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EuPTHUAp0872-34192015000300002

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National varietyEu
Year2015
SourceScielo

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Texturas, ou sobre os efeitos sociais das artes

Introdução A constatação da proliferação de projetos artísticos e culturais com intervenção social e comunitária promovidos por instituições com caráter político e público, bem como a necessidade de se compreender uma nova dimensão relacional existente entre a cultura e a arte, levou-nos a interessar-nos pela temática da eventual instrumentalidade da arte e/ou da cultura para atingir fins não eminentemente culturais, nomeadamente pelos efeitos que a participação em projetos artísticos de natureza comunitária teria sobre os sujeitos que neles participassem.

É com base neste pano de fundo que problematizamos a relação a que atualmente se vem assistindo entre cultura, arte e intervenção comunitária junto de públicos que, de alguma forma, apresentam um traço identificativo de alguma vulnerabilidade social.1 Que significado se pode atribuir atualmente ao trabalho de intervenção comunitária levado a cabo através da criação artística? Como se poderá aludir à sustentabilidade artística de projetos promovidos e implementados por públicos, compostos por pessoas reais, não artistas? Que significados atribuem os atores destes projetos artísticos à experiência que vivem, sempre que protagonizam uma peça onde expressam e se expressam como alguém bastante distinto do seu ser quotidiano? E como interpretar sociologicamente este modelo de intervenção social pública, que pretende operar por via da cultura, que faz apelo à ativação quer de campos relativamente distantes dos usuais campos de ação, quer de públicos, transitoriamente transformados em atores, cujas propriedades estruturais de origem se manifestam frágeis em volume de capital, sobretudo cultural? Em Portugal, tem crescido, nos últimos anos, um conjunto de iniciativas culturais e artísticas com ressonância social2, na nossa perspetiva, concomitantes da passagem de paradigma do(s) público(s) da cultura para um paradigma do cidadão criativo, segundo o qual todos os indivíduos têm potencial não para assistir, ouvir, escutar, apreciar e fruir um qualquer acontecimento cultural, de pendor ora mais erudito, ora mais comercial, mas sobretudo para participar ativamente nesse processo de criação artística e cultural, cuja importância, efeitos e consequências devem ser estudados.

Com base nos resultados obtidos a partir de uma investigação que tomou como objeto empírico um projeto artístico de intervenção comunitária desenvolvido no âmbito do Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira (Melo, 2014), procuramos neste texto apresentar alguns contributos teóricos para a discussão necessária entre os modos de relação com a cultura e os efeitos sociais das artes.

1. Sobre os modos de relação com a cultura No dealbar do século XXI começou a tornar-se visível o facto de a criatividade assumir um papel importante noutras esferas que não a económica e a estética, tendo começado a ser perspetivada como uma outra forma de comunicar e capaz de colocar em de igualdade diferentes modos de vida e de comunidade, nomeadamente no que concerne à inclusão económica e social e à participação de grupos em risco, marginalizados ou excluídos. Uma forma de se verificar a viabilidade deste processo consiste em estimular a criatividade, emancipando as pessoas e tornando-as capazes de mudar as suas próprias condições de vida.

Outra forma é permitir a participação num contexto cultural por grupos marginalizados, tornando-os capazes de tomar parte em processos de mudança que afetam a comunidade e, desde logo, as suas vidas. Daqui se antevê uma utilização da cultura para atingir fins consentâneos com princípios não eminentemente ou, pelo menos, não imediatamente culturais, isto é, fins de inclusão ou integração social, fins de estabelecimento e reforço dos laços comunitários, fins de alargamento da coesão social.

Com efeito, cada vez mais se equaciona a cultura, designadamente: a produção e o consumo culturais como geradores de valor económico3; as artes como potenciadoras de utilidade económico-social no que se refere à coesão, à inclusão e ao emprego (Matarasso, 2001, Cliche et al., 2002 e Dubois, 2004 in Santos e Melo, 2006); ou, finalmente associando-se a imaterialidade representacional do valor da arte como um reforço da competição simbólica e da produção de imagens que funcionam como identitárias das cidades (Fortuna e Silva, 2001).

A temática da relação entre a cultura, especificamente as artes, e a intervenção comunitária tem sido amplamente discutida, sobretudo em contexto anglo-saxónico4, justamente no que se refere à instrumentalização de que as artes são alvo, nomeadamente por parte dos poderes públicos, para que se atinjam fins não imediatamente artísticos. A esta discussão justapõe-se uma outra, a da legitimação da arte, quando se equaciona a importância que esta pode (deve) ou não ter na vida quotidiana dos indivíduos e sobre que planos se deve intervir, se assim for entendido como necessário. Enquadradas num toldo mais abrangente, usualmente designado como impacto5, especificamente impacto social das artes, a instrumentalização e a legitimação das artes adquirem novos contornos teóricos. Não pretendendo entrar pela definição estético-filosófica do que significa a arte, atemo-nos ao que é prático na arte, nomeadamente ao seu fazer. São, portanto, às práticas artísticas e culturais que nos referimos quando trabalhamos os efeitos que o envolvimento nas artes, mais passivo ou mais ativo, de pendor de entretenimento ou de realização pessoal, de regularidade ou de aficionado (McCarthy e Jinnet, 2001) gera nos indivíduos.

