Ascensão e discurso em Plotino
A concepção plotiniana da linguagem
De acordo com O'Meara, a sugestão platônica do pensamento como diálogo
interior, bem como a distinção estoica entre o discurso exterior (lógos
prophorikós) e interior (lógos endiáthetos) inspiraram Plotino a conceber a
linguagem como "uma imagem do pensamento, uma exteriorização e materialização
deste no ar, sob a forma de sons" (O'Meara, 1990, p. 154). Não discutirei
aqui as possíveis influências das reflexões linguísticas das "Enéadas", mas
acredito que a síntese da posição de Plotino feita por O'Meara reflete
seu pensamento em passagens como I, 2, 3:1
Como o discurso vocal é uma imitação do que está na alma, assim
também o que está na alma é imitação do que está em outro. Como o
discurso pronunciado está dividido, se comparado com o da alma, assim
também o que está na alma, se comparado com o anterior a ele, do qual
é intérprete.2
Para compreendermos adequadamente a passagem, devemos ter em mente a noção dos
múltiplos níveis da realidade, na qual os níveis posteriores são imagens menos
unificadas dos anteriores: o Intelecto é uma imagem mais sujeita à
multiplicidade que o Um, a Alma é uma imagem do Intelecto etc. Usando a
ambivalência do termo lógos, que pode significar tanto a palavra e o discurso
proferido, quanto o pensamento, Plotino pensa a relação entre linguagem e
pensamento a partir das noções de anterioridade e posterioridade: o
lógosproferido é uma imitação (mímema) do lógosque está na alma, que, por sua
vez, é uma imitação do lógosanterior, ou seja, das formas inteligíveis do
Intelecto. Assim, enquanto as formas inteligíveis seriam o lógosdo Intelecto, o
pensamento discursivo seria o lógosda alma e a linguagem seria o lógosque se
manifesta, como som, no sensível.
Aqui é oportuno compararmos essa passagem de I, 2 ao que Aristóteles escreve no
começo do "De Interpretatione". Para o estagirita, as palavras proferidas são
símbolos (symbola) das afecções da alma (pathémata), que, por sua vez, são
imagens (omoíoma) das coisas (prágmata).3 A diferença essencial entre as
concepções aristotélica e plotiniana está na pressuposição, por parte de
Plotino, da noção dos níveis de realidade, que me parece estar ausente da
concepção aristotélica da linguagem. Isso faz com que apareçam dois outros
pontos de divergência. Em primeiro lugar, enquanto as afecções da alma em
Aristóteles se referem às coisas, ou seja, às coisas que percebemos pelos
sentidos e compreendemos pelo intelecto, em Plotino, o lógosda alma se refere
às formas inteligíveis. Em segundo lugar, como na concepção plotiniana os
níveis posteriores são imagens dos anteriores, na passagem de I, 2 aqui em
questão o lógosposterior é sempre imagem do anterior. Em Aristóteles, pelo
contrário, enquanto, por um lado, a afecção da alma é um omoíoma, ou seja, uma
semelhança ou uma imagem da coisa, a linguagem, por outro, não é um omoíoma,
mas um símbolo convencional. É que, como nota o próprio Aristóteles no texto em
questão, nem todos os homens utilizam os mesmos sons, ainda que tenham as
mesmas afecções mentais.
Parece-nos assim, que, em contraposição com a doutrina aristotélica, a posição
de Plotino não é especialmente atenta às sutilezas da linguagem. Pois como
podemos pensar o lógosproferido como uma imitação do lógosda alma, tal como o
sensível é uma imitação do inteligível? Não seriam as palavras a disposição de
sons escolhidos por convenção que fazem referência ao pensamento? Do mesmo
modo, para Aristóteles, que não aceita a existência das formas inteligíveis, as
afecções da alma só podem se referir às coisas do mundo. Mas para Plotino, que
as aceita, o pensamento deveria se referir tanto ao sensível, quanto ao
inteligível. É certo que o sensível não é mais que o reflexo do inteligível na
matéria e que, portanto, a verdadeira realidade são as formas. No entanto,
quando falamos, por exemplo, que Sócrates viveu em Atenas, não estamos querendo
dizer que um homem, não uma forma inteligível, viveu em Atenas?
