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EuPTHUAp0872-34192015000100006

EuPTHUAp0872-34192015000100006

National varietyEu
Year2015
SourceScielo

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Das tensões entre desmistificar e reconhecer os discursos ao repensar o social: manifesto por uma sociologia ecléctica

Introdução: reflexões induzidas por um duplo estatuto do investigador Este artigo propõe uma reflexão sobre a teoria e a prática sociológicas motivada pelo duplo estatuto do autor como sociólogo e músico, discutindo diversas correntes da sociologia, desde as suas referências fundacionais até perspectivas mais recentes. Fazendo parte do seu próprio objecto de pesquisa, o autor tem estudado etnograficamente os modos como um instrumento específico (viola d'arco) é visto e usado pelos músicos. Devo salientar que este não é um texto empiricamente orientado ou destinado a reportar resultados de pesquisa.

Antes, tem um carácter epistemológico, teórico e metodológico de âmbito global.

Assim, apenas me referirei a exemplos empíricos específicos quando estritamente necessário.

Inicialmente enquadrado pelo construtivismo social e pela intenção de seguir os discursos dos actores sociais (aqui, músicos), cedo se tornou evidente que a clássica desmistificação sociológica fazia também parte da minha abordagem. As tensões e dilemas entre reconhecer versusdesmistificar (e potencialmente desqualificar) discursos dos actores sociais observados suscitaram uma reflexão constante e o desenvolvimento de estratégias adequadas. As práticas e as materialidades implicadas no acto de tocar um instrumento musical (tecnologias e propriedades sonoras dos instrumentos e da música, usos do corpo e modos de fazer corporalizados, etc.) fizeram-me questionar a suficiência de seguir e analisar somente representações e discursos. Progressivamente, apercebi-me da necessidade de considerar partes da realidade tradicionalmente excluídas da abordagem sociológica, porque consideradas extra-sociais.

Globalmente, este artigo focaliza-se em dois aspectos: (i) as tensões e dilemas entre seguir e desmistificar os discursos1 e (ii) a necessidade de discutir a relação da sociologia com o extra-social e consequentemente de repensar o próprio social, a regra durkheimiana de que a sociologia se deve restringir a explicar o social pelo social e, no fundo, o âmbito da própria sociologia. As reflexões finais proporão uma sociologia ecléctica e híbrida, sendo ainda relevantes como notas pragmáticas de uma sociologia da sociologia e da prática científica e académica.

1. Seguir/reconhecer versusdesmistificar/desqualificar os discursos Na sua concepção clássica, de certo modo classificável como moderna, a sociologia é concebida como revelação e desmistificação, como um olhar que permite ver para além das aparências, pretendendo clarificar e compreender mecanismos e processos considerados invisíveis aos olhos dos próprios actores sociais (ou por eles escondidos) e, por isso, de certa forma objectivos. A conhecida expressão de Berger ver através' ou por detrás' das fachadas das estruturas sociais, reflectindo uma visão da sociologia como uma forma de consciência (Berger, 1963: 10-11)2, é altamente representativa deste modo de entender a prática sociológica.

Sob a égide do positivismo, Durkheim, visto unanimemente como um dos fundadores da sociologia, definiu, n'As Regras do Método Sociológico, os factos sociais como coisas independentes das suas manifestações individuais (e daí colectivas), exteriores aos indivíduos e exercendo uma coerção sobre eles (Durkheim, 1998 (1894)) caps. 1 e 2: 29-68). Posteriormente, Bachelard (1986 (1938)) serviria de referência para a emergência de uma sociologia racionalista, particularmente a noção de que uma ruptura epistemológica com o senso comum é condição necessária para a produção de conhecimento científico válido3. A ideia de que tal nos obriga a cultivar distância em relação ao objecto de estudo e àqueles que estudamos fundamenta a noção de objectivação, cara a Bourdieu4.

A objectivação opõe-se ao senso comum, sendo os discursos dos actores sociais alvo de desconfiança para Bourdieu o que as pessoas dizem é visto como mera doxa5, uma falsa consciência ou conhecimento que, resultando dos seus interesses, crença no jogo (illusio)6 ou de razões práticas (Bourdieu, 1994), não é, pois, fiável. Os discursos são vistos como um reflexo da presumida incapacidade reflexiva7 dos actores sociais para compreenderem as implicações objectivas do mundo social que os rodeia e que condiciona ou determina as suas acções8.

