam todo o processo de negociação. Mas se estes são
caminhos mais fáceis, nem sempre são tão disponíveis na provisoriedade temporal
em que o pesquisador realiza o trabalho de campo. Além disso, em um processo
que se pretende pedagógico, é a explicitação do consentimento que é valorizada
e selecionada como exemplar. Levantar uma série de casos sobre usuários também
seria operar desnorteadamente pela diversidade. Optei, então, por considerar
algumas das questões em jogo no campo constituído para a mediação da
convivência dirigida entre indivíduos dotados de posições diferenciadas e, por
isso, escolhidas para a integração.
A transmissão do patrimônio cultural de representações constitutivas dos
sistemas de crenças cristãos diante da pobreza e da miserabilidade ocorre entre
gerações, tal como se pode revelar pelo investimento nas crianças, mas também
entre segmentos diversos, mesmo que os indivíduos em questão possam estar
dotados de menor plasticidade, tendo em vista os sucessivos processos de
socialização. Em relação às crianças, o investimento é geralmente visto como
decisivo, em face da pressuposta plasticidade necessária à amplitude do projeto
civilizatório.
O atendimento aos adultos que os dirigentes institucionais preconizam visa,
então, propiciar a inculcação de formas de percepção do mundo e de
internalização de disposições entre as crianças. O investimento é fundamental à
projeção no tempo da proposta educacional. Esta opção consciente encontra
formas de legitimação na própria doutrina espírita.
Em conseqüência, o cuidado dos pobres através das crianças (acompanhadas de
mães e avós, portanto, mulheres) constitui o investimento considerado mais
assegurado para controlar os riscos atribuídos como inerentes a esta posição:
combate à criminalidade e à expansão de comportamentos desviantes. Enquanto
luta contra a criminalidade, a solidariedade e a fraternidade para com os
pobres são deveres de todos, postura e responsabilidade transmitidas geração à
geração são um patrimônio da civilização cristã.
O estudo da transmissão de patrimônio imaterial não se adequa à descrição, mas
à interpretação. Por isso, tentarei analisar, considerando as práticas
diferenciadas dos agentes, alguns princípios e valores que são exaltados para
nortear comportamentos comuns e sistemas de interpretações que possam ser
comungados ou negociados. Pauto-me, para análise deste item, em interpretações
próprias, todavia, construídas a partir de notas de caderno de campo ou de
reflexões elaboradas com base nos discursos públicos proferidos por
evangelizadoresnas situações de celebração do encontro dominical.
A Caridade: Encontro Universal da Diferenciada Humanidade
Os dirigentes da SEF têm um duplo objetivo: prestar assistência aos carentese
orientar a evolução espiritual dos afiliados a este princípio de crença,
mediante o exercício da doação supostamente desinteressada. A contribuição
prestada aos usuários é condição do exercício de aprendizagem de sentimentos e
percepções valorizadas pelo sistema doutrinário. É da troca que aí se
estabelece que a instituição operacionalmente realiza os objetivos apregoados
ou que os mentores intelectuais do projeto cumprem suas intenções.
A perspectiva de ação assim definida reordena os modos de participação dos
agentes e permite a incorporação do projeto de mudança social, a partir do
consenso em relação a determinados quereres e motivações. Este consenso
mobilizadamente construído se pauta na tentativa de colocação em prática do que
é idealizado. O projeto de intervenção, portanto, pressupõe a correlação entre
pensar e agir.
As motivações para o agir são contextualizadas e, no momento do trabalho de
campo, decorriam, em grande parte, de uma tomada de consciência das
contradições sociais, explicitadas de forma mais trágica por apelos
politicamente construídos em consonância aos múltiplos significados atribuídos
aos termos exclusãoe excluído. Por estes termos, os agentes institucionais
acenam para um futuro miserável a açambarcar expressivo segmento da população.
A exclusão não sendo absoluta desdobra-se em formas de inclusão novamente
discriminadas: a violência indiferenciada, a expansão da criminalidade, o
crescimento do número de crianças de rua, de população de rua17. A
dramaticidade inerente aos significados dos termos demonstra, para os agentes
desta "cruzada moral" (Goffman, 1970; 1974), a necessidade de controle da
periculosidade do pobre e, por conseqüência, a necessidade de implementação,
pelos promotores da emancipação, de obras de educação e reabilitação.
O controle dos espontaneísmos de sentimentos caritativos pela canalização
ordenada, administrada e concentrada sob os auspícios de uma instituição
religiosa, torna socialmente visível e eficaz a mobilização em torno da
construção e da gestão de um novo contrato social, idealizado pelos
significados atribuídos à solidariedade18. Este contrato redefine os modos de
afiliação de benfeitores e beneficiários. Ao mesmo tempo, expropria
consentidamente o valor das iniciativas individuais e redefine as virtudes,
reconhecidas se exercitadas no espaço coletivo constituído pelas instituições
religiosas. Desse modo, os agentes religiosos reivindicam para si a garantia da
probidade dos homens e a inculcação de valores morais. Administrados por esta
operação ou, conforme Bourdieu (1989), violência simbólica, os atos de caridade
passam a ser governados pelos da generosidade, virtude superior, embora ambos
os sentimentos sejam instrumentais a esta demonstração pública19.
A articulação entre o pensar e o agir baseia-se na socialização e no
direcionamento dos modos de vivenciar determinados sentimentos. Portanto, as
emoções evocadas pela troca caritativa não podem estar expostas a
espontaneísmos, devendo ser incorporadas pela problematização do senso comum
religioso, exercício que constrói a especificidade do sistema de crenças e as
razões para a concorrência com os demais, que articulam outras modalidades de
correspondência entre idealização e objetivação.