A favor de Plotino, podemos nos lembrar que, nas passagens usadas por
O'Meara para pensar uma teoria plotiniana da linguagem, temos apenas
comparações empregadas justamente para ilustrar as relações entre os diversos
níveis da realidade. São ilustrações cuja intenção é promover a compreensão de
uma outra doutrina, não uma teoria desenvolvida da linguagem. Devemos, assim,
pensar o termo mímema de um modo mais amplo e impreciso e entender o texto
plotiniano como uma afirmação de uma relação de anterioridade e posterioridade
entre a linguagem e o pensamento: o lógosproferido é, de algum modo, uma
imitação do lógosna alma, ainda que não da mesma maneira que o sensível é
imitação do inteligível.
Pensando desse modo, é oportuno nos lembrarmos das análises do pensamento
discursivo que encontramos em certas passagens das "Enéadas", que nos permitem
entrever os pressupostos de uma teoria da linguagem mais desenvolvida. Para
Plotino, a diánoiaé geralmente uma realidade complexa, na qual um typos, imagem
do inteligível, está ligado a uma phantasía, imagem do sensível. Não seria,
assim, mais adequado pensar que a phantasía é imitação desse typos, enquanto a
linguagem seria apenas um símbolo dessa afecção da alma (ou seja, dessa imagem
ligada a uma opinião)?
Aqui também é oportuno lembrar das reflexões de Dillon (1986) a respeito da
imaginação em Plotino. Segundo ele, se a imagem foi relegada como inferior pelo
platonismo, nas "Enéadas", abre-se espaço para pensar tanto em imagens
derivadas das impressões dos sentidos, quanto em uma imaginação transcendental
capaz de simbolizar o inteligível. Não que essas imagens sejam derivadas do
inteligível: mesmo que a alma as adquira a partir da sua percepção sensível,
como o próprio sensível é uma imitação do inteligível, essas imagens passam a
servir de suporte à intelecção e a se ligar, enquanto imitação, às formas
inteligíveis. Teríamos, assim, tanto imagens que se ligam ao sensível, quanto
aquelas que se referem ao inteligível. Nesse contexto, a linguagem, enquanto
símbolo de imagens e opiniões, pode ser um símbolo tanto do sensível, quanto do
inteligível.
Se, por um lado, a imaginação, enquanto direciona a alma para o sensível, pode
provocar o esquecimento do inteligível, por outro, quando é um símbolo, pode
servir de caminho à redescoberta das realidades esquecidas. Como as palavras
são símbolos das imagens, também são capazes de nos levar ao esquecimento ou à
redescoberta do inteligível. As imagens presentes das "Enéadas" são utilizadas
justamente para essa segunda finalidade.
Percebemos, assim, o caráter ambivalente da linguagem do discurso filosófico.
Por um lado, ele pode se prestar tanto ao esquecimento quanto à redescoberta.
Por outro, ainda que nos conduza ao inteligível, é, entretanto, apenas um
símbolo de uma imagem do inteligível, que lhe é ontologicamente superior. Não é
capaz de alcançar, portanto, aquilo que, em última análise, significa.
Falar o Um
Isso se torna ainda mais claro no discurso a respeito do Um. Se o conhecimento
se liga a objetos que possuem formas indeterminadas, como conhecer o Um e
exprimi-lo por meio da linguagem (O'Meara, 1990, p. 148)? Em outras
palavras, se ele é superior a toda forma inteligível e pensamento, como a
linguagem poderia falar a seu respeito? É o que Plotino explica em VI, 9, 3.
Ali, discutindo a transcendência do Um, ele afirma que "sendo a natureza do Um
geradora de todas as coisas, não é nenhuma delas".4 E continua:
Assim, nem é algo, nem possui qualidade, ou quantidade, ou intelecto,
ou alma. Nem é movido, nem também está em repouso, nem está em algum
lugar, nem em algum tempo, mas ele, por si mesmo uniforme, ou melhor,
informe, por ser anterior a toda forma, está antes do movimento e
antes do repouso. Com efeito, essas coisas existem ao redor do ser,
as quais o fazem muitas coisas.5
Estamos aqui diante de um discurso apofático, que se tornará típico na teologia
negativa que se consagrará na "Teologia Mística" do pseudo-Dionísio Areopagita.