Para o exercício que aqui apresentamos julgamos pertinente enquadrar as práticas a que nos referimos no conceito de arte comunitária. A arte comunitária surge no âmbito do conjunto de movimentos sociais das décadas de 60 e 70 do século XX, como uma forma de luta contra a institucionalização das formas de arte convencionais. Tem como princípio fundamental ser uma forma de arte pública, que no seu âmago corresponde ao exercício do interesse público (Lowe, 2000). É, nesse sentido, uma arte de todos e para todos, com um forte pendor crítico e criativo, que visa promover uma transformação da realidade através da justiça social e dos princípios comunitários. As artes comunitárias, neste sentido, manifestam-se então numa forma inteligível, inclusiva, colaborativa e experiencial de fazer a arte, de qualquer tipo que ela seja, e, apesar de virtualmente qualquer tipo de atividade artística poder ser utilizada num contexto comunitário, a literatura académica em torno das artes comunitárias inclui como privilegiadas o conto, a produção de vídeo, o teatro, a dança, a poesia, a fotografia, a cerâmica, a música, a reabilitação de territórios excluídos, os festivais, as instalações e exposições, entre outras.

Neste sentido, definir arte comunitária significa ser permeável a uma heterogeneidade vincada que se unifica num desígnio exposto por Goodlad, Hamilton e Taylor (2002), como aquilo que proporciona às populações usualmente excluídas o acesso às artes em escolas, prisões, no local de trabalho, nas ruas e nos projetos de habitação social. Encoraja a participação e lida com questões de classe, género, raça, saúde, habitação, bem como com preocupações ambientais. Constitui, por essa via, uma forma de os grupos marginalizados amplificarem a conceção de público ativo (que participa) a, de alguma maneira, tornarem-se artistas.

De acordo com Lowe (2001) as artes comunitárias representam um fenómeno sociológico que influencia o desenvolvimento de uma comunidade e têm potencial para criar impactos em decisões políticas que se referem a questões sociais.

Com efeito, as artes comunitárias têm vindo a estabelecer-se enquanto campo na viragem para o século XXI, campo esse, apesar de tudo, com laivos de contrariedades, na medida em que advoga um princípio promotor de mudança social, ao mesmo tempo que lida em consentaneidade com a promoção da conservação das culturas locais (Cohen-Cruz, 2005).

Ao longo das últimas décadas, e sobretudo em contexto internacional, tem sido crescente o número de investigações empíricas realizadas em torno das artes comunitárias como objeto de estudo. Apesar da não exaustividade reivindicada pela maioria dos estudos que foram fazendo uma revisão dos trabalhos nesta área, a verdade é que são em cada vez maior número e, em cada vez também maior, diversidade, nomeadamente no que às áreas de intervenção diz respeito. Com efeito, as disciplinas que relegam maior atenção às artes comunitárias parecem ser a educação, nomeadamente a educação pela arte, o desenvolvimento comunitário e a reabilitação urbana, a saúde mental, a política cultural e as próprias artes, e o âmbito das discussões que preconizam tomam diferentes formas, isto é, debatem sobre uma arte política ou socialmente comprometida, realizam relatórios sobre projetos de artes comunitárias levados a cabo por artistas comunitários ou académicos que se debruçam sobre estas questões, discutem e analisam projetos de educação pela arte, descrevem as artes comunitárias, avaliam projetos de intervenção por via da arte, bem como o trabalho de instituições públicas ou privadas cujo âmbito de intervenção radica exclusivamente na intervenção por via da arte.

2. E os efeitos sociais das artes Apesar de ser recorrente encontrarmos na literatura científica a referência ao estudo de Landry, Biachini e Maguire (1995) como sendo o primeiro verdadeiramente dedicado ao impacto social das artes, a verdade é que se considerarmos um arco temporal mais alargado encontramos o primeiro trabalho referenciado enquanto pesquisa empírica acerca da avaliação dos projetos de arte comunitária levado a cabo por Jones (1988), publicado no Journal of the Community Development Society of America. Esta investigação tratou-se de um projeto-piloto, que contemplava a realização de uma residência artística, e teria sido encomendada por uma agência estatal. Teve como objetivo perceber se a intervenção comunitária pelas artes resultava no desenvolvimento de atividades comunitárias, e incidia a sua pesquisa sobre quatro áreas específicas: (i) Reforço da tomada de consciência e da apreciação do património cultural e dos símbolos; (ii) Aumento do sentido de comunidade; (iii) Identificação com a comunidade; (iv) Participação nos assuntos da comunidade.

Concluiu que teriam havido mudanças positivas em todas as áreas de intervenção contempladas inicialmente, sendo de ressalvar que a importância da dimensão local, nomeadamente associada à comunidade de pertença, era de facto fundamental. Considerava-se que o trabalho dos artistas com as comunidades deveria utilizar temas locais para um público também ele local.

É, todavia, François Matarasso quem, em meados da década de 90 do século passado, escreve o texto que tem servido de referência para os grandes debates dos últimos anos em torno da instrumentalização da cultura para fins sociais.