A participação no conjunto de atividades da SEF opera como um laboratório de
aprendizagem de sentimentos condizentes com a doutrina espírita. Não há prática
desinteressada. Tudo conclama no sentido de tornarem objetivadas as intenções.
Tudo conclama no sentido de universalizar o diferente. É o caso do
reconhecimento de sentimentos supostamente universais, como a dor, que não
poupa nem respeita as hierarquias. Assim sendo, um dos objetivos latentes é
relativizar a extrema diferença dos agentes escolhidos para a aproximação,
igualando-os mediante certos princípios abstratamente universais, como a
humanidade, na prática, ensinada por Cristo. A pobreza material, advertem os
evangelizadores, é reflexo da pobreza da alma, do espírito ainda embrutecido,
do apartamento da humanidade cristã, que condiciona os homens à fraqueza, à
degradação, à desclassificação. Partindo do reconhecimento da diferença das
condições de vida materiais, porque também morais, os espíritas investem na
construção do homem universal em Cristo ou pela relação com esta divindade.
Esta concepção de pobreza e esta qualificação dos pobresnão correspondem às
elaboradas pelos usuários, salvo no que eles se pensam vítimas e desprovidos de
sorte ou escolhidos para o sofrimento. Por tal motivo, reivindicam o
reconhecimento da dependência, da necessidade de ajuda e proteção. Mas a
concepção dos usuários, pautada na sorte ou na eleição, corresponde à mesma
concepção, pouco explicitada coletivamente, dos benfeitores. Este silêncio
sobre tal concepção se deve à contradição da crença com os princípios
doutrinários a que estão afiliados. A mobilização primeira para a prática
caritativa também corresponde à concepção que os doadores foram privilegiados
pela sorte e, por isso, devem ajudar os desafortunados.
As interdependências constituídas entre os universos culturais diferenciados
podem adquirir requerida longevidade, pela relativização da definição da
pobreza e da condição do pobre como temporárias. Este discurso é recorrente
entre os voluntários, mas é contraposto pelos usuários, que pensam a pobreza
como condições crônicas, intergeracionais, legado de constrangimentos para
adoção de outras alternativas, e, assim sendo, suscitam investimentos
sistemáticos e contínuos, compromissos duradouros com os quais devem se ocupar
para superá-la20. Ora, a universalidade atribuída à humanidade suporta a
produção do discurso legitimador das práticas destinadas a este mesmo fim: a
construção do ser moral. Por isso, a comunicação sistemática quanto à crença
neste princípio é necessária porque é percebida de modo diferenciado, tanto
pelo modelo idealizado dos missionários, como dos seus beneficiários. Em
conseqüência, a doutrina espírita, como tantos outros sistemas de crenças que
investem na elaboração de explicações a respeito do pobree da pobreza, reafirma
princípios de interpretação do mundo social disputados na construção da
civilização ocidental moderna: o medo dos pobresnela mesma produzidos. A
explicação sobre a pobreza é, assim, minimizada, derivada da atribuída aos
pobres, incapazes, por carências morais ' vícios, pecados, falta de coragem e
autoconfiança ', de alcançarem condições dignas de vida, mesmo que sob relativa
restrição de recursos materiais. A inserção dos pobres neste mundo social de
virtudes pressupõe, desse modo, a aceitação de que ele é também responsável
pela sua pobreza.
Se as intenções do projeto de intervenção ou gestão social são objeto de
acordos, as formas de sua realização são objeto de criatividade, inventividade,
adaptabilidade, porque pressupõem a construção da adesão do beneficiário. As
ações dos benfeitores estão também referenciadas às possibilidades de recusa
dos beneficiários, especialmente aquelas dissimuladas, que não deixam
explicitar o desacordo e a resistência quanto à aceitação do que o outro pensa
sobre eles ou do que o outro pensa ser bom ou vantajoso para eles enquanto seus
protegidos ou controlados.
Na prática, os objetivos e intenções são diversos porque expressivos da
consciência de alcances menos ambiciosos. O principal objetivo é a construção
da autonomia dos pobres pela internalização de valores que explicam a
importância do trabalho. Mas pode ser menos enfático e se dirigir a "esclarecer
as consciências e consolar os corações"; "ajudar às pessoas a encontrarem seu
próprio caminho"; "propiciar que as pessoas descubram seu interior ou alcancem
o autoconhecimento, exercício que pressupõe o silêncio mental para auto-
reflexão".
A instituição apresenta-se, assim, como forma de realização de um duplo
processo de intervenção: sobre os que aderem, buscando reflexões espirituais e
exercício de objetivação deste sistema de crenças; e sobre os que, submissos à
valorização de tamanha carência material, propiciam as possibilidades desiguais
de troca e de definições para existência social. Por isso, o trabalho de
assistência não é apenas voluntarista e espontaneísta. Pressupõe a formação, a
adesão a um sistema de crenças e de visão de mundo.
O princípio racional-afetivo referenciador deste sistema de crenças que integra
os mais ou menos intelectualizados fundamenta-se nos sentidos atribuídos à
categoria caridade: dar e doar-se. Por isso, independentemente da diferenciação
de saber, todos são unânimes em proclamar: "A caridade é a pedra fundamental.
Sem caridade ou fora da caridade, não há salvação". Estes significados não são
expressos apenas como princípio, mas também como prática ou como envolvimento e
demonstração de amor ao próximo. Por isso, vaticinam: "Não é somente dar as
coisas, é ajudar nas dificuldades: dar assistência material, moral e afetiva. A
caridade material é um trabalho assistencial e moral". Por isso ainda,
consagram: a adesão aos valores associados ao termo caridade referencia uma
forma de viver no mundo.