Essa forma de discurso, que tem suas raízes nos exercícios dialéticos do
"Parmênides" de Platão (cf. Brandão, 2007),6 já era aplicada nas especulações a
respeito dos primeiros princípios por autores do medioplatonismo, como Alcínoo
que, no capítulo 10 do "Didascálico", assevera que o deus não possui gênero,
espécie, diferença específica ou acidente, e que, além disso, não é mau, pois é
ímpio dizer isso, nem é bom, pois assim participaria da bondade, nem
indiferente, pois isso não está conforme nossa concepção da divindade. Ou seja,
é superior a todas essas atribuições. Do mesmo modo, não é dotado, nem privado
de qualidades; não é parte de algo, nem um todo que possui partes; nem
idêntico, nem diferente; nem se move, nem é movido.
Percebemos que, no texto de Alcínoo, a intenção do discurso apofático e suas
aparentes contradições visam mostrar ao leitor que o deus deve ser concebido a
partir de um ponto de vista superior, no qual essas atribuições não mais fazem
sentido. Em outras palavras, a finalidade do discurso é apontar sua própria
superação. Encontramos em VI, 9, 3 essa mesma tendência, mas existem algumas
diferenças importantes entre o emprego das negações em Plotino e Alcínoo. Em
primeiro lugar, devemos ter em mente que o deus de Alcínoo é um Intelecto e,
portanto, não é o Um de Plotino. Assim, se Plotino pode argumentar, como o faz
extensivamente em V, 6, que o Um não pensa, o mesmo não pode ser dito do deus
apresentado no "Didascálico", cujo pensamento, aliás, são as próprias formas
inteligíveis.
Em segundo lugar, lemos na continuação do texto de VI, 9, 3 uma explicação da
possibilidade do discurso afirmativo a respeito do Um. Para Alcínoo, seriam
possíveis as afirmações a respeito do deus a partir da analogia
(kat'analogían),7 o que ele exemplifica a partir de um exemplo tirado da
"República": ensinar a respeito do deus mediante analogia é como dizer que,
assim como o sol está para os seres visíveis e os objetos de visão, o primeiro
intelecto está para o poder de intelecção da alma e seus objetos, já que
ilumina a verdade deles.8 Plotino também afirma que o emprego da analogia é
possível,9 mas vai além na sua concepção das possibilidades e dos limites do
discurso a respeito do primeiro princípio:
Uma vez que, mesmo quando dizemos que é causa, não atribuímos algum
predicado a ele, mas a nós, pois temos algo que vem daquele mesmo que
é em si mesmo. Assim, quem fala com precisão, é necessário que não
diga nem "daquele", nem que verdadeiramente diga. Nós, no entanto,
como que rodeamos as coisas que estão ao redor dele para interpretar
nossas afecções, que às vezes estão próximas e que às vezes falham
por causa das aporias a seu respeito.10
Nossas afirmações a respeito do Um não necessitam ser apenas analógicas. Na
verdade, boa parte de nosso discurso sobre o Um diz respeito, na verdade, a nós
mesmos. O exemplo de Plotino é interessante: quando chamamos o Um de causa, não
o fazemos porque conhecemos o modo como ele é causa, mas porque tomamos
consciência de nossa realidade enquanto seres causados. Nas palavras de
O'Meara, quando falamos sobre o Um, falamos sobre o estatuto ontológico
que nos caracteriza enquanto seres contingentes: "essa dependência causal da
qual falamos é a presença do Um em nós. É assim que elaboramos um discurso
sobre o inefável, falando de uma presença em nós que, ela sim, é dizível"
(O'Meara, 1990, p. 152).
A consciência das possibilidades e limites da linguagem se manifesta na parte
final da passagem citada. É certo que o discurso filosófico não pode tratar
diretamente do Um, no entanto, pode se aproximar ou se distanciar dele. Para
ser mais preciso, Plotino não afirma, nessa passagem, que a linguagem se
aproxima ou se afasta do Um, mas que ela interpreta nossas afecções que, elas
sim, podem se aproximar ou se afastar dele. O termo páthenão deve ser entendido
como se referindo a uma afecção do corpórea, mas como uma afecção da alma. O
termo me parece ser empregado aqui pela falta de especificidade que, nesse
contexto, ele possui. Uma afecção da alma é tudo o que ela experimenta, não
apenas seus próprios pensamentos, mas também as imagens que procedem dos
sentidos. Por sua vez, a função das palavras é interpretar essas afecções.
As afecções, quando se dirigem ao Um, podem estar mais ou menos próximas dele.
