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EuPTCVHe1646-21222014000100010

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National varietyEu
Year2014
SourceScielo

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Necrose muscular paravertebral pós-cirúrgica

INTRODUÇÃO Os músculos paravertebrais estão sujeitos a forças distractivas durante a abordagem posterior da coluna lombar1.

Sabe-se que a retração muscular necessária para a exposição das estruturas ósseas provoca, em termos histológicos, edema intersticial, acumulação intracelular de iões de Cálcio (Ca2+) no sarcolema, e finalmente necrose celular2.

O espectro de manifestações clínicas desta entidade patológica é variável, mas, depende habitualmente da gravidade da lesão nos músculos sacroespinalis e erector spinae. A variabilidade do quadro clínico oscila entre o doente com dor lombar, diminuição da força de extensão do tronco, e aquele que, tendo necrose muscular extensa, revela alterações graves da cicatrização normalmente associadas a uma panóplia de morbilidades. Várias publicações referem a possibilidade de documentação desta lesão através de estudos complementares de diagnóstico3, 4, 5, 6.

Apesar do traumatismo directo muscular ser a causa mais comum de necrose muscular, muitos outros factores foram identificados e a ela associados, como por exemplo a obesidade, a diabetes, a poliglobulia, ou até mesmo um posicionamento inadequado. No entanto, as lesões microvasculares e as alterações metabólicas relacionadas com a pressão exercida pelo garrote são bem conhecidas. Estudos histoquímicos, animais e humanos, que corelacionaram a pressão e o tempo da retração aplicada nos músculos paravertebrais, identificaram um valor superior a 10.000 g/cm2/min como sendo factor de risco elevado para o aparecimento de necrose muscular histológica, e, naturalmente também associado a piores resultados funcionais pós operatórios1, 2, 7, 8, 9.

Existem também referências na literatura à associação entre piores resultados funcionais e lesões neuromusculares na sequência de extensas abordagens posteriores da coluna lombar, o que reforça a importância da sua prevenção10.

Com base neste pressuposto, Kawaguchi et al7 estudaram a necessidade de alívio da pressão exercida nos músculos paravertebrais, e concluíram que no decorrer de uma cirurgia com duração entre 40 min a 1 hora, a interrupção durante 5 min da acção dos afastadores, constituía medida eficaz na prevenção da necrose muscular.

CASO CLÍNICO 1 Paciente do sexo masculino, com 79 anos de idade, IMC 29, e antecedentes pessoais de hemilaminectomia esquerda 10 anos, Diabetes Mellitus tipo II e Hipertensão arterial, ambas medicadas. Recorre à consulta de coluna por lombalgia com irradiação ao membro inferior direito, e marcha claudicante neurogénica.

Apresentava uma doença degenerativa discal polifocal (L3-S1) tipo V de Pfirmann, com estenose canalar central/ lateral, escoliose degenerativa e atrofia muscular (Figura_1).

Foi realizada descompressão posterior alargada, com realinhamento vertebral no plano frontal, e instrumentação pedicular L3-S1 utilizando parafusos pediculares canulados e reforço trabecular com metilmetacrilato em todos os níveis implicados (Figura_2).

De acordo com o protocolo cirúrgico do serviço efectuámos abertura dos afastadores durante 5 minutos após cada 40 minutos de cirurgia,.

O internamento decorreu sem intercorrências dignas de registo, mas na consulta de seguimento pós-operatório detectou-se drenagem de líquido seroso com ligeira deiscência da ferida cirúrgica.

A análise bioquímica e bacteriológica do material então colhido percutaneamente sugeriu a necrose muscular, excluindo a possibilidade de líquor ou infecção na ferida operatória.

O doente fez TAC que permitiu avaliar e certificar o correcto posicionamento quer dos parafusos, quer do cimento aplicado (Figura_3), e RM que confirmou extensa necrose muscular paravertebral (Figura_4).

Figura_3

Figura_4

Foram realizados pensos diários até ao encerramento da ferida operatória, que ocorreu após 1 mês de seguimento. Na última consulta de avaliação, 1 ano após a cirurgia o doente permanecia sem queixas, fazendo as suas atividades de vida diária sem limitações dignas de registo.