Portanto, a formação espiritual orienta as relações entre os segmentos
diferenciados e colabora na constituição social dos sentimentos que reafirmam e
diluem a distinção. Contudo, os trabalhadores da casa engajam-se segundo visões
de mundo que estão subjacentes ao conforto moral que a transferência de
recursos entre desiguais pressupõe. Por isso, os agentes institucionais menos
intelectualizados na elaboração de sua fé (ou portadores relativos do direito
de difusão dos princípios doutrinários mais consagrados) põem em destaque
outras referências. Destacam os efeitos dos investimentos na implantação de
determinadas normas disciplinares, na construção do comportamento humano mais
adequado para realizar uma suposta boa sociedade.
A inserção de usuários e trabalhadores da casa no sistema de trocas e
construção de concepções de mundo torna-se ainda viável pelo diálogo em torno
dos modos de convivência com o sofrimento, mal-estar que atinge a todos
indiferenciadamente. O exercício de deslocamento simbólico para a posição do
outro ' ou para um mundo social efetivamente diferenciado, porque se objetiva a
partir de sistema de posições caricaturadas ' demonstra sua eficácia porque é
percebido como instrumento de cura da dor e das perdas.
Uma das trajetórias valorizadas para a demonstração das modalidades de
participação dos trabalhadores da casa é reconstituída mediante uma ruptura com
modos de percepção anteriores. Ela é quase sempre explicitada diante de grandes
momentos de sofrimento, em que a convivência e a sociabilidade, orientadas por
este princípio de percepção dos males, demonstraram sua eficácia. Tais
concepções de mudança por transposições orientadas por outras referências
morais, elaboradas diante de grandes sofrimentos, aplicam-se a todos os
participantes da SEF. Por elas, benfeitores e beneficiários se encontram
pressupondo a integração a um processo de conversão social ou de afiliação a
uma comunidade de crenças e de gestão coletiva de sofrimento. Esta experiência
de conversão, acenada para todos, pressupõe a administração do sentimento de
sua plausibilidade e a aprendizagem dos quadros de pensamento instituídos na
comunidade institucional, indispensáveis para a estruturação da nova realidade.
É neste contexto que todos devem se reconhecer como iguais e diferentes, mas
confirmar a possibilidade de emergir um novo ser e uma nova identidade. A
socialização no exercício destas posições implica, então, a reorganização dos
termos de construção dos discursos pela (re)significação dos sentidos. É na
convivência com este novo sistema de significados que a realidade subjetiva de
benfeitores e beneficiários pode ser pensada em transformação21.
Portanto, o estudo da prática filantrópica, associado ao do processo de
expansão das organizações não-governamentais e de novas formas de agregação e
construção de identidades, põe em relevo outros processos de construção de
estilos de vida, valorativos da participação e da responsabilidade sociais. A
diversidade de tipos de ações voluntárias é enorme. Este artigo apenas
contribui para pensar o caso dos voluntários religiosos, mas sua amplitude deve
ser reconhecida. A prática filantrópica expressa movimentos em curso, de
valorização da solidariedade como instrumento político de compensação dos
crescentes mecanismos de segmentação social ou de exclusões sociais, como
geralmente vêm sendo politicamente reconhecidos22.
OsCarentescomo Sujeitos da Evangelização
Os agentes institucionais não elaboram discursos sistematizados sobre os
carentes por disporem da convicção de que tais posições são efeitos do descaso
no investimento da evolução espiritual. Quando se referem a eles mediante
explicitação de pontos de vista que reconhecem a alteridade, exaltam as
dificuldades para o relacionamento e para colocação do seu projeto em prática.
Assim, eles ' forma indefinida com que são construídos pela generalidade '
orientam-se pela desconfiança, por não estarem habituados ao merecimento da
consideração pessoal. A objetivação do projeto pressupõe, então, a conquista da
confiança. Eles desconhecem ou irreconhecem a disciplina necessária à
participação no ato religioso, razão pela qual devem ser objeto de
investimentos no sentido da aprendizagem de comportamentos adequados. Elessão
desprovidos de hábitos de higiene material e mental, motivo pelo qual devem
incorporar formas diferentes de percepção orientadoras das concepções de vida
material e moral. Eles carecem de usos especiais do corpo, condição a partir da
qual devem desenvolver a coordenação motora necessária, associada à
concentração mental de que são desprovidos. Aprender a concentrar-se
mentalmente torna-se, então, um projeto, um fim e um meio. Complementarmente, a
internalização de determinadas concepções de asseio corporal, expressivo da
aceitação de princípios morais, enfatiza a idéia-valor da purificação em amplos
sentidos.
A mobilização dos carentes, contudo, sustenta-se na distribuição de serviços e
bens e no acatamento de regras de inserção institucional. Para a participação
no encontro dominical, que abarca recreação, orientação de hábitos saudáveis de
vida material e moral e palestras doutrinárias, o interessado deve se cadastrar
e se comprometer a não faltar, opção que lhe dará a prerrogativa da
participação, mas que o excluirá a partir da terceira ausência. A pressão dos
que insistem neste reconhecimento facilita a decisão pela exclusão do faltoso.
O processo de cadastramento constitui-se, igualmente, em princípio de
imobilização social do beneficiário, porque se sustenta na assiduidade. A
alternativa de participação na conquista de recurso raro, visto que o
cadastramento é realizado uma vez por ano, pressupõe a socialização nas normas
institucionais por parte do interessado. Além disso, o cadastrado pode ser
convidado a abandonar tal prerrogativa, caso não apresente um comportamento
condizente com a participação em atos rituais de vivência religiosa ou em
palestras. Por isso, a expectativa é de que aceite um comportamento
disciplinado, obedeça a um horário preciso para entrar e para sair, momentos em
que o portão da instituição é aberto.