O verbo apopípto, que traduzo por falhar, significa primariamente cair. É como
se elas, de algum modo, estivessem em uma dinâmica de ascensão e queda ou, para
dizer de outra forma, em uma jornada de ascensão que pode falhar em alguns
momentos. Plotino nos diz que a razão dessa queda são as aporias a respeito do
Um. Ou seja, sua natureza supraessencial que força os limites do pensamento e o
faz entrar em colapso. Acredito, assim, que a queda acontece quando, por uma
espécie de hybris, o pensamento não reconhece seus limites.
Mas e a proximidade, quando é alcançada? Plotino não fala nada a respeito, mas,
a partir do que lemos no texto, podemos supor que ocorre quando tomamos
consciência do limite de nossas afecções a respeito do Um. Por um lado, a
percepção desses limites faz com que nosso pensamento seja mais preciso e
verdadeiro. Por outro, também pode ter um papel anagógico, pois a consciência
dos limites é o primeiro passo para a ultrapassagem desses limites. Como a
função do discurso é interpretar nossas afecções, acredito que, quando se
refere ao Um, ele também possui esses dois papéis.
Ensino e ascensão
Tratemos, em primeiro lugar, da função instrutiva. Em VI, 7, 36, ao falar de
nosso caminho em direção ao Um, Plotino afirma que "as analogias, negações,
conhecimentos das coisas que vêm dele (do Bem) e as ascensões por degraus
ensinam, mas conduzem a ele as purificações, virtudes, adornos, acessos ao
inteligível, estabelecimentos nele e os banquetes com as coisas de lá".11
O texto se constrói a partir da oposição entre o discurso que nos ensina sobre
Um e o caminho que conduz até ele. Diz respeito, assim, ao discurso em sua
função instrutiva. Segundo Plotino, esse discurso se constitui pelas analogias,
as negações, o método de ascensão por degraus e o conhecimento das coisas que
vêm dele. Esse último tipo de discurso é, provavelmente, aquele discutido na
passagem de VI, 9, 3 acima, no qual, ao falar do Um, falamos sobre nós mesmos.
Os três outros procedimentos são tradicionais no medioplatonismo. Para entendê-
los melhor, é útil a apresentação feita por Alcínoo no "Didascálico", ainda que
não possamos equiparar o Um plotiniano ao deus de Alcínoo, que é, como já
dissemos, um intelecto.
Existem, para Alcínoo, três princípios da realidade: a matéria, as formas
inteligíveis e o deus.12 Esse deus, ainda que seja o princípio supremo e
inefável, não é a unidade suprema, superior ao intelecto, mas é o intelecto que
pensa as formas.13 De acordo com Alcínoo, existem três maneiras de concebê-lo.
Em primeiro lugar, a partir da abstração dos atributos, assim como concebemos
um ponto a partir da abstração (apóphasis) das realidades sensíveis, primeiro
imaginando uma superfície, em seguida uma linha e, depois, um ponto.14 Trata-
se, portanto, do discurso apofático. Em segundo lugar, ele pode ser concebido
por meio da analogia (analogía). Por fim, Alcínoo afirma, o terceiro modo de
conceber o deus é este: deve-se contemplar a beleza dos corpos, em seguida a
beleza da alma, a beleza das leis e costumes e, finalmente, o grande oceano do
belo, a partir do qual torna-se possível a intelecção do deus. Ou seja, trata-
se do método de ascensão ao belo apresentado no "Banquete".15
É interessante notar como Plotino pensa aqui os três métodos tradicionais para
o conhecimento do deus do medioplatonismo apenas como discursos que nos ensinam
sobre o Um, como se estivesse querendo dizer que não são suficientes e requerem
algo mais. Causa particular estranhamento que o método de ascensão ao belo, que
foi visto, de Alcínoo aos gnósticos (cf. Turner, 1980), como um modo de se
atingir uma intelecção e um conhecimento real sobre o deus, seja encarado aqui
como meramente instrutivo. Especialmente porque, como tivemos a oportunidade de
perceber ao tratar de outros textos das "Enéadas", o caminho do belo é
comumente apresentado nos textos de Plotino como um caminho privilegiado para a
ascensão ao Intelecto. Poderíamos pensar que isso ocorre justamente porque o
caminho do "Banquete" é um método para alcançar o Intelecto, não o Um. Mas por
que Plotino o colocaria então entre as práticas que instruem sobre o Um?