Com o objetivo de adicionar mais uma dimensão às existentes naquilo que se designava ser o uso da cultura para outros fins6, Matarasso, em Use or Ornament? The social impact of participation in the arts (1997), discute a importância da participação nas artes e o impacto social que essa participação promove, concretamente em termos de desenvolvimento e coesão social. Para este autor, as artes são consideradas potenciadoras de utilidade económico-social no que se refere à coesão, à inclusão e ao emprego, mas também no que se refere ao desenvolvimento pessoal, ao empowerment da comunidade, à promoção de uma nova identidade pessoal e territorial e, ainda, no que se refere ao incremento do estado de saúde de quem nelas se envolve ativamente.

No estudo que levou a cabo concluiu, sinteticamente, que (i) a participação em atividades artísticas promove a existência de benefícios sociais; (ii) os benefícios fazem parte integrante do ato de participação; (iii) os impactos sociais são complexos, mas compreensíveis; (iv) os impactos sociais podem ser avaliados e planeados (Matarasso, 1997). Seguiram-se a este vários outros estudos, também da sua autoria (Matarasso, 1998; Matarasso e Chell, 1998), levados a cabo com a chancela da Comedia7, integrados numa rede de estudos mais vasta sobre desenvolvimento cultural, comunitário e, mais recentemente, cidades criativas (Matarasso, 2009).

Na revisão da literatura levada a cabo por Newman, Curtis e Stephens (2003), os trabalhos de Matarasso contribuem para asseverar que os projetos de arte se tornaram uma parte importante das estratégias de desenvolvimento de uma comunidade. Para além de objetivos criativos, espera-se que os projetos tenham aspetos positivos e mensuráveis no capital social local. As organizações financiadoras pedem rotineiramente provas destes propósitos e as avaliações formais tornaram-se condições para o eventual investimento. Pelo trabalho que realizaram é possível ter uma perspetiva das várias consequências, ganhos ou efeitos sentidos em vários domínios da vida individual e coletiva no seio de uma comunidade, designadamente em termos de: (i) Mudança pessoal fazer novos amigos, ser mais feliz, mais criativo e confiante, redução do sentido de isolamento, maior propensão para fazer formação na área artística; (ii) Mudança Social maior compreensão intercultural, sentimento mais forte de território, maior integração de diferentes grupos, melhoria em competências organizacionais; (iii) Mudança económica impacto no número de novos empregos e na própria procura de emprego, melhor imagem da comunidade para a captação de investimento, aumento na venda de trabalhos artísticos e maior investimento em programas de arte; e (iv) Mudança educacional algumas provas de aumento do sucesso escolar.

Quadro_1 Ao levarmos em consideração não necessariamente o conceito de mudança (qualquer que ela seja e a que nível), mas sim o conjunto de efeitos que a participação ativa e expressa desencadeia nos indivíduos, podemos considerar a proposta de Joshua Guetzkow (2002) que, partindo de um estudo de impacto das artes na comunidade, reúne alguns argumentos presentes nas várias leituras teóricas que defendem esta conceção da cultura pelo social. Aliás, a proposta deste autor assume um caráter operativo na medida em que desconstrói o impacto das artes comunitárias em níveis de análise e em graus de envolvimento, o que permite fazer uma leitura mais acurada sobre os efeitos que a participação artística desencadeia nos indivíduos.

3. Contextualização da pesquisa empírica O Texturas, objeto de estudo da investigação que aqui sucintamente apresentamos, surgiu no âmbito de um grande evento cultural, o Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira, numa parceria entre a Divisão de Ação Social e a Divisão Cultural da Câmara Municipal, e a própria organização do Imaginarius. Apresentou-se como um dos eixos do programa Direitos e Desafios associado ao Contrato Local de Ação Social (CLAS) em vigor em 2009. Especificamente, através de uma medida designada Comunidade (Com)Vida, apresentou-se como um mecanismo de intervenção através da prática ativa de uma forma de arte, recuperando uma memória marcadamente concelhia o trabalho na indústria da cortiça e incluiu-se numa programação política mais ampla, associada ao concelho, de investimento autónomo no setor cultural. Na confluência entre objetivos culturais e objetivos sociais constituiu-se como uma peça de teatro, criada e representada por atores não profissionais, oriundos da comunidade feirense, com o propósito de se tornarem públicos culturais e cidadãos participativos, utilizando, para isso, meios municipais. O projeto Texturas justificou, então, a nossa seleção empírica, pela especificidade da componente identitária e de pertença local que serviu de conceito de ligação do projeto artístico ao projeto social.

Tratando-se de um estudo de um caso, contextualizado numa problematização mais ampla, a investigação assentou numa metodologia intensiva e teve como um dos seus objetivos fundamentais compreender o significado atribuído à experiência por parte de quem participa enquanto ator não profissional na realização dos projetos artísticos do Imaginarius, pelo que se impôs dar voz9 aos próprios atores sociais, no sentido de lhes permitir verbalizar representações, perceções, sentimentos, emoções, motivações e tudo o que mais enforme o sentido que conferem à participação.

