Tromboembolismo pulmonar no síndrome nefrótico associado a trombofilia
INTRODUÇÃO
O Síndrome Nefrótico (SN) é causado por doenças renais que aumentam a
permeabilidade da barreira glomerular. Classicamente é caracterizado pela
presença de proteinúria (excreção de proteínas urinárias > 40mg/m2/hora),
hipoalbuminemia (albumina sérica < 3 g/dL) hiperlipidemia e edema. A
coagulopatia e distúrbios da hemostase são complicações descritas no SN, que
condicionam o risco de tromboembolismo. O SN idiopático é a forma mais comum do
SN da infância, representando mais de 90% dos casos antes dos 10 anos e 50%
após os 10 anos de idade. A incidência do SN Idiopático tem sido referida entre
2 - 7:100.000 crianças e uma prevalência de cerca de 16:100.000 crianças por
ano. Independentemente da etiologia subjacente, o SN e o seu tratamento pode
resultar em complicações como infecções, doença cardiovascular, perda mineral
óssea, insuficiência renal aguda e tromboembolismo(1).
Doentes com SN têm um risco absoluto de tromboembolismo (TE) venoso e arterial
oito vezes superior à população em geral(2). Estas complicações são
relativamente raras durante a infância mas podem causar morbilidade
significativa(3). Num estudo de 3.377 crianças com SN em unidades de diálise na
Europa a incidência de TE venoso sintomático foi 1,8%(4). Mehls et al.
realizaram um estudo longitudinal com 200 crianças durante 10 anos, no qual a
incidência de eventos tromboembólicos sintomáticos verificada foi de 4,1%(5).
A ocorrência de complicações tromboembólicas nem sempre se correlaciona com a
gravidade clínica e laboratorial do SN, excepto com a associação com níveis
elevados de fibrinogénio (> 600 mg/dL) e défice de antitrombina III (< 70% do
normal)(3). A hipocoagulação profiláctica não está indicada por rotina nas
crianças com SN, alguns autores sugerem a sua utilização nos casos de elevado
risco de tromboembolismo, nomeadamente se albumina sérica < 2g/dL, fibrinogénio
> 600 mg/dL e antitrombina III < 70% do normal. Outros autores aconselham a
utilização de aspirina em baixas doses e crianças com recidivas frequentes, SN
corticodependente ou corticorresistente. No entanto, não existem estudos
controlados que demonstrem a sua eficácia na prevenção de tromboembolismo em
crianças com SN.
Os episódios embólicos podem-se manifestar em diferentes regiões como cérebro
ou pulmões quer em territórios venosos quer arteriais. Os vasos mais
frequentemente envolvidos na trombose vascular são os seios venosos cerebrais,
as veias profundas dos membros inferiores, veias cavas, veias renais, hepáticas
e artéria mesentérica e artérias cerebrais médias. O tromboembolismo pulmonar
(TEP) é uma complicação rara do SN, embora segundo estudos publicados
subdiagnosticada, que pode conduzir a taquipneia persistente na infância. É
importante manter um elevado índice de suspeição, pois os seus sintomas podem
ser subtis mas o seu diagnóstico e tratamento atempado são fundamentais para
evitar um prognóstico fatal(3,6).
CASO CLÍNICO
Adolescente de 12 anos de idade, do sexo masculino, com o diagnóstico de SN
corticorresistente e hipertensão arterial. A biópsia renal era compatível com
doença de lesões mínimas e não apresentava mutação identificada no gene NPHS2,
mutaçãoassociada a SN corticorrestente. Medicado com prednisolona,
ciclosporina, omeprazol, enalapril e ácido acetilsalicílico.
