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BrBRHUHu0100-512X2014000200004

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National varietyBr
Year2014
SourceScielo

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Ascensão e discurso em Plotino

A concepção plotiniana da linguagem De acordo com O'Meara, a sugestão platônica do pensamento como diálogo interior, bem como a distinção estoica entre o discurso exterior (lógos prophorikós) e interior (lógos endiáthetos) inspiraram Plotino a conceber a linguagem como "uma imagem do pensamento, uma exteriorização e materialização deste no ar, sob a forma de sons" (O'Meara, 1990, p. 154). Não discutirei aqui as possíveis influências das reflexões linguísticas das "Enéadas", mas acredito que a síntese da posição de Plotino feita por O'Meara reflete seu pensamento em passagens como I, 2, 3:1 Como o discurso vocal é uma imitação do que está na alma, assim também o que está na alma é imitação do que está em outro. Como o discurso pronunciado está dividido, se comparado com o da alma, assim também o que está na alma, se comparado com o anterior a ele, do qual é intérprete.2 Para compreendermos adequadamente a passagem, devemos ter em mente a noção dos múltiplos níveis da realidade, na qual os níveis posteriores são imagens menos unificadas dos anteriores: o Intelecto é uma imagem mais sujeita à multiplicidade que o Um, a Alma é uma imagem do Intelecto etc. Usando a ambivalência do termo lógos, que pode significar tanto a palavra e o discurso proferido, quanto o pensamento, Plotino pensa a relação entre linguagem e pensamento a partir das noções de anterioridade e posterioridade: o lógosproferido é uma imitação (mímema) do lógosque está na alma, que, por sua vez, é uma imitação do lógosanterior, ou seja, das formas inteligíveis do Intelecto. Assim, enquanto as formas inteligíveis seriam o lógosdo Intelecto, o pensamento discursivo seria o lógosda alma e a linguagem seria o lógosque se manifesta, como som, no sensível.

Aqui é oportuno compararmos essa passagem de I, 2 ao que Aristóteles escreve no começo do "De Interpretatione". Para o estagirita, as palavras proferidas são símbolos (symbola) das afecções da alma (pathémata), que, por sua vez, são imagens (omoíoma) das coisas (prágmata).3 A diferença essencial entre as concepções aristotélica e plotiniana está na pressuposição, por parte de Plotino, da noção dos níveis de realidade, que me parece estar ausente da concepção aristotélica da linguagem. Isso faz com que apareçam dois outros pontos de divergência. Em primeiro lugar, enquanto as afecções da alma em Aristóteles se referem às coisas, ou seja, às coisas que percebemos pelos sentidos e compreendemos pelo intelecto, em Plotino, o lógosda alma se refere às formas inteligíveis. Em segundo lugar, como na concepção plotiniana os níveis posteriores são imagens dos anteriores, na passagem de I, 2 aqui em questão o lógosposterior é sempre imagem do anterior. Em Aristóteles, pelo contrário, enquanto, por um lado, a afecção da alma é um omoíoma, ou seja, uma semelhança ou uma imagem da coisa, a linguagem, por outro, não é um omoíoma, mas um símbolo convencional. É que, como nota o próprio Aristóteles no texto em questão, nem todos os homens utilizam os mesmos sons, ainda que tenham as mesmas afecções mentais.

Parece-nos assim, que, em contraposição com a doutrina aristotélica, a posição de Plotino não é especialmente atenta às sutilezas da linguagem. Pois como podemos pensar o lógosproferido como uma imitação do lógosda alma, tal como o sensível é uma imitação do inteligível? Não seriam as palavras a disposição de sons escolhidos por convenção que fazem referência ao pensamento? Do mesmo modo, para Aristóteles, que não aceita a existência das formas inteligíveis, as afecções da alma podem se referir às coisas do mundo. Mas para Plotino, que as aceita, o pensamento deveria se referir tanto ao sensível, quanto ao inteligível. É certo que o sensível não é mais que o reflexo do inteligível na matéria e que, portanto, a verdadeira realidade são as formas. No entanto, quando falamos, por exemplo, que Sócrates viveu em Atenas, não estamos querendo dizer que um homem, não uma forma inteligível, viveu em Atenas? A favor de Plotino, podemos nos lembrar que, nas passagens usadas por O'Meara para pensar uma teoria plotiniana da linguagem, temos apenas comparações empregadas justamente para ilustrar as relações entre os diversos níveis da realidade. São ilustrações cuja intenção é promover a compreensão de uma outra doutrina, não uma teoria desenvolvida da linguagem. Devemos, assim, pensar o termo mímema de um modo mais amplo e impreciso e entender o texto plotiniano como uma afirmação de uma relação de anterioridade e posterioridade entre a linguagem e o pensamento: o lógosproferido é, de algum modo, uma imitação do lógosna alma, ainda que não da mesma maneira que o sensível é imitação do inteligível.

