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EuPTCVHe1646-69182013000100012

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National varietyEu
Year2013
SourceScielo

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Ensaios clínicos académicos INVESTIGAÇÃO EM CIRURGIA Ensaios clínicos académicos Maria Emília Monteiro Médica. Professora Catedrática de Farmacologia da Universidade Nova de Lisboa.

Membro da CEIC. Coordenador da PtCRIN Correspondência

A inclusão deste tema na revista Portuguesa de cirurgia é uma manifestação de que os cirurgiões portugueses, ou pelo menos os editores da revista, estão alinhados com as tendências mais atuais da investigação clínica mundial. De fato, o tema dos ensaios clínicos académicos têm suscitado iniciativas internacionais recentes1,2 que configuram uma evolução no paradigma na investigação.

O objetivo deste texto é incentivar os cirurgiões a identificarem questões pertinentes da sua prática clínica, e a formulá-las como hipóteses a testar em estudos clínicos da sua iniciativa. Tem ainda como objetivo a identificação de alguns iniciativas disponíveis em Portugal para o apoio aos ensaios clínicos de iniciativa do investigador como por exemplo a PNEC1 e a PtCRIN - Portuguese Clinical Research Infrastructure Network2. No contexto do presente número da revista, o leitor poderá considerar este capítulo redundante com os conteúdos de outros. É inevitável porque os ensaios clínicos académicos são um dos últimos passos do processo de translação da investigação clínica à pratica assistencial e na área da cirurgia, indissociáveis dos dispositivos médicos, dos ensaios clínicos e obviamente dos doutoramentos.

Entende-se por ensaio clínico académico ou ensaio de iniciativa do investigador (IDCT, investigator driven clinical trial), o ensaio (estudo clínico com intervenção por oposição aos estudos observacionais) desenhado por investigadores e promotores sem interesses comerciais. Referimo-nos, por exemplo, a universidades, associações de doentes, grupos temáticos de investigação e unidades de saúde. Estes ensaios destinam-se a adquirir conhecimento e produzir evidência científica que melhore a prestação de cuidados de saúde. Normalmente não são atrativos sob o ponto de vista da indústria e podem inclusivamente ser contrários a interesses comerciais instalados . Os exemplos mais típicos de ensaios académicos são: estudos em doenças raras, estudos de "proof-of-concept", comparações entre intervenções terapêuticas ou diagnósticas, novas indicações para fármacos e intervenções cirúrgicas. As intervenções cirúrgicas em sentido estrito (independentes da utilização de dispositivos médicos) como não são objeto do interesse das companhias farmacêuticas e do enquadramento legal do "medicamento experimental" típico dos ensaios clínicos, são um domínio, por excelência, dos IDCT. Os IDCT têm por isso um âmbito mais alargado que os promovidos pela indústria e em conjunto com os estudos observacionais, respondem a problemas dos prestadores de cuidados de saúde para os quais não instrumentos alternativos.

A expressão quantitativa dos ensaios académicos em Portugal , comparativamente com os promovidos pela indústria farmacêutica, é insignificante (Figuras 1 e 2).

Em dezembro de 2012 , 20% dos ensaios clínicos registados na Europa (EudraCT) figuravam como "non-commercial"3. Os países nórdicos em 2006 apresentavam uma % superior a 30% que tem vindo a aumentar4. A Irlanda tem cerca de 10% de IDCT num universo de mais de 100 ensaios clínicos novos anuais5. Nos últimos 4 anos, a Comissão de Ética para a Investigação Clínica (CEIC) que emite, juntamente com o INFARMED, as autorizações para a realização de ensaios clínicos, recebeu apenas um pedido de avaliação de um ensaio clínico académico numa área próxima à cirurgia.

CONSTRANGIMENTOS E OPORTUNIDADES Muitos poderão ser os fatores que contribuíram para o distanciamento de Portugal relativamente aos países ocidentais europeus sob o ponto de vista dos indicadores de ensaios clínicos académicos. Não conheço nenhum estudo que se tenha debruçado sobre o assunto, especificamente, mas os IDCT acumulam todos os constrangimentos dos ensaios clínicos comerciais (eg, falta de infraestruturas e capacitação das unidades de saúde, etc.) com o fato da legislação que regula os ensaios clínico estar completamente orientada para os comerciais e ainda com constrangimentos clássicos da investigação clínica académica.

Contudo, o contexto atual português, com maior sensibilização dos diferentes intervenientes para a importância dos ensaios clínicos e para a sustentabilidade do sistema nacional de saúde e da investigação, com iniciativas nacionais de apoio às infraestruturas e recomendações internacionais a nível legislativo, constitui uma oportunidade única de ultrapassar ativamente os constrangimentos.