Facilmente se detecta aqui a tendência para desqualificar os discursos dos actores sociais. Depois de comentar o conceito de ideal-tipo de Weber (a quem, no entanto, devemos a tradição da sociologia compreensiva contrastante com o positivismo seguido por Durkheim9), Aron despoja as pessoas da capacidade de percepcionar a verdadeira significância da sua condição ao escrever que a sociologia é mais capaz do que os próprios actores de aceder ao verdadeiro significado das suas vivências10, o que para muitos é uma afirmação altamente problemática e controversa.

Contrastando com estas tradições, uma tendência oposta na sociologia, representada por várias correntes que apontam para o reconhecimento dos discursos dos actores sociais desde o método interpretativo para compreender a acção não- racional de Weber (1978), passando pela fenomenologia social de Schutz (1967 (1932)) (com a sua insistência na subjetividade e nas realidades múltiplas Schutz, 1945), pelo interaccionismo social de Goffman e de Becker11, ou pela etnometodologia de Garfinkel. Esta última procura compreender como o sentido é activamente produzido e elaborado discursivamente pelos actores sociais em situações específicas, estudando pois os etno- métodos que as pessoas comuns usam no quotidiano para esse efeito12 e dando particular importância à linguagem13. Longe de desqualificarem os discursos dos actores, estas correntes vêem-nos antes como recursos heurísticos válidos e essenciais para se compreender a realidade social.

O pós-modernismo de Lyotard, Baudrillard, Jameson, Deleuze e Guattari, Foucault e Derrida, entre outros, procedeu a uma crítica e desconstrução do pensamento fundacional e totalizante, das grandes narrativas e das pretensões objectivistas e imperialistas da ciência moderna14. Refira-se a perspectiva pós-moderna e pós-colonialista, interessada em recuperar e dar voz a epistemologias indígenas e minoritárias (Denzin, Lincoln e Smith, 2008), e a proposta de uma segunda ruptura epistemológica (após uma primeira ruptura bachelardiana) e regresso ao senso comum (Santos, 1989)15, que enfatiza o potencial emancipatório do conhecimento, deixando este último de ser visto como tendo uma função de regulação associada à ambição de neutralidade e descomprometimento (Habermas, 1971 (1968); Santos, 1995).

Perante estes dois modos contrastantes de conceber a prática sociológica, é fundamental questionarmo-nos sobre o estatuto epistemológico que, como cientistas sociais, atribuímos aos discursos, às explicações e aos relatos (accounts) dos actores sociais. Deveremos restringir-nos a considerá-los mera doxa, como propõe Bourdieu? o que inevitavelmente os desqualifica por lhes negar a capacidade de serem uma fonte de conhecimento válido. Ou poderão eles merecer um estatuto epistemológico superior? A arte é um caso particularmente interessante devido às fricções entre os discursos artístico e científico (Monteiro, 1996). Tradicionalmente, a sociologia abordou a arte desqualificando dimensões importantes das práticas artísticas e da própria experiência estética, ao conceber o artístico como uma espécie de marioneta determinada por forças sociais como as relações de poder, o capital, ou o interesse (concebendo o social e o artístico, respectivamente, como variáveis independente e dependente) (Hennion, 1993).

Como alternativa à sociologização da música como máscara em jogos de identidade social (Hennion, 1993: 21), Hennion propõe uma sociologia da mediação que re-habite a música com os seus discursos e artefactos (partituras, instrumentos, gravações,). É essencial evitar quer uma reificação quer uma desqualificação sistemática dos discursos dos públicos amadores de música, por exemplo, em resultado de uma ethosunívoca e rigidamente definida a priorique obrigaria a escolher entre estetização e sociologização (Hennion, 1993: 21). Antes, é preciso capturar empírica e analiticamente todos os mediadores que, em acção e em situações específicas, produzem arte16.

Temos de seguir os próprios actores era, de acordo com Latour, um autêntico sloganda ANT (actor-network-theory) (Latour, 2005: 12) no entanto, que seguir não os discursos mas também as práticas dos actores e a relação destes com as materialidades do mundo natural, dos artefactos e dos seus próprios corpos; e fazê-lo poderá justificar tanto o reconhecimento como, eventualmente, uma desqualificação de discursos em função de um certo critério de objectividade.