Minha hipótese é a de que o caminho de ascensão ao belo não foi lido de modo
unívoco pela tradição platônica, sendo apropriado em contextos diferentes para
propósitos diversos. Assim, não seria necessariamente estranho que, em um
contexto, ele fosse apresentado como um caminho em direção ao Intelecto e, em
outro, como uma prática que instrui a respeito do Um. Para ser mais preciso,
creio que, quando encara a ascensão do belo como instrução, Plotino tem em
mente certos autores medioplatônicos, como Alcínoo talvez, que, para ele,
utilizaram-no nesse sentido, mas não indicaram como poderia ser usado para uma
real contemplação do Intelecto e do Um.
De qualquer modo, esses discursos estão aqui em contraste com práticas capazes
de levar ao Um. Elas parecem estar dispostas em uma ordem gradual. Em primeiro
lugar, fala-se em purificação, que é uma prática central para a ascensão ao
Intelecto. Quando Plotino fala em virtudes e adornos, acredito que tenha em
mente a aquisição de capacidades contemplativas superiores que permitem a
contemplação do Intelecto. Por fim, quando Plotino fala em acessos,
estabelecimentos e banquetes no inteligível, ele me parece indicar a gradual
habituação da alma na contemplação do Intelecto, que, consistindo em rápidos
acessos, no início, passa a ser mais duradoura com o passar do tempo e,
finalmente, torna-se como que um banquete, no qual a alma se regala com as
naturezas superiores e, como o próprio Plotino escreve em outros contextos,
embriaga-se de néctar.16
Poderíamos ser tentados, a partir desse texto de VI, 7, a pensar em um
contraste entre discurso e virtude: enquanto o discurso teria meramente uma
função instrutiva, a virtude teria uma natureza anagógica. A partir daí, seria
possível pensar uma oposição entre o discurso filosófico, que fala sobre a
realidade, e práticas anagógicas, que levam a experiências supradiscursivas.
Essa concepção, que talvez seja compartilhada por alguns estudiosos de Plotino,
é interessante por possibilitar o estudo do discurso filosófico das "Enéadas"
sem pensá-lo em relação com a ascensão. Certamente, muitos dos textos das
"Enéadas" devem ser lidos desse modo. Penso aqui, por exemplo, nas discussões
do problema das categorias presente nas "Enéadas" VI, 1-3. Também acredito que,
como toda leitura filosófica pressupõe uma maior atenção a algumas questões que
a outras, seja possível e adequado refletir sobre os argumentos filosóficos de
Plotino sem ter em mente a doutrina da ascensão. No entanto, se queremos
compreender melhor a visão filosófica plotiniana, devemos considerar passagens
como a que encontramos em VI, 9, 4:
Por isso, <Platão> diz que ele nem pode ser dito, nem escrito, mas
dizemos e escrevemos para enviar até ele e, a partir das palavras,
despertar para a contemplação, como que mostrando o caminho para
alguém que queira contemplar algo. Pois o ensinamento vai até a
estrada e o caminho, mas a contemplação dele já é trabalho de quem
quer ver.17
Nessa passagem, Plotino diferencia o discurso da contemplação do Um. O
princípio supremo não pode ser dito ou escrito, ou seja, não pode ser conhecido
a partir das palavras, mas pode ser contemplado. As palavras, por sua vez,
podem despertar a contemplação, mostrando o caminho para aquele que quer
percorrê-lo. A frase final dessa passagem é especialmente interessante aqui.
Plotino afirma que o ensinamento (dídaxis) vai até a estrada e o caminho. Isso
significaria que o ensinamento, ou seja, o discurso, não faria parte do caminho
em direção ao Um, mas apenas levaria até ele, ou, para usar as palavras de
Plotino, mostraria o caminho para quem deseja percorrê-lo? Não creio que seja
bem esse o caso. A oposição construída na frase é entre ensinamento e
contemplação. Acredito, portanto, que ao falar que o ensinamento vai até o
caminho, Plotino considera o ensinamento como parte do caminho. Ser instruído a
respeito da jornada é, de algum modo, já começar a percorrê-la. É precisamente
isso que Plotino afirma em I, 3, 1:
Para onde devemos ir, que é para o Bem e o primeiro princípio, que
tomemos como estabelecido e demonstrado por muitas considerações. E,
certamente, essas considerações por meio das quais isso foi
demonstrado, já eram uma certa ascensão.18
Segundo Plotino, a tese do Bem como finalidade foi estabelecida e demonstrada
por muitas considerações.19 O termo que traduzo por "estabelecido" é
diomologeménon, que significa algo que é objeto de um acordo, que é tido como
verdadeiro e justo por mais de uma pessoa. Ou seja, Plotino considera que sua
afirmação é compartilhada pelo círculo de seus discípulos. Contudo, as
considerações que promoveram esse acordo foram transmitidas oralmente ou por
textos, como, por exemplo, os tratados I, 6 e VI, 9. Isso significa que, ainda
que sejam, antes de tudo, pensamento discursivo, se manifestam em palavras.