Como há alternativa de incorporação dos não-cadastrados que concorrem com os
indisciplinados e não-assíduos, os que desejam manter sua vinculação de
cadastrado devem chegar relativamente cedo para assegurar lugar no salão
destinado às palestras. Cada um é responsável por este controle, sendo vedada a
reserva de lugares para os retardatários. De qualquer forma, apesar de o portão
ser fechado em um horário preciso, há alternativa de recebimento de
alimentação, caso a demanda dos que estão no interior do recinto permita.
As palestras difundem um sentido muito exato para a evangelização, embora sejam
elaboradas tendo em vista a transferência de princípios doutrinários e, por
isso, atendam muito mais ao objetivo do disciplinamento do comportamento social
do que da conversão. De fato, o controle não se dá no sentido de receber apenas
convertidos ao sistema doutrinário. Não importa o sistema de crenças do
usuário, ele pode se beneficiar dos serviços, desde que respeite as normas de
comportamento social próprias da instituição. No único momento em que a ação
dos evangelizadores se faz mais específica, na ministração dos passes, o
direito de se retirar do salão é publicamente ou oficialmente anunciado. Esta
reserva é adotada por vários participantes, inclusive os mais assíduos.
Contudo, pelo consenso entre transmissores e receptores de que é possível
melhorar as condições espirituais e, por conseqüência, materiais de vida, pela
renovação de energias, o passe é um recurso valorizado pela grande maioria,
muitos deles para lá acorrendo em busca deste serviço ou justificando sua ida,
não pela carência material, mas pelo bem-estar advindo da participação nesta
prática ritual.
O momento de participação no processo de evangelização dos usuários é
referenciado por comportamentos mais lúdicos, sendo freqüente a prática dos
cânticos, quando são selecionadas canções da música popular brasileira ou da
doutrina espírita, portadoras de mensagens que valorizam o enquadramento de
formas de percepção do mundo e de si mesmo. Tomando uma situação como exemplo,
uma canção de conhecimento e aceitação gerais, Se eu quiser falar com Deus, de
autoria de Gilberto Gil, é deslocada do repertório da música popular brasileira
para operar como um cântico durante as sessões de preces.
As letras das canções constituem substrato para a reflexão sobre princípios
orientadores do comportamento. A construção destas novas formas de percepção e
enquadramento é marcada por perguntas relativamente dirigidas, sendo as
respostas positivas estimuladas pela concessão de prêmios aos enunciadores. Os
prêmios são geralmente bens destinados à alimentação ' caixas de leite in
natura, latas de leite em pó, caixas de chá etc.
Contudo, todos estes recursos de procedimento para internalização de visões de
mundo são instrumentais a uma comunhão de sentimentos em que se exprime, da
forma mais ritualizada possível, a alegria do encontro entre desiguais, o
prazer da doação e o investimento na valorização do que está na situação de
desqualificação. E de tal modo este sentimento é perpassado que todos os
usuários valorizam a dignidade com que são recebidos, dignidade objetivada nas
boas maneiras ou educação e na valorização da apresentação, da quantidade e do
gosto do alimento oferecido. Dignidade de tratamento reconhecida pelo fato de
se sentirem percebidos como pessoas e não como coisas indesejáveis. Os
trabalhadores da casa reconhecem histórias pessoais dos usuários, pegam no colo
as crianças enquanto as mães almoçam, demonstram interesse pela evolução de uma
doença etc. Além disso, as crianças são acariciadas, e as mães recebem atenção
individualizada, demonstrada pelo interesse sobre as condições de vida dos
filhos. O reconhecimento da dádiva acentua-se porque os beneficiários sabem que
o alimento é adquirido e preparado por concessão dos trabalhadores da
casa.Estes, por sua vez, orgulham-se da refeição que distribuem: "almoço
substancioso, com fartura, e preparado com muito carinho". O prazer por tal ato
de transferência de si ou de reconhecimento desta importante participação
social é perpassado pelo ambiente de confraternização.
Neste reconhecimento do encontro entre desiguais talvez se construa a melhor
eficácia da ação política junto aos pobres: relativiza o descrédito, o estigma
e a marginalidade cultural; e constitui o espaço de reconhecimento de trocas
entre benfeitores e beneficiários. Esta situação de encontro possibilita a
explicitação de acordos e a relativização dos desacordos quanto aos
significados de visões de mundo diversas. Pressupondo o sistema de diferenças,
no entanto, estão abertas as alternativas para a disposição relacional. O
contato opera como fato constitutivo do reconhecimento social dos pobres e de
redefinição de sua identidade e pertencimento social.
Esta valorização positiva do usuário socialmente desqualificado é também
construída pelo reconhecimento de que a instituição abre alternativas para que
a população de rua, expropriada da possibilidade de guardar sua privacidade,
possa desfrutar de espaços e momentos de auto-reflexão. A reflexão é
considerada fundamental na superação de certas dificuldades, desde que
sustentadas no entendimento da provação por que passa o corpo e,
conseqüentemente, na aceitação do sofrimento com resignação e desprendimento.
Os Carentese a Dignificação Moral pela Redistribuição
Definidos genericamente como população carente ' pessoas que moram na
rua,pessoas que moram na favela,pessoas que moram em cortiços, a instituição,
como já destaquei, recebe crianças acompanhadas, tendo destaque a presença de
mulheres. Portanto, na divisão familiar do trabalho, às mulheres cabe papel
fundamental na coleta de recursos para sobrevivência. Entre os homens, poucos
são aqueles dotados de famílias, sendo, por isso, classificados como mendigos
ou pessoas que moram na rua. Neste caso, o princípio básico de distinção é a
presença ou a ausência de habitação particular.