2. O que permite ou induz o sociólogo a legitimar ou desqualificar os discursos? Se, reconhecendo aquilo que os discursos dos actores sociais que estudamos nos podem ensinar, pretendemos ir para além da sua desqualificação sistemática (respeitando assim as epistemologias desses actores e grupos sociais), será que a única alternativa é aceitar, legitimar, reproduzir acriticamente ou até reificar esses mesmos discursos como acontece em algum jornalismo (algo a que a rejeição absoluta de quaisquer possibilidades de objectivação pode levar)? Uma resposta torna necessário ir-se para além dos discursos, concebidos como fenómenos representacionais, cognitivos e linguísticos. Questiono aqui tanto o construtivismo social extremo, como a ideia a que um pós-modernismo radical pode levar de que tudo o que é apenas diferentes discursos/ficções igualmente válidos a todos os níveis17. Pelo contrário, algo de certo modo objectivo na realidade social e no mundo. Todos os discursos são obviamente válidos em si mesmos como interpretações e vivências específicas da realidade (configurando universos de sentido múltiplos e sendo uma forma de acção social), mas nem sempre equivalentes se avaliados em função de um certo critério da objectividade (não o único, mas um dos possíveis).

O que justifica ou poderá induzir a legitimar certos discursos e a desmistificar (e potencialmente desqualificar) outros em função de uma definição pragmática de objectividade? Uma das respostas possíveis: distinguindo entre discursos que, de acordo com a observação empírica e a análise, reflectem directamente certos aspectos relativamente objectivos da realidade, ou como as coisas são realmente ou aconteceram de facto (ex. estar num certo sítio num certo momento, tocar um instrumento usando certos modos de fazer) e aqueles que dão pistas ilusórias quando pretendemos aceder a tais dimensões. Esta questão será aprofundada em seguida.

3. Da triangulação à inclusão do extra-social e ao repensar do social A vivência etnográfica e a investigação da performancemusical gerou em mim consciência da necessidade de especificar empiricamente dimensões da realidade tradicionalmente excluídas da sociologia porque vistas como extra-sociais. A impossibilidade de as subestimar ou negligenciar, dado serem inerentes e constitutivas das práticas e fenómenos tidos como musicais, estimula-nos a repensar o social”/“extra-social e a reflectir sobre o que é a própria sociologia.

3.1. A especificação empírica das práticas e a triangulação Voltando à questão de o que permite legitimar ou desmistificar discursos em função do critério da objectividade saliento, em primeiro lugar, a importância de recorrermos a técnicas de observação que permitam capturar empiricamente as vivências e as práticas no sentido mais mundano do termo e as materialidades em acção em tempo real (DeNora, 2000 e 2011)18, bem como à triangulação rigorosa durante a observação e análise de dados empíricos possibilitada pela combinação entre diferentes técnicas de investigação19. Estes procedimentos poderão levar o investigador a atribuir diferentes estatutos epistemológicos a discursos concorrentes.

Apesar de os diferentes discursos poderem não ser equivalentes em função do critério da objectividade, tal não significa que os que parecem menos verdadeiros ou fiáveis em relação ao que nos podem ensinar sobre eventos de certo modo objectivos devam ser simplesmente desclassificados e descartados como doxaou restringidos no seu interesse a mero tópico de investigação em si mesmo (o discurso como mero discurso) embora não reflictam directamente as coisas tal como realmente são ou se passa(ra)m”20, por assim dizer, podem ser indirectamente reveladores a esse nível depois de serem analisados em contraste com outros dados e sujeitos a triangulação. Na vida social, os sujeitos produzem discursos contrastantes que podem competir entre si, por vezes desconstruindo ou até desqualificando, intencional e explicitamente, discursos de outros actores em virtude de lutas pela imposição de versões legítimas da realidade ou da busca de reconhecimento. Apesar do ruído que geram, estes processos podem ser um recurso que ajuda o sociólogo a proceder à triangulação e à objectivação.

Consideremos discursos alternativos sobre o que um instrumento musical, neste caso a viola d'arco, consegue ou não consegue fazer especificamente passagens em staccato21, comummente vistas como difíceis de executar e um sinal de domínio virtuosístico, pelos instrumentistas, da técnica dos instrumentos de arco modernos. Ao longo da minha vivência etnográfica recolhi evidência empírica de que certos músicos afirmam que, na situação de concerto, é virtualmente impossível executar tais passagens com sucesso neste Instrumento22, em virtude das suas supostas propriedades físico- acústicas (vistas como limitações resposta sonora lenta, peso do arco). No entanto, outro discurso sugere (e as respectivas práticas demonstram) que tal técnica pode ser executada com sucesso.

