Texturas, ou sobre os efeitos sociais das artes
Introdução
A constatação da proliferação de projetos artísticos e culturais com
intervenção social e comunitária promovidos por instituições com caráter
político e público, bem como a necessidade de se compreender uma nova dimensão
relacional existente entre a cultura e a arte, levou-nos a interessar-nos pela
temática da eventual instrumentalidade da arte e/ou da cultura para atingir
fins não eminentemente culturais, nomeadamente pelos efeitos que a participação
em projetos artísticos de natureza comunitária teria sobre os sujeitos que
neles participassem.
É com base neste pano de fundo que problematizamos a relação a que atualmente
se vem assistindo entre cultura, arte e intervenção comunitária junto de
públicos que, de alguma forma, apresentam um traço identificativo de alguma
vulnerabilidade social.1 Que significado se pode atribuir atualmente ao
trabalho de intervenção comunitária levado a cabo através da criação artística?
Como se poderá aludir à sustentabilidade artística de projetos promovidos e
implementados por públicos, compostos por pessoas reais, não artistas? Que
significados atribuem os atores destes projetos artísticos à experiência que
vivem, sempre que protagonizam uma peça onde expressam e se expressam como
alguém bastante distinto do seu ser quotidiano? E como interpretar
sociologicamente este modelo de intervenção social pública, que pretende operar
por via da cultura, que faz apelo à ativação quer de campos relativamente
distantes dos usuais campos de ação, quer de públicos, transitoriamente
transformados em atores, cujas propriedades estruturais de origem se manifestam
frágeis em volume de capital, sobretudo cultural?
Em Portugal, tem crescido, nos últimos anos, um conjunto de iniciativas
culturais e artísticas com ressonância social2, na nossa perspetiva,
concomitantes da passagem de paradigma do(s) público(s) da cultura para um
paradigma do cidadão criativo, segundo o qual todos os indivíduos têm potencial
não só para assistir, ouvir, escutar, apreciar e fruir um qualquer
acontecimento cultural, de pendor ora mais erudito, ora mais comercial, mas
sobretudo para participar ativamente nesse processo de criação artística e
cultural, cuja importância, efeitos e consequências devem ser estudados.
Com base nos resultados obtidos a partir de uma investigação que tomou como
objeto empírico um projeto artístico de intervenção comunitária desenvolvido no
âmbito do Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira
(Melo, 2014), procuramos neste texto apresentar alguns contributos teóricos
para a discussão necessária entre os modos de relação com a cultura e os
efeitos sociais das artes.
1. Sobre os modos de relação com a cultura…
No dealbar do século XXI começou a tornar-se visível o facto de a criatividade
assumir um papel importante noutras esferas que não a económica e a estética,
tendo começado a ser perspetivada como uma outra forma de comunicar e capaz de
colocar em pé de igualdade diferentes modos de vida e de comunidade,
nomeadamente no que concerne à inclusão económica e social e à participação de
grupos em risco, marginalizados ou excluídos. Uma forma de se verificar a
viabilidade deste processo consiste em estimular a criatividade, emancipando as
pessoas e tornando-as capazes de mudar as suas próprias condições de vida.
Outra forma é permitir a participação num contexto cultural por grupos
marginalizados, tornando-os capazes de tomar parte em processos de mudança que
afetam a comunidade e, desde logo, as suas vidas. Daqui se antevê uma
utilização da cultura para atingir fins consentâneos com princípios não
eminentemente ou, pelo menos, não imediatamente culturais, isto é, fins de
inclusão ou integração social, fins de estabelecimento e reforço dos laços
comunitários, fins de alargamento da coesão social.
Com efeito, cada vez mais se equaciona a cultura, designadamente: a produção e
o consumo culturais como geradores de valor económico3; as artes como
potenciadoras de utilidade económico-social no que se refere à coesão, à
inclusão e ao emprego (Matarasso, 2001, Cliche et al., 2002 e Dubois, 2004 in
Santos e Melo, 2006); ou, finalmente associando-se a imaterialidade
representacional do valor da arte como um reforço da competição simbólica e da
produção de imagens que funcionam como identitárias das cidades (Fortuna e
Silva, 2001).
A temática da relação entre a cultura, especificamente as artes, e a
intervenção comunitária tem sido amplamente discutida, sobretudo em contexto
anglo-saxónico4, justamente no que se refere à instrumentalização de que as
artes são alvo, nomeadamente por parte dos poderes públicos, para que se
atinjam fins não imediatamente artísticos. A esta discussão justapõe-se uma
outra, a da legitimação da arte, quando se equaciona a importância que esta
pode (deve) ou não ter na vida quotidiana dos indivíduos e sobre que planos se
deve intervir, se assim for entendido como necessário. Enquadradas num toldo
mais abrangente, usualmente designado como impacto5, especificamente impacto
social das artes, a instrumentalização e a legitimação das artes adquirem novos
contornos teóricos. Não pretendendo entrar pela definição estético-filosófica
do que significa a arte, atemo-nos ao que é prático na arte, nomeadamente ao
seu “fazer”. São, portanto, às práticas artísticas e culturais que nos
referimos quando trabalhamos os efeitos que o envolvimento nas artes, mais
passivo ou mais ativo, de pendor de entretenimento ou de realização pessoal, de
regularidade ou de aficionado (McCarthy e Jinnet, 2001) gera nos indivíduos.