Pensando desse modo, é oportuno nos lembrarmos das análises do pensamento discursivo que encontramos em certas passagens das "Enéadas", que nos permitem entrever os pressupostos de uma teoria da linguagem mais desenvolvida. Para Plotino, a diánoiaé geralmente uma realidade complexa, na qual um typos, imagem do inteligível, está ligado a uma phantasía, imagem do sensível. Não seria, assim, mais adequado pensar que a phantasía é imitação desse typos, enquanto a linguagem seria apenas um símbolo dessa afecção da alma (ou seja, dessa imagem ligada a uma opinião)? Aqui também é oportuno lembrar das reflexões de Dillon (1986) a respeito da imaginação em Plotino. Segundo ele, se a imagem foi relegada como inferior pelo platonismo, nas "Enéadas", abre-se espaço para pensar tanto em imagens derivadas das impressões dos sentidos, quanto em uma imaginação transcendental capaz de simbolizar o inteligível. Não que essas imagens sejam derivadas do inteligível: mesmo que a alma as adquira a partir da sua percepção sensível, como o próprio sensível é uma imitação do inteligível, essas imagens passam a servir de suporte à intelecção e a se ligar, enquanto imitação, às formas inteligíveis. Teríamos, assim, tanto imagens que se ligam ao sensível, quanto aquelas que se referem ao inteligível. Nesse contexto, a linguagem, enquanto símbolo de imagens e opiniões, pode ser um símbolo tanto do sensível, quanto do inteligível.

Se, por um lado, a imaginação, enquanto direciona a alma para o sensível, pode provocar o esquecimento do inteligível, por outro, quando é um símbolo, pode servir de caminho à redescoberta das realidades esquecidas. Como as palavras são símbolos das imagens, também são capazes de nos levar ao esquecimento ou à redescoberta do inteligível. As imagens presentes das "Enéadas" são utilizadas justamente para essa segunda finalidade.

Percebemos, assim, o caráter ambivalente da linguagem do discurso filosófico.

Por um lado, ele pode se prestar tanto ao esquecimento quanto à redescoberta.

Por outro, ainda que nos conduza ao inteligível, é, entretanto, apenas um símbolo de uma imagem do inteligível, que lhe é ontologicamente superior. Não é capaz de alcançar, portanto, aquilo que, em última análise, significa.

Falar o Um Isso se torna ainda mais claro no discurso a respeito do Um. Se o conhecimento se liga a objetos que possuem formas indeterminadas, como conhecer o Um e exprimi-lo por meio da linguagem (O'Meara, 1990, p. 148)? Em outras palavras, se ele é superior a toda forma inteligível e pensamento, como a linguagem poderia falar a seu respeito? É o que Plotino explica em VI, 9, 3.

Ali, discutindo a transcendência do Um, ele afirma que "sendo a natureza do Um geradora de todas as coisas, não é nenhuma delas".4 E continua: Assim, nem é algo, nem possui qualidade, ou quantidade, ou intelecto, ou alma. Nem é movido, nem também está em repouso, nem está em algum lugar, nem em algum tempo, mas ele, por si mesmo uniforme, ou melhor, informe, por ser anterior a toda forma, está antes do movimento e antes do repouso. Com efeito, essas coisas existem ao redor do ser, as quais o fazem muitas coisas.5 Estamos aqui diante de um discurso apofático, que se tornará típico na teologia negativa que se consagrará na "Teologia Mística" do pseudo-Dionísio Areopagita.