CASO CLÍNICO 2 Paciente do sexo masculino, com 68 anos de idade, IMC 27, e antecedentes pessoais de Policitémia vera ( HB 19g/dl), Hipertensão arterial e Hiperlipidémia medicada com Sinvastatina. Recorre à consulta de coluna por lombalgia de carácter renitente, e evolução arrastada de aproximadamente 5 anos.

Apresentava uma doença degenerativa discal L5-S1 tipo V de Pfirmann e uma espondilolistese degenerativa tipo I de Meyerding (Figura_5) no mesmo nível.

Era ainda evidente uma atrofia muscular lombar generalizada (Figura_6).

Foi realizada uma artrodese póstero-lateral com instrumentação pedicular em L5- S1 "in situ" (Figura_7).

Mais uma vez, e de acordo com a rotina do serviço, os afastadores foram libertados durante 5 minutos após cada 40 minutos de cirurgia.

Não obstante, no dia pós-operatório, na sequência de deiscência da sutura, tornou-se evidente necrose muscular extensa, que expunha o material cirúrgico e aumentava exponencialmente o risco de infecção. Optou-se então efetuar um amplo desbridamento cirúrgico, preenchimento da loca formada com 4 placas de colagénio, e finalmente sutura direta da pele (Figura_8).

A ferida cicatrizou aproximadamente 3 meses mais tarde, sem outras intercorrências a referir (Figura_8). Um ano após a última cirurgia continuava sem alterações a registar, referindo o doente apenas lombalgia para grandes esforços.

DISCUSSÃO A cicatrização tecidual é um processo biológico complexo que requer uma sucessão coordenada de hemóstase, inflamação, proliferação, revascularização e remodelação.

As alterações no processo de cicatrização constituem um problema comum no âmbito hospitalar e ambulatório.

Dentro dos vários factores que influenciam este processo biológico existem alguns, como a técnica cirúrgica, que são passíveis de ser controlados pelo cirurgião.

O posicionamento adequado do doente, bem como a dissecção cuidadosa são factores bem conhecidos e que devem ser sempre respeitados. Na cirurgia de coluna em particular, a abordagem para vertebral de Wiltse, utilizando um plano natural de clivagem existente entre o multifidus e o longissimus (sacroespinalis), permite o acesso às apófises transversas e maciços articulares através duma dissecção quase atraumática. No entanto, esta abordagem nem sempre se torna possível considerando a necessidade de descompressão central alargada e re-intervenção.

A técnica MISS (minimally invasive surgery), foi desenvolvida na tentativa de minimizar a morbilidade associada à cirurgia aberta. As vantagens demonstradas em estudos clínicos incluem redução do tecido cicatricial e da dor, bem como menor tempo de recuperação no pós-operatório. Mais ainda, demonstrou-se que utilizando técnicas minimamente invasivas, as enzimas relacionadas com a lesão muscular (CK e aldolase), bem como as citoquinas pró inflamatórias (IL-6, IL- 8), atingiam níveis bastante inferiores aos obtidos durante a cirurgia convencional.

Apesar destas vantagens, é uma técnica com curva de aprendizagem relativamente longa, e que, por razões anatómicas e especificas de cada caso clinico não pode ser sistematicamente utilizada.

Na abordagem mediana da coluna, as lesões microvasculares e necrose subsequente parecem poder ser em parte evitadas pela diminuição do tempo de aplicação da força exercida pelo afastador. Assim, a abertura desse mesmo afastador durante 5 minutos a cada 40 minutos de cirurgia tem sido sugerida como medida eficaz na prevenção de lesão da musculatura paravertebral, e constitui procedimento de rotina no nosso serviço1,2,7,8,9,11.

Por outro lado, existem também fatores determinantes mas relacionados com a situação médica do próprio doente. Nos casos apresentados a idade avançada, IMC elevado, Diabetes Mellitus, Hipertensão arterial, Poliglobulia, Hiperlipidémia e até a medicação (estatina) poderão ter tido um papel preponderante na instalação da lesão muscular.

