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EuPTHUAp0873-74442011000200002

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National varietyEu
Year2011
SourceScielo

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A questão do mercado e as questões que coloca face à actual crise

Introdução A crise financeira que eclodiu perto do final da primeira década do Séc. XXI, pelas consequências devastadoras à escala global, trouxe ao debate público aquilo que poderá ser designado como « a questão do mercado» .

Os mercados têm sido as principais estrelas com presença garantida nas agendas dos vários órgãos da comunicação social. Os discursos sobre a problemática da dívida soberana e o seu impacto transversal no sector financeiro das economias e das empresas e, num registo mais abrangente, na economia e na sociedade em geral, pretendem colocar os mercados na linha da frente da responsabilidade, o funcionamento dos mercados, a lógica dos mercados, ou seja, a «diabolização» dos mercados, com particular destaque para o trigger despoletador da crise que ficará conhecido, na história contemporânea, com o nome de subprime1 e que fez emergir uma crise sistémica, entrelaçando as duas primeiras décadas do Séc.

XXI.

Os discursos produzidos visando a responsabilização dos mercados consideram, implícita ou explicitamente, de modo intencional, o mercado como entidade (um existente) a quem se pode imputar responsabilidades. Trata-se, pois, de discursos com uma forte carga ideológica em que, à semelhança do teatro grego clássico, a máscara ocultava a persona. Esta « ontologização» (atribuição de entidade) do mercado visa, efectiva e deliberadamente, ocultar a responsabilidade daqueles que provocam as crises, quer se trate da crise actual quer das crises anteriores.

Neste ensaio, vai procurar responder-se a duas questões fundamentais: a questão de saber « o que é o mercado» e a questão de saber se o postulado da sua existência, enquanto ente ou entidade imputável, é pertinente e legítima.

Um conceito de mercado Mercado é um termo com origem latina, geneticamente rizomatizado em mercatus, mercor, merx . En quanto noção primitiva radiculada em mercor, o conceito de mercado sintetiza um sentido de troca, e, enquanto noção primitiva radiculada em merx, sintetiza um sentido de objecto de troca, a condensação etimológica das duas sínteses primitivas, operacionalizadas num mesmo conceito (o conceito de mercado), confere a este conceito uma legitimidade conceptual de situs para processos de trocas.

Situsé o termo latino para situação, disposição, construção, estrutura; o que legitima, na semiose do conceito, a definição de mercado como um situssistémico disposicional no qual ocorrem quaisquer processos de trocas, comprometendo- o com um sentido de neutralidade em relação às próprias trocas . Qualquer situs para processos de trocas é, de acordo com o conceito geral, um exemplo de mercado.

Assim, a responsabilidade nos processos de trocas não pode ser imputada ao mercado, enquanto natureza irredutivelmente disposicional e apenas disposicional, mas, sim, aos respectivos agentes; e é essa mesma responsabilidade inalienável que torna esses agentes os «agentes de mercado», o que legitima as «abordagens de mercado» feitas a partir das trocas e da natureza dessas mesmas trocas.

O situsdas trocas e a natureza sistémica das mesmas caracterizam a organização geométrica e geográfica dos mercados.

Mercado, valor e acumulação de valor Os mercados são caracterizados por inter-relações de trocas em que existe uma «ideia de valor», enquanto elemento organizador daquilo que é um sistema para trocas, convencionado como padrão para as trocas que permite avaliar a «coisa trocada» (merx) em relação a outras coisas que poderão ser adquiridas ou transaccionadas.

Este padrão assumiu uma autonomia crescente com o deslocamento (mercantil) da coisa transaccionada para a transacção e acumulação de valor, o que explica a emergência do capitalismo.

O mecanismo de acumulação de valor «tencionaliza» um futuro num presente organizado a partir do aqui e agora do transaccionado. O valor assume assim um papel projectivo para um futuro intencionado, ou seja: é para uma acumulação futura de valor que se faz a transacção presente.

Assim, a transacção tem um objectivo de acumulação para um futuro visado, e é nesse sentido que se faz a acumulação presente de capital enquanto mecanismo de acumulação de valor futuro. O valor tornou-se e torna-se, por esta via, um elemento centralizador do processo de trocas, tendo-se os mercados organizado em termos de escalas de valor e em termos de mecanismos de acumulação de valor para razões de valor futuras.

O valor acumulado, enquanto riqueza, permitiu uma ascensão social de uma «classe rica», no sentido de acumuladora de valor para novas trocas.