Essa forma de discurso, que tem suas raízes nos exercícios dialéticos do "Parmênides" de Platão (cf. Brandão, 2007),6 era aplicada nas especulações a respeito dos primeiros princípios por autores do medioplatonismo, como Alcínoo que, no capítulo 10 do "Didascálico", assevera que o deus não possui gênero, espécie, diferença específica ou acidente, e que, além disso, não é mau, pois é ímpio dizer isso, nem é bom, pois assim participaria da bondade, nem indiferente, pois isso não está conforme nossa concepção da divindade. Ou seja, é superior a todas essas atribuições. Do mesmo modo, não é dotado, nem privado de qualidades; não é parte de algo, nem um todo que possui partes; nem idêntico, nem diferente; nem se move, nem é movido.

Percebemos que, no texto de Alcínoo, a intenção do discurso apofático e suas aparentes contradições visam mostrar ao leitor que o deus deve ser concebido a partir de um ponto de vista superior, no qual essas atribuições não mais fazem sentido. Em outras palavras, a finalidade do discurso é apontar sua própria superação. Encontramos em VI, 9, 3 essa mesma tendência, mas existem algumas diferenças importantes entre o emprego das negações em Plotino e Alcínoo. Em primeiro lugar, devemos ter em mente que o deus de Alcínoo é um Intelecto e, portanto, não é o Um de Plotino. Assim, se Plotino pode argumentar, como o faz extensivamente em V, 6, que o Um não pensa, o mesmo não pode ser dito do deus apresentado no "Didascálico", cujo pensamento, aliás, são as próprias formas inteligíveis.

Em segundo lugar, lemos na continuação do texto de VI, 9, 3 uma explicação da possibilidade do discurso afirmativo a respeito do Um. Para Alcínoo, seriam possíveis as afirmações a respeito do deus a partir da analogia (kat'analogían),7 o que ele exemplifica a partir de um exemplo tirado da "República": ensinar a respeito do deus mediante analogia é como dizer que, assim como o sol está para os seres visíveis e os objetos de visão, o primeiro intelecto está para o poder de intelecção da alma e seus objetos, que ilumina a verdade deles.8 Plotino também afirma que o emprego da analogia é possível,9 mas vai além na sua concepção das possibilidades e dos limites do discurso a respeito do primeiro princípio: Uma vez que, mesmo quando dizemos que é causa, não atribuímos algum predicado a ele, mas a nós, pois temos algo que vem daquele mesmo que é em si mesmo. Assim, quem fala com precisão, é necessário que não diga nem "daquele", nem que verdadeiramente diga. Nós, no entanto, como que rodeamos as coisas que estão ao redor dele para interpretar nossas afecções, que às vezes estão próximas e que às vezes falham por causa das aporias a seu respeito.10 Nossas afirmações a respeito do Um não necessitam ser apenas analógicas. Na verdade, boa parte de nosso discurso sobre o Um diz respeito, na verdade, a nós mesmos. O exemplo de Plotino é interessante: quando chamamos o Um de causa, não o fazemos porque conhecemos o modo como ele é causa, mas porque tomamos consciência de nossa realidade enquanto seres causados. Nas palavras de O'Meara, quando falamos sobre o Um, falamos sobre o estatuto ontológico que nos caracteriza enquanto seres contingentes: "essa dependência causal da qual falamos é a presença do Um em nós. É assim que elaboramos um discurso sobre o inefável, falando de uma presença em nós que, ela sim, é dizível" (O'Meara, 1990, p. 152).

A consciência das possibilidades e limites da linguagem se manifesta na parte final da passagem citada. É certo que o discurso filosófico não pode tratar diretamente do Um, no entanto, pode se aproximar ou se distanciar dele. Para ser mais preciso, Plotino não afirma, nessa passagem, que a linguagem se aproxima ou se afasta do Um, mas que ela interpreta nossas afecções que, elas sim, podem se aproximar ou se afastar dele. O termo páthenão deve ser entendido como se referindo a uma afecção do corpórea, mas como uma afecção da alma. O termo me parece ser empregado aqui pela falta de especificidade que, nesse contexto, ele possui. Uma afecção da alma é tudo o que ela experimenta, não apenas seus próprios pensamentos, mas também as imagens que procedem dos sentidos. Por sua vez, a função das palavras é interpretar essas afecções.

As afecções, quando se dirigem ao Um, podem estar mais ou menos próximas dele.