É frequente atribuir a falta de competitividade nacional na realização de IDCT aos aspetos regulamentares (o argumento da dificuldade de efetuar seguros para os doentes é um exemplo clássico) e às infraestruturas. Contudo, no meu entender, as limitações mais importantes à criação de IDCT e particularmente na área da cirurgia, são mais profundas e incluem: a formação, a motivação e o enquadramento da atividade clínica. Nos parágrafos seguintes tentarei justificar a minha opção e abordarei ainda os constrangimentos regulamentares específicos dos ensaios clínicos. Mencionarei também soluções e iniciativas em curso que são motivos de otimismo no panorama nacional.

Formação A investigação é uma atividade muito competitiva que tal como a prestação de cuidados cirúrgicos requer formação própria e treino permanente. Tem início com o doutoramento e não se avalia pelos cursos, publicações nacionais (ainda que indexadas no pubmed! ) ou abstractssem avaliadores exigentes. A investigação quantifica-se pelo seu impacto e "vive-se" ao lado de mentores disponíveis que desenham projetos, os implementam com financiamento competitivo e que discutem os seus resultados com os pares na comunidade internacional. O número de doutorados nas especialidades cirúrgicas em Portugal tem aumentado, mas a continuidade da atividade científica pós-doutoramento é muito escassa. A ausência de verdadeiros mentores científicos que são cirurgiões e estão disponíveis para a formação de novas gerações é impercetível. Os programas de doutoramento estruturados, os mestrados internacionais na área da investigação clínica, as atividades de programas como o Harvard Medical School Portugal (Clinical Scholars Research Training Program; Junior and Senior Clinical Research / Career Development programa), o syllabuspara a formação em ensaios clínicos da PharmaTRAIN/ECRIN (Clic position paper6) são atividades recentes, que decorrem em Portugal e que de algum modo tentam colmatar a falta de mentores.

Motivação Os ensaios clínicos comerciais são talvez as únicas atividades de investigação que incluem incentivos económicos para os investigadores. Os IDCT não não os têm como, à semelhança do que acontece com a generalidade da investigação científica, requerem uma enorme pró-atividade dos investigadores responsáveis para angariarem financiamento. A satisfação intelectual que a criação científica possa eventualmente despertar individualmente, em oposição à rotina na prestação de cuidados de saúde, não constitui obviamente a motivação necessária para desenvolver IDCT. O reconhecimento pelos pares, a progressão na carreira, o financiamento para a investigação e a discriminação positiva (alocação de tempo e de recursos, etc.) da investigação científica de excelência nas unidades de saúde são incentivos fundamentais para o seu desenvolvimento. A insignificante ponderação da investigação científica nos concursos é um problema clássico que embora consensual se tem perpetuado, talvez por interesses corporativos de quem não possui atividade científica mas, principalmente, por um desconhecimento profundo do que é a investigação e admite que prejudica a atividade assistencial. O número cada vez maior de médicos com atividade científica em posições que poderão influenciar a legislação e a autonomia que as unidades de saúde têm vindo a ganhar no recrutamento dos recursos humanos são fatores de bom prognóstico para a valorização da investigação nas unidades de saúde. Não motivação para a investigação que resista à ausência de financiamento que a viabilize. O financiamento da investigação clínica é talvez o aspeto mais difícil de ultrapassar nas circunstâncias atuais de Portugal. Os investigadores clínicos portugueses terão de alargar os horizontes às oportunidades de financiamento europeu para os IDCT. Por exemplo, em dezembro de 2012 teve lugar a 1ª fase da apresentação de candidaturas de IDCT a financiamento europeu no âmbito da ECRIN. Houve candidaturas portuguesas e a PtCRIN que foi a plataforma para estas candidaturas, continuará a identificar novas oportunidades e a colaborar na preparação das candidaturas. A articulação do Ministério da Saúde com o Ministério da Educação e Ciência é também crucial para colocar a experiência e competência reconhecida à Fundação para a Ciência e Tecnologia, na avaliação e gestão da investigação, ao serviço dos projetos estratégicos de investigação clínica, como por exemplo os IDCT. A investigação de translação tem sido um dos estandartes das políticas de investigação. Sendo os IDCT um dos últimos passos do processo de translação da investigação clínica à pratica assistencial, poderá admitir-se que serão alvo de financiamento estratégico.

Enquadramento, imersão na cultura científica.

O ambiente onde se insere a prática clínica de um cirurgião é determinante para o estímulo à investigação.

A atividade clínica inserida num ambiente universitário, com exigências de produção científica e profundamente conectado com grupos internacionais com interesses na mesma área de investigação é fundamental para fomentar a inovação e a aprendizagem e criar um reconhecimento do mérito científico.