4. Sobre a experiência artística e social dos protagonistas do Texturas Quando nos dispusemos a tentar compreender o que significa a prática expressiva ativa de uma arte junto dos nossos entrevistados tínhamos como objetivo subsumido atingir o patamar das regularidades sociológicas presentes nos discursos e representações, mas também as variações, contradições, ou as exceções, admitindo neste exercício até o resgate de alguma surpresa. Tomámos, então, de empréstimo os contributos de Bernard Lahire (2004) que, ao desenvolver uma sociologia à escala individual, permite captar as diversas pluralidades individuais. Conscientes de que dessa forma se perde em compreensão de traços regulares, uniformemente expostos, arrogámos o que consideramos ser ganho maior em unicidade das experiências, das verbalizações, no fundo, de sentidos e significados múltiplos que cada um dos protagonistas atribuiu à experiência que connosco partilhou.

Considerando o nosso objetivo inicial entendemos poder concluir sobre a potencialidade positiva que a participação cultural desencadeia nos indivíduos.

Na busca pela significação simbólico-estética dos participantes do Texturas, mantivemo- nos abertos às suas singularidades, bem como à pluralidade das suas disposições. Ainda assim, e na sequência de uma orientação teórica crítica, consideramos fundamental expressar uma certa linearidade face ao quadro de análise proposto por Guetzkow (2002), segundo o qual o envolvimento direto e participativo com a prática cultural desencadearia efeitos ao nível individual.

Tal como no estudo do autor, em qualquer um dos protagonistas identificados no Texturas, o envolvimento direto dos participantes certifica o conjunto dos efeitos positivos que o autor apresenta, nas três dimensões individuais referenciadas (material/ de saúde; cognitiva/ psicológica; e interpessoal).

Reforçando estes resultados, não apenas os pudemos inferir pelos diversos procedimentos que desenvolvemos para das entrevistas, como, frequentemente, eles foram expressos nos discursos dos entrevistados. Tal facto é revelador de duas dimensões fundamentais: a participação artística gerou um determinado conjunto de consequências transformativas (e positivas) nas vidas dos protagonistas do Texturas; e a participação artística gerou, igualmente, uma consciencialização e uma capacidade de autorrevelação, para muitos, inicialmente, inexistente, ou depauperada pela frágil capitalização cultural e simbólica que aportavam consigo, antes de tomarem parte da experiência estética.

Da heterogeneidade sociodemográfica que lhes encontrámos, registámos em todos a exposição de uma narrativa de vida onde lugar à reinterpretação biográfica.

As ruturas para uns, os choques biográficos para outros, o resgate do seu valor humano para outros e o sentimento de felicidade para mais alguns ainda, constituem traços marcantes das suas trajetórias de vida, que, mais ou menos declarados, reverteram nos seus discursos para uma capacitação mais autónoma, bem como para um incremento da sua dignificação pessoal, bastante distante dos processos de vitimização, facilmente utilizados em franjas mais descapitalizadas da população. O grupo com quem desenvolvemos este trabalho não cabe nos tradicionais agrupamentos socialmente excluídos ou marginalizados.

Ainda que com uma ligação, por vezes, ténue a alguma agência socializadora importante, todos se manifestam socialmente integrados, com uma participação ativa na dimensão ora familiar, ora escolar, ora de âmbito profissional, ora de âmbito comunitário.

O traço absolutamente comum a todos os protagonistas do Texturas remete para a dignificação da cortiça, da indústria da cortiça e dos seus operários, apresentando nas suas narrações traços de afetividade ao meio que os viu nascer, crescer e fazer-se homens e mulheres ao seu meio identitário. Ainda que marcada pela aspereza e rugosidade ao tato, a cortiça aporta consigo a impermeabilidade, a leveza, a elasticidade e a resistência. Assim parecem ser os protagonistas do Texturas.

5. Retratando singularidades10 FERNANDO, NÃO SOU ARTISTA, SOU CORTICEIRO Fernando tem 48 anos, tem o 12º ano de escolaridade e é fiel de armazém numa grande empresa corticeira da região. Vive com a mãe e dois irmãos (um mais velho e outro mais novo), e nunca casou. De Fernando retemos uma propensão antiga para a prática artística. Portador de um arcabouço cultural importante, desde jovem manifestava disposições para a representação cénica, tendo, no entanto, passado por um interregno participativo, onde o mesmo se descreve como em processo de isolamento e autoexclusão. Integrado, ainda que de forma menos fortalecida, numa rede de relações que potenciava o consumo e a participação artísticas, utilizou declaradamente a arte para romper com uma parte negativa da sua biografia (consumo de drogas), usando-a regularmente para fazer uma introspeção relativamente à sua vida e à sua visão do mundo.

Fernando realça a importância das relações que tece quer no seu percurso pessoal quer no seu percurso artístico. Ao longo do discurso é percetível uma constante referência aos amigos como sendo aqueles que, de alguma maneira, ou em algum momento, o chamam ou conduzem a uma qualquer atividade cultural. Não é, portanto, despiciendo considerar que os nódulos relacionais de Fernando também manifestam uma certa pertença ao campo da representação simbólica, seja de uma forma mais amadora, seja, inclusivamente, de uma forma mais profissionalizada.