Para o exercício que aqui apresentamos julgamos pertinente enquadrar as
práticas a que nos referimos no conceito de arte comunitária. A arte
comunitária surge no âmbito do conjunto de movimentos sociais das décadas de 60
e 70 do século XX, como uma forma de luta contra a institucionalização das
formas de arte convencionais. Tem como princípio fundamental ser uma forma de
arte pública, que no seu âmago corresponde ao exercício do interesse público
(Lowe, 2000). É, nesse sentido, uma arte de todos e para todos, com um forte
pendor crítico e criativo, que visa promover uma transformação da realidade
através da justiça social e dos princípios comunitários. As artes comunitárias,
neste sentido, manifestam-se então numa forma inteligível, inclusiva,
colaborativa e experiencial de fazer a arte, de qualquer tipo que ela seja, e,
apesar de virtualmente qualquer tipo de atividade artística poder ser utilizada
num contexto comunitário, a literatura académica em torno das artes
comunitárias inclui como privilegiadas o conto, a produção de vídeo, o teatro,
a dança, a poesia, a fotografia, a cerâmica, a música, a reabilitação de
territórios excluídos, os festivais, as instalações e exposições, entre outras.
Neste sentido, definir arte comunitária significa ser permeável a uma
heterogeneidade vincada que se unifica num desígnio exposto por Goodlad,
Hamilton e Taylor (2002), como aquilo que proporciona às populações usualmente
excluídas o acesso às artes em escolas, prisões, no local de trabalho, nas ruas
e nos projetos de habitação social. Encoraja a participação e lida com questões
de classe, género, raça, saúde, habitação, bem como com preocupações
ambientais. Constitui, por essa via, uma forma de os grupos marginalizados
amplificarem a conceção de público ativo (que participa) a, de alguma maneira,
tornarem-se artistas.
De acordo com Lowe (2001) as artes comunitárias representam um fenómeno
sociológico que influencia o desenvolvimento de uma comunidade e têm potencial
para criar impactos em decisões políticas que se referem a questões sociais.
Com efeito, as artes comunitárias têm vindo a estabelecer-se enquanto campo na
viragem para o século XXI, campo esse, apesar de tudo, com laivos de
contrariedades, na medida em que advoga um princípio promotor de mudança
social, ao mesmo tempo que lida em consentaneidade com a promoção da
conservação das culturas locais (Cohen-Cruz, 2005).
Ao longo das últimas décadas, e sobretudo em contexto internacional, tem sido
crescente o número de investigações empíricas realizadas em torno das artes
comunitárias como objeto de estudo. Apesar da não exaustividade reivindicada
pela maioria dos estudos que foram fazendo uma revisão dos trabalhos nesta
área, a verdade é que são em cada vez maior número e, em cada vez também maior,
diversidade, nomeadamente no que às áreas de intervenção diz respeito. Com
efeito, as disciplinas que relegam maior atenção às artes comunitárias parecem
ser a educação, nomeadamente a educação pela arte, o desenvolvimento
comunitário e a reabilitação urbana, a saúde mental, a política cultural e as
próprias artes, e o âmbito das discussões que preconizam tomam diferentes
formas, isto é, debatem sobre uma arte política ou socialmente comprometida,
realizam relatórios sobre projetos de artes comunitárias levados a cabo por
artistas comunitários ou académicos que se debruçam sobre estas questões,
discutem e analisam projetos de educação pela arte, descrevem as artes
comunitárias, avaliam projetos de intervenção por via da arte, bem como o
trabalho de instituições públicas ou privadas cujo âmbito de intervenção radica
exclusivamente na intervenção por via da arte.
2. … E os efeitos sociais das artes
Apesar de ser recorrente encontrarmos na literatura científica a referência ao
estudo de Landry, Biachini e Maguire (1995) como sendo o primeiro
verdadeiramente dedicado ao impacto social das artes, a verdade é que se
considerarmos um arco temporal mais alargado encontramos o primeiro trabalho
referenciado enquanto pesquisa empírica acerca da avaliação dos projetos de
arte comunitária levado a cabo por Jones (1988), publicado no Journal of the
Community Development Society of America. Esta investigação tratou-se de um
projeto-piloto, que contemplava a realização de uma residência artística, e
teria sido encomendada por uma agência estatal. Teve como objetivo perceber se
a intervenção comunitária pelas artes resultava no desenvolvimento de
atividades comunitárias, e incidia a sua pesquisa sobre quatro áreas
específicas: (i) Reforço da tomada de consciência e da apreciação do património
cultural e dos símbolos; (ii) Aumento do sentido de comunidade; (iii)
Identificação com a comunidade; (iv) Participação nos assuntos da comunidade.
Concluiu que teriam havido mudanças positivas em todas as áreas de intervenção
contempladas inicialmente, sendo de ressalvar que a importância da dimensão
local, nomeadamente associada à comunidade de pertença, era de facto
fundamental. Considerava-se que o trabalho dos artistas com as comunidades
deveria utilizar temas locais para um público também ele local.
É, todavia, François Matarasso quem, em meados da década de 90 do século
passado, escreve o texto que tem servido de referência para os grandes debates
dos últimos anos em torno da instrumentalização da cultura para fins sociais.