O verbo apopípto, que traduzo por falhar, significa primariamente cair. É como se elas, de algum modo, estivessem em uma dinâmica de ascensão e queda ou, para dizer de outra forma, em uma jornada de ascensão que pode falhar em alguns momentos. Plotino nos diz que a razão dessa queda são as aporias a respeito do Um. Ou seja, sua natureza supraessencial que força os limites do pensamento e o faz entrar em colapso. Acredito, assim, que a queda acontece quando, por uma espécie de hybris, o pensamento não reconhece seus limites.

Mas e a proximidade, quando é alcançada? Plotino não fala nada a respeito, mas, a partir do que lemos no texto, podemos supor que ocorre quando tomamos consciência do limite de nossas afecções a respeito do Um. Por um lado, a percepção desses limites faz com que nosso pensamento seja mais preciso e verdadeiro. Por outro, também pode ter um papel anagógico, pois a consciência dos limites é o primeiro passo para a ultrapassagem desses limites. Como a função do discurso é interpretar nossas afecções, acredito que, quando se refere ao Um, ele também possui esses dois papéis.

Ensino e ascensão Tratemos, em primeiro lugar, da função instrutiva. Em VI, 7, 36, ao falar de nosso caminho em direção ao Um, Plotino afirma que "as analogias, negações, conhecimentos das coisas que vêm dele (do Bem) e as ascensões por degraus ensinam, mas conduzem a ele as purificações, virtudes, adornos, acessos ao inteligível, estabelecimentos nele e os banquetes com as coisas de lá".11 O texto se constrói a partir da oposição entre o discurso que nos ensina sobre Um e o caminho que conduz até ele. Diz respeito, assim, ao discurso em sua função instrutiva. Segundo Plotino, esse discurso se constitui pelas analogias, as negações, o método de ascensão por degraus e o conhecimento das coisas que vêm dele. Esse último tipo de discurso é, provavelmente, aquele discutido na passagem de VI, 9, 3 acima, no qual, ao falar do Um, falamos sobre nós mesmos.

Os três outros procedimentos são tradicionais no medioplatonismo. Para entendê- los melhor, é útil a apresentação feita por Alcínoo no "Didascálico", ainda que não possamos equiparar o Um plotiniano ao deus de Alcínoo, que é, como dissemos, um intelecto.

Existem, para Alcínoo, três princípios da realidade: a matéria, as formas inteligíveis e o deus.12 Esse deus, ainda que seja o princípio supremo e inefável, não é a unidade suprema, superior ao intelecto, mas é o intelecto que pensa as formas.13 De acordo com Alcínoo, existem três maneiras de concebê-lo.

Em primeiro lugar, a partir da abstração dos atributos, assim como concebemos um ponto a partir da abstração (apóphasis) das realidades sensíveis, primeiro imaginando uma superfície, em seguida uma linha e, depois, um ponto.14 Trata- se, portanto, do discurso apofático. Em segundo lugar, ele pode ser concebido por meio da analogia (analogía). Por fim, Alcínoo afirma, o terceiro modo de conceber o deus é este: deve-se contemplar a beleza dos corpos, em seguida a beleza da alma, a beleza das leis e costumes e, finalmente, o grande oceano do belo, a partir do qual torna-se possível a intelecção do deus. Ou seja, trata- se do método de ascensão ao belo apresentado no "Banquete".15 É interessante notar como Plotino pensa aqui os três métodos tradicionais para o conhecimento do deus do medioplatonismo apenas como discursos que nos ensinam sobre o Um, como se estivesse querendo dizer que não são suficientes e requerem algo mais. Causa particular estranhamento que o método de ascensão ao belo, que foi visto, de Alcínoo aos gnósticos (cf. Turner, 1980), como um modo de se atingir uma intelecção e um conhecimento real sobre o deus, seja encarado aqui como meramente instrutivo. Especialmente porque, como tivemos a oportunidade de perceber ao tratar de outros textos das "Enéadas", o caminho do belo é comumente apresentado nos textos de Plotino como um caminho privilegiado para a ascensão ao Intelecto. Poderíamos pensar que isso ocorre justamente porque o caminho do "Banquete" é um método para alcançar o Intelecto, não o Um. Mas por que Plotino o colocaria então entre as práticas que instruem sobre o Um? Minha hipótese é a de que o caminho de ascensão ao belo não foi lido de modo unívoco pela tradição platônica, sendo apropriado em contextos diferentes para propósitos diversos. Assim, não seria necessariamente estranho que, em um contexto, ele fosse apresentado como um caminho em direção ao Intelecto e, em outro, como uma prática que instrui a respeito do Um. Para ser mais preciso, creio que, quando encara a ascensão do belo como instrução, Plotino tem em mente certos autores medioplatônicos, como Alcínoo talvez, que, para ele, utilizaram-no nesse sentido, mas não indicaram como poderia ser usado para uma real contemplação do Intelecto e do Um.