Não! Comigo foi assim, eu tenho amigos, não é, como todos nós temos amigos e e conversamos sobre os nossos interesses, e por acaso antes do ano do Texturas, o ano do Texturas foi em 2009, na passagem de ano 2008/2009 estávamos aqui perto desta casa numa passagem de ano em casa de uns amigos e estava uma amiga que normalmente falava comigo e então ela começou a falar no a falar-me em teatro do oprimido, se eu conhecia o teatro do oprimido e não sei quê e eu disse conheço, vi peças de teatro do oprimido, fui a Coimbra à, ao estabelecimento prisional de Coimbra, eu tenho um amigo que está preso e fui semanas ver uma peça de teatro () e ela falou-me que tinha uns amigos do Porto, eu estavam com um projeto de fazer uma peça aqui com base na cortiça, e se eles avançassem se eu estaria interessado em arrancar em aparecer, e eu disse Sim estou! Estou!'

Parece plausível afirmar que, na vida de Fernando, permanecem estruturas de plausibilidade muito marcadas pela aproximação à cultura e que lhe confirmam e reforçam constantemente o processo de construção subjetiva da sua realidade, isto é, o seu processo identitário, sobretudo no que se refere ao grupo de pares. Na perspetiva de Berger e Luckmann (1999), constituem-se ora como grupo de significativos, ora como o coro, cuja função reside na confirmação da identidade do quotidiano. No caso de Fernando, e apesar de associado a uma rede de sociabilidade relativamente reduzida, o que durante muito tempo o fez sentir socialmente desvinculado, meio morto nas suas palavras, terá sido essa a constituir o caminho para a participação cultural ativa.

Encontramos neste entrevistado uma noção bifurcada do que fazer relativamente às práticas culturais: sentir-se útil ao mundo e ver reconhecida a identidade que cresceu reforçada pelas relações que foi tecendo. Deste modo, não esquece nem o dia nem a pessoa que lhe fez conhecer o Texturas, projeto que, como poderemos perceber pela comparação reflexiva que faz de si, lhe permitiu sentir-se de novo vivo.

Entretanto antes dois dias aqui do primeiro ensaio que eu apareci aqui. Ela manda-me um SMS, olha é no Centro Social de Lourosa, na terça-feira', foi numa terça-feira. Na terça-feira aparece no Centro Social de Lourosa vai haver, vai haver o primeiro ensaio'. E eu vim assim relutantemente vim, porque eu não conheço ninguém e oh deixa-me ir indo. Cheguei aqui e achei muito estranho as pessoas, ainda por cima pessoas tão diferentes. () saí daqui ainda sem saber se, se iria voltar ao grupo ou não, mas durante essa semana entre o primeiro ensaio e o segundo ensaio eu disse fogo! Eu tenho que fazer qualquer coisa, comecei sempre a pensar nisso e eu vou ter que fazer qualquer coisa

Os traços disposicionais relativos à dimensão cultural e artística de Fernando, enquanto formas de estar, ver e sentir o mundo, caracterizavam-se por se ancorarem num conjunto de relações de proximidade culturais e pessoais (tendo em conta que se fez sempre acompanhar dos amigos mais próximos) e de indivíduos com posições valorizadas no campo cultural. Todavia, quando chega ao Texturas depara-se com o lado amador da prática artística. Exigente na forma de encarar o fazer teatro, assume-se relutante quando constata que o que se estaria a trabalhar naquele projeto artístico residiria numa lógica não profissionalizada da arte e, portanto, na sua forma de ver, eventualmente deslegitimada. Se Fernando aceitou participar no projeto, tal deve-se ao facto de ter entretanto percebido que este incidiria sobre a cortiça, o que lhe conferia um certo sentido de pertença identitário, quer por força da profissão, quer por força do território, bem como para responder à sua necessidade de se sentir mais realizado. A arte, e o teatro em particular, conferir-lhe-iam esse sentido de utilidade ao mundo.

Basicamente foi a dinâmica. E tenho presente que, tenho presente que se ia fazer uma peça, não! Não tenho presente isso, nem isso agora estou a pôr as coisas atrás. Eu vim, eu vim e não sabia ao certo o que é que se ia fazer, não sabia, não sabia qual é que era o projeto ao certo, sabia que havia um projeto, sabia que a minha amiga me tinha dito que eles queriam trabalhar sobre a cortiça, agora não sabia qual seria o enquadramento da peça sequer, e como é que ela se ia construir, ou se estava construída, ou se iria-se construir.

Indivíduo de caráter bastante reflexivo, Fernando opera um exercício de re (in)trospeção relativamente à função da arte, nomeadamente no que ela pode significar no combate ao seu sentimento de inutilidade e de passividade face à sua vida quotidiana e face ao mundo. Provavelmente ancorado nas suas primeiras experiências em que entrelaçou relações horizontais fortes e significativas, almejava que também o caminho das artes lhe proporcionasse relações do mesmo tipo. Para além desta compreensão em torno da utilidade da arte, é também ao longo do processo de criação do personagem que encarna no Texturas que Fernando percebe a importância da sua vida profissional verdadeira. No mesmo esforço de reflexividade que, alegadamente, diz ter ao longo dos seus dias, desenvolve aqui uma outra compreensão acerca da sua posição perante o processo de produção, dos relacionamentos que se criam e em que moldes funcionam nos grupos nos quais se move, nomeadamente em termos de correspondência ao seu papel de dominado, bem como as relações que todos os outros indivíduos desenvolvem e os motivos pelos quais a representação de um papel na vida quotidiana interfere com os gostos, preferências.