Com o objetivo de adicionar mais uma dimensão às já existentes naquilo que se
designava ser o uso da cultura para outros fins6, Matarasso, em Use or
Ornament? The social impact of participation in the arts (1997), discute a
importância da participação nas artes e o impacto social que essa participação
promove, concretamente em termos de desenvolvimento e coesão social. Para este
autor, as artes são consideradas potenciadoras de utilidade económico-social no
que se refere à coesão, à inclusão e ao emprego, mas também no que se refere ao
desenvolvimento pessoal, ao “empowerment” da comunidade, à promoção de uma nova
identidade pessoal e territorial e, ainda, no que se refere ao incremento do
estado de saúde de quem nelas se envolve ativamente.
No estudo que levou a cabo concluiu, sinteticamente, que (i) a participação em
atividades artísticas promove a existência de benefícios sociais; (ii) os
benefícios fazem parte integrante do ato de participação; (iii) os impactos
sociais são complexos, mas compreensíveis; (iv) os impactos sociais podem ser
avaliados e planeados (Matarasso, 1997). Seguiram-se a este vários outros
estudos, também da sua autoria (Matarasso, 1998; Matarasso e Chell, 1998),
levados a cabo com a chancela da Comedia7, integrados numa rede de estudos mais
vasta sobre desenvolvimento cultural, comunitário e, mais recentemente, cidades
criativas (Matarasso, 2009).
Na revisão da literatura levada a cabo por Newman, Curtis e Stephens (2003), os
trabalhos de Matarasso contribuem para asseverar que os projetos de arte se
tornaram uma parte importante das estratégias de desenvolvimento de uma
comunidade. Para além de objetivos criativos, espera-se que os projetos tenham
aspetos positivos e mensuráveis no capital social local. As organizações
financiadoras pedem rotineiramente provas destes propósitos e as avaliações
formais tornaram-se condições para o eventual investimento. Pelo trabalho que
realizaram é possível ter uma perspetiva das várias consequências, ganhos ou
efeitos sentidos em vários domínios da vida individual e coletiva no seio de
uma comunidade, designadamente em termos de: (i) Mudança pessoal – fazer novos
amigos, ser mais feliz, mais criativo e confiante, redução do sentido de
isolamento, maior propensão para fazer formação na área artística; (ii) Mudança
Social – maior compreensão intercultural, sentimento mais forte de território,
maior integração de diferentes grupos, melhoria em competências
organizacionais; (iii) Mudança económica – impacto no número de novos empregos
e na própria procura de emprego, melhor imagem da comunidade para a captação de
investimento, aumento na venda de trabalhos artísticos e maior investimento em
programas de arte; e (iv) Mudança educacional – algumas provas de aumento do
sucesso escolar.
Quadro_1
Ao levarmos em consideração não necessariamente o conceito de mudança (qualquer
que ela seja e a que nível), mas sim o conjunto de efeitos que a participação
ativa e expressa desencadeia nos indivíduos, podemos considerar a proposta de
Joshua Guetzkow (2002) que, partindo de um estudo de impacto das artes na
comunidade, reúne alguns argumentos presentes nas várias leituras teóricas que
defendem esta conceção da cultura pelo social. Aliás, a proposta deste autor
assume um caráter operativo na medida em que desconstrói o impacto das artes
comunitárias em níveis de análise e em graus de envolvimento, o que permite
fazer uma leitura mais acurada sobre os efeitos que a participação artística
desencadeia nos indivíduos.
3. Contextualização da pesquisa empírica
O Texturas, objeto de estudo da investigação que aqui sucintamente
apresentamos, surgiu no âmbito de um grande evento cultural, o Festival
Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira, numa parceria entre a
Divisão de Ação Social e a Divisão Cultural da Câmara Municipal, e a própria
organização do Imaginarius. Apresentou-se como um dos eixos do programa
Direitos e Desafios associado ao Contrato Local de Ação Social (CLAS) em vigor
em 2009. Especificamente, através de uma medida designada Comunidade (Com)Vida,
apresentou-se como um mecanismo de intervenção através da prática ativa de uma
forma de arte, recuperando uma memória marcadamente concelhia – o trabalho na
indústria da cortiça – e incluiu-se numa programação política mais ampla,
associada ao concelho, de investimento autónomo no setor cultural. Na
confluência entre objetivos culturais e objetivos sociais constituiu-se como
uma peça de teatro, criada e representada por atores não profissionais,
oriundos da comunidade feirense, com o propósito de se tornarem públicos
culturais e cidadãos participativos, utilizando, para isso, meios municipais. O
projeto Texturas justificou, então, a nossa seleção empírica, pela
especificidade da componente identitária e de pertença local que serviu de
conceito de ligação do projeto artístico ao projeto social.
Tratando-se de um estudo de um caso, contextualizado numa problematização mais
ampla, a investigação assentou numa metodologia intensiva e teve como um dos
seus objetivos fundamentais compreender o significado atribuído à experiência
por parte de quem participa enquanto “ator não profissional” na realização dos
projetos artísticos do Imaginarius, pelo que se impôs dar voz9 aos próprios
atores sociais, no sentido de lhes permitir verbalizar representações,
perceções, sentimentos, emoções, motivações e tudo o que mais enforme o sentido
que conferem à participação.