No sistema capitalista (mercantil e industrial), as trocas e o valor alimentam- se entre si, desenvolvendo uma dinâmica de auto-sustentabilidade, com consequências na sistémica disposicional do mercado: o mercado deixa de ser apenas o situssistémico para trocas, para se tornar, também, um situs para acumulação de valor.

A noção de um mercado sustentado por uma comunidade de indivíduos para mais trocas, visando uma acumulação de capital, explica um processo de transição daquilo que é um mercado orientado por trocas, em que o valor constitui um padrão, para um valor que vale por si enquanto centro da estrutura e da organização sistémica das trocas de mercado.

Uma economia de mercado diz-se, então, «capitalizadora», no sentido de dinâmica estratégica activa de trocas para uma organização projectiva em função de um valor acumulado, com vista à acumulação futura de capital, a qual constitui o telos mobilizador das vontades dos agentes de mercado.

O valor adquiriu, assim, uma natureza de disponibilidade para a acção segundo fins daquilo que é acessível ou que passa a ser acessível aos agentes, mas o valor foi assumido, também, como um fim em si mesmo, permitindo aos respectivos agentes trocarem o «valor» na forma de títulos e expressarem-no numa forma monetária que, em vez de assumir um papel de mediadora/avaliadora, foi assumida enquanto fim em si mesma, para troca de moeda e de mais moeda enquanto estrutura final de uma economia que se organizou para um fim monetário.

Mas este fim monetário desenvolveu-se, por seu turno, em função de um outro elemento centralizador no processo de trocas: o elemento financeiro.

Mercado e a emergência do predomínio da esfera financeira Nos processos de transacções financeiras não se lida com o uso ou com o que vale mas com o que se pode fazer para aceder ao uso do objecto do «valor adentrivo», ou seja, quando se refere o «capital financeiro»2refere-se ao uso do dinheiro enquanto mecanismo «fertilizador» de mais dinheiro.

Deste modo, o «capital monetário» passou a ser assumido enquanto fim. Isto é, aquilo que se fazia com o «capital monetário» e com as transacções para aceder a valor futuro passou a ser um mecanismo de transacções sobre transacções para aceder ao próprio «capital monetário» (presente e futuro), ou seja, é a capacidade de aceder ao «capital monetário» presente e futuro que pode ser transaccionada num mercado de transacções financeiras.

Assim, no Séc. XX, principalmente a partir da década de 1970, após o colapso de Bretton Woods, assistiu-se à expansão de um novo mercado de transacções de títulos financeiros3, em que o valor de uso e o valor de promessa de pagamento são subsumidos num valor consumidor de valor, para expandir a capacidade de gerar mais valor, à custa de mecanismos financeiros que se baseiam numa troca de dívida por moeda para desta fazer uso, investindo em novos fundos.

A «mercadorização» do risco financeiro e o ocaso dos modelos de avaliação financeira O processo de inovação financeira foi iniciador de um novo denominativo de valor: o valor como capacidade de endividar-se o outro enquanto mecanismo de troca.

Quem empresta dinheiro passou, principalmente desde o último quartel do Séc. XX e até esta primeira década do Séc. XXI, a poder usar a dívida do outro enquanto mercadoria a ser transaccionada na forma de título.

De uma economia capitalista baseada no «investimento», passou-se a lidar com uma economia financeira baseada no «emprestamento» que visa, pelo uso do crédito, «reciclar» capitais e assumir riscos de forma a «lavar» valor para novo valor («lavagem financeira de valor»).

Quem assume a posição final, assume o risco, mas o risco transacciona-se juntamente com o título para produzir mais valor financeiro. Trata-se, pois, de uma « mercadorização» do risco, ou seja, o risco assume a forma de mercadoria sujeita, como qualquer outra mercadoria, às chamadas «leis de mercado», ficando, por conseguinte, na dependência das acções e intervenções dos agentes de mercado. O risco é, assim, contaminado pelo comportamento dos agentes de mercado e pela avaliação que os mesmos fazem do risco.

O valor financeiro titularizado (securitization) foi desconectado do uso efectivo dos bens ou do investimento concreto em activos físicos ou capital, o valor financeiro titularizado não constitui um «valor capitalista», no sentido original do termo, pois, não se trata mais de transaccionar para um futuro valor de uso, nem de riqueza acumulada e acumulativa, trata-se, sim, de transaccionar no presente como consumo dos futuros possíveis das economias, ou seja, transacciona-se no presente para consumir, nesse presente, aquilo que é possível valor económico a ser gerado no futuro.