De qualquer modo, esses discursos estão aqui em contraste com práticas capazes de levar ao Um. Elas parecem estar dispostas em uma ordem gradual. Em primeiro lugar, fala-se em purificação, que é uma prática central para a ascensão ao Intelecto. Quando Plotino fala em virtudes e adornos, acredito que tenha em mente a aquisição de capacidades contemplativas superiores que permitem a contemplação do Intelecto. Por fim, quando Plotino fala em acessos, estabelecimentos e banquetes no inteligível, ele me parece indicar a gradual habituação da alma na contemplação do Intelecto, que, consistindo em rápidos acessos, no início, passa a ser mais duradoura com o passar do tempo e, finalmente, torna-se como que um banquete, no qual a alma se regala com as naturezas superiores e, como o próprio Plotino escreve em outros contextos, embriaga-se de néctar.16 Poderíamos ser tentados, a partir desse texto de VI, 7, a pensar em um contraste entre discurso e virtude: enquanto o discurso teria meramente uma função instrutiva, a virtude teria uma natureza anagógica. A partir daí, seria possível pensar uma oposição entre o discurso filosófico, que fala sobre a realidade, e práticas anagógicas, que levam a experiências supradiscursivas.

Essa concepção, que talvez seja compartilhada por alguns estudiosos de Plotino, é interessante por possibilitar o estudo do discurso filosófico das "Enéadas" sem pensá-lo em relação com a ascensão. Certamente, muitos dos textos das "Enéadas" devem ser lidos desse modo. Penso aqui, por exemplo, nas discussões do problema das categorias presente nas "Enéadas" VI, 1-3. Também acredito que, como toda leitura filosófica pressupõe uma maior atenção a algumas questões que a outras, seja possível e adequado refletir sobre os argumentos filosóficos de Plotino sem ter em mente a doutrina da ascensão. No entanto, se queremos compreender melhor a visão filosófica plotiniana, devemos considerar passagens como a que encontramos em VI, 9, 4: Por isso, <Platão> diz que ele nem pode ser dito, nem escrito, mas dizemos e escrevemos para enviar até ele e, a partir das palavras, despertar para a contemplação, como que mostrando o caminho para alguém que queira contemplar algo. Pois o ensinamento vai até a estrada e o caminho, mas a contemplação dele é trabalho de quem quer ver.17 Nessa passagem, Plotino diferencia o discurso da contemplação do Um. O princípio supremo não pode ser dito ou escrito, ou seja, não pode ser conhecido a partir das palavras, mas pode ser contemplado. As palavras, por sua vez, podem despertar a contemplação, mostrando o caminho para aquele que quer percorrê-lo. A frase final dessa passagem é especialmente interessante aqui.

Plotino afirma que o ensinamento (dídaxis) vai até a estrada e o caminho. Isso significaria que o ensinamento, ou seja, o discurso, não faria parte do caminho em direção ao Um, mas apenas levaria até ele, ou, para usar as palavras de Plotino, mostraria o caminho para quem deseja percorrê-lo? Não creio que seja bem esse o caso. A oposição construída na frase é entre ensinamento e contemplação. Acredito, portanto, que ao falar que o ensinamento vai até o caminho, Plotino considera o ensinamento como parte do caminho. Ser instruído a respeito da jornada é, de algum modo, começar a percorrê-la. É precisamente isso que Plotino afirma em I, 3, 1: Para onde devemos ir, que é para o Bem e o primeiro princípio, que tomemos como estabelecido e demonstrado por muitas considerações. E, certamente, essas considerações por meio das quais isso foi demonstrado, eram uma certa ascensão.18 Segundo Plotino, a tese do Bem como finalidade foi estabelecida e demonstrada por muitas considerações.19 O termo que traduzo por "estabelecido" é diomologeménon, que significa algo que é objeto de um acordo, que é tido como verdadeiro e justo por mais de uma pessoa. Ou seja, Plotino considera que sua afirmação é compartilhada pelo círculo de seus discípulos. Contudo, as considerações que promoveram esse acordo foram transmitidas oralmente ou por textos, como, por exemplo, os tratados I, 6 e VI, 9. Isso significa que, ainda que sejam, antes de tudo, pensamento discursivo, se manifestam em palavras.