A atividade profissional que desenvolve, as oportunidades e constrangimentos são colocadas ao serviço da criação de um personagem que reencarnará a vida real de Fernando, um postulado irónico, num processo consciente que remete para a representação do eu na vida quotidiana. É, aliás, o desapego face à rotina, à desqualificação, à alienação que vive todos os dias que se permite sentir e, sobretudo, exprimir quando está a ocupar o lugar no palco. Sendo o palco o contexto onde se tem oportunidade de ser outro alguém, é, afinal, no palco que Fernando é, representando a verdade que esconde no seu quotidiano.

Por exemplo ainda me lembro de chegar a uma altura que, e muitas coisas ficaram, muitas delas ficaram na peça. Aquela de eu cheguei a ter trabalhos em que me sentia uma extensão duma máquina, então essas coisas foram explícitas na peça e foi-se construindo, e eu fui sacando informação () porque depois eu começo também a [risos] a vasculhar e foi um processo muito engraçado, porque envolve a nossa história desde o primeiro dia de trabalho, desde o primeiro dia de trabalho até ao dia em como se fosse aqui envolve as relações como bocado disse e o trabalho depois foi ah e depois uma pessoa foi, contava as situações e recriava as situações. () desde o que nós considerávamos injusto, aquilo que nós considerávamos bom, aquilo que nos libertava ou aquilo que nos oprimia. Basicamente foi um caminho, um caminho andante

Participar no Texturas levou a que Fernando recuperasse o hábito da escrita, abandonado desde jovem. Refere ter utilizado a arte para romper com uma parte que considera negativa da sua biografia o consumo de drogas. Para o nosso entrevistado, este trajeto marcado por alguma desviância à norma é reinterpretado como um processo autodestrutivo que, nos dias de hoje, precisou demolir. A necessidade de se desvincular das imagens e redes de relações que o levavam à negatividade do seu passado levou-o a queimar tudo o que tinha escrito ao longo desse período de tempo, bem como todas as memórias documentadas em fotos, imagens, cartazes. A necessidade de proceder a um corte radical com essa realidade, que não é possível de todo esquecer, é compreendida por si como a condição sine qua non para conseguir projetar-se no futuro.

Comecei por por fazer uma súmula dos acontecimentos, mas também começou mais a partir do Texturas comecei por fazer uma súmula de acontecimentos, que agora é uma mistura de súmula de acontecimentos com as emoções que me despertam, com o que penso sobre as coisas, faço isso uma vez por semana. Tenho uns caderninhos que e estão p'ra arrumados () consegui afastar- me e fiz um reset à minha vida, que foi pegar em tudo o que eu tinha, recordações dessa zona, dessa altura e, e mais tarde é que as coisas voltaram novamente, mas de outra forma, não é, e então fiz uma grande fogueira com fotografias e tudo em casa, peguei em tudo o que eu tinha de arquivos e queimei na fogueira. Andei muitos anos sem fazer nada, além do, do, de divertir, do, do, não foi da diversão, foi do, dos espetáculos, de quando fiz teatro e essas coisas e agora depois do Texturas comecei a querer a querer ter as minhas coisas a ter os registos das coisas que eu fazia, a ter a ter os cartazes de tudo o que eu faço, na minha página do facebook eu apanho as coisas sabes, e na net e e digitalizo, ou então meto a () também senti necessidade além de ter os, de ter o as coisas materiais, começar a ter as coisas que eu sinto mais organizadas e para um dia sei , se calhar escrever um livro ou coisas assim

Fernando identifica a entrada no Texturas como um ponto de viragem de uma situação que enveredava pela desqualificação social (Paugam, 2003). Embora tivesse um emprego que lhe conferia um ritmo de vida, uma rotina, um rendimento, Fernando desconhecia para si o lugar que ocupava na sociedade. A quase ausência de laços sociais, sobretudo, significativos à luz do que considera hoje ser o correto para a sua vida, o consumo de drogas e a consciência de autodestruição, e a não constituição de família própria faziam- no sentir-se isolado, perdido, desvinculado do mundo. A arte funcionou enquanto semente que ora fortalecida, ora enfraquecida permaneceu sempre no discurso como o espelho capaz de o resgatar da espiral de exclusão na qual se estava a enredar, sentindo-se no seu seio, como alguém, dotado de significado e existência. E é nesse sentido que continua a elencar a rede estrutural de plausibilidade que acabou de tecer e à qual se ligou como o marco fundamental não para se agarrar ao projeto, mas para se recuperar a si próprio.

