Qualida
Introdução
Atualmente vivenciamos um processo acentuado do envelhecimento populacional, em
que a diminuição da taxa de mortalidade, o aumento da esperança média de vida e
a diminuição da taxa de natalidade, são apontados como os principais fatores
que explicam o grande desequilíbrio populacional, traduzido na evolução
demográfica verificada ao longo dos últimos tempos, nomeadamente na Europa
(Rosa & Chitas, 2010).
Para além de ser um fenómeno demográfico, o envelhecimento é também um fenómeno
individual, uma experiência pessoal e profundamente existencial. Neste processo
diferentes dimensões, biológica, psicológica e sociocultural interagem e
influenciam-se entre si (Berger & Mailloux-Poirier, 1994). Assim sendo,
nesta perspetiva de multidimensionalidade do envelhecimento, sublinha-se a
necessidade de se ter em consideração modos individuais, idiossincráticos, de
ser, de estar e envelhecer num objetivo de alcançar um envelhecimento bem-
sucedido e com qualidade.
Definir Qualidade de Vida de uma forma global não é fácil. É um conceito amplo.
Incorpora de uma forma complexa a saúde física de uma pessoa, o seu estado
psicológico, o seu nível de dependência, as suas relações sociais, as suas
crenças e a sua relação com as características proeminentes no ambiente
(Farenzena, Argimon, Mourugchi, & Portuguez, 2007). A perceção de Qualidade
de Vida é sujeita a múltiplas influências que diferem qualitativamente e
quantitativamente de indivíduo para indivíduo, e que até mesmo no próprio
indivíduo pode variar ao longo do tempo (Joyce, 1990, como citado em Cavagli,
Pires, & Arriga, 2001). Em 1998, o grupo de estudo da Qualidade de Vida da
OMS (Organização Mundial de Saúde) define a Qualidade de Vida como “a perceção
que o indivíduo tem da sua posição na vida dentro do contexto da cultura e do
sistema de valores onde vive, e em relação aos seus objetivos, expetativas,
padrões e preocupações” (como citado em Canavarro, Simões, Pereira, &
Pintasilgo, 2005, p. 2).
Importa salientar que, apesar da esperança média de vida se constituir como um
aspeto positivo, o facto é que nem sempre a longevidade se faz acompanhar de
uma vida salutar autónoma e com qualidade (Carvalho & Mota, 2012).
Associado ao envelhecimento da população está também o conjunto de dificuldades
da pessoa que envelhece, onde sobressaem a deterioração progressiva das
capacidades, principalmente as funcionais, que levam frequentemente ao recurso
institucional uma vez que as famílias tendem a ter menos tempo e
disponibilidade para cuidar dos mais velhos, devido às alterações verificadas
quer a nível organizacional, quer em termos de papéis desempenhados.
Embora a institucionalização seja a resposta social mais procurada, é facto que
a mesma se constitui como um processo complexo e muitas vezes doloroso, tanto
para a família como para a pessoa idosa, até porque envolve o corte com os
laços até então construídos e o confronto com uma nova etapa de vida, exigindo
à pessoa idosa um constante ajustamento, que poderá de algum modo interferir
com a sua perceção de Qualidade de Vida.
Neste sentido, a Espiritualidade pode, eventualmente, ser vista como um
mecanismo de adaptação, ajudando a pessoa idosa a gerir estas situações de
certo modo stressantes, através da forma como ela utiliza a sua fé, as suas
crenças, ou a sua relação com o transcendente ou com os outros, (Dalby, 2006;
Pinto & Pais-Ribeiro, 2007), contribuindo para a redução da sensação de
perda, bem como, para o aumento da esperança e da sensação de controlo da
pessoa idosa, aumentando a sua perceção de bem-estar e a sua Qualidade de Vida
(Crowther, Parker, Achenbaum, Larimore, & Koening, 2002).
Partindo destes pressupostos, traçou-se como objetivo geral para este estudo:
analisar a relação entre os aspetos sociodemográficos e a situação de
institucionalização, e a Espiritualidade com a Qualidade de Vida em idosos
institucionalizados.
Metodologia
Trata-se de um estudo transversal e descritivo-correlacional, que conta com uma
amostra não probabilística de 47 pessoas idosas residentes em dois lares do
concelho de Viana do Castelo, que se encontravam presentes nas instituições em
determinado momento e que obedeciam aos seguintes critérios de inclusão: idade
igual ou superior a 65 anos; sem patologia mental grave e; aceitar participar
no estudo.
Foi aplicado um protocolo de investigação constituído por: 1) questionário de
caraterização sociodemográfica e de variáveis relacionadas com a situação de
institucionalização, estado de saúde e prática religiosa; 2) Escala de
Avaliação da Qualidade de Vida ' WHOQOL-Bref (WHOQOL-Group, 1995) na versão
Portuguesa de Serra et al. (2006) que avalia a Qualidade de Vida de modo geral
e os domínios: físico; psicológico; social; e meio ambiente; e 3) Escala de
Avaliação da Espiritualidade de Pinto e Pais-Ribeiro (2007), sendo esta
constituída por duas subescalas: crenças e esperança, e de um modo geral
apresenta uma perspetiva positiva da vida, envolvendo sentimentos de esperança,
otimismo e satisfação/valorização da vida.