Eis uma possível controvérsia entre dois discursos alternativos e concorrentes a propósito das capacidades atribuídas a um instrumento. O que fazer agora? A necessidade de ir além do nível discursivo é óbvia uma percepção facilitada quando se verifica o critério etnometodológico da adequação única ( unique adequacy) (Garfinkel, 2002) (quando o investigador detém o conhecimento especializado que lhe permite aceder mais profundamente a certas dimensões do seu objecto de estudo23).

A observação em tempo real dos usos do instrumento em situações específicas do que diferentes instrumentistas fazem o instrumento fazer invalida o primeiro dos discursos referidos acima e valida o segundo em função de um certo critério de objectividade. As práticas fundamentam os discursos: se um número considerável de instrumentistas é bem-sucedido a executar passagens staccatona viola d'arco, tal permite desqualificar o discurso que aponta esta presumida limitação ao instrumento como uma universalização e naturalização indevidas, resultantes de uma atribuição causal enviesada para aquilo que é visto como sendo (ou dependendo ) (d)as propriedades materiais e sonoras do instrumento em si.

Em função do critério de objectividade, um destes discursos pode ser visto como certo e o outro como errado mas tal é válido apenas em certa medida, saliento! Os discursos são qualitativamente irredutíveis ao seu grau de correspondência a tal critério cada modo de ver e experienciar a vida social e o mundo é único, devendo ser reconhecido e respeitado como tal. Nada de errado em descrever uma determinada experiência e visão de um instrumento musical decorrentes de se ter aprendido a tocá-lo de uma certa maneira em vez de outra seria simplista reduzir o interesse sociológico de tal discurso à sua (des)classificação como mera doxa,“crença ou conhecimento errado.

Discursos aparentemente enganadores a certos níveis não devem ser subestimados também porque, para além de reflectirem e construírem experiências da realidade múltiplas e qualitativamente irredutíveis e de orientarem a própria acção social (sendo, pois, parte da realidade), podem ao objectificarem-se construir a realidade, até em termos materiais24. Representações, suposições e discursos sobre as possibilidades e as limitações de um instrumento musical ou outro artefacto poderão ainda funcionar como profecias auto-concretizadas (self-fulfilling prophecies) (Merton, 1968: 473-493), ao orientarem as acções dos instrumentistas e os modos como usam e exploram os seus instrumentos de uma maneira que acaba por produzir de facto as suposições iniciais25.Tais representações e mecanismos cognitivos, combinados com disposições e habituspreviamente internalizados (matrizes geradoras de julgamentos e de acções, de modos de fazer e de sentir corporalizados) (Bourdieu, 2002 e 1990) são, pois, activos, ao se materializarem nos modos de tocar um instrumento, moldando como este e a música soam em performance.

A atribuição de diferentes estatutos a discursos concorrentes não é um processo simples mas antes cheio de tensões e dilemas, entre os quais a ponderação dos riscos de imposição da autoridade (e subjectividade?) do investigador sobre as epistemologias dos sujeitos observados, potencialmente indevida se fundada em suposições ilegítimas sobre presumíveis factos tomados como objectivos versusa reificação, a reprodução e a legitimação acríticas de tais discursos.

As duas ethoide seguir/legitimar versusobjectivar/desmistificar os discursos (classificáveis como pós-moderna e moderna, respectivamente) devem, pois, coexistir numa tensão saudável e ser activadas conforme os dados empíricos e a análise tornem relevante. Tais tensões e dilemas são algo de positivo e as necessárias decisões exigem uma enorme responsabilidade da parte do sociólogo a ausência de tais questionamentos durante a prática sociológica podem indiciar inconsciência ou até despreocupação, o que é infinitamente pior.

3.2. A necessidade de abordar o extra-social e repensar o social Acima tinha salientado a importância de combinar diferentes técnicas de pesquisa de modo a possibilitar a triangulação e a consequente atribuição de diferentes estatutos epistemológicos aos discursos. Esta discussão leva-nos agora à segunda parte de uma possível resposta sobre o que poderá permitir ou induzir o sociólogo a legitimar ou, pelo contrário, desmistificar (e eventualmente desqualificar) discursos: a consideração de partes da realidade convencionalmente vistas como extra-sociais uma questão com a qual a sociologia deve lidar.