A este propósito importa salientar a Diabetes, uma doença sistémica com diversas complicações associadas e bem documentadas, nomeadamente a alteração da cicatrização. Na base desta, e para além das lesões microvasculares, está a própria alteração do metabolismo da glicose. Estudos experimentais demonstraram que a ferida do doente diabético revela um fenótipo pró inflamatório com consequências importantes no processo de cicatrização. Em acréscimo, e do ponto de vista biomecânico, a inflamação induz uma degradação da matriz extracelular, com invasão de células produtoras deste tecido. Por outro lado, o TNF ( Tumor Necrosis Factor) activa genes pró apoptose, perpétua esta inflamação, e impede a correcta re-epitelização do tecido. No despoletar de todo este processo de pró inflamação está então a hiperglicémia, como activador de proteínas de fase aguda, e elevação de radicais livres de oxigénio e nitrogénio.

O doente diabético é, portanto, um doente com risco elevado de cicatrização inadequada e consequentemente favorecedora de maus resultados cirúrgicos.

Porém, estes estão não relacionados com a alteração de cicatrização da ferida cirúrgica mas também com as restantes complicações inerentes à diabetes (nefropatia, aterosclerose e neuropatia), e até mesmo a eventual infecção.

A Policitémia, com a inerente poliglobulia, constitui um fator de aumento da viscosidade sanguínea e diminuição da correcta oxigenação dos tecidos.

Estão descritos eventos trombóticos em cerca de 20 a 50% nos doentes com esta doença, envolvendo não a microcirculação mas também os grandes vasos.

As úlceras relacionadas com o comprometimento da microcirculação dos membros inferiores são as mais frequentes, sendo normalmente dolorosas, inflamatórias e necróticas.

Embora o doente em questão fosse seguido na consulta de Hematologia e a sua patologia estivesse controlada, é possível que na base da deiscência da ferida cirúrgica se registem cumulativamente mecanismos relacionados com a referida microtrombose e consequente necrose tecidular.

A idade avançada e hipertensão arterial, ambas relacionadas com o processo de aterosclerose hialina, afectam a microcirculação sanguínea, e desse modo correcta vascularização e cicatrização tecidual12.

Mais ainda, a hipertensão arterial como factor condicionante de alterações da perfusão sanguínea da pele e resposta à isquémia, sendo objecto de estudos recentes, animais e humanos, parece estar associada a alterações tanto nos indivíduos hipertensos como nos que apenas revelam uma certa predisposição familiar13,14.

As Estatinas, utilizadas para o controlo da Hiperlipidémia estão amplamente instituída na população em geral e são habitualmente bem toleradas. São usadas na prevenção da aterosclerose e doença cardíaca isquémica e têm sido reconhecidas como potencial factor de agravamento da rabdomiólise, e até possivelmente da necrose muscular. Têm sido associadas a uma variedade de miopatias inflamatórias, incluindo polimiosite, dermatomisite e miopatia necrosante15.

Por outro lado, dados publicados em estudos animais e humanos, mostram que este grupo de fármacos, em particular a atorvastatina e pravastatina podem acelerar o processo de cicatrização da pele. No entanto são ainda necessários mais estudos clínicos randomizados para definir dose, modo de administração, duração de tratamento e, em última análise determinar a correlação entre os efeitos pleotrópicos das estatinas e o seu efeito clínico previsível15-19.

Estas incertezas fazem-nos pensar que, no caso em questão, permanece a dúvida da relação desta mediação com a necrose muscular diagnosticada.

Sumarizando, a micro irculação da pele é controlada por uma combinação de factores metabólicos como: óxido nítrico (produzido em resposta à tensão de cisalhamento nas células endoteliais); actividade do músculo liso vascular (proporcional ás necessidades de oxigénio do tecido); flutuações nas concentrações iónicas (através da membrana das células do músculo liso dos vasos)20,21,22. Qualquer mecanismo, para além dos acima mencionados, que perturbe este equilíbrio pode, eventualmente, também alterar a correcta oxigenação dos tecidos e consequentemente a sua cicatrização.

CONCLUSÃO A aplicação rigorosa das técnicas de preservação da oxigenação tecidular constitui uma medida indispensável da abordagem cirúrgica da coluna vertebral.

Por outro lado, o despiste criterioso e exaustivo de todos os factores de risco para necrose muscular, pode e deve orientar o cirurgião na tomada de medidas adicionais necessárias a cada situação clínica.

Consideramos ainda que o controlo prévio rigoroso e sistemático de toda a medicação e patologia se assume como primeiro passo na prevenção desta complicação.


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