4. Sobre a experiência artística e social dos protagonistas do Texturas
Quando nos dispusemos a tentar compreender o que significa a prática expressiva
ativa de uma arte junto dos nossos entrevistados tínhamos como objetivo
subsumido atingir o patamar das regularidades sociológicas presentes nos
discursos e representações, mas também as variações, contradições, ou as
exceções, admitindo neste exercício até o resgate de alguma surpresa. Tomámos,
então, de empréstimo os contributos de Bernard Lahire (2004) que, ao
desenvolver uma sociologia à escala individual, permite captar as diversas
pluralidades individuais. Conscientes de que dessa forma se perde em
compreensão de traços regulares, uniformemente expostos, arrogámos o que
consideramos ser ganho maior em unicidade das experiências, das verbalizações,
no fundo, de sentidos e significados múltiplos que cada um dos protagonistas
atribuiu à experiência que connosco partilhou.
Considerando o nosso objetivo inicial entendemos poder concluir sobre a
potencialidade positiva que a participação cultural desencadeia nos indivíduos.
Na busca pela significação simbólico-estética dos participantes do Texturas,
mantivemo- nos abertos às suas singularidades, bem como à pluralidade das suas
disposições. Ainda assim, e na sequência de uma orientação teórica crítica,
consideramos fundamental expressar uma certa linearidade face ao quadro de
análise proposto por Guetzkow (2002), segundo o qual o envolvimento direto e
participativo com a prática cultural desencadearia efeitos ao nível individual.
Tal como no estudo do autor, em qualquer um dos protagonistas identificados no
Texturas, o envolvimento direto dos participantes certifica o conjunto dos
efeitos positivos que o autor apresenta, nas três dimensões individuais
referenciadas (material/ de saúde; cognitiva/ psicológica; e interpessoal).
Reforçando estes resultados, não apenas os pudemos inferir pelos diversos
procedimentos que desenvolvemos para lá das entrevistas, como, frequentemente,
eles foram expressos nos discursos dos entrevistados. Tal facto é revelador de
duas dimensões fundamentais: a participação artística gerou um determinado
conjunto de consequências transformativas (e positivas) nas vidas dos
protagonistas do Texturas; e a participação artística gerou, igualmente, uma
consciencialização e uma capacidade de autorrevelação, para muitos,
inicialmente, inexistente, ou depauperada pela frágil capitalização cultural e
simbólica que aportavam consigo, antes de tomarem parte da experiência
estética.
Da heterogeneidade sociodemográfica que lhes encontrámos, registámos em todos a
exposição de uma narrativa de vida onde há lugar à reinterpretação biográfica.
As ruturas para uns, os choques biográficos para outros, o resgate do seu valor
humano para outros e o sentimento de felicidade para mais alguns ainda,
constituem traços marcantes das suas trajetórias de vida, que, mais ou menos
declarados, reverteram nos seus discursos para uma capacitação mais autónoma,
bem como para um incremento da sua dignificação pessoal, bastante distante dos
processos de vitimização, facilmente utilizados em franjas mais
descapitalizadas da população. O grupo com quem desenvolvemos este trabalho não
cabe nos tradicionais agrupamentos socialmente excluídos ou marginalizados.
Ainda que com uma ligação, por vezes, ténue a alguma agência socializadora
importante, todos se manifestam socialmente integrados, com uma participação
ativa na dimensão ora familiar, ora escolar, ora de âmbito profissional, ora de
âmbito comunitário.
O traço absolutamente comum a todos os protagonistas do Texturas remete para a
dignificação da cortiça, da indústria da cortiça e dos seus operários,
apresentando nas suas narrações traços de afetividade ao meio que os viu
nascer, crescer e fazer-se homens e mulheres – ao seu meio identitário. Ainda
que marcada pela aspereza e rugosidade ao tato, a cortiça aporta consigo a
impermeabilidade, a leveza, a elasticidade e a resistência. Assim parecem ser
os protagonistas do Texturas.
5. Retratando singularidades10
FERNANDO, “NÃO SOU ARTISTA, SOU CORTICEIRO”
Fernando tem 48 anos, tem o 12º ano de escolaridade e é fiel de armazém numa
grande empresa corticeira da região. Vive com a mãe e dois irmãos (um mais
velho e outro mais novo), e nunca casou. De Fernando retemos uma propensão
antiga para a prática artística. Portador de um arcabouço cultural importante,
desde jovem manifestava disposições para a representação cénica, tendo, no
entanto, passado por um interregno participativo, onde o mesmo se descreve como
em processo de isolamento e autoexclusão. Integrado, ainda que de forma menos
fortalecida, numa rede de relações que potenciava o consumo e a participação
artísticas, utilizou declaradamente a arte para romper com uma parte negativa
da sua biografia (consumo de drogas), usando-a regularmente para fazer uma
introspeção relativamente à sua vida e à sua visão do mundo.
Fernando realça a importância das relações que tece quer no seu percurso
pessoal quer no seu percurso artístico. Ao longo do discurso é percetível uma
constante referência aos amigos como sendo aqueles que, de alguma maneira, ou
em algum momento, o chamam ou conduzem a uma qualquer atividade cultural. Não
é, portanto, despiciendo considerar que os nódulos relacionais de Fernando
também manifestam uma certa pertença ao campo da representação simbólica, seja
de uma forma mais amadora, seja, inclusivamente, de uma forma mais
profissionalizada.