Em articulação com a observação empírica das práticas (relações entre humanos e entre estes e artefactos), representações e discursos não são necessariamente válidos como meros tópicos de investigação, mas também como recursos explicativos26, heurísticos para acedermos a dimensões relativamente objectivas do mundo e da acção.

Isso acontece porque os discursos implicam e remetem-nos para práticas e materialidades com as quais estão dialecticamente imbricados. Tal torna-se óbvio aquando do estudo de actividades tais como a performance musical, em que a materialidade dos corpos, artefactos e sons, e a dimensão corporalizada e sensorial das práticas referidas pelos discursos são por demais evidentes.

Essa tomada de consciência é facilitada quando existe um duplo estatuto do investigador e uma trajectória etnográfica de participação-observação.

, pois, que estudar práticas quotidianas concretas27, inclusivamente na sua dimensão não intelectualizada e mais tácita. A internalização e incorporação de disposições (Bourdieu, 2003 e 1990), o corpo e o chamado embodiment(Turner, 2008; Johnson, 2006; Shilling, 1993, 2005, 2007)28, as noções de corporeal realism e de pedagogias do corpo (Shilling, 2005 e 2007), ou a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (1962), adquirem relevância.

que ultrapassar o viés cognitivista da academia (Eyerman e Jamieson, 1998; DeNora, 2005: 154-156), abordando-se sociologicamente os chamados crafts, modos de fazer e conhecimentos práticos situados para das representações e discursos29. Os estudos sobre o conhecimento corporalizado como pianista de jazzde Sudnow (1978) e a etnografia ou sociologia carnal de Wacquant como boxer(2004) devem ser mencionados. Urge desenvolver uma etnografia viva, que transcenda uma experiência exclusivamente cognitivista, mas que se alargue à experiência sensorial da corporalidade, às acções práticas e performativas sobre o mundo e às materialidades30.

Salientei atrás como o estudo da performance musical exige técnicas de investigação que permitam aceder a níveis da realidade situadas além do nível discursivo. Subjacente a essa questão, como procurarei clarificar, está a própria conceptualização do social e a delimitação da fronteira entre o que na linha das regras do método sociológico de Durkheim é considerado social e o extra-social. Apesar de a tradição sociológica dominante ter excluído este último, a sociologia pode e deve abordá-lo, questionando tal dualismo.

Para capturarmos empiricamente a materialidade da música e dimensões desta que tendem a escapar da análise sociológica (Boia, 2008, 2010) que considerar, como propõem Witkin e DeNora (1997), a agência dos próprios materiais estéticos que emerge no seio de determinadas ecologias estéticas (DeNora, 2000, 2011 e 2013). assim se torna possível ultrapassar uma abordagem semiótica da arte que a meramente como texto e tornar o strong program da cultural sociology(Alexander e Smith, 2001) ainda mais forte (Acord, 2009: 23431).

Como salientam Hennion, Maisonneuve e Gomart na linha da chamada ANT (actor- network-theory), é necessário ir-se além do construtivismo social, pois este não reconhece a capacidade de acção (agência) dos objectos (Hennion, Maisonneuve e Gomart, 2000: 247).

No âmbito dos science and technology studies, Pickering (1995) enfatiza a necessidade de se ultrapassar um idioma representacional (ou semiótico) e desenvolver um idioma performativo. Propondo que se leve a agência material a sério (Pickering, 1995: 10, 12), a sua perspectiva estimula-nos a procurar capturar analiticamente dimensões da agência material relativamente menos mediadas social e culturalmente32. As materialidades não são completamente flexíveis como gelatina, infinitamente moldáveis e à mercê de variáveis sociais, como meras folhas em branco nas quais o social se pode inscrever sem constrangimentos e com total liberdade através de processos de construção social todo-poderosos33.