Cada protocolo foi administrado num único momento de avaliação por dois
estagiários das instituições devidamente instruídos e treinados para a recolha
dos dados, através da entrevista que demorou cerca de 30 minutos. Foram
salvaguardados os princípios éticos e os direitos fundamentais do anonimato, do
sigilo e da confidencialidade. Recorreu-se ao consentimento livre e informado
por parte dos residentes que foi obtido após ser fornecida toda a informação
relativamente aos investigadores, à natureza da investigação e objetivos da
mesma.
Resultados
A amostra constitui-se por 47 idosos com idades compreendidas entre 72 e 96
anos, sendo que 80,9% (n=38) são do sexo feminino. A grande maioria encontra-se
na faixa etária acima dos 80 anos (n=34), enquanto os restantes 27,7% (n= 13)
têm idades compreendidas entre os 65 e 79 anos. Apresentam uma média (M) de
idades de 83,23 anos, com um desvio padrão (DP) de 6,55 anos. São
maioritariamente viúvas (53,2%), com frequência de escolaridade básica (53,2%),
reformadas, mas que em tempos desenvolviam atividades domésticas ou então
estavam desempregadas (39,1%), que corresponde ao setor não classificado. A
esmagadora maioria dos idosos é crente (95,7%) e 88,89% dos crentes são
seguidores da religião católica.
Quanto à situação de institucionalização, verifica-se que em média os idosos
encontram-se institucionalizados há 5,49 anos e a maioria referiu que o seu
ingresso no lar se deveu a uma opção pessoal (46,8%), seguido de 17,0% dos
idosos que referiu perda de autonomia e 14,9% com problemas de saúde, e com
valores menores morte do conjugue, isolamento, problemas familiares ou falta de
rede social. Para, além disto, também foi referido que realizam várias saídas
do lar, entre elas algumas para se dedicarem à prática religiosa.
No que se refere ao estudo da Qualidade de Vida, é possível constatar que, de
um modo geral estes idosos percecionam uma Qualidade de Vida razoável. No
entanto, o domínio ambiental apresenta os valores mais baixos, o que poderá
estar relacionado com a dificuldade de adaptação ao ambiente no lar (Tabela_1).
A Espiritualidade dos idosos participantes é bastante significativa, uma vez
que apresentam um valor médio de 3,18. No entanto, são indivíduos com mais
crenças do que esperança, ou seja, as crenças religiosas/espirituais, a relação
com a fé e com o transcendente são mais valorizadas por este grupo de idosos
(Tabela_2).
Tanto a Qualidade de Vida como a Espiritualidade podem estar relacionadas com
as caraterísticas sociodemográficas do indivíduo, bem como, com aspetos
relacionados com a situação de institucionalização, estado de saúde e prática
religiosa. Assim, a partir da análise bivariada, os resultados indicam que as
variáveis sociodemográficas e a prática religiosa parecem não ser determinantes
na Qualidade de Vida dos indivíduos. O mesmo não acontece em relação ao estado
de saúde, uma vez que os resultados mostram melhor Qualidade de Vida
percecionada pelos idosos saudáveis em relação aos doentes, em relação ao
domínio global, ao domínio físico, domínio psicológico e domínio social. Por
sua vez, a Espiritualidade parece ser diferenciada tanto pelo género e
escolaridade, assim como pela prática religiosa. As mulheres apresentam valores
médios de espiritualidade global e crenças superiores comparativamente aos
homens. Também os indivíduos sem escolaridade são os que têm mais crenças
quando comparados com os outros. O mesmo não acontece em relação à prática
religiosa, sendo os indivíduos com mais frequência semanal de práticas, aqueles
que têm mais crenças (Tabela_3).
Embora seja moderada, a partir do cálculo do coeficiente de correlação de
Spearman, foi possível verificar uma correlação positiva e estatísticamente
significativa entre o domínio social da Qualidade de Vida e a esperança, o que
indica que quanto maior esperança melhor é a perceção de Qualidade de Vida no
domínio social (Tabela_4).
Discussão
Quanto à Qualidade de Vida, os domínios físico, psicológico, ambiental e das
relações sociais são índices importantes para a perceção de Qualidade de Vida
da pessoa idosa. Todos eles apresentam valores aproximados, sugerindo os
resultados, de um modo geral, que estes idosos percecionam uma Qualidade de
Vida razoável, sendo o domínio psicológico aquele que apresenta o valor mais
elevado e o domínio ambiental o valor mais baixo. Alguns estudos efetuados
neste âmbito (Netuveli & David, 2008; Irigary & Trentini, 2009; Lima,
Lima, & Ribeiro, 2010; Cimirro, Rigon, Vieira, Pereira, & Creutzberg,
2011) também fazem referência à importância destes domínios para a Qualidade de
Vida dos mais velhos. No presente estudo, o domínio ambiental obteve a
pontuação mais baixa da Qualidade de Vida. Este domínio engloba questões de
segurança física, ambiente no lar, recursos económicos, cuidados de saúde e
sociais, oportunidades de adquirir novas informações e competências,
participação e/ou oportunidades de recreio e lazer, ambiente físico e
transporte.