“Não! Comigo foi assim, eu tenho amigos, não é, como todos nós temos
amigos e… e conversamos sobre os nossos interesses, e por acaso antes
do ano do Texturas, o ano do Texturas foi em 2009, na passagem de ano
2008/2009 estávamos aqui perto desta casa numa passagem de ano em
casa de uns amigos e estava lá uma amiga que normalmente falava
comigo e então ela começou a falar no… a falar-me em teatro do
oprimido, se eu conhecia o teatro do oprimido e não sei quê e eu
disse conheço, já vi peças de teatro do oprimido, já fui a Coimbra à,
ao estabelecimento prisional de Coimbra, eu tenho lá um amigo que
está preso e já fui lá há semanas ver uma peça de teatro (…) e ela
falou-me que tinha uns amigos do Porto, eu estavam com um projeto de
fazer uma peça aqui com base na cortiça, e se eles avançassem se eu
estaria interessado em arrancar… em aparecer, e eu disse ‘Sim estou!
Estou!'”
Parece plausível afirmar que, na vida de Fernando, permanecem estruturas de
plausibilidade muito marcadas pela aproximação à cultura e que lhe confirmam e
reforçam constantemente o processo de construção subjetiva da sua realidade,
isto é, o seu processo identitário, sobretudo no que se refere ao grupo de
pares. Na perspetiva de Berger e Luckmann (1999), constituem-se ora como grupo
de significativos, ora como o coro, cuja função reside na confirmação da
identidade do quotidiano. No caso de Fernando, e apesar de associado a uma rede
de sociabilidade relativamente reduzida, o que durante muito tempo o fez sentir
socialmente desvinculado, “meio morto” nas suas palavras, terá sido essa a
constituir o caminho para a participação cultural ativa.
Encontramos neste entrevistado uma noção bifurcada do que fazer relativamente
às práticas culturais: sentir-se útil ao mundo e ver reconhecida a identidade
que cresceu reforçada pelas relações que foi tecendo. Deste modo, não esquece
nem o dia nem a pessoa que lhe fez conhecer o Texturas, projeto que, como
poderemos perceber pela comparação reflexiva que faz de si, lhe permitiu
sentir-se de novo vivo.
“Entretanto antes dois dias aqui do primeiro ensaio que eu apareci
aqui. Ela manda-me um SMS, ‘olha é no Centro Social de Lourosa, na
terça-feira', foi numa terça-feira. ‘Na terça-feira aparece no Centro
Social de Lourosa vai haver, vai haver o primeiro ensaio'. E eu vim
assim relutantemente vim, porque eu não conheço ninguém e oh deixa-me
ir indo. Cheguei aqui e achei muito estranho as pessoas, ainda por
cima pessoas tão diferentes. (…) saí daqui ainda sem saber se, se
iria voltar ao grupo ou não, mas… durante essa semana entre o
primeiro ensaio e o segundo ensaio eu… disse fogo! Eu tenho que fazer
qualquer coisa, comecei sempre a pensar nisso aí e… eu vou ter que
fazer qualquer coisa…”
Os traços disposicionais relativos à dimensão cultural e artística de Fernando,
enquanto formas de estar, ver e sentir o mundo, caracterizavam-se por se
ancorarem num conjunto de relações de proximidade culturais e pessoais (tendo
em conta que se fez sempre acompanhar dos amigos mais próximos) e de indivíduos
com posições valorizadas no campo cultural. Todavia, quando chega ao Texturas
depara-se com o lado amador da prática artística. Exigente na forma de encarar
o fazer teatro, assume-se relutante quando constata que o que se estaria a
trabalhar naquele projeto artístico residiria numa lógica não profissionalizada
da arte e, portanto, na sua forma de ver, eventualmente deslegitimada. Se
Fernando aceitou participar no projeto, tal deve-se ao facto de ter entretanto
percebido que este incidiria sobre a cortiça, o que lhe conferia um certo
sentido de pertença identitário, quer por força da profissão, quer por força do
território, bem como para responder à sua necessidade de se sentir mais
realizado. A arte, e o teatro em particular, conferir-lhe-iam esse sentido de
utilidade ao mundo.
“Basicamente foi a dinâmica. E tenho presente que, tenho presente que
se ia fazer uma peça, não! Não tenho presente isso, nem isso aí…
agora estou a pôr as coisas atrás. Eu vim, eu vim e não sabia ao
certo o que é que se ia fazer, não sabia, não sabia qual é que era o
projeto ao certo, sabia que havia um projeto, sabia que a minha amiga
me tinha dito que eles queriam trabalhar sobre a cortiça, agora não
sabia qual seria… o enquadramento… da peça sequer, e como é que ela
se ia construir, ou se já estava construída, ou se iria-se
construir.”
Indivíduo de caráter bastante reflexivo, Fernando opera um exercício de re
(in)trospeção relativamente à função da arte, nomeadamente no que ela pode
significar no combate ao seu sentimento de inutilidade e de passividade face à
sua vida quotidiana e face ao mundo. Provavelmente ancorado nas suas primeiras
experiências em que entrelaçou relações horizontais fortes e significativas,
almejava que também o caminho das artes lhe proporcionasse relações do mesmo
tipo. Para além desta compreensão em torno da utilidade da arte, é também ao
longo do processo de criação do personagem que encarna no Texturas que Fernando
percebe a importância da sua vida profissional “verdadeira”. No mesmo esforço
de reflexividade que, alegadamente, diz ter ao longo dos seus dias, desenvolve
aqui uma outra compreensão acerca da sua posição perante o processo de
produção, dos relacionamentos que se criam e em que moldes funcionam nos grupos
nos quais se move, nomeadamente em termos de correspondência ao seu papel de
dominado, bem como as relações que todos os outros indivíduos desenvolvem e os
motivos pelos quais a representação de um papel na vida quotidiana interfere
com os gostos, preferências.