Questionando a separação e exclusão mútuas entre as esferas do humano e da natureza e as fronteiras entre as respectivas áreas do conhecimento científico (tal como Latour, 1993), Pickering advoga uma simetria pós-humanista que considere tanto a agência humana como a material (1995), pois, tal como nós modelamos as máquinas, somos também modelados por elas34. Tanto a sua perspectiva como a da actor-network-theory (ANT), afirma, insistem no carácter entrelaçado e na inter-definição recíproca das agências material e humana (Pickering, 1995: 25-26). Torna-se importante especificar a dança da agência entre o humano e o não-humano que se desenrola ao longo do tempo (descritível, do ponto de vista do ser humano, como uma dialéctica de resistência e acomodação) (Pickering, 1995: 25-26). Pickering sugere uma historicidade e devir de parelhas de máquinas-humanos, falando-se não puramente de conjuntos de máquinas ou humanos mas de ser e devir cyborg35 (Pickering, 2003:100- 10136). Pickering uma pista sobre o potencial desta abordagem no âmbito da sociologia da música, ao comentar brevemente o uso da guitarra eléctrica pelos Pink Floyd ou por Hendrix (Pickering, 2003: 108) podemos, portanto, falar de parelhas e híbridos cyborgde instrumentos e instrumentistas (Boia, 2014).

Subjacente está a ambição de se ir para além de uma sociologia humanista na qual os seres humanos são os únicos agentes genuínos na história (Pickering, 2013:25) e que, sob influência do dualismo Cartesiano (englobando o dualismo pessoas- coisas) e da tradição durkheimiana, concebe tudo o que não é humano (máquinas, animais, mundo natural) como previsível, passivo, à espera da imposição da nossa vontade (Pickering, 2013: 25). Pickering rejeita a ideia do excepcionalismo humano que os seres humanos activos e autónomos como se fossem mestres de um universo passivo (Pickering, 2013: 25), propondo antes uma sociologia descentrada (Pickering, 2005), que considere simetricamente diferentes tipos de entidades e agências.

Compreendemos agora como a desqualificação dos discursos (e dos próprios actores sociais) pela sociologia moderna derivava parcialmente do facto de excluir ou subestimar a dimensão material da realidade, que, considerando- a não-social, a via como estando situada fora do âmbito da disciplina37.

Refiro-me especificamente à negligência ou à desqualificação de referências feitas pelas pessoas a objectos ou processos não-sociais.

Essa espécie de cegueira ou rejeição de dimensões da realidade vistas como extra-sociais deriva obviamente da concepção durkheimiana do social.

Durkheim conceptualiza o social como uma coisa (ontologicamente real e autónoma), ou seja, como constituindo uma parte da realidade a par de outras, tais como as que compõem o mundo natural (Durkheim, 1998 (1894))38. Esta noção foi fundamental para a afirmação e institucionalização da sociologia, que a proclamação da existência de uma realidade (social) distinta das outras permitiu justificar a existência de uma disciplina dedicada exclusivamente ao seu estudo (Latour, 2005). Tendo-se tornando dominante, tal concepção obscureceu completamente a visão alternativa de Tarde (contemporâneo de Durkheim), para quem o social era o processo de associação entre elementos heterogéneos (de ambos os mundos natural e material), através do qual a realidade é construída (Tarde, 1999 (1895) e 2000 (1899); cf. Latour, 2005).

Esta última perspectiva foi recentemente apropriada e reabilitada por Latour, sendo um contributo importante para se ultrapassar o dualismo moderno entre Sociedade e Natureza”39 e trazer a materialidade dos objectos e o mundo físico para a análise sociológica. A superação da mútua exclusão entre humanos (des-corporalizados) e coisas (actores não- humanos) se bem que esta tenha sido sempre ilusória pois we have never been modern, como argumenta Latour (1993) é pós-moderna, que implica (tal como o cyborg) a dissolução de fronteiras entre categorias bem definidas e estanques40.

Quais as consequências de tudo isto? A etnografia da performance musical e os contributos dos science studiesaqui discutidos desafiam-nos a repensar as noções, as fronteiras e o dualismo entre social e extra-social, e mesmo a reequacionar o que é, pode, ou deve ser, a própria sociologia. Tudo isto nos leva, enfim, a reflectir sobre a necessidade de a sociologia abordar complexas relações de multi-causalidade entre diferentes tipos de variáveis e agências (incluindo as físicas, biológicas, etc.) e, no limite, a questionar a própria regra fundamental do método sociológico durkheimiana de nos restringirmos a explicar o social exclusivamente pelo social.