Esta segmentação é flagrante nas formas de apresentação dos usuários. As
crianças, adultos e velhos que dispõem de habitação particular apresentam
aspectos mais saudáveis, mais limpos e, dessa forma, são avaliados como melhor
orientados. O uso dos recursos institucionais é incorporado como parte do
projeto de melhoria das condições de vida, por vezes de uma família extensa,
sendo assim também beneficiários aqueles que permaneceram em casa, por estarem
impedidos de se locomover ou por não se sentirem autorizados entre eles mesmos
a percorrer instituições como pedintes, caso específico de homens e mulheres
que trabalham ou estão em idade laborativa.
O segmento identificado como população de rua, na sua imensa maioria
constituído por homens, não dispõe do mesmo padrão de higiene dos demais.
Comumente estão vestidos com roupas sujas, demonstrando a dificuldade de manter
os mesmos hábitos de apresentação. Além disso, têm sempre semblante cabisbaixo,
aspecto menos saudável, especialmente nos períodos mais frios, e são bastante
inquietos durante o encontro dominical. Dormem a maior parte do tempo, saem da
sala, irritam-se e se retiram tão logo o almoço é servido.
As mulheres comparecem relativamente arrumadas, demonstrando zelo e cuidado com
a aparência, seja para se diferenciarem das demais, seja para melhor se
apresentarem diante dos agentes institucionais, isto é, pobres,mas orientadas
(potencialmente portadoras de condições para incorporar orientações e
desdobramentos da situação, por esse ponto de vista, de carência provisória).
O cadastro que a diretoria da instituição organiza não tem por objetivo
identificar a origem social do usuário. São solicitados ao demandante de
inscrição: o nome, a idade e a data em que começou a freqüentar a instituição,
sendo, a partir deste ato, controlada a assiduidade aos encontros dominicais.
Este registro visa adequar o número de presentes ao espaço físico e controlar a
previsão dos recursos a serem redistribuídos, bem como as condições de
reprodução da instituição. O princípio geral orientador é: antigüidade é posto.
A assiduidade, contudo, opera no sentido de facilitar o trabalho de
reenquadramento, pela incorporação de novos esquemas de percepção de si e do
mundo social. A liberalidade em relação à freqüência impediria a adesão, o
disciplinamento do comportamento dos pobres que querem ser assim reconhecidos
e, quem sabe, a conversão.
Algumas situações são eliminadas do atendimento: menores de rua e pessoas
visivelmente alcoolizadas ou drogadas. Há um controle na porta, no sentido de
impedir a entrada de pessoas sob tais condições. E, durante as palestras, são
dados avisos sobre esta interdição. São organizadas campanhas no sentido de
eliminar os que aparecem com odor de uso recente de bebida alcoólica. Por
vezes, este controle é ritualmente caricaturado pela direção. O combate aos
vícios mobiliza os associados em uma grande campanha moral de redenção dos
homens.
Independentemente de os dirigentes institucionais e evangelizadores não
questionarem as causas da pobreza e avaliarem os bons ou maus pobres pela
assiduidade ao vínculo institucional, os usuários sentem necessidades de se
explicar e justificar a participação nos atos de redistribuição de comida.
Torna-se evidente que a busca da alimentação constitui o primeiro motivo da
presença dos usuários. Eles estão a todo tempo controlando a concorrência;
sempre criando formas de se anteciparem na obtenção dos recursos. As equipes de
evangelizadores devem acompanhar este movimento e minimizar a ansiedade
expressa na desatenção.
Um segundo motivo explica a significativa presença de velhos e mulheres
adultas: alternativa para o passeio aos domingos. O encontro com os colegas, o
bate-papo, o deslocamento e a orientação evangélica são definidos como recursos
de lazer propiciadores de momentos de sociabilidade.
A diversidade de sentidos atribuídos pelos usuários à participação é
demonstrativa do exercício sistemático de construção e busca de outras
alternativas para o enfrentamento das precárias condições de reprodução
socioeconômica. Para participar desse campo institucional, é preciso conhecer o
circuito de redistribuição, critérios, oscilações, calendários etc. Mas a
explicitação deste saber desqualifica o usuário, redefinido como não-carente ou
profissional da dependência caritativa. Lidar com esta contradição exige o
aprendizado da capacidade de se explicar e de apresentar imagens positivas
sobre si mesmo.
As explicações dadas espontaneamente pelos usuários para se definirem como
merecedores dos recursos ofertados são de fundamental importância para entender
as concepções de pobreza, mas principalmente de carência, entre eles. Elas são
publicamente produzidas para os próprios usuários, mas respondem
contrastivamente aos significados negativos construídos por outros segmentos
sobre eles. Não podendo se desvencilhar dos significados atribuídos às posições
de carente ou necessitadocomo princípio organizador das práticas de
redistribuição, eles investem na produção de novos significados e modos de
dignificação.
Propiciando o encontro autônomo entre eles, durante o período em que aguardam a
entrada na instituição, os benfeitores investem indiretamente na ruptura do
isolamento social e cultural a que os usuários se encontram constrangidos. A
calçada da rua diante do prédio aparece como um espaço público para elaboração
coletiva de representações e visões positivas sobre a indignidade da
dependência. Daí a necessidade de participação coletiva na definição do caso
pessoal, modo de construção de uma narrativa eficaz na demonstração do drama
individual, que explicita a dificuldade de cada um para viver como pobre. Estes
momentos constituem espaços de explicitação pública da dignidade e de
elaboração e confirmação de princípios de moral que referenciam seus
comportamentos e os comportamentos que atribuem aos benfeitores23.