A atividade profissional que desenvolve, as oportunidades e constrangimentos
são colocadas ao serviço da criação de um personagem que reencarnará a vida
real de Fernando, um postulado irónico, num processo consciente que remete para
a representação do “eu” na vida quotidiana. É, aliás, o desapego face à rotina,
à desqualificação, à alienação que vive todos os dias que se permite sentir e,
sobretudo, exprimir quando está a ocupar o lugar no palco. Sendo o palco o
contexto onde se tem oportunidade de ser outro alguém, é, afinal, no palco que
Fernando é, representando a verdade que esconde no seu quotidiano.
“Por exemplo ainda me lembro… de chegar a uma altura que, e muitas
coisas ficaram, muitas delas ficaram na peça. Aquela de… eu cheguei a
ter trabalhos em que me sentia uma extensão duma máquina, então essas
coisas foram explícitas na peça e foi-se construindo, e eu fui
sacando informação (…) porque depois eu começo também a [risos] a
vasculhar e foi um processo muito engraçado, porque envolve a nossa
história desde o primeiro dia de trabalho, desde o primeiro dia de
trabalho até ao dia em como se fosse aqui… envolve as relações como
há bocado disse e o trabalho depois foi… ah… e depois uma pessoa foi,
contava as situações e recriava as situações. (…) desde o que nós
considerávamos injusto, aquilo que nós considerávamos bom, aquilo que
nos libertava ou aquilo que nos oprimia. Basicamente foi um caminho,
um caminho andante…”
Participar no Texturas levou a que Fernando recuperasse o hábito da escrita,
abandonado desde jovem. Refere ter utilizado a arte para romper com uma parte
que considera negativa da sua biografia – o consumo de drogas. Para o nosso
entrevistado, este trajeto marcado por alguma desviância à norma é
reinterpretado como um processo autodestrutivo que, nos dias de hoje, precisou
demolir. A necessidade de se desvincular das imagens e redes de relações que o
levavam à negatividade do seu passado levou-o a queimar tudo o que tinha
escrito ao longo desse período de tempo, bem como todas as memórias
documentadas em fotos, imagens, cartazes. A necessidade de proceder a um corte
radical com essa realidade, que não é possível de todo esquecer, é compreendida
por si como a condição sine qua non para conseguir projetar-se no futuro.
“Comecei por… por fazer uma súmula dos acontecimentos, mas também
começou mais a partir do Texturas… comecei por fazer uma súmula de
acontecimentos, que agora é uma mistura de súmula de acontecimentos
com as emoções que me despertam, com… o que penso sobre as coisas,
faço isso uma vez por semana. Tenho uns caderninhos que… e estão p'ra
lá arrumados… (…) consegui afastar- me e fiz um reset à minha vida,
que foi… pegar em tudo o que eu tinha, recordações dessa zona, dessa
altura e, e mais tarde é que as coisas voltaram novamente, mas de
outra forma, não é, e então fiz uma grande fogueira com fotografias e
tudo lá em casa, peguei em tudo o que eu tinha de arquivos e… queimei
na fogueira. Andei muitos anos sem fazer nada, além do, do, de
divertir, do, do, não foi da diversão, foi do, dos espetáculos, de…
quando fiz teatro e essas coisas… e agora depois do Texturas comecei
a querer… a querer ter as minhas coisas a ter os registos das coisas
que eu fazia, a ter… a ter os cartazes de tudo o que eu faço, na
minha página do facebook eu apanho as coisas sabes, e… na net e… e
digitalizo, ou então meto a… (…) também senti necessidade além de ter
os, de ter… o… as coisas materiais, começar a ter as coisas que eu
sinto mais organizadas e… para um dia sei lá, se calhar escrever um
livro ou coisas assim…”
Fernando identifica a entrada no Texturas como um ponto de viragem de uma
situação que enveredava pela desqualificação social (Paugam, 2003). Embora
tivesse um emprego que lhe conferia um ritmo de vida, uma rotina, um
rendimento, Fernando desconhecia para si o lugar que ocupava na sociedade. A
quase ausência de laços sociais, sobretudo, significativos à luz do que
considera hoje ser o correto para a sua vida, o consumo de drogas e a
consciência de autodestruição, e a não constituição de família própria faziam-
no sentir-se isolado, perdido, desvinculado do mundo. A arte funcionou enquanto
semente que ora fortalecida, ora enfraquecida permaneceu sempre no discurso
como o espelho capaz de o resgatar da espiral de exclusão na qual se estava a
enredar, sentindo-se no seu seio, como alguém, dotado de significado e
existência. E é nesse sentido que continua a elencar a rede estrutural de
plausibilidade que acabou de tecer e à qual se ligou como o marco fundamental
não só para se agarrar ao projeto, mas para se recuperar a si próprio.