Dois meses após o episódio inaugural apresentou quadro de dispneia para médios
esforços, polipneia, tosse produtiva com expectoração mucosa e agravamento de
edemas com quatro dias de evolução, pelo que foi internado por anasarca e
oligúria. Ao exame físico foi constatado aumento de peso, aspecto cushingóide,
edemas nos membros inferiores até aos joelhos e edemas palpebrais ligeiros,
diminuição dos sons respiratórios em ambas as bases pulmonares, organomegalias
palpáveis ou outras alterações. Analiticamente apresentava hipoalbuminemia
grave (0,8 mg/dL), proteínas totais de 4,5 g/dL, proteinúria nefrótica (relação
proteínas/creatinina urinária 19,2 mg/mg), hipercolesterolemia (338 mg/dL),
ureia elevada (65 mg/dL) e creatinina 1 mg/dL. Iniciou perfusão diária de
albumina e furosemida, com boa resposta clínica inicial: boa diurese,
diminuição do peso e dos edemas. Ao quarto dia de internamento iniciou febre,
toracalgia, expectoração hemoptoica e agravamento da dispneia com necessidade
de oxigenoterapia. Analiticamente apresentava leucocitose (15.170/mm3) com
neutrofilia (75%), proteína C reactiva de 3,31 mg/dL, D-dímeros de 588 μg/L (N:
<500 μg/L), fibrinogénio 633 mg/dL (N:154-448 mg/dL) e restante estudo da
coagulação, enzimas cardíacas e gasometria venosa sem alterações. A radiografia
de tórax revelou apagamento do fundo de saco do ângulo costo-frénico direito
com subida do diafragma e infiltrado para-hilar bilateral e a angiografia
pulmonar por tomografia computorizada (Angio-TC pulmonar) demonstrou
tromboembolismo pulmonar agudo central e periférico, com múltiplas zonas de
enfarte pulmonar e derrame pleural de pequeno volume (Figura 1). O
ecocardiograma, o electrocardiograma e o doppler renal não apresentaram
alterações. Iniciou antibioticoterapia e hipocoagulação com heparina de baixo
peso molecular (enoxaparina 1 mg/ Kg/dose de 12/12h) e posteriormente com
acenocumarol, com melhoria clínica gradual. Ao 29º dia de internamento
apresentou novo agravamento clínico e reiniciou febre. Repetiu a radiografia de
tórax onde se verificou manutenção da hipotransparência na base direita e
pequeno derrame pleural bilateral, aparentemente loculado e imagem sugestiva de
área abecedada na base direita. Repetiu também a tomografia computorizada
torácica que demonstrou imagens sugestivas de tromboembolismo pulmonar e
derrame pulmonar loculado na base direita com características de empiema.
Reiniciou antibioticoterapia com melhoria clínica e imagiológica, tendo tido
alta após 50 dias de internamento.
Figura 1' Imagem de Angio-TC pulmonar revelando tromboembolismo pulmonar agudo
central e periférico, com volumoso trombo a ocluir por completo a artéria
pulmonar esquerda e a artéria lobar inferior direita. Trombos não oclusivos nas
artérias lobares superiores bilaterais. Múltiplas áreas de enfarte pulmonar em
todos os lobos, sobretudo no lobo inferior direito. Derrame pleural de pequeno
volume.
O rastreio das trombofilias hereditárias foi positivo para a mutação C677T do
gene da metilenotetrahidrofolato reductase (MTHFR) em homozigotia e para a
mutação G20210A do gene da protrombina em heterozigotia. O restante estudo
protrombótico nomeadamente, antitrombina III, anticoagulante lúpico, anticorpos
anticardiolipina e anti-β2 glicoproteína, lipoproteína (a), pesquisa da mutação
do factor V de Leiden e do polimorfismo 4G/5G do gene do inibidor do activador
do plasmonogénio ' tipo 1, não revelaram alterações.
O síndrome nefrótico entrou em remissão cerca de dois meses após início da
ciclosporina.
Foi reavaliado por pneumologia três meses após o diagnóstico de TEP,
apresentando diminuição significativa do tromboembolismo pulmonar, com
resolução completa do trombo central do ramo direito da artéria pulmonar.
Persistiam alguns defeitos nos ramos lobares e segmentares de ambos os lobos
inferiores, não completamente oclusivos. A avaliação cardiológica realizada
nessa altura não revelava hipertensão pulmonar, com electrocardiograma e
ecocardiograma normais.
Completou 14 meses de terapêutica com acenocumarol. O doseamento da proteína C
e S realizado em fase de remissão e sem hipocoagulação foi normal.
Actualmente, com dois anos após o internamento, continua em remissão do
síndrome nefrótico e está medicado com ciclosporina em doses decrescentes e
lisinopril.
DISCUSSÃO
O TE tem sido descrito em 1,8 a 5% das crianças com Síndrome Nefrótico
Idiopático, em contraste com a sua incidência muito mais elevada nos adultos
(20 a 30%). Esta incidência pode estar subestimada pois alguns estudos mostram
que a ocorrência de TE subclínico pode ser muito mais frequente do que
anteriormente estimado(1,3).
Estes fenómenos de TE têm sido descritos mais frequentemente em lactentes e na
adolescência, após os 12 anos de idade. O motivo da influência da idade na
ocorrência de eventos TE permanece desconhecida mas a puberdade pode ter o seu
papel(1,2).