Com certo tempo de freqüência, todos conhecem versões sobre histórias de vida
de uns e de outros. A circulação de informações tende a se dar segmentadamente
entre os usuários que possuem residência ou família e entre os que são
reconhecidos como população de rua. Os pedintes que possuem habitação
particular se justificam diante da convivência e da aproximação das condições
de sobrevivência da população de rua. De qualquer forma, alegam que os
dirigentes institucionais mantêm a disciplina, não havendo abusos. Os homens
assim identificados não se cadastram, aguardando a vaga após a entrada dos que
asseguraram, sob cumplicidade, este direito. Para a população de rua, o
cadastramento opera no sentido de restringir as chances de incorporação de
múltiplas alternativas de ajuda. Os que assim se identificam recusam-se ao
cadastramento porque, imediatamente, seriam eliminados pela pouca assiduidade.
Sua aparência, por si só, impõe o dever da concessão da comida, motivo
fundamental da presença deles na instituição.
Os casos relatados são recorrentes em termos de construção de temática
justificadora da participação na redistribuição caritativa. As concepções de
pobreza e carência aí veiculadas constituem um patrimônio cultural dos
usuários, operando na individualização contraposta à massificação ou ao
anonimato desabonador, contido na desclassificação geral atribuída à
miserabilidade ou à carência. Operam também na construção desta posição,
reconhecida pela falta, as acusações de responsabilidade individual e
resistência ao engajamento na sua própria reabilitação. A estes atributos
negativos, eles contrapõem a vinculação ao trabalho; o testemunho do patrão
quanto ao reconhecimento de sua responsabilidade de trabalhador; a
solidariedade familiar e vicinal; o saber inerente à capacidade de concorrer
entre eles mesmos e de conhecer os modos de funcionamento do campo
institucional; isto é, correspondente à habilidade de se integrar, por
reconhecimento oficial ou cadastramento, ao se impor por diversas formas de
pressão.
Os casos expressam, assim, o próprio mundo do usuário, real ou imaginado, para
si mesmo ou para os que, pela alteridade de condição, convivem com eles nesse
campo social. Explicitam as motivações para a integração à instituição, mesmo
que representadas pela adesão momentânea ao credo proposto e correspondentes às
intenções dos dirigentes institucionais, por conseguinte, nem sempre à fome
imediata. É o que demonstra o caso a seguir apresentado:
Dona S., 64 anos, avó e responsável por dois netos, de 12 e 14 anos, relata que
sua filha, a mãe dos referidos netos, morreu há seis anos por causa de
envolvimento com comércio de droga. Ela passou então a tomar conta dos dois
meninos. O de 14 anos tem comportamento por ela considerado ótimo, mas o de 12
anos não se deixa controlar. "Faz o que quer, não vai para a escola, pega
coisas dos outros". A avó não consegue corrigi-lo e quer interná-lo. É
recorrentemente aconselhada a não tomar esta atitude, por correr o risco de
piorar a situação de marginalidade do neto. Contudo, alega, a situação de risco
já está dada. O neto já apresenta um comportamento desviante. Na companhia
dela, adverte, "ele vai virar bandido", porque não lhe obedece. Procurou uma
vereadora para ver se conseguia colocar o menino na Fundação da Infância e
Adolescência ' FIA. Também procurou apoio no Centro Juvenil de Orientação e
Pesquisa ' CEJOP, com a intervenção da pedagoga, psicóloga e fisioterapeuta,
porque ele é gago. Diz ser ele traumatizado porque os pais brigavam muito. A
mãe jogava querosene e água quente no marido, e o menino ficava muito nervoso.
Tentou obter apoio para tal problema na SEF. Esta era a razão pela qual
solicitava recursos: auxílio complementar e institucional para educar o neto.
Os agentes institucionais não se ocupavam deste tipo de demanda pela população
carente. Diante da restrição, Dona S. aceitou o que lhe foi oferecido: além de
almoçar e levar refeição dominical para os dois netos, conseguia ali viver
momentos de paz e de súplica aos poderes espirituais para que a ajudassem a
obter uma solução para os problemas que a atormentavam.
O empenho da avó no sentido de assistir e orientar os netos é por si só
valorizado e digno de apoio, dados os limites físicos e financeiros para
reatualizar o papel de mãe e o empenho em não estimular a vida independente, na
rua, de dois adolescentes. Esta responsabilidade assumida pelas avós constitui
situação exemplar para o merecimento da ajuda e para o pedido de colaboração.
Portanto, o critério de carência também é bastante relativo entre os usuários,
embora algumas situações sejam emblemáticas: pessoas incapacitadas de trabalhar
e responsáveis pela assistência a crianças, especialmente se abandonadas pelos
pais. Estes critérios são produzidos e reproduzidos para conferirem dignidade
aos pedintes e valorizarem as posições de uns vis-à-vis os outros.
Todos os usuários, no entanto, reconheciam que não eram controlados ou
submetidos a concursos de pobreza para freqüentarem a SEF. Recorrentemente,
eles afirmavam: "Vem branco e bem vestido pegar comida, eles não fazem o
controle. Dão até a quem não precisa". Alguns, contudo, orgulhavam-se de sua
condição de usuário preferencial, status obtido por assiduidade ou adesão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O HUMANISMO SALVADOR E AS FRONTEIRAS DE COGNIÇÃO
Na cultura cristã, condena-se o descaso com a solidão dos pobres ou o seu
abandono. Os cristãos devem assim irmanar-se pela demonstração de que o consolo
constitui meio eficaz para a construção de uma sociedade mais fraterna, mesmo
que sustentada em tamanha desigualdade. Menos que converter os pobres em
espíritas, os dirigentes da SEF põem em ato a construção de uma sociedade menos
conflituosa. E, assim, redimensionam o seu projeto de participação e de
percepção de utilidade social, motivados pelo desejo de ultrapassarem o
absolutismo dos sentimentos individualistas, desqualificados como egoístas.