“Sim, sim. Não porque eu na, quando apareceu o Texturas ‘tava-me a
sentir a enterrar, ‘tava-me a sentir… sempre deprimido, sempre… vou a
um lado não encontro ninguém.. não tinha ninguém com quem conversar,
não tinha ninguém com quem criar, não tinha… era o que estava a
acontecer. Eu estava a ver eu a continuar assim a fazer como a maior
parte das pessoas, agora nem saio de casa, nem faço nada, não vivo,
não respiro, não… e a partir daí… a partir do Texturas comecei a
respirar, comecei a…a ter pulsões, comecei a… olha, no fundo a viver,
porque eu estava assim porque estava a morrer, a sério, mas não estou
a exagerar, (…) antes do Texturas, antes dois ou três anos, embora
continuasse a ir ver os espetáculos eu sentia sempre um vazio enorme,
a sério… não sou casado, não é, não tenho filhos, não, não… não tinha
interesse nenhum, quer dizer ‘tava a ver a minha vida a continuar
assim a trabalhar, comer e dormir, trabalhar comer e dormir,
trabalhar, comer e dormir, e depois ainda por cima os meus interesses
em geral não são os interesses gerais da população portuguesa. ‘tava,
eu sentia-me um pouco perdido, não sabia o que era, a que mundo
pertencia, então acabava por morrer por casa. ‘tava enterrado vivo.”
Fernando refere que um dos primeiros, e talvez mais importantes, efeitos que
sentiu prende-se com o relacionamento interpessoal. Embora no seu autoconceito
demonstrado discursivamente, a qualidade de ser sociável apareça regularmente,
a verdade é que assistimos também a alguma incoerência a este nível quando o
próprio revela alguma dificuldade em integrar-se em novos grupos, sobretudo
quando os objetivos e as práticas não são consentâneos com as suas. Em termos
sintéticos, Fernando reflete sobre afinidades eletivas que parecem, no entanto,
ser discordantes das condições sociais de existência das quais é fruto.
Sentindo-se circunstância de algum isolamento social, afirma-o resultado de não
conseguir estar com quem não partilha dos seus gostos, sobretudo em termos
culturais, fazendo-nos remeter para a possibilidade de que, enquanto consumidor
cultural, Fernando apresenta algumas distâncias face à classe social a que
pertence. Com efeito, fazendo parte de uma certa franja do operariado por via
da profissão que desempenha, e atendendo aos vários estudos de públicos e às
regularidades que lhes são sobejamente reconhecidas, Fernando não cai no grupo
que assume uma rejeição grosso modo com qualquer tipo de prática cultural, como
é, tantas vezes associado, à classe trabalhadora (Bourdieu, 2010). Tal facto
pode ser explicado por outras variáveis que não a atividade profissional, como
as habilitações escolares, o grupo de pares, o contacto estético prévio, a
estrutura de oportunidades culturais que lhe são próximas. É, todavia,
fundamental não esquecer que os efeitos estruturantes da variável classe social
devem ser entendidos enquanto tendências e não como concretizações lineares de
uma regra sociológica, pelo que a influência de outras variáveis na orientação
das práticas e gostos culturais não é incompatível com o conceito de habitus de
classe (Bennett, 2009).
É, no entanto, importante atender ao facto de que por ter determinados gostos e
práticas culturais que não são partilhadas pela maioria das pessoas com quem
tem uma relação de sociabilidade e de convivialidade, Fernando considera-se
diferente, o que provoca uma amolgadela no seu autoconceito. Preocupa-se, no
seu discurso, com a necessidade de mostrar que os seus gostos e práticas não
são mais legítimos do que os das outras pessoas, nomeadamente aquelas com quem
não tem afinidade a esse nível.
Como já tivemos oportunidade de afirmar, Fernando sofreu ruturas na sua rede de
sociabilidade, o que lhe terá deixado marcas em termos de autoestima e
confiança pessoal. Nesse sentido, não é estranho que um dos efeitos mais
importantes que a sua participação teve para si se prenda com o alargamento e,
sobretudo, o fortalecimento, da sua rede de sociabilidade. Com um sentimento de
segurança acrescido, e amplamente mais fortalecido, o nosso entrevistado
afirma, sem pejo, que com o avanço da idade o número de relacionamentos sociais
diminui. É, porém, essa diminuição da densidade social, para utilizarmos o
termo de Durkheim, que permite a profundidade desses mesmos relacionamentos,
tornando a partilha e a entrega de si valores orientadores da sua identidade.
Compreendendo a sua localização no ciclo de vida, para Fernando não é de
desconsiderar que o envelhecimento se encontra perto, o que o faz afirmar que a
participação num projeto cultural e artístico confere uma melhor qualidade de
vida aos indivíduos, bem como um envelhecimento mais ativo.
“Eu é, no fundo é querer fugir da velhice? Não sei [risos], não sei,
sei lá… é não querer envelhecer. No fundo de vez em quando digo isso
e não digo na brincadeira, e digo a sério. A minha geração, pelo
menos solteiros que eu conheço parece que querem ser eternamente
adolescentes, parecem que querem buscar aquelas sensações, querem
viver sempre, sempre na… não, não, não só não pendo p'às discotecas
porque os meus interesses agora são outros mas parece que quero
sempre absorver, absorver, parece que sinto-me adolescente sempre, é
um bocado isso aí. E o Texturas deu-me as ferramentas para eu poder…
fazer isso aí… (...) É que comecei a ser, a criar, a ser mais
dinâmico… a, a partilhar mais com as pessoas… (...) o Texturas p'ra
mim foi um marco. (...)a partir do Texturas comecei a respirar,
comecei a…a ter pulsões, comecei a… olha, no fundo a viver, porque eu
estava assim porque estava a morrer, a sério, mas não estou a
exagerar, mesmo, eu estava a sentir mesmo.”
