Necrose muscular paravertebral pós-cirúrgica
INTRODUÇÃO
Os músculos paravertebrais estão sujeitos a forças distractivas durante a
abordagem posterior da coluna lombar1.
Sabe-se que a retração muscular necessária para a exposição das estruturas
ósseas provoca, em termos histológicos, edema intersticial, acumulação
intracelular de iões de Cálcio (Ca2+) no sarcolema, e finalmente necrose
celular2.
O espectro de manifestações clínicas desta entidade patológica é variável, mas,
depende habitualmente da gravidade da lesão nos músculos sacroespinalis e
erector spinae. A variabilidade do quadro clínico oscila entre o doente com dor
lombar, diminuição da força de extensão do tronco, e aquele que, tendo necrose
muscular extensa, revela alterações graves da cicatrização normalmente
associadas a uma panóplia de morbilidades. Várias publicações referem a
possibilidade de documentação desta lesão através de estudos complementares de
diagnóstico3, 4, 5, 6.
Apesar do traumatismo directo muscular ser a causa mais comum de necrose
muscular, muitos outros factores foram identificados e a ela associados, como
por exemplo a obesidade, a diabetes, a poliglobulia, ou até mesmo um
posicionamento inadequado. No entanto, as lesões microvasculares e as
alterações metabólicas relacionadas com a pressão exercida pelo garrote são bem
conhecidas. Estudos histoquímicos, animais e humanos, que corelacionaram a
pressão e o tempo da retração aplicada nos músculos paravertebrais,
identificaram um valor superior a 10.000 g/cm2/min como sendo factor de risco
elevado para o aparecimento de necrose muscular histológica, e, naturalmente
também associado a piores resultados funcionais pós operatórios1, 2, 7, 8, 9.
Existem também referências na literatura à associação entre piores resultados
funcionais e lesões neuromusculares na sequência de extensas abordagens
posteriores da coluna lombar, o que reforça a importância da sua prevenção10.
Com base neste pressuposto, Kawaguchi et al7 estudaram a necessidade de alívio
da pressão exercida nos músculos paravertebrais, e concluíram que no decorrer
de uma cirurgia com duração entre 40 min a 1 hora, a interrupção durante 5 min
da acção dos afastadores, constituía medida eficaz na prevenção da necrose
muscular.
CASO CLÍNICO 1
Paciente do sexo masculino, com 79 anos de idade, IMC 29, e antecedentes
pessoais de hemilaminectomia esquerda há 10 anos, Diabetes Mellitus tipo II e
Hipertensão arterial, ambas medicadas. Recorre à consulta de coluna por
lombalgia com irradiação ao membro inferior direito, e marcha claudicante
neurogénica.
Apresentava uma doença degenerativa discal polifocal (L3-S1) tipo V de
Pfirmann, com estenose canalar central/ lateral, escoliose degenerativa e
atrofia muscular (Figura_1).
Foi realizada descompressão posterior alargada, com realinhamento vertebral no
plano frontal, e instrumentação pedicular L3-S1 utilizando parafusos
pediculares canulados e reforço trabecular com metilmetacrilato em todos os
níveis implicados (Figura_2).
De acordo com o protocolo cirúrgico do serviço efectuámos abertura dos
afastadores durante 5 minutos após cada 40 minutos de cirurgia,.
O internamento decorreu sem intercorrências dignas de registo, mas na consulta
de seguimento pós-operatório detectou-se drenagem de líquido seroso com ligeira
deiscência da ferida cirúrgica.
A análise bioquímica e bacteriológica do material então colhido percutaneamente
sugeriu a necrose muscular, excluindo a possibilidade de líquor ou infecção na
ferida operatória.
O doente fez TAC que permitiu avaliar e certificar o correcto posicionamento
quer dos parafusos, quer do cimento aplicado (Figura_3), e RM que confirmou
extensa necrose muscular paravertebral (Figura_4).
Figura_3
Figura_4
Foram realizados pensos diários até ao encerramento da ferida operatória, que
ocorreu após 1 mês de seguimento. Na última consulta de avaliação, 1 ano após a
cirurgia o doente permanecia sem queixas, fazendo as suas atividades de vida
diária sem limitações dignas de registo.