A despeito de as categorias classificatórias que definem a posição social dos
usuários serem desabonadoras, só nesta condição eles podem usufruir da
circulação de recursos. É da aceitação do julgamento da carência do demandante
que o usuário institucional pode colaborar para emergir o beneficiário e o
benfeitor. O protetor, contudo, deve, a partir deste reconhecimento,
corresponder em termos das trocas esperadas.
Para que os interesses de benfeitores e beneficiários sejam relativamente
atendidos e ao mesmo tempo reconhecidos como diferenciados, algumas
expectativas devem ser comuns e algum tipo de atendimento deve torná-las
realidade. Esses pressupostos, referenciadores de comportamentos e práticas,
configuram a constituição de campos de mediação inerentes às trocas
redistributivas sob o ideário da filantropia.
Por essas experiências partilhadas, os agentes que integram os campos de
mediação criam um acervo coletivo de conhecimentos e de controle de recursos.
Os conhecimentos aí institucionalizados não podem ser adquiridos fora deste
próprio campo de mediação, embora outras disposições possam facilitar a
participação ou negociação. Eles propiciam o enquadramento e a reprodução de
benfeitores e beneficiários; a definição coletiva de formas de mobilização e de
produção de adesões; e também dão continuidades singulares a valores e
universos simbólicos que explicam aquelas posições no mundo e as biografias de
cada um. Têm, assim, caráter ordenador.
Participar de um universo diferenciado mas desejado é partilhar de uma
ressocialização ou engajar-se na busca de uma ressignificação. A convivência em
espaços interculturais pressupõe uma vontade de abertura de universo, de
engajamento em domínios de ação, reflexão e inovações, colocando em questão os
cruzamentos destes vários pertencimentos culturais.
O uso metodológico do termo mediação social, para efeitos deste artigo, deve
então ser entendido pela aceitação de seu sentido polissêmico, pressupondo: o
que se coloca entre dois universos culturais visando ao diálogo, ampliando ou
reduzindo o conflito; a abertura para o conhecimento do outro; a negociação
fundada no a priori da abertura para o pensar e o agir diferentes; os
investimentos no sentido da produção de mudanças. Os investimentos
correspondentes, no caso em pauta, acenam com as possibilidades de participação
e reprodução de legados culturais de crenças, de solidariedade, de hierarquia e
diferenciação, compreendidos se levados em conta nesta participação contextual.
Os termos que aí são tão caros integram a herança cultural e revelam modelos de
orientação e ressocialização, confirmando que a transmissão não é reposição,
mas transformação. Portanto, se os significados atribuídos à caridade, um
desses importantes termos, instauram uma relação de troca entre desiguais, eles
também propiciam a constituição de um espaço público para cada agente (com ela
comprometido) falar de si, ver-se e rever-se na sociedade.
Investindo na inserção nesses espaços de fronteiras de universos culturais
distintos, os usuários projetam-se em outras redes e aí se personalizam,
abrindo espaços para eles próprios se constituírem em outros mediadores de
novos adeptos e para ampliarem as formas de afiliação social. Por estas
afiliações, eles ainda criam a camaradagem e o reforço simbólico para a
apropriação dignificada do espaço público.
Os recursos materiais, os alimentos, mesmo que necessários, são na verdade
instrumentais à participação em mundos sociais que os tomam como trunfos
valorizados. Para que os recursos materiais sejam assim secundarizados, os
usuários devem investir na reversibilidade de modos de representação de si que
sejam pouco abonadores. Fazendo do seu caso uma exceção, os usuários dão provas
de que o dito e o previsto pelo benfeitor é seu atributo pessoal. Assim se
diferenciam dos outros que, na mesma posição, são desqualificados.
Relativizando a perspectiva tipificadora, homogeneizadora e desabonadora que os
benfeitores lhes impõem, os beneficiários também reafirmam a desqualificação
moral dos pobres segundo a lógica do "salve-se quem puder".
NOTAS
1. O termo foi politicamente exaltado para pôr em destaque o reconhecimento de
que as desigualdades sociais não são temporárias, mas reproduzem ampliadamente
personagens residuais ou desnecessários economicamente. Vem sendo consagrado
nos textos acadêmicos, especialmente aqueles que reivindicam um caráter de
combate e denúncia política da situação de miserabilidade de grande massa da
população brasileira. Ver Nascimento (1995:25).
2. A revitalização dos investimentos filantrópicos e caritativos, tanto por
parte das instituições privadas como públicas, foi estudada por Neves (1994;
2002a; 2002b; 2003a e 2006), mas também Landim (1995:5-6 e Novaes, 1995:7-15).
3. Sobre a trajetória dos significados atribuídos ao termo pobre, durante os
séculos XVI e XX, ver Sassier (1990).
4. O processo de constituição do campo institucional da filantropia na cidade
de Niterói (RJ) foi por mim analisado em Neves (2003b).
5. A respeito dessa forma de associação entre cidadania e democracia como
instrumento da ação política estatal, ver Ribeiro e Santos Júnior (1996:23-27).
6. Segundo Ferreira (1975), caridade é o sentimento que nos leva a poupar quem
deveríamos ou poderíamos castigar, punir; complacência. Tais significados são
sugestivos para a compreensão da prática caritativa. Se há consenso na
distinção entre caridade ' doação para minimizar sofrimento imediato ' e
filantropia ' movimento pedagógico destinado a educar, reintegrar, converter e
homogeneizar a humanidade ', na prática estas distinções nem sempre se tornam
nítidas. O sentimento caritativo é controlado institucionalmente para fins
reordenadores do comportamento do assistido.