Neste doente, o evento TE ocorreu dois meses após a apresentação inaugural do
SN, o que está de acordo com os dados referidos na literatura, que descrevem
maior incidência destes eventos nos primeiros seis meses após o diagnóstico de
SN(2).
A nefropatia membranosa parece estar mais associada ao TE do que o SN por
lesões mínimas, causa mais frequente de SN nas crianças, este facto pode
explicar a menor incidência destas complicações do SN nas crianças
relativamente aos adultos(1,3).
Os mecanismos patofisiológicos do tromboembolismo em doentes com SN ainda não
foram totalmente desvendados. No entanto, são considerados factores
predisponentes, a perda urinária de proteínas anticoagulantes (antitrombina III
e proteína S) e fibrinolíticas, o aumento da agregação plaquetária, a
polimerização de fibrina alterada, a hipoalbuminemia, a hiperviscosidade e a
hiperlipidemia, assim como o tratamento com corticosteróides, albumina e
diuréticos e a imobilização. Existem outros factores que podem aumentar o risco
de TE, como os cateteres venosos centrais, infecções, traumatismos, cirurgias
recentes e ainda, defeitos genéticos coincidentes, nomeadamente, a trombofilia
hereditária. Sendo a probabilidade para os eventos tromboembólicos, maior
quantos mais factores de risco associados(1-3,6,7). Este doente apresentava
como factores predisponentes para o TE as alterações subjacentes ao SN como a
hipoalbuminemia grave (<2 g/dL), fibrinogénio elevado (> 600 mg/dL) e
dislipidemia, e ainda a presença de um cateter venoso central, infecção,
terapêutica com diurético e imobilização. O rastreio das trombofilias
hereditárias neste doente foi positivo para a mutação C677T do gene da MTHFR em
homozigotia e para a mutação G20210A do gene da protrombina em heterozigotia,
podendo ambos predispor para o risco de trombose.
As crianças com síndrome nefrótico, pelos vários mecanismos anteriormente
descritos, apresentam uma maior predisposição para fenómenos tromboembólicos,
pelo que o rastreio da trombofilia hereditária pode ser importante na
identificação de doentes com risco acrescido, que poderiam beneficiar de
hipocoagulação profiláctica.
Os D-dímeros plasmáticos são marcadores sensíveis de trombose, embora pouco
específicos. Têm sido utilizados frequentemente como rastreio de trombose, no
entanto estudo publicados referem que o seu valor é incerto, como preditor de
eventos tromboembólicos no SN(8).
A cintigrafia ventilação-perfusão tem sido utilizada para o diagnóstico de
tromboembolismo pulmonar mas, devido à elevada percentagem de resultados
indeterminados, o seu uso tem diminuído. Estudos recentes recomendam a Angio-TC
pulmonar quando se suspeita de embolismo pulmonar, este foi o exame
complementar realizado no caso apresentado perante a suspeita de
tromboembolismo pulmonar(9).
Os doentes com SN apresentam maior risco de infecções bacterianas graves, o que
pode ser explicado pela presença de ascite e derrame pleural que constituem um
meio de cultura natural para o crescimento bacteriano e pela perda urinária de
factores importantes para a opsonização, o que aumenta a susceptibilidade para
infecções por bactérias encapsuladas, sendo o Streptococcus pneumoniaum dos
agentes infecciosos mais frequentemente isolados, pelo que a imunização com
vacina pneumocócica está aconselhada a crianças com SN para prevenção da doença
pneumocócica.
O facto de este doente ter entrado em remissão do SN obviamente melhorou o seu
prognóstico. Os autores estão convictos que a ciclosporina teve um papel
determinante na remissão do SN, o que vem reforçar os estudos que demonstram a
eficácia deste fármaco em doentes com SN corticoresistente(10).
CONCLUSÃO
As complicações TE nas crianças com SN são mais raras, no entanto a gravidade
dos eventos TE é muito maior do que nos adultos. Nas recaídas do SN, sintomas
subtis podem ser a única manifestação do TEP. Perante uma criança com SN e
clínica sugestiva de tromboembolismo pulmonar, nomeadamente, taquipneia,
dispneia, toralcalgia e tosse com expectoração hemoptoica, é importante excluir
sempre a possibilidade desta complicação, pois se não for rapidamente detectado
e tratado pode conduzir a morbilidade e mortalidade significativa. Não deve ser
descurado o risco de tromboembolismo em adolescentes internados, deve ser
ponderada a sua profilaxia, principalmente em adolescentes com possíveis
factores predisponentes, como as recaídas do síndrome nefrótico e a
identificação de trombofilias hereditárias.