Tal pode ser visto como abalando os próprios fundamentos da sociologia, mas não creio que seja o caso. Proponho um alargamento da conceptualização tradicional do social de modo a considerar-se as multi-causalidades entre ingredientes heterogéneos todos necessariamente sociais(como será discutido adiante). É possível e necessário compatibilizar aspectos das noções do social subjacentes às duas perspectivas atrás discutidas, resolvendo-se choques epistemológicos. A sociologia está hoje suficientemente institucionalizada para que nos permitamos proceder a esse alargamento sem recear que isso afecte a credibilidade da disciplina pelo contrário, tal abre as portas a um maravilhoso novo mundo de complexidade, permitindo-lhe aproximar-se e melhor capturar os seus objectos, sem que deixe de ser sociologia.

É essencial, no entanto, salvaguardarmo-nos do tom exageradamente crítico que por vezes parece sugerir que toda a tradição dominante da sociologia não passou de um mero caminho errado e que o social, tal como é definido por Durkheim, é algo que não existe(detectável em Latour, 200341), ou da eventual tendência de se negligenciar as representações e a cognição social (o que pode desembocar numa espécie de Cartesianismo invertido em virtude da reificação do corpo, da materialidade e respectivas performances). Ingredientes correspondentes a um social durkheimiano (representações colectivas, processos cognitivos, convenções, regras, modos de fazer institucionalizados, coerção, etc.), bem como a intencionalidade humana, para além de serem inerentes aos processos de objectificação que (re)constroem o mundo material, são uma parte da realidade que existe de facto e, como tal, tem de ser considerada. Apesar de imateriais, fenómenos convencionalmente vistos como sociais são, tal como os fenómenos da natureza, coisas reais como afirma Durkheim (1998: 23), havendo, pois, que resistir a uma visão predominantemente materialista. Tal seria reduzir a complexidade do real no sentido oposto àquele que é criticado Devemos também precaver-nos do risco de cairmos num realismo ingénuo ou numa visão a-sociológica que cometa o erro de reificar discursos sobre a materialidade, aceitando-os como reflexo puro e objectivo da própria materialidade (Collins e Yearley, 1992). É importante transcender representações e discursos, mas reconhecendo que a forma como experienciamos a agência material como seres humanos é necessariamente mediada e constituída por factores socioculturais. O que os actores sociais referem como sendo pura agência dos materiais é, de facto e em grande medida, um co-produto híbrido da materialidade, cultura e sociedade. Lentes socioculturais, processos cognitivos e linguagem produzem tais mediações da experiência, bem como a sua racionalização e accountability. A linguagem permite fazer coisas com as palavras”42, mas que ter em conta que as suas potenciais consequências necessitam de ser efectivadas em situações de interacção específicas (frequentemente em relação a propriedades materiais de artefactos), como mostra Streeck (1981 e 1996)43.

A socialização e a internalização de disposições são também fundamentais em tais processos de mediação. Repensando a incorporação e a noção de habitus, Nunes mapeia pesquisas recentes que, evidenciando as intersecções (e hibridismo) entre o biológico e o social, apontam em direcção a novos e excitantes modos de abordar tais processos (Nunes, 2007: 171-178). que ter em atenção que a noção de habitus(Bourdieu, 2002 (1972) e 1990 (1980)), ou de conjuntos de disposições plurais não necessariamente coerentes entre si e activadas ou não em/por contextos de acção específicos (Lahire, 1998), permitindo superar o dualismo entre o subjectivo e o objectivo são úteis para compreender as relações complexas entre as agências humana e material. Sendo a internalização um conceito pivotque media entre a dimensão sociocultural e a materialidade, a sua consideração é obrigatória para não se cair num realismo exagerado que poderia essencializar agências, ao vê-las como exclusivamente materiais quando na verdade são híbridas.

Como propõe Barad (2003 e 2007), cuja perspectiva denomina de agential realism promissora para a superação do dualismo entre realismo e construtivismo a distinção entre epistemologia e ontologia deve ser dissolvida ou pelo menos fortemente esbatida44. Modos de ver e sentir o mundo, por um lado, e a materialidade do mundo, por outro, não são dimensões separadas, mas antes se constituem mutuamente, pois, mais do que inter-agirem entre si, intra-agem uma na (ou, por assim dizer, dentro da) outra45.Tal como a ideia de Latour de que a realidade é co-produzida por ingredientes heterogéneos, sendo Natureza e Sociedade meros colectores conceptuais, também o agential realism de Barad nos leva a questionar a distinção entre o que normalmente se denomina de social e de extra-social estes são igualmente colectores, que as ordens de fenómenos a que se reportam estão na realidade dialecticamente imbricadas (Boia, 2010) e emaranhadas (entangled Barad, 2007).