7. Venho, por sistemático processo de reflexão e análise empírica, dedicando-me
à sistematização de algumas noções e princípios metodológicos por mim
considerados mais atinentes ao estudo da mediação cultural e social. Para
elaborar tais reflexões, tenho mantido diálogo e procurado inspiração em
autores como: Berger e Luckmann (1973); Berreman (1975); Bourdieu (1981);
Crespi (1983); D'Incao e Roy (1995); Mauss (1974); Mead e Métraux (1953); Moore
Jr. (1987); Weber (1977); Wolf (1971).
8. Este artigo constitui um dos subprodutos do projeto integrado de pesquisa
Transmissão de Patrimônios Culturais sob Exclusão Social, subprojeto O Campo
Institucional da Filantropia, contemplado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico ' CNPq com bolsas de iniciação
científica, de apoio técnico e de produtividade, entre março de 1995 e
fevereiro de 1999. Participaram do levantamento de dados para a pesquisa nesta
instituição os seguintes alunos do curso de ciências sociais da Universidade
Federal Fluminense ' UFF: Andréa Carvalho Martins Ribeiro, Bárbara e Silva
Gregório, Dilma da Silva e Maria Marcia Buss de Souza. O trabalho de campo do
projeto integrado estendeu-se de julho de 1995 a junho de 1998 e, na SEF, entre
outubro de 1997 e março de 1998.
9. Situação semelhante foi analisada, em Paris, por Fonseca (1986), em um
centro de acolhimento de pessoas sem domicílio fixo, categoria englobante dos
pobresque reivindicam institucionalmente dependência e ajuda.
10. Fonseca (1986) ressalta os desencontros de objetivos práticos entre os
voluntários e os clientes reconhecidos pela ausência de habitação e trabalho.
As demandas apresentadas por estes têm poucas respostas porque as instituições
se organizam segundo o ideário dos voluntários: reeducar os reeducáveis.
11. Em "Matricentralidade, Indigência e Enraizamento Familiar" (Neves, 2002b) e
"As Idosas Provedoras e o Enraizamento Familiar" (Neves, 2006), dedico-me a
estudar os efeitos da concorrência entre os usuários, tanto para definir os
privilegiados como para reafirmar as intenções proselitistas dos benfeitores
voluntários.
12. A redistribuição de cestas básicas evidencia o quanto os considerados
carentes são desprovidos do direito de explicitação pública de seus problemas e
reivindicações. Atendidos como necessitados, tanto os titulares dos programas
de Estado encarregados da redistribuição desses recursos, como os das
instituições filantrópicas entram em acordo sobre os alimentos fundamentais que
devem ser transferidos, não se importando, inclusive, com os hábitos
alimentares regionais. Paralelamente a esta redistribuição sob a forma de
dinheiro, tem crescido o mercado de venda de produtos alimentícios. Nas
pequenas e médias cidades, era comum ouvir de vendedores de hortifrutis
ambulantes, através do alto-falante, o anúncio de que aceitavam o pagamento por
tais formas de representação de moeda. Essa ampla incorporação tem motivado a
criação de meios de controle, todavia ressignificados por usuários e
comerciantes, acordo pelo qual o cartão magnético representa crédito
antecipado.
13. Esta questão foi por mim abordada em outros textos (Neves, 2002b; 2006).
Ver também Fonseca (1995); Woortmann (1987). E ainda Delgado e Cardoso Júnior
(1999; 2000), para considerar o papel dos aposentados no meio rural.
14. Telles (1996:38), analisando as condições perversas decorrentes da exclusão
de parte da população dos direitos sociais decorrentes da vinculação
trabalhista, destaca: "A justiça sempre foi confundida com ação tutelar do
Estado, em que os direitos, quando existentes, não são formulados por
referência a uma noção de igualdade, mas numa lógica que cria segmentações que
impedem a sua universalização, seja por conta do critério tutelar que define
aqueles que estão credenciados, pela sua própria pobreza, aos serviços
assistenciais do Estado [...], em que o acesso à previdência social vira
privilégio daqueles que conseguem vencer os azares do mercado de trabalho e se
credenciar perante a sociedade (e o capital) como trabalhador produtivo".
15. Essa era uma prática comum entre dirigentes de casas de comércio, com
exceção apenas de alguns hipermercados, em que administradores se apropriavam
dos encalhes dos alimentos perecíveis para autoconsumo produtivo intermediário
(fertilização de hortas e criação de porcos).
16. A desqualificação das formas de desempenho de papéis atribuídos aos homens
' pai e marido, principalmente ' é parte da temática que justifica a
redistribuição caritativa e o papel privilegiado da mulher neste campo. Esta
questão foi por mim analisada em outros textos (ver Neves, 2002a; 2006).
17. Sobre as condições de vida desse segmento da população reconhecido como
habitante de rua, em complemento às análises sobre o sistema de posições que
instauram a coexistência de posições diferenciadas, ver Neves (1994; 2004).
18. Para esta análise, beneficiei-me da leitura dos textos de Jambet (1993);
Pappas (1993); e Quéré (1993).
19. Decorrem desta reivindicação as acusações dos não-crentes sobre a exibição
dos atos de doação como formas de expressão do egoísmo e da vaidade e a
construção da legitimidade da doação discreta e silenciosa.
20. As concepções que orientam os usuários, construídas segundo sistemas de
significações específicas, serão analisadas posteriormente.
21. Para esta análise, contei com a contribuição do estudo do processo de
conversão elaborado por Berger e Luckmann (1973:69-172).
22. Sobre este tema, valho-me de contraposições com o texto de Lyet (1997).
23. Para uma análise sobre a dinâmica das imagens de si produzidas sob
reciprocidade e cujos princípios se assemelham aos aqui explicitados, ver
Fonseca (1986).