CASO CLÍNICO 2
Paciente do sexo masculino, com 68 anos de idade, IMC 27, e antecedentes
pessoais de Policitémia vera ( HB 19g/dl), Hipertensão arterial e
Hiperlipidémia medicada com Sinvastatina. Recorre à consulta de coluna por
lombalgia de carácter renitente, e evolução arrastada de aproximadamente 5
anos.
Apresentava uma doença degenerativa discal L5-S1 tipo V de Pfirmann e uma
espondilolistese degenerativa tipo I de Meyerding (Figura_5) no mesmo nível.
Era ainda evidente uma atrofia muscular lombar generalizada (Figura_6).
Foi realizada uma artrodese póstero-lateral com instrumentação pedicular em L5-
S1 "in situ" (Figura_7).
Mais uma vez, e de acordo com a rotina do serviço, os afastadores foram
libertados durante 5 minutos após cada 40 minutos de cirurgia.
Não obstante, no 8º dia pós-operatório, na sequência de deiscência da sutura,
tornou-se evidente necrose muscular extensa, que expunha o material cirúrgico e
aumentava exponencialmente o risco de infecção. Optou-se então efetuar um amplo
desbridamento cirúrgico, preenchimento da loca formada com 4 placas de
colagénio, e finalmente sutura direta da pele (Figura_8).
A ferida cicatrizou aproximadamente 3 meses mais tarde, sem outras
intercorrências a referir (Figura_8). Um ano após a última cirurgia continuava
sem alterações a registar, referindo o doente apenas lombalgia para grandes
esforços.
DISCUSSÃO
A cicatrização tecidual é um processo biológico complexo que requer uma
sucessão coordenada de hemóstase, inflamação, proliferação, revascularização e
remodelação.
As alterações no processo de cicatrização constituem um problema comum no
âmbito hospitalar e ambulatório.
Dentro dos vários factores que influenciam este processo biológico existem
alguns, como a técnica cirúrgica, que são passíveis de ser controlados pelo
cirurgião.
O posicionamento adequado do doente, bem como a dissecção cuidadosa são
factores bem conhecidos e que devem ser sempre respeitados. Na cirurgia de
coluna em particular, a abordagem para vertebral de Wiltse, utilizando um plano
natural de clivagem existente entre o multifidus e o longissimus
(sacroespinalis), permite o acesso às apófises transversas e maciços
articulares através duma dissecção quase atraumática. No entanto, esta
abordagem nem sempre se torna possível considerando a necessidade de
descompressão central alargada e re-intervenção.
A técnica MISS (minimally invasive surgery), foi desenvolvida na tentativa de
minimizar a morbilidade associada à cirurgia aberta. As vantagens demonstradas
em estudos clínicos incluem redução do tecido cicatricial e da dor, bem como
menor tempo de recuperação no pós-operatório. Mais ainda, demonstrou-se que
utilizando técnicas minimamente invasivas, as enzimas relacionadas com a lesão
muscular (CK e aldolase), bem como as citoquinas pró inflamatórias (IL-6, IL-
8), atingiam níveis bastante inferiores aos obtidos durante a cirurgia
convencional.
Apesar destas vantagens, é uma técnica com curva de aprendizagem relativamente
longa, e que, por razões anatómicas e especificas de cada caso clinico não pode
ser sistematicamente utilizada.
Na abordagem mediana da coluna, as lesões microvasculares e necrose subsequente
parecem poder ser em parte evitadas pela diminuição do tempo de aplicação da
força exercida pelo afastador. Assim, a abertura desse mesmo afastador durante
5 minutos a cada 40 minutos de cirurgia tem sido sugerida como medida eficaz na
prevenção de lesão da musculatura paravertebral, e constitui procedimento de
rotina no nosso serviço1,2,7,8,9,11.
Por outro lado, existem também fatores determinantes mas relacionados com a
situação médica do próprio doente. Nos casos apresentados a idade avançada, IMC
elevado, Diabetes Mellitus, Hipertensão arterial, Poliglobulia, Hiperlipidémia
e até a medicação (estatina) poderão ter tido um papel preponderante na
instalação da lesão muscular.