O facto de o domínio ambiental apresentar o valor mais baixo pode estar
relacionado com o facto de a instituição assumir, em muitos casos o controlo de
diversos aspetos da vida da pessoa idosa, entre eles, os cuidados de que
necessita de uma forma competente, humana e atempada, e o direito à liberdade
religiosa e espiritual (Ferreira, 2009).
Com os resultados obtidos neste estudo foi possível conhecer a importância da
dimensão espiritual para estes idosos, com a subescala crenças a apresentar um
valor médio total (3,51) um pouco superior à da subescala esperança (2,96), o
que indica que estes idosos têm mais crença que esperança, sendo então as
crenças religiosas/espirituais, a relação com a fé e o transcendente mais
valorizadas por este grupo de idosos. Este facto vai ao encontro dos
pressupostos que estiveram na base da construção do instrumento de avaliação da
espiritualidade utilizado neste estudo, referindo Pinto e Pais-Ribeiro (2007)
que uma grande parte das pessoas atribui o conceito de Espiritualidade à fé
religiosa.
A importância da dimensão espiritual/religiosa pode ter na sua génese razões de
ordem cultural. Numa sociedade com raízes judaico-cristã é notória a marcada
prática religiosa (Pinto & Pais-Ribeiro, 2007). No entanto, este dado pode
indicar que as crenças religiosas/espirituais se assumem como um mecanismo de
adaptação a circunstâncias adversas da vida. Acreditar num ser superior, que
escapa à perceção dos sentidos, numa entidade protetora auxiliadora de momentos
que podem gerar algum tipo de stress, pode constituir-se como uma experiência
adaptativa (Silva, 2005). Também para Pinto e Pais-Ribeiro (2007), a
espiritualidade apresenta-se como uma estratégia de coping, a forma como as
pessoas utilizam a sua fé e as suas crenças pode ajudá-las a superar diversas
situações, entre elas as menos positivas. Estas situações podem emergir de
alterações que vão surgindo no decorrer do processo de envelhecimento, como os
sentimentos proporcionados pela mudança para uma nova situação de vida ou ainda
perante um estado de doença, entre outros.
Perante os resultados encontrados torna-se evidente a importância da dimensão
espiritual no ser humano. Embora seja moderada, é verificada uma correlação
positiva e estatisticamente significativa entre o domínio social da Qualidade
de Vida e a subescala esperança, o que indica que quanto maior a esperança
melhor é a perceção de Qualidade de Vida no domínio social. A capacidade de
esperança e otimismo perante a vida parece relacionar-se com a perceção de
Qualidade de Vida, até porque a Espiritualidade se apresenta como uma dimensão
capaz de mobilizar energias e iniciativas extremamente positivas, com potencial
cientificamente reconhecido para melhorar a Qualidade de Vida dos indivíduos
(Saad, Masiero, & Batistela, 2001).
Conclusão
Parece fundamental considerar que em idades avançadas a inquietude desencadeada
pelo confronto com a possibilidade de finitude, faz com que haja um maior
desenvolvimento da Espiritualidade, que por sua vez tende a envolver
sentimentos de gratidão pela vida, bem como esperança que facilita o confronto
com os desafios impostos pelo processo de envelhecimento. Os idosos estudados
apresentam de um modo geral uma Qualidade de Vida razoável, não se demostrando
relações com aspetos sociodemográficos, nomeadamente o género, grupo etário,
escolaridade e também a prática religiosa. O mesmo não acontece em relação aos
aspetos relacionados com o estado de saúde, verificando-se que os idosos
saudáveis apresentam valores médios de Qualidade de Vida superiores. Pelo
contrário, os idosos doentes parecem apresentar valores médios de
Espiritualidade e crenças superiores. A esperança demostrou ser uma variável
importante pela sua ação moderadora, no domínio social da Qualidade de Vida do
idoso residente em lar, observando-se uma correlação positiva e
estatísticamente significativa entre a dimensão social da Qualidade de Vida e a
dimensão horizontal (esperança) da Espiritualidade.
Assim sendo, torna-se pertinente considerar a dimensão espiritual como um
aspeto relevante para a Qualidade de Vida dos idosos, uma vez que as pessoas
que perspetivam uma melhor Qualidade de Vida são aquelas que também têm mais
esperança no futuro e o encaram com mais otimismo.
Implicações para a Prática Clínica
É fundamental que se contemple na prestação de cuidados aos mais velhos que se
encontram a residir em lar, a dimensão espiritual como parte integrante do
processo desenvolvimental, tão importante como as dimensões biológica,
psicológica e social. A Espiritualidade poderá ajudar a pessoa idosa a gerir o
seu processo de envelhecimento, muitas vezes acompanhado de situações
desencadeadoras de stress, reduzindo a sensação de controlo e esperança que
muitas vezes uma situação de institucionalização pode causar, contribuindo de
forma positiva para o percurso de um envelhecimento bem-sucedido.