A cena teatral permitiu, então, que Fernando revisse a sua posição no campo
social, profissional e artístico, assumindo uma serenidade na reinterpretação
do passado e no planeamento do futuro. Terá, ainda, proporcionado um incremento
do seu capital simbólico, sendo frequentemente solicitado na empresa onde
trabalha para outro tipo de projetos que não os necessariamente fabris. A
reconhecida (e legitimada pelos outros) criatividade, inovação e empenho
demonstram-se competências sociais que Fernando revê na sua participação no
Texturas, mas que adquire contornos de transferibilidade para a sua atividade
profissional.
“Trouxe… até p'rà dimensão do trabalho porque… p'a dimensão, p'a
forma como eu me situo no trabalho, p'à forma como eu me… como eu
interajo no trabalho, p'à forma como eu interajo em casa, p'à forma
como eu interajo na sociedade, porque… deu-me uma energia que eu
estava a perder não é… pode-se dizer que em ebulição… no fundo eu…
ora por exemplo lá no, lá no trabalho chegamos no lançamento do livro
do Texturas fez com que eu fosse ter com a administração da empresa e
apresentasse o projeto lá do túnel lá no…. Do lançamento no…no Orfeu
e… então levou a que… eu fosse ter com eles, encarasse o… o desafio e
resolvesse o problema quando eles me criaram o…(…) Aprendi que quando
é preciso saltar o muro também tenho que saltar o muro, foi o que eu
fiz.”
Embora tenha já participado em diferentes projetos artísticos, Fernando não se
reconhece enquanto artista. Para o nosso entrevistado a identificação
profissional permanece associada aos recursos económicos que daí proviriam e
que lhe permitissem viver, sem necessidade de recorrer a qualquer outra
atividade profissional. Alude, aliás, ao facto de ser Fernando o corticeiro,
independentemente da atividade, tarefa ou função que desempenha no ambiente
fabril no qual está imerso. Não lhe é difícil associar essa identidade de si,
que corresponde à identidade profissional, como resultado do contexto social no
qual nasceu, cresceu e vive atualmente, pese embora o facto de, pelas
transformações associadas ao mundo da cortiça que vieram fazer imperar a
máquina sobre o homem, transformações essas que também tiveram fortes
implicações no âmbito das relações sociais, não se sinta afinal um corticeiro.
Consideramos, então, que nesse processo de construção identitária, sobretudo na
correspondente à identidade profissional, em muito contribuem as forças sociais
exteriores a si, designadamente o território e a atividade económica aí
preponderante, mas também as outras dimensões que envolvem a prática laboral
para além das tarefas ou funções per si. A identidade profissional é resultado
dessa constatação, mas também do ambiente social em que é preconizada e, esse,
na sua opinião, tem sofrido mutações importantes ao longo das últimas três
décadas. Hoje em dia, Fernando talvez saiba o que não é, mas provavelmente
ainda não sabe o que é (a identidade em permanente questionamento).
Notas conclusivas
Com este artigo pretendemos apresentar uma reflexão necessariamente breve do
entendimento da cultura nas sociedades atuais, mas mais proficuamente dos
efeitos que a participação cultural ativa, no sentido da própria criação
artística, pode desencadear a indivíduos usualmente distantes dos mundos da
arte. Admitindo uma regularidade teórica que afirma a existência de
consequências positivas na vida dos indivíduos que a esta prática se dedicam,
expusemos, em traços rápidos, uma parte de uma investigação mais ampla, onde
pretendemos refletir especificamente sobre o sentido que os sujeitos atribuem à
experiência de participar enquanto atores num contexto que não lhes é próximo,
mas cuja vivência é, ou foi num passado muito recente, quotidiana.
O núcleo de indivíduos que protagonizaram o Texturas e que colaboraram na
realização da investigação que subjaz a este artigo manifesta-se relativamente
coeso e estável. À exceção de uma protagonista, que não mais voltou a
encontrar-se naquela que designava família, todos os outros elementos mantêm
uma atividade artística e cultural regular em coletivo, mas não necessariamente
nas mesmas funções.
Se é inegável o conjunto de consequências benéficas para todos face à sua
participação no Texturas ou noutros projetos artísticos de índole comunitária,
entendemos necessário equacionar como sustentar uma participação ativa e
motivadora, que prolongue (e não destrua) os efeitos positivos detetados.
Porque a vulnerabilidade dos protagonistas não desapareceu, iniciou, em
modalidades mais ou menos consistentes, um processo de transformação,
reconversão, renarração de si próprios. Entre a identificação dos efeitos
positivos e a sua garantia de solidificação, os cenários são variados e
dependerão também de fatores externos ao projeto e ao seu desenrolar.
Finalmente, não negligenciando as regularidades sociológicas encontradas
detivemo-nos, de forma mais atenta, a algumas das vivências singulares de um
dos protagonistas desta peça teatral. Acreditamos que, conjugando uma
sociologia de espectro mais amplo com uma sociologia à escala individual, temos
uma capacidade de aprofundamento e conhecimento da realidade social acrescida,
o que nos permitirá encontrar caminhos mais realistas de compreensão da ação
individual.