São, portanto, o ensinamento que leva até a contemplação do Um. Mas o que
Plotino afirma claramente é que também são uma certa ascensão.
Isso significa que o contraste que lemos em VI, 7, 36, entre instrução e
prática na ascensão, não pode ser pensado como uma oposição entre modo de vida
e discurso, nem deve ser generalizado como uma doutrina, mas deve ser lido na
especificidade de seu contexto, que busca diferenciar a experiência de
contemplação do Um do discurso que pode ser feito sobre ele. O discurso não é
ainda contemplação, mas é uma parte essencial do caminho.
Discurso e ascensão
Na "Enéada" VI, 9, ao escrever a ascensão em direção ao Um, Plotino faz uma
síntese dos elementos necessários para que isso aconteça:
Portanto, já que é "um" o que buscamos e que consideramos o princípio
de todas as coisas ' o Bem e o primeiro ', não deve alguém ficar
longe das coisas que estão ao redor das primeiras, caindo nas últimas
de todas, mas, dirigindo-se para as primeiras, deve afastar a si
mesmo dos sensíveis, os últimos dos seres, e ficar libertado de todo
o mal, já que se esforça para vir a estar voltado para o bem,
ascender ao princípio que está em si mesmo e se tornar um a partir de
muitos, vindo a ser contemplador do princípio e do Um.20
Nessa passagem, Plotino fala do afastar-se do sensível, do libertar-se do mal e
do ascender ao princípio. Em outras palavras, fala de purificação do apego à
matéria (que em alguns tratados, como I, 8, aparece como o mal e o princípio do
mal) e de conversão às hipóteses superiores (o Intelecto e o Um). Em alguns
outros tratados (por exemplo, I, 2), as afirmações são semelhantes: a condição
necessária para a ascensão é a purificação. Qual seria, então, o papel do
discurso nesse contexto? Acredito que poderia ser possível, talvez, alcançar a
união sem o discurso filosófico. No entanto, isso seria algo extremamente
difícil, por uma série de motivos. Gostaria de me deter um pouco sobre alguns
deles.
Antes de tudo, o discurso filosófico nos ensina sobre os primeiros princípios e
nos demonstra a necessidade de nos dirigirmos até eles. Se o lógos não conduz o
filósofo a aceitar a existência das hipóstases e a possibilidade da jornada,
como poderia ele se decidir a passar pelo processo de purificação? Ser
instruído sobre o caminho é o primeiro passo, é a "certa ascensão" (anagogé
tis), como lemos em I, 3, 1. Aliás, sem o discurso racional, a ascensão
plotiniana não teria seu caráter filosófico. Aqui é apropriado termos em mente
as observações que Martha Nussbaum fez à proposta de Hadot de se entender a
filosofia antiga como um modo de vida: se o mais importante é o modo de vida, o
que diferenciaria a filosofia de outras formas de vida (religiosas, militares
etc.) adotadas na Antiguidade (Nussbaum, 1994)?
O discurso é capaz não apenas de instruir sobre o caminho, mas também de torná-
lo desejável e de impelir a ele. Devemos ler com precaução as anedotas escritas
por Porfírio na "Vida" de Plotino que o mostram como um escritor descuidado, a
escrever seus tratados de uma só vez, sem correções posteriores. Uma leitura
cuidadosa dos textos revela que Plotino é um mestre no gênero da diatribe (cf.
Narbonne, 2008), capaz, como poucos filósofos de seu tempo, de unir o rigor da
argumentação filosófica à eloquência retórica que é tão importante nesse tipo
de texto. As belas imagens que encontramos em algumas passagens das "Enéadas",
o uso de citações dos textos clássicos e dos mitos (cf. Oliveira, 2013) não
tinham como único propósito tornar mais concreta a argumentação filosófica,
ilustrando-a e tornando-a leve, mas também visavam mobilizar o homem como um
todo, não apenas sua diánoia, ao caminho de ascensão.