São, portanto, o ensinamento que leva até a contemplação do Um. Mas o que Plotino afirma claramente é que também são uma certa ascensão.

Isso significa que o contraste que lemos em VI, 7, 36, entre instrução e prática na ascensão, não pode ser pensado como uma oposição entre modo de vida e discurso, nem deve ser generalizado como uma doutrina, mas deve ser lido na especificidade de seu contexto, que busca diferenciar a experiência de contemplação do Um do discurso que pode ser feito sobre ele. O discurso não é ainda contemplação, mas é uma parte essencial do caminho.

Discurso e ascensão Na "Enéada" VI, 9, ao escrever a ascensão em direção ao Um, Plotino faz uma síntese dos elementos necessários para que isso aconteça: Portanto, que é "um" o que buscamos e que consideramos o princípio de todas as coisas ' o Bem e o primeiro ', não deve alguém ficar longe das coisas que estão ao redor das primeiras, caindo nas últimas de todas, mas, dirigindo-se para as primeiras, deve afastar a si mesmo dos sensíveis, os últimos dos seres, e ficar libertado de todo o mal, que se esforça para vir a estar voltado para o bem, ascender ao princípio que está em si mesmo e se tornar um a partir de muitos, vindo a ser contemplador do princípio e do Um.20 Nessa passagem, Plotino fala do afastar-se do sensível, do libertar-se do mal e do ascender ao princípio. Em outras palavras, fala de purificação do apego à matéria (que em alguns tratados, como I, 8, aparece como o mal e o princípio do mal) e de conversão às hipóteses superiores (o Intelecto e o Um). Em alguns outros tratados (por exemplo, I, 2), as afirmações são semelhantes: a condição necessária para a ascensão é a purificação. Qual seria, então, o papel do discurso nesse contexto? Acredito que poderia ser possível, talvez, alcançar a união sem o discurso filosófico. No entanto, isso seria algo extremamente difícil, por uma série de motivos. Gostaria de me deter um pouco sobre alguns deles.

Antes de tudo, o discurso filosófico nos ensina sobre os primeiros princípios e nos demonstra a necessidade de nos dirigirmos até eles. Se o lógos não conduz o filósofo a aceitar a existência das hipóstases e a possibilidade da jornada, como poderia ele se decidir a passar pelo processo de purificação? Ser instruído sobre o caminho é o primeiro passo, é a "certa ascensão" (anagogé tis), como lemos em I, 3, 1. Aliás, sem o discurso racional, a ascensão plotiniana não teria seu caráter filosófico. Aqui é apropriado termos em mente as observações que Martha Nussbaum fez à proposta de Hadot de se entender a filosofia antiga como um modo de vida: se o mais importante é o modo de vida, o que diferenciaria a filosofia de outras formas de vida (religiosas, militares etc.) adotadas na Antiguidade (Nussbaum, 1994)? O discurso é capaz não apenas de instruir sobre o caminho, mas também de torná- lo desejável e de impelir a ele. Devemos ler com precaução as anedotas escritas por Porfírio na "Vida" de Plotino que o mostram como um escritor descuidado, a escrever seus tratados de uma vez, sem correções posteriores. Uma leitura cuidadosa dos textos revela que Plotino é um mestre no gênero da diatribe (cf.

Narbonne, 2008), capaz, como poucos filósofos de seu tempo, de unir o rigor da argumentação filosófica à eloquência retórica que é tão importante nesse tipo de texto. As belas imagens que encontramos em algumas passagens das "Enéadas", o uso de citações dos textos clássicos e dos mitos (cf. Oliveira, 2013) não tinham como único propósito tornar mais concreta a argumentação filosófica, ilustrando-a e tornando-a leve, mas também visavam mobilizar o homem como um todo, não apenas sua diánoia, ao caminho de ascensão.