Não se trata, no presente, de assumir as dívidas dos outros, de se tornar prestamista para que os outros possam investir, trata-se de transaccionar no presente as dívidas dos outros em torno de «capital financeiro» que permite ter margens de lucro presente, muitas vezes pondo em causa aquilo que é um futuro potencial. Para quem vende a dívida titularizada, não é relevante saber se o devedor paga ou não paga, pois quem compra a dívida titularizada está a comprar, também, o risco.

É esta natureza do risco financeiro que o distingue dos outros restantes.

Quando se assume o risco financeiro, assume-se também uma parte naquilo que é um interesse investido no negócio da empresa, mas não se trata somente de receber os ganhos por aquilo que foi entregue e recebido, pela transacção da dívida e pela transacção do dinheiro, de facto, o risco financeiro tem, ele mesmo, sido transaccionado enquanto mercadoria (merx) a ser vendida e comprada.

Deste modo, existe actualmente um «desligar» entre aquilo que é a fonte do risco financeiro e o nível do negócio propriamente dito, assim, o prémio de risco económico tem uma ligação fraca ao prémio de risco financeiro, e, portanto, a dívida que se acumula não contempla aquilo que são as condições de pagamento da dívida do negócio transaccionada nos mercados de produtos estruturados. Quem assume a dívida, no final, não «» os activos, faz, sim, uma «aposta» numa dívida financeira.

Nos mercados financeiros, com a titularização e venda da dívida, as instituições financeiras estão a trocar capital e risco por moeda, esta ideia de troca significa um trade-off nas sociedades modernas, pois implica o seguinte: se as condições de produção e acumulação do capital não são reflectidas na avaliação do risco da dívida, como se faz para estabelecer o prémio de risco? De facto, uma vez que se tem uma dívida titularizada e vendida a retalho num mercado pela chamada «dívida estruturada», então, perde-se, enquanto referente, a chamada «economia real».

As condições de sustentabilidade do negócio têm pouco interesse para aquilo que é um jogo de mercado, pois aquilo que interessa é a dívida ela mesma, enquanto pacote que é vendido e acumulado em outros pacotes prometidos ao especulador.

Toda a dívida titularizada e estruturada em mecanismos e instrumentos financeiros complexos assume uma natureza especulativa, pois trata-se de apostar não nas condições de sustentabilidade do negócio, mas, sim, nas condições de sustentabilidade da dívida.

O risco que se tem é um risco especulativo, e o Capital Asset Pricing Model (CAPM)4 falha, neste ponto, na sua análise, pois, tem por base uma «ontologia de mercado» que não existe nem nunca existiu, nem poderia ser o caso. De facto, o CAPM assume necessariamente, na sua base, um pressuposto de uma «ontologia de mercado», referindo-se ao mercado enquanto entidade autónoma estável e não enquanto situssistémico, turbulento e dinâmico.

O CAPM, nos termos em que Markowitz (1952, 1958), Sharpe (1963, 1964) e Lintner (1965) o formularam, pressupõe uma estabilidade e uma racionalidade económica que não está presente nos comportamentos dos agentes de mercado, porque não é essa a sua natureza. Os agentes que transaccionam nos mercados financeiros não são movidos por razões de troca, associados à avaliação de investimentos, mas, sim, por razões principalmente especulativas e aqui falham na análise os proponentes dos mercados das transacções de títulos como se estas expressassem razões económicas de valor fundamental.

Note-se que o próprio Markowitz (2005), ao fazer o balanço de 40 anos de utilização do CAPM, não somente questiona a pertinência de utilização do mesmo, como chama a atenção para as implicações do seu ensino nos cursos de MBA, devido à total falta de realismo do quarto pressuposto, bem como de uma variante do mesmo5, situação que, nas suas palavras, «raramente é mencionada aos alunos» (Markowitz, 2005, p. 28). Markowitz, um dos «pais» do CAPM, junta- se, assim, aos críticos que, desde a década de 1970, vêm a pôr em causa este modelo de avaliação de activos financeiros.

A origem especulativa do risco financeiro constitui um elemento central, presente no comportamento dos mercados e omisso no modelo teórico. O que é intrínseco às trocas não é o próprio processo de evolução económica, mas, sim, um processamento financeiro da informação sistémica tornada disponível pelas posições dos jogadores/especuladores enquanto agentes de mercado.