É consensual que o número de IDCT e a qualidade da produção científica é indiscutivelmente superior nas unidades de saúde que estão integradas em Centros Médicos Académicos, ou seja, em centros em que a gestão é comum à Faculdade de Medicina, às Unidades de Saúde e a outras instituições relevantes para a prática da investigação. Por exemplo, a Holanda que é o país da Europa com maior tradição na implementação de centros médicos académicos, possui atualmente 8 e lidera os rankings da produção científica Europeia na área da saúde (1,5 pontos a cima da média europeia). Os centros académicos integram também, de uma forma estratégica, a formação de outros profissionais indispensáveis à natureza multidisciplinar das equipes de investigação.

Pelas caraterísticas das hipóteses em estudo e dos protocolos, os IDCT são maioritariamente multicêntricos e muitas vezes internacionais o que requer a participação ativa em redes de investigação bem como infraestruturas complexas de harmonização de procedimentos. A European Clinical Research Infrastructure Network (ECRIN) é um consórcio de redes nacionais, de iniciativa da UE que tem como objetivo a promoção de IDCT multicêntricos, disponibilizando vários serviços relativos à preparação, financiamento, implementação e avaliação dos ensaios de iniciativa académica. Portugal é membro fundador da ECRIN/ERIC através da rede portuguesa de infraestruturas para investigação clínica (PtCRIN).

Aspetos regulamentares Para além dos constrangimentos comuns a toda a investigação clínica, os IDCT têm ainda dificuldades acrescidas na sua implementação devido aos aspetos regulamentares. A investigação é por natureza uma atividade criativa muito avessa, quase incompatível, com os espartilhos da regulamentação e da burocracia. Em contraste, os ensaios clínicos são atividades exaustivamente regulamentadas a nível europeu. A regulamentação atual que abrange os IDCT, mesmo os da área da cirurgia foi criada a pensar exclusivamente nos medicamentos. Tem como objetivo salvaguardar os princípios éticos da investigação no homem mas, maioritariamente, controlar os aspetos comerciais associados à introdução no sistema nacional de saúde de novas tecnologias de saúde. Como consequência, a legislação que regula os IDCT na área da cirurgia está totalmente desadequada: estes não têm interesses comerciais diretos e normalmente não estão dirigidos a avaliação de medicamentos . Esta desadequação, contudo, não pode constituir uma desculpa para não se desenvolverem IDCT. As autoridades, INFARMED e CEIC, estão atentas a esta desadequação e seguramente autorizarão os IDCT desde que salvaguardados os princípios comuns à investigação em humanos e previstos nas boas práticas de investigação internacionais (GCP - Good Clinical Practice) . Além disso, propostas de alteração à normativa europeia e à legislação nacional que rege os ensaios clínicos, em fase de discussão pública e que seguramente estarão mais adaptadas aos IDCT nomeadamente na área da cirurgia. Não se trata reduzir o grau de exigência na segurança e qualidade metodológica dos IDCT, comparativamente com os comerciais, mas apenas de adequar as exigências processuais à natureza destes. A criação de classes de IDCT por estratificação de risco, é uma das recomendações internacionais que poderá agilizar a sua implementação sem prejuízo da segurança dos sujeitos do estudo. A adequação das exigências processuais para submissão de IDCT ao INFARMED e à CEIC está, desde março de 21012 muito facilitada através da PNEC (Plataforma Nacional de Ensaios Clínicos).3 RECOMENDAÇÕES No presente trabalho não pretendo ser exaustiva porque existem fóruns internacionais que se têm dedicado à reflexão sobre os IDCT. Portugal tem estado representado nestes fóruns que produziram documentos contendo recomendações para incentivar os IDCT a nível mundial e que estão acessíveis à comunidade. Nas Figuras 3 e 4 transcrevem-se as principais recomendações, respetivamente da European Science Foundation (2009)1 e do Global Science fórum da OCDE através do Working Group to Facilitate International Co-operation in Non-Commercial Clinical Trials(2011)2 .

CONCLUSÃO Os ensaios clínicos académicos em cirurgia são um contributo importante, não para o avanço do conhecimento mas também para a sustentabilidade do sistema nacional de saúde, porque podem responder a perguntas relacionadas com o custo- efetividade de tecnologias de saúde. Em Portugal praticamente não existem. O contexto atual, com maior sensibilização dos diferentes intervenientes no processo, com iniciativas nacionais de apoio às infraestruturas, eg. PtCRIN, e recomendações internacionais a nível legislativo, constitui uma oportunidade para despertar na nova geração de cirurgiões um maior interesse pelo desenvolvimento de ensaios clínicos da sua iniciativa.


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