A este propósito importa salientar a Diabetes, uma doença sistémica com
diversas complicações associadas e bem documentadas, nomeadamente a alteração
da cicatrização. Na base desta, e para além das lesões microvasculares, está a
própria alteração do metabolismo da glicose. Estudos experimentais demonstraram
que a ferida do doente diabético revela um fenótipo pró inflamatório com
consequências importantes no processo de cicatrização. Em acréscimo, e do ponto
de vista biomecânico, a inflamação induz uma degradação da matriz extracelular,
com invasão de células produtoras deste tecido. Por outro lado, o TNF ( Tumor
Necrosis Factor) activa genes pró apoptose, perpétua esta inflamação, e impede
a correcta re-epitelização do tecido. No despoletar de todo este processo de
pró inflamação está então a hiperglicémia, como activador de proteínas de fase
aguda, e elevação de radicais livres de oxigénio e nitrogénio.
O doente diabético é, portanto, um doente com risco elevado de cicatrização
inadequada e consequentemente favorecedora de maus resultados cirúrgicos.
Porém, estes estão não só relacionados com a alteração de cicatrização da
ferida cirúrgica mas também com as restantes complicações inerentes à diabetes
(nefropatia, aterosclerose e neuropatia), e até mesmo a eventual infecção.
A Policitémia, com a inerente poliglobulia, constitui um fator de aumento da
viscosidade sanguínea e diminuição da correcta oxigenação dos tecidos.
Estão descritos eventos trombóticos em cerca de 20 a 50% nos doentes com esta
doença, envolvendo não só a microcirculação mas também os grandes vasos.
As úlceras relacionadas com o comprometimento da microcirculação dos membros
inferiores são as mais frequentes, sendo normalmente dolorosas, inflamatórias e
necróticas.
Embora o doente em questão fosse seguido na consulta de Hematologia e a sua
patologia estivesse controlada, é possível que na base da deiscência da ferida
cirúrgica se registem cumulativamente mecanismos relacionados com a referida
microtrombose e consequente necrose tecidular.
A idade avançada e hipertensão arterial, ambas relacionadas com o processo de
aterosclerose hialina, afectam a microcirculação sanguínea, e desse modo
correcta vascularização e cicatrização tecidual12.
Mais ainda, a hipertensão arterial como factor condicionante de alterações da
perfusão sanguínea da pele e resposta à isquémia, sendo objecto de estudos
recentes, animais e humanos, parece estar associada a alterações tanto nos
indivíduos hipertensos como nos que apenas revelam uma certa predisposição
familiar13,14.
As Estatinas, utilizadas para o controlo da Hiperlipidémia estão amplamente
instituída na população em geral e são habitualmente bem toleradas. São usadas
na prevenção da aterosclerose e doença cardíaca isquémica e têm sido
reconhecidas como potencial factor de agravamento da rabdomiólise, e até
possivelmente da necrose muscular. Têm sido associadas a uma variedade de
miopatias inflamatórias, incluindo polimiosite, dermatomisite e miopatia
necrosante15.
Por outro lado, dados publicados em estudos animais e humanos, mostram que este
grupo de fármacos, em particular a atorvastatina e pravastatina podem acelerar
o processo de cicatrização da pele. No entanto são ainda necessários mais
estudos clínicos randomizados para definir dose, modo de administração, duração
de tratamento e, em última análise determinar a correlação entre os efeitos
pleotrópicos das estatinas e o seu efeito clínico previsível15-19.
Estas incertezas fazem-nos pensar que, no caso em questão, permanece a dúvida
da relação desta mediação com a necrose muscular diagnosticada.
Sumarizando, a micro irculação da pele é controlada por uma combinação de
factores metabólicos como: óxido nítrico (produzido em resposta à tensão de
cisalhamento nas células endoteliais); actividade do músculo liso vascular
(proporcional ás necessidades de oxigénio do tecido); flutuações nas
concentrações iónicas (através da membrana das células do músculo liso dos
vasos)20,21,22. Qualquer mecanismo, para além dos acima mencionados, que
perturbe este equilíbrio pode, eventualmente, também alterar a correcta
oxigenação dos tecidos e consequentemente a sua cicatrização.
CONCLUSÃO
A aplicação rigorosa das técnicas de preservação da oxigenação tecidular
constitui uma medida indispensável da abordagem cirúrgica da coluna vertebral.
Por outro lado, o despiste criterioso e exaustivo de todos os factores de risco
para necrose muscular, pode e deve orientar o cirurgião na tomada de medidas
adicionais necessárias a cada situação clínica.
Consideramos ainda que o controlo prévio rigoroso e sistemático de toda a
medicação e patologia se assume como primeiro passo na prevenção desta
complicação.