Sim, sim. Não porque eu na, quando apareceu o Texturas tava-me a sentir a enterrar, tava-me a sentir sempre deprimido, sempre vou a um lado não encontro ninguém.. não tinha ninguém com quem conversar, não tinha ninguém com quem criar, não tinha era o que estava a acontecer. Eu estava a ver eu a continuar assim a fazer como a maior parte das pessoas, agora nem saio de casa, nem faço nada, não vivo, não respiro, não e a partir daí a partir do Texturas comecei a respirar, comecei a…a ter pulsões, comecei a olha, no fundo a viver, porque eu estava assim porque estava a morrer, a sério, mas não estou a exagerar, () antes do Texturas, antes dois ou três anos, embora continuasse a ir ver os espetáculos eu sentia sempre um vazio enorme, a sério não sou casado, não é, não tenho filhos, não, não não tinha interesse nenhum, quer dizer tava a ver a minha vida a continuar assim a trabalhar, comer e dormir, trabalhar comer e dormir, trabalhar, comer e dormir, e depois ainda por cima os meus interesses em geral não são os interesses gerais da população portuguesa. tava, eu sentia-me um pouco perdido, não sabia o que era, a que mundo pertencia, então acabava por morrer por casa. tava enterrado vivo.

Fernando refere que um dos primeiros, e talvez mais importantes, efeitos que sentiu prende-se com o relacionamento interpessoal. Embora no seu autoconceito demonstrado discursivamente, a qualidade de ser sociável apareça regularmente, a verdade é que assistimos também a alguma incoerência a este nível quando o próprio revela alguma dificuldade em integrar-se em novos grupos, sobretudo quando os objetivos e as práticas não são consentâneos com as suas. Em termos sintéticos, Fernando reflete sobre afinidades eletivas que parecem, no entanto, ser discordantes das condições sociais de existência das quais é fruto.

Sentindo-se circunstância de algum isolamento social, afirma-o resultado de não conseguir estar com quem não partilha dos seus gostos, sobretudo em termos culturais, fazendo-nos remeter para a possibilidade de que, enquanto consumidor cultural, Fernando apresenta algumas distâncias face à classe social a que pertence. Com efeito, fazendo parte de uma certa franja do operariado por via da profissão que desempenha, e atendendo aos vários estudos de públicos e às regularidades que lhes são sobejamente reconhecidas, Fernando não cai no grupo que assume uma rejeição grosso modo com qualquer tipo de prática cultural, como é, tantas vezes associado, à classe trabalhadora (Bourdieu, 2010). Tal facto pode ser explicado por outras variáveis que não a atividade profissional, como as habilitações escolares, o grupo de pares, o contacto estético prévio, a estrutura de oportunidades culturais que lhe são próximas. É, todavia, fundamental não esquecer que os efeitos estruturantes da variável classe social devem ser entendidos enquanto tendências e não como concretizações lineares de uma regra sociológica, pelo que a influência de outras variáveis na orientação das práticas e gostos culturais não é incompatível com o conceito de habitus de classe (Bennett, 2009).

É, no entanto, importante atender ao facto de que por ter determinados gostos e práticas culturais que não são partilhadas pela maioria das pessoas com quem tem uma relação de sociabilidade e de convivialidade, Fernando considera-se diferente, o que provoca uma amolgadela no seu autoconceito. Preocupa-se, no seu discurso, com a necessidade de mostrar que os seus gostos e práticas não são mais legítimos do que os das outras pessoas, nomeadamente aquelas com quem não tem afinidade a esse nível.

Como tivemos oportunidade de afirmar, Fernando sofreu ruturas na sua rede de sociabilidade, o que lhe terá deixado marcas em termos de autoestima e confiança pessoal. Nesse sentido, não é estranho que um dos efeitos mais importantes que a sua participação teve para si se prenda com o alargamento e, sobretudo, o fortalecimento, da sua rede de sociabilidade. Com um sentimento de segurança acrescido, e amplamente mais fortalecido, o nosso entrevistado afirma, sem pejo, que com o avanço da idade o número de relacionamentos sociais diminui. É, porém, essa diminuição da densidade social, para utilizarmos o termo de Durkheim, que permite a profundidade desses mesmos relacionamentos, tornando a partilha e a entrega de si valores orientadores da sua identidade.

Compreendendo a sua localização no ciclo de vida, para Fernando não é de desconsiderar que o envelhecimento se encontra perto, o que o faz afirmar que a participação num projeto cultural e artístico confere uma melhor qualidade de vida aos indivíduos, bem como um envelhecimento mais ativo.

Eu é, no fundo é querer fugir da velhice? Não sei [risos], não sei, sei é não querer envelhecer. No fundo de vez em quando digo isso e não digo na brincadeira, e digo a sério. A minha geração, pelo menos solteiros que eu conheço parece que querem ser eternamente adolescentes, parecem que querem buscar aquelas sensações, querem viver sempre, sempre na não, não, não não pendo p'às discotecas porque os meus interesses agora são outros mas parece que quero sempre absorver, absorver, parece que sinto-me adolescente sempre, é um bocado isso . E o Texturas deu-me as ferramentas para eu poder fazer isso (...) É que comecei a ser, a criar, a ser mais dinâmico a, a partilhar mais com as pessoas (...) o Texturas p'ra mim foi um marco. (...)a partir do Texturas comecei a respirar, comecei a…a ter pulsões, comecei a olha, no fundo a viver, porque eu estava assim porque estava a morrer, a sério, mas não estou a exagerar, mesmo, eu estava a sentir mesmo.