Além disso, é o discurso que nos instrui sobre o trópos(conduta) e mekhané (mecanismo) necessários para a ascensão. Na II, 9, 15, Plotino censura os gnósticos justamente por não terem discursos sobre a virtude, nem ensinarem como se pode ascender ao divino: E testemunha contra eles também isto: que não tenham feito nenhum discurso sobre a virtude, tendo abandonado completamente o discurso sobre essas coisas, e que não tenham dito o que ela é, nem quantas são, nem nenhuma das muitas e belas coisas contempladas nos discursos antigos, nem a partir de que coisas ela resulta e é adquirida, nem como se cuida (therapeúetai) da alma, nem como se a purifica. Pois, certamente, não se trabalha com eficiência ao dizer "olha para deus", se não se ensinar como se olha.21 O discurso filosófico, enquanto discurso dialético, é também um auxílio à contemplação. Aqui é útil termos em mente a noção de práxis de III, 8, 4. Nesse texto, Plotino afirma que o homem, quando tem sua contemplação enfraquecida, faz da ação (práxis) uma sombra da contemplação (theoría) e do lógos.

Poderíamos ser tentados a traduzir lógosaqui por discurso, mas, penso que, nesse contexto, o lógosé o pensamento que preenche a alma durante a theoría.Minha suposição se baseia na sequência do texto, na qual Plotino afirma que quando a contemplação não é suficiente, por causa da fraqueza da alma (hyp'astheneías psychês), desejando ver, o homem realiza uma ação para ver aquilo que não pode captar pela inteligência (noûs).22 A práxisé, portanto, uma sombra da theoría, não do discurso e, portanto, o lógosem questão é aquele que está na alma, não o que, proferido, tenta interpretá-lo. No entanto, acredito ser possível, a partir desse texto, pensar o lógosfilosófico como uma forma de práxis, ou seja, uma contemplação enfraquecida. Assim, também é uma possibilidade para que a alma enfraquecida veja aquilo que deseja. É que, como interpreta as afecções da alma e está ligada a imagens e opiniões, o discurso tem o poder de tornar ordenado o pensamento da alma enfraquecida e, dessa maneira, ajudá-la a atingir a intelecção. Esse é justamente o papel da dialética, que é uma prática discursiva que tem a capacidade de direcionar a alma ao inteligível e à contemplação, que não é outra coisa que a diánoiaordenada em busca da nóesis. Plotino afirma que a dialética "é uma disposição capaz de dizer por meio do discurso a respeito de cada coisa",23 e, portanto, é, antes de tudo, uma forma específica de lógos. Mas ela não conhece proposições (protáseis), que são apenas letras, pois é conhecendo a verdade que se conhecem as proposições.24 Em contrapartida, o discurso filosófico também pode, em determinadas circunstâncias, ser um produto da contemplação. Aqui devemos nos lembrar da distinção presente em III, 8, 4 entre práxise poíesis.Os termos poderiam ser traduzidos, a partir de seu uso comum, por açãoe produção, respectivamente, mas Plotino os distingue nesse texto de outra maneira, considerando a práxis como uma contemplação enfraquecida e a póiesis como um produto da contemplação,25 ou seja, o resultado da contemplação criadora. Discutindo sua noção de poíesis, Plotino assevera que a contemplação produz o contemplado, tal como os geômetras desenham ao contemplar.26 A afirmação deve ser entendida no contexto da investigação no qual está inserida, que trata da produção do sensível pela physisda alma do mundo a partir de sua contemplação. Não nos deteremos sobre essa doutrina, mas, para nossos presentes propósitos, gostaria de chamar a atenção para o fato de que, tal como a Alma do mundo produz o universo ao contemplar o Intelecto, nossa alma, que é irmã e similar a ela, também deve produzir algo ao contemplar. Mas o que ela seria capaz de produzir? A produção das realidades do mundo sensível é uma função da Alma do mundo; resta, portanto, modelar esse sensível a partir das diversas tékhnai, mas também pelo lógos, especialmente o lógosfilosófico.

