Hemoperitoneu Maciço Causado por Mioma Uterino
Introdução
Os miomas uterinos são tumores monoclonais benignos com origem nas células
musculares lisas do miométrio. Contêm uma grande quantidade de matriz
extracelular e são rodeados por uma pseudocápsula (1). O mioma é o tumor
ginecológico mais frequente e está presente em cerca de 50% das mulheres na 5ª
década de vida (2).
Em 95% casos localizam-se no corpo uterino e a sua implantação no miométrio
permite classificá-lo com subseroso, intramural ou submucoso.
Histologicamente são compostos por células musculares lisas bem diferenciadas
com menos de 5 mitoses por 10 campos de grande ampliação (CGA). A progressão
para leiomiossarcoma é rara, acontecendo em 0,1-0,5% dos casos e mesmo nestes a
relação etiopatogénica entre ambos os tipos não é muito clara.
O hemoperitoneu é uma complicação muito rara dos miomas uterinos. Uma elevação
da pressão abdominal durante stress mecânico (ex: traumatismo, relações
sexuais, menstruação) pode levar á rotura de vasos superficiais do mioma (3).
Caso clínico
Os autores descrevem um caso de uma nuligesta de 33 anos com antecedentes
cirúrgicos de esplenectomia aos 8 anos de idade (após acidente de viação).
História ginecológica: menarca aos 13 anos, ciclos irregulares com cataménios
abundantes (6 dias), actualmente contracepção oral com estroprogestativo.
Recorreu ao Serviço de Urgência (Cirurgia Geral) a 12/02/2009 por
epigastralgias, vómitos e alterações do trânsito intestinal com um dia de
evolução. Ao exame físico apresentava palidez das mucosas e contractura á
palpação abdominal. Não apresentava hipertermia nem queixas urinárias.
Efectuou tomografia axial computorizada (TAC) abdomino-pélvica que revelou:
Significativo hemoperitoneu ( ) ovário esquerdo francamente aumentado ( )
aspectos sugestivos de rotura de folículo/salpingite complicada, sem outras
alterações relevantes. Foi transferida para ginecologia.
Do exame ginecológico destacava-se o abaulamento do fundo de saco vaginal à
esquerda e cataménio em curso. A ecografia endovaginal confirmou os achados da
TAC.
Foi submetida a laparotomia exploradora urgente: constatou-se hemoperitoneu (±
900 cc) com coágulos, e presença de neoformação muito vascularizada no corno
uterino esquerdo com ± 9 x 4 cm diâmetro, com hemorragia activa com origem num
vaso superficial. Presença de aderências vascularizadas a ansas intestinais.
Anexos sem alterações.
Procedeu-se a exérese da neoformação e após hemostase difícil (tecidos muito
friáveis) foi possível conservação do útero e anexos. A peça operatória foi
enviada para exame anatomo-patológico. Fez transfusão de 4 unidades de GR
intra-operatóriamente. O pós-operatório decorreu sem complicações e teve alta
ao 5º dia.
O relatório anatomo-patológico da peça operatória revelou: 1. Macroscopia:
massa de 9x6x3,5 cm, com 92 g, bem delimitada, revestida por cápsula lisa e
fina, com área irregular em relação provável com zona de inserção. Ao corte,
sólida e constituída por tecidos branco-amarelados e elásticos, com focos muito
vascularizados, vasos trombosados ou preenchidos por coágulos hemáticos (Figura
1
). 2. Microscopia: neoplasia expansiva, com padrão epitelioide (muitas vezes
assumindo um aspecto plexiforme). Células em pequenos agregados, fila-indiana
ou isoladas com fenótipo epitelioide, caracterizando-se por citoplasma de
limites mal definidos frequentemente claro, núcleos redondos ou ovais, por
vezes alongados, com contornos irregulares, cromatina fina, por vezes
vesiculosa e nucléolo de tamanho intermédio. Pleomorfismo ligeiro a moderado,
actividade mitótica inferior a 1 mitose por 10 CGA. Ocasionais células
apoptóticas, sem necrose. O estroma é frequentemente hipocelular, fibro-
colagenoso ou hialinizado assumindo aspecto de nódulos hialinos e menos
frequentemente hipocelular ou vagamente mixoide, componente vascular que
compreende vasos tortuosos, com coágulos ou mesmo trombose. Ausência de
necrose. Imunohistoquímica: positividade com anticorpos anti-desmina, HHF35 e
actina do músculo liso. Negatividade com anticorpos anti-Ck8/18, CD34 e HMB45
(Figuras_2_e_3
). Este quadro morfológico e imunohistológico é compatível com tumor de
histogenese muscular lisa (leiomioma epitelioide) de potencial maligno incerto.