A cena teatral permitiu, então, que Fernando revisse a sua posição no campo social, profissional e artístico, assumindo uma serenidade na reinterpretação do passado e no planeamento do futuro. Terá, ainda, proporcionado um incremento do seu capital simbólico, sendo frequentemente solicitado na empresa onde trabalha para outro tipo de projetos que não os necessariamente fabris. A reconhecida (e legitimada pelos outros) criatividade, inovação e empenho demonstram-se competências sociais que Fernando revê na sua participação no Texturas, mas que adquire contornos de transferibilidade para a sua atividade profissional.

Trouxe até p'rà dimensão do trabalho porque p'a dimensão, p'a forma como eu me situo no trabalho, p'à forma como eu me como eu interajo no trabalho, p'à forma como eu interajo em casa, p'à forma como eu interajo na sociedade, porque deu-me uma energia que eu estava a perder não é pode-se dizer que em ebulição no fundo eu ora por exemplo no, no trabalho chegamos no lançamento do livro do Texturas fez com que eu fosse ter com a administração da empresa e apresentasse o projeto do túnel no. Do lançamento no…no Orfeu e então levou a que eu fosse ter com eles, encarasse o o desafio e resolvesse o problema quando eles me criaram o() Aprendi que quando é preciso saltar o muro também tenho que saltar o muro, foi o que eu fiz.

Embora tenha participado em diferentes projetos artísticos, Fernando não se reconhece enquanto artista. Para o nosso entrevistado a identificação profissional permanece associada aos recursos económicos que daí proviriam e que lhe permitissem viver, sem necessidade de recorrer a qualquer outra atividade profissional. Alude, aliás, ao facto de ser Fernando o corticeiro, independentemente da atividade, tarefa ou função que desempenha no ambiente fabril no qual está imerso. Não lhe é difícil associar essa identidade de si, que corresponde à identidade profissional, como resultado do contexto social no qual nasceu, cresceu e vive atualmente, pese embora o facto de, pelas transformações associadas ao mundo da cortiça que vieram fazer imperar a máquina sobre o homem, transformações essas que também tiveram fortes implicações no âmbito das relações sociais, não se sinta afinal um corticeiro.

Consideramos, então, que nesse processo de construção identitária, sobretudo na correspondente à identidade profissional, em muito contribuem as forças sociais exteriores a si, designadamente o território e a atividade económica preponderante, mas também as outras dimensões que envolvem a prática laboral para além das tarefas ou funções per si. A identidade profissional é resultado dessa constatação, mas também do ambiente social em que é preconizada e, esse, na sua opinião, tem sofrido mutações importantes ao longo das últimas três décadas. Hoje em dia, Fernando talvez saiba o que não é, mas provavelmente ainda não sabe o que é (a identidade em permanente questionamento).

Notas conclusivas Com este artigo pretendemos apresentar uma reflexão necessariamente breve do entendimento da cultura nas sociedades atuais, mas mais proficuamente dos efeitos que a participação cultural ativa, no sentido da própria criação artística, pode desencadear a indivíduos usualmente distantes dos mundos da arte. Admitindo uma regularidade teórica que afirma a existência de consequências positivas na vida dos indivíduos que a esta prática se dedicam, expusemos, em traços rápidos, uma parte de uma investigação mais ampla, onde pretendemos refletir especificamente sobre o sentido que os sujeitos atribuem à experiência de participar enquanto atores num contexto que não lhes é próximo, mas cuja vivência é, ou foi num passado muito recente, quotidiana.

O núcleo de indivíduos que protagonizaram o Texturas e que colaboraram na realização da investigação que subjaz a este artigo manifesta-se relativamente coeso e estável. À exceção de uma protagonista, que não mais voltou a encontrar-se naquela que designava família, todos os outros elementos mantêm uma atividade artística e cultural regular em coletivo, mas não necessariamente nas mesmas funções.

Se é inegável o conjunto de consequências benéficas para todos face à sua participação no Texturas ou noutros projetos artísticos de índole comunitária, entendemos necessário equacionar como sustentar uma participação ativa e motivadora, que prolongue (e não destrua) os efeitos positivos detetados.

Porque a vulnerabilidade dos protagonistas não desapareceu, iniciou, em modalidades mais ou menos consistentes, um processo de transformação, reconversão, renarração de si próprios. Entre a identificação dos efeitos positivos e a sua garantia de solidificação, os cenários são variados e dependerão também de fatores externos ao projeto e ao seu desenrolar.

Finalmente, não negligenciando as regularidades sociológicas encontradas detivemo-nos, de forma mais atenta, a algumas das vivências singulares de um dos protagonistas desta peça teatral. Acreditamos que, conjugando uma sociologia de espectro mais amplo com uma sociologia à escala individual, temos uma capacidade de aprofundamento e conhecimento da realidade social acrescida, o que nos permitirá encontrar caminhos mais realistas de compreensão da ação individual.


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