Além disso, é o discurso que nos instrui sobre o trópos(conduta) e mekhané
(mecanismo) necessários para a ascensão. Na II, 9, 15, Plotino censura os
gnósticos justamente por não terem discursos sobre a virtude, nem ensinarem
como se pode ascender ao divino:
E testemunha contra eles também isto: que não tenham feito nenhum
discurso sobre a virtude, tendo abandonado completamente o discurso
sobre essas coisas, e que não tenham dito o que ela é, nem quantas
são, nem nenhuma das muitas e belas coisas contempladas nos discursos
antigos, nem a partir de que coisas ela resulta e é adquirida, nem
como se cuida (therapeúetai) da alma, nem como se a purifica. Pois,
certamente, não se trabalha com eficiência ao dizer "olha para deus",
se não se ensinar como se olha.21
O discurso filosófico, enquanto discurso dialético, é também um auxílio à
contemplação. Aqui é útil termos em mente a noção de práxis de III, 8, 4. Nesse
texto, Plotino afirma que o homem, quando tem sua contemplação enfraquecida,
faz da ação (práxis) uma sombra da contemplação (theoría) e do lógos.
Poderíamos ser tentados a traduzir lógosaqui por discurso, mas, penso que,
nesse contexto, o lógosé o pensamento que preenche a alma durante a
theoría.Minha suposição se baseia na sequência do texto, na qual Plotino afirma
que quando a contemplação não é suficiente, por causa da fraqueza da alma
(hyp'astheneías psychês), desejando ver, o homem realiza uma ação para
ver aquilo que não pode captar pela inteligência (noûs).22 A práxisé, portanto,
uma sombra da theoría, não do discurso e, portanto, o lógosem questão é aquele
que está na alma, não o que, proferido, tenta interpretá-lo. No entanto,
acredito ser possível, a partir desse texto, pensar o lógosfilosófico como uma
forma de práxis, ou seja, uma contemplação enfraquecida. Assim, também é uma
possibilidade para que a alma enfraquecida veja aquilo que deseja. É que, como
interpreta as afecções da alma e está ligada a imagens e opiniões, o discurso
tem o poder de tornar ordenado o pensamento da alma enfraquecida e, dessa
maneira, ajudá-la a atingir a intelecção. Esse é justamente o papel da
dialética, que é uma prática discursiva que tem a capacidade de direcionar a
alma ao inteligível e à contemplação, já que não é outra coisa que a
diánoiaordenada em busca da nóesis. Plotino afirma que a dialética "é uma
disposição capaz de dizer por meio do discurso a respeito de cada coisa",23 e,
portanto, é, antes de tudo, uma forma específica de lógos. Mas ela não conhece
proposições (protáseis), que são apenas letras, pois é conhecendo a verdade que
se conhecem as proposições.24
Em contrapartida, o discurso filosófico também pode, em determinadas
circunstâncias, ser um produto da contemplação. Aqui devemos nos lembrar da
distinção presente em III, 8, 4 entre práxise poíesis.Os termos poderiam ser
traduzidos, a partir de seu uso comum, por açãoe produção, respectivamente, mas
Plotino os distingue nesse texto de outra maneira, considerando a práxis como
uma contemplação enfraquecida e a póiesis como um produto da contemplação,25 ou
seja, o resultado da contemplação criadora. Discutindo sua noção de poíesis,
Plotino assevera que a contemplação produz o contemplado, tal como os geômetras
desenham ao contemplar.26
A afirmação deve ser entendida no contexto da investigação no qual está
inserida, que trata da produção do sensível pela physisda alma do mundo a
partir de sua contemplação. Não nos deteremos sobre essa doutrina, mas, para
nossos presentes propósitos, gostaria de chamar a atenção para o fato de que,
tal como a Alma do mundo produz o universo ao contemplar o Intelecto, nossa
alma, que é irmã e similar a ela, também deve produzir algo ao contemplar. Mas
o que ela seria capaz de produzir? A produção das realidades do mundo sensível
é uma função da Alma do mundo; resta, portanto, modelar esse sensível a partir
das diversas tékhnai, mas também pelo lógos, especialmente o lógosfilosófico.