As materialidades, os artefactos e a natureza são inerentemente sociaisnão porque são moldados pela acção humana, mas também porque, nos modos como emergem perceptual e fisicamente para nós seres humanos, são social e culturalmente mediados, sendo constituídos por modos de ver e de agir colectivamente produzidos as agências que daí emergem são, pois, híbridas.

Finalmente, o descentramento da sociologia deve ser apenas relativo mantendo-se o foco sobre a condição humana, como escreve Gurvitch (apudNunes, 1991: 21), sob a pena de passar a não existir qualquer distinção entre, por exemplo, a física e a sociologia.

Postas estas reservas, e como afirma Pais na sua perspicaz reflexão crítica sobre As Regras do Método Sociológicode Durkheim versuso que denomina de métodos desregrados, que reconhecer que os métodos não são apenas uma gazua para arrombar portas escancaradas mas estão também orientados para as descobertas, para os enigmas do desconhecido, para a resolução dos paradoxos (Pais, 1995: 261).

4. A primazia da realidade: manifesto por uma sociologia ecléctica e híbrida Ao longo deste artigo discuti diferentes tradições, abordagens e concepções da sociologia, propondo uma reflexão sobre a epistemologia e a prática sociológicas em função de tensões e dilemas que experienciei no âmbito da minha própria trajectória. As reflexões finais que se seguem, pretendendo ser um manifesto por uma sociologia ecléctica e híbrida, são também notas pragmáticas para uma sociologia da sociologia.

É vital que nos mantenhamos abertos ao uso reflexivo de recursos provenientes de uma multiplicidade de tradições sociológicas, bem como à prática de alternar entre ethoi e posturas moderna e pós-moderna, que tanto seguem como desmistificam discursos, de acordo com o que cada objecto de estudo e processo de investigação exigem a cada momento (dependendo ainda do estatuto e papel do investigador). Deve haver uma permanente selecção activa determinada pelas especificidades empíricas de cada objecto de estudo, em vez de uma aplicação automática e linear de quadros teóricos fechados e definidos rigidamente a priori em virtude de pertenças a "tradições", "escolas" e outras segmentações dos campos científico e académico.

Ortodoxias a este nível (explícitas ou implícitas) traindo a complexidade da realidade poderão derivar mais de razões práticas subjacentes a lutas entre diferentes tradições e escolas em competição (de imperialismos teóricos, manutenção de afiliações institucionais, gestão de estratégias de carreira ou mesmo, até, da permanente necessidade de reconhecimento de académicos estabelecidos) do que da ambição de compreender a realidade tão exaustivamente quanto possível. Tais riscos são reais em qualquer das tradições ou escolas discutidos neste texto ou noutras, podendo verificar-se quer em correntes institucionalizadas quer nas emergentes.

Abordagens presas a uma conceptualização demasiado restrita do social e aos dualismos e fronteiras da modernidade (Sociedade”/”Natureza; social/ extra- social) correm o risco de se restringirem à produção de análises de certo modo redutoras, porque estritamente humanistas e representacionais. Por outro lado, não necessariamente razões para desqualificar tradições sociológicas estabelecidas considerando-as meros caminhos errados, desperdiçando as suas virtualidades e potencial heurístico que tanto nos ensinaram ao longo de um século46. Uma lógica de síntese deve, por vezes, predominar sobre a lógica kuhniana de sucessão entre paradigmas científicos e dualismos subjacentes às lutas entre teses e antíteses que, sendo parte essencial da vitalidade do campo científico e académico, também encerram perigos. Sem esquecermos que o processo de conhecimento é sempre uma construção (racionalistas e pós-modernos estão de acordo neste ponto), é importante aproximarmos o objecto de estudo do objecto real, reduzindo-se o carácter construído da perspectiva sociológica de modo a não deixar escapar o mundo que estudamos.

Devemos escutar permanentemente a realidade, activando os recursos teórico- metodológicos que esta parece pedir a cada momento de modo a ser compreendida o mais profundamente possível. A complexidade da realidade exige um hibridismo ecléctico, forçando-nos a questionar suposições e fronteiras convencionais. E a complexidade particular das práticas musicais e científicas dão à sociologia da música e aos estudos sobre ciência e tecnologia um impacto que transcende claramente estes subcampos disciplinares, alargando-se à sociologia e às ciências sociais como um todo.


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