O discurso, sob esse ponto de vista, manifesta seu aspecto ambivalente, sendo tanto um auxílio quanto um produto da contemplação. Auxílio enquanto práxis, produto enquanto poíesis, o que significa que adquire estatutos diferentes nas diversas etapas da jornada de ascensão. A relação entre o estatuto do discurso e essas etapas não pode ser compreendida, no entanto, de forma esquemática. Por um lado, para aquele que ascende, o discurso é mekhané, um mecanismo ou artifício usado como auxílio. Mas, para aquele que viu, é uma consequência.

Não, obviamente, uma consequência imediata: não se deve pensar que o filósofo escreva tratados durante seu exercício dialético ou experiências contemplativas, muito menos durante a união com o Intelecto ou o Um, mas que talvez se sinta impelido a essa escrita após a experiência contemplativa. De qualquer modo, por outro lado, como a experiência contemplativa nunca é duradoura para a alma encarnada no mundo sensível e como, justamente por isso, ela deve sempre ascender novamente às realidades superiores, o discurso também funciona como uma espécie de recordação, como um conjunto de palavras capazes de ser como que uma imagem da contemplação.

Em VI, 9, 11, Plotino escreve que aquele que contemplou o Um, quando se lembra "do que aconteceu quando se misturava a ele, teria em si mesmo uma imagem".27 Ainda que não se afirme que a imagem seja o discurso, não podemos deixar de notar que o próprio texto de VI, 9 pode ser compreendido como um discurso que faz referência a essas imagens que surgem após a união. Tal leitura torna-se mais forte a partir de uma passagem subsequente do próprio capítulo 11, no qual Plotino afirma que as imagens empregadas no texto "sinalizam aos sábios dentre os profetas de que modo aquele deus é visto: e o sacerdote sábio que compreende o enigma poderia, indo ao santuário, realizar a visão verdadeira".28 Acredito que o santuário no qual o sacerdote entra, no qual é capaz de contemplar o Um, é o Intelecto. Mas, para que se tenha a experiência do Intelecto, ou seja, para que se seja capaz de entrar no santuário, o sacerdote deve antes compreender o enigma. O texto parece indicar, portanto, que as imagens de VI, 9 são como que enigmas que devem ser decifrados para que ocorra a contemplação. Porém, como essas imagens são construídas pelo discurso, podemos afirmar que, pensado em relação à ascensão, o discurso filosófico é esse enigma a ser decifrado.

Podemos compreender melhor em que medida o discurso é um enigma a partir de uma analogia entre as almas individuais e a Alma do mundo. Para Plotino, ainda que a Alma do mundo seja superior, não é essencialmente diferente das outras almas, que, portanto, operam de uma maneira similar a ela. Assim, tal como o resultado da contemplação da Alma do mundo é o universo sensível, o produto da contemplação do filósofo é o discurso. E tal como a Alma do mundo ordena o universo sensível projetando na matéria os lógoiderivados das formas inteligíveis que contemplou ao se voltar para o Intelecto, o filósofo projeta os lógoique estão em sua mente como resultado de sua contemplação em palavras escritas ou faladas.

Por isso, o discurso filosófico é considerado por Plotino, tal como para Górgias no "Elogio de Helena", como uma espécie de encantamento. A esse respeito, existem algumas interessantes considerações em V, 3, 17. Depois de argumentar pela necessidade de um princípio absolutamente simples, anterior ao Intelecto, e notando que, após toda a discussão filosófica, a alma ainda está como que em dores de parto (odínon), Plotino fala da necessidade de um encantamento (epodé) para elas. E afirma que, talvez, esse encantamento possa surgir das coisas que foram ditas, se cantadas muitas vezes.29 O verbo que Plotino emprega aqui, epaeído, é particularmente indicativo, pois significa literalmente cantar um encantamento. Se as coisas ditas são o próprio texto de V, 3 e se ele deve ser cantado várias vezes para auxiliar a alma em trabalho de parto, podemos concluir que, para Plotino, o discurso filosófico pode se tornar uma espécie de encantamento que, ao ser meditado com frequência, revela seu poder. Mas em quem esse encantamento pode funcionar? Naquele que se elevou no caminho da virtude, que se purificou e consegue aquietar as potências inferiores de sua alma. Para esses, aos quais basta apenas olhar, como Plotino afirma em I, 6, 9, o discurso é um guia adequado. Para aquele que não se purificou, "fora da virtude verdadeira, falar deusé dizer um nome".30


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