O discurso, sob esse ponto de vista, manifesta seu aspecto ambivalente, sendo
tanto um auxílio quanto um produto da contemplação. Auxílio enquanto práxis,
produto enquanto poíesis, o que significa que adquire estatutos diferentes nas
diversas etapas da jornada de ascensão. A relação entre o estatuto do discurso
e essas etapas não pode ser compreendida, no entanto, de forma esquemática. Por
um lado, para aquele que ascende, o discurso é mekhané, um mecanismo ou
artifício usado como auxílio. Mas, para aquele que viu, é uma consequência.
Não, obviamente, uma consequência imediata: não se deve pensar que o filósofo
escreva tratados durante seu exercício dialético ou experiências
contemplativas, muito menos durante a união com o Intelecto ou o Um, mas que
talvez se sinta impelido a essa escrita após a experiência contemplativa. De
qualquer modo, por outro lado, como a experiência contemplativa nunca é
duradoura para a alma encarnada no mundo sensível e como, justamente por isso,
ela deve sempre ascender novamente às realidades superiores, o discurso também
funciona como uma espécie de recordação, como um conjunto de palavras capazes
de ser como que uma imagem da contemplação.
Em VI, 9, 11, Plotino escreve que aquele que contemplou o Um, quando se lembra
"do que aconteceu quando se misturava a ele, teria em si mesmo uma imagem".27
Ainda que não se afirme que a imagem seja o discurso, não podemos deixar de
notar que o próprio texto de VI, 9 pode ser compreendido como um discurso que
faz referência a essas imagens que surgem após a união. Tal leitura torna-se
mais forte a partir de uma passagem subsequente do próprio capítulo 11, no qual
Plotino afirma que as imagens empregadas no texto "sinalizam aos sábios dentre
os profetas de que modo aquele deus é visto: e o sacerdote sábio que compreende
o enigma poderia, indo ao santuário, realizar a visão verdadeira".28 Acredito
que o santuário no qual o sacerdote entra, no qual é capaz de contemplar o Um,
é o Intelecto. Mas, para que se tenha a experiência do Intelecto, ou seja, para
que se seja capaz de entrar no santuário, o sacerdote deve antes compreender o
enigma. O texto parece indicar, portanto, que as imagens de VI, 9 são como que
enigmas que devem ser decifrados para que ocorra a contemplação. Porém, como
essas imagens são construídas pelo discurso, podemos afirmar que, pensado em
relação à ascensão, o discurso filosófico é esse enigma a ser decifrado.
Podemos compreender melhor em que medida o discurso é um enigma a partir de uma
analogia entre as almas individuais e a Alma do mundo. Para Plotino, ainda que
a Alma do mundo seja superior, não é essencialmente diferente das outras almas,
que, portanto, operam de uma maneira similar a ela. Assim, tal como o resultado
da contemplação da Alma do mundo é o universo sensível, o produto da
contemplação do filósofo é o discurso. E tal como a Alma do mundo ordena o
universo sensível projetando na matéria os lógoiderivados das formas
inteligíveis que contemplou ao se voltar para o Intelecto, o filósofo projeta
os lógoique estão em sua mente como resultado de sua contemplação em palavras
escritas ou faladas.
Por isso, o discurso filosófico é considerado por Plotino, tal como para
Górgias no "Elogio de Helena", como uma espécie de encantamento. A esse
respeito, existem algumas interessantes considerações em V, 3, 17. Depois de
argumentar pela necessidade de um princípio absolutamente simples, anterior ao
Intelecto, e notando que, após toda a discussão filosófica, a alma ainda está
como que em dores de parto (odínon), Plotino fala da necessidade de um
encantamento (epodé) para elas. E afirma que, talvez, esse encantamento possa
surgir das coisas que já foram ditas, se cantadas muitas vezes.29 O verbo que
Plotino emprega aqui, epaeído, é particularmente indicativo, pois significa
literalmente cantar um encantamento. Se as coisas já ditas são o próprio texto
de V, 3 e se ele deve ser cantado várias vezes para auxiliar a alma em trabalho
de parto, podemos concluir que, para Plotino, o discurso filosófico pode se
tornar uma espécie de encantamento que, ao ser meditado com frequência, revela
seu poder. Mas em quem esse encantamento pode funcionar? Naquele que se elevou
no caminho da virtude, que se purificou e consegue aquietar as potências
inferiores de sua alma. Para esses, aos quais basta apenas olhar, como Plotino
afirma em I, 6, 9, o discurso é um guia adequado. Para aquele que não se
purificou, "fora da virtude verdadeira, falar deusé dizer um nome".30