A doente mantém vigilância na consulta de ginecologia. Fez ecografia a 10/09
que revelou vascularização mais acentuada junto ao corno uterino esquerdo e
útero, endométrio e anexos sem alterações de relevo.
Discussão
Do ponto de vista ginecológico, as causas mais frequentes de hemoperitoneu
agudo são rotura de gravidez ectópica, corpo lúteo hemorrágico ou a torção
anexial (4). A hemorragia intra-abdominal por rotura espontânea de um mioma
uterino é um achado excepcional (2).
Embora os miomas sejam o tumor mais comum na mulher em idade reprodutiva, as
complicações agudas por eles causadas são extremamente raras (5), contudo
quando ocorrem podem causar morbilidade significativa (e muito ocasionalmente,
mortalidade) afectando profundamente a qualidade de vida da mulher.
As complicações possíveis incluem: 1. trombo-embolismo; 2. torção aguda de
mioma subseroso pediculado; 3. retenção urinária aguda e insuficiência renal;
4. dor aguda durante a gravidez (causada por degenerescência hemorrágica); 5.
hemorragia vaginal ou intra-peritoneal aguda; 6. trombose da veia mesentérica e
gangrena intestinal. É difícil tentar quantificar uma taxa de incidência destas
complicações agudas uma vez que são muito raras e na maioria aparecem descritas
na literatura como casos clínicos ou séries de casos.
Na maioria das vezes apresentam-se sob a forma de abdómen agudo com necessidade
de laparotomia exploradora urgente.
A literatura disponível descreve casos muito semelhantes ao que apresentamos:
mulheres entre 30-49 anos de idade, que recorrem ao hospital com dor abdominal
inespecífica, coincidente com os primeiros dias da menstruação, que rapidamente
evolui para abdómen agudo por hemoperitoneu espontâneo (2,4).
A via laparoscópica, em alternativa á laparotomia, não foi neste caso usada por
se tratar de uma doente hemodinamicamente instável e sem diagnóstico pré-
operatório.
Lesões classificadas como tumores musculares lisos de potencial maligno incerto
não preenchem os critérios de malignidade inequívoca e ultrapassam os
observados nas lesões benignas. Quando se considera este diagnóstico são
importantes o padrão, a celularidade e o índice mitótico devendo ser
referenciada a presença de uns e ausência de outros.
No caso descrito o padrão epitelióide aliado ao índice mitótico (<1 mitose por
10 CGA) preenchem os critérios para a classificação de tumor muscular liso de
potencial maligno incerto (Tabela_1
). É questionável se o índice mitótico observado em 10 CGA é diferente
relativamente a outros 10 CGA e é também questionável se um leiomioma solitário
extra-uterino, deverá ter critérios diferentes de um leiomioma intra-uterino e
se a necrose por si só é um critério para a classificação de leiomioma de
potencial maligno incerto, particularmente numa mulher jovem, grávida ou
tomando anticonceptivos. Aceita-se que tumores mitoticamente activos (5-10
mitoses/10 CGA) mas citologicamente uniformes e sem atipia em mulheres jovens
devem ser considerados benignos.
No nosso caso a irrigação e vascularização atípica, o padrão epitelioide, a
atipia celular e o índice mitótico levaram-nos a classificá-lo como leiomioma
de potencial maligno incerto.
Os tumores musculares lisos de potencial maligno incerto são uma variante do
leiomioma uterino e pela sua raridade continuam a constituir um dilema devido
ao seu comportamento clínico incerto. A maioria destes tumores tem um curso
clínico benigno no entanto podem recorrer e metastizar para locais distantes,
tendo por isso indicação para manter vigilância clínica a longo prazo (6).