Mercado, especulação e a posição sistémica para uma troca de risco Os agentes que actuam nos mercados financeiros são predominantemente «especulativos». A síntese cognitiva para o acto de compra ou venda faz-se segundo regras de mercado e de aprendizagem de mercado para uma comunidade de agentes especuladores. Deste modo, uma frase como «transacciono logo especulo» pode ser postulada como um elemento formativo daquilo que é a dinâmica própria do capitalismo financeiro enquanto capitalismo que não se baseia num valor intrínseco, mas, sim, num valor de mercado que emerge das trocas especulativas dos agentes. A rede de agentes auto-organiza-se em torno de uma noção auto- referente de valor.

A rede de agentes não tem, assim, como referente um valor fundamental intrínseco ao activo financeiro que cabe à rede descobrir e reflectir no preço de mercado, emergente a partir das transacções financeiras.

Pode-se considerar, também, ao nível dos comportamentos especulativos das redes financeiras, um valor atribuído ao activo financeiro a partir do «uso para especular», trata-se, assim, de um valor de um uso especulativo do activo transaccionado para que se transite de um valor transaccionado para uma troca de risco enquanto posição sistémica para os outros que operam no mercado.

Efectivamente, quando se refere uma troca de risco tem-se por base aquilo que é designado por uma operação de transferência financeira de risco e para isso são utilizados os derivados financeiros, pois, enquanto apostas de risco, podem ser utilizados não por referência a um valor fundamental de um activo subjacente, tal como é «iludido» nos manuais de finanças, mas, sim, têm por base uma aposta no comportamento especulativo do próprio mercado.

Trata-se, pois, de um valor de uso especulativo que estimula os mercados de derivados e esse uso permite alimentar uma economia paralela de ganhos e perdas bolsistas ' à qual dificilmente se consegue encontrar rasto ' fluxos esses que alimentam, por sua vez, o ganho e perda do valor do bem transaccionado no mercado de valores.

Esse uso especulativo expressa as perdas e os ganhos em termos da performance bolsista e da posição e do valor da posição que cada jogador assume em relação aos ganhos e perdas resultantes das flutuações dos valores dos preços dos activos financeiros. Os preços expressam, deste modo, uma relação entre o valor especulativo e o comportamento global dos compradores e vendedores, todos «apostadores» e em que o primado da ganância constitui, para a generalidade destes «agentes», o principal determinante.

Nessa «autonomia mercativa» os preços adquirem uma posição de «bem» (ou mercadoria) a serem comprados e vendidos na forma das transacções de derivados, e os preços não são mais do que o resultado colectivo das transacções financeiras como acontece, por exemplo, com a comercialização dos índices bolsistas.

O preço de mercado, contudo, não expressa um mecanismo avaliativo de justo valor, como em tempos terá pretendido ser, mas, sim, como algo a consumir num valor de troca e de uso para um ganho especulativo.

E assim é, e assim foi que, na primeira década do Séc. XXI, o mercado «matou» a economia, no sentido em que a economia que subjaz aos mercados financeiros é um instrumento de valor para uso especulativo e não, como era missão «nobre» destes mercados, para veículo de financiamento da chamada economia real.

Os fluxos financeiros globais alimentam uma economia mercantil especulativa que se posiciona perante si como objecto de si mesma, a ser consumido por si, numa volta autofágica.

Não interessa às finanças, deste modo, o financiamento da economia enquanto propósito, mas, sim, a deterioração dos capitais para um uso externo em apostas financeiras para os mercados financeiros sobreviverem.

Sem o «uso especulador», a economia capitalista perderia o seu valor para a economia financeira e tornar-se-ia num limite à própria actividade especulativa.

O sistema financeiro alimenta-se de crises , pois é nas crises que se dão as bolhas de ordem previsíveis, capazes de transformar as «agências de rating» em catalisadores de estratégias especulativas bem sucedidas e que, como é evidenciado pela actual crise, actuam no âmbito da salvaguarda do interesse próprio.

Conclusão Os mercados, nas suas diversas manifestações, não são, como se evidenciou, entidades inimputáveis, pelo que não é pertinente nem legítimo a assumpção do postulado da sua existência, enquanto entidade imputável.

Deste modo, aqueles que apontam o dedo acusador ao mercado, assumindo-o como um ente ou entidade a quem podem responsabilizar pela ocorrência de crises, estão, seja qual for a razão ou motivação que a tal os impele, a ser coniventes com um processo de ocultação e respectiva alienação das suas próprias responsabilidades, enquanto agentes que intervêm no próprio de emergência disposicional inactivo para um situs em que ocorrem as dinâmicas inerentes às relações de troca e realização de transacções, em linha com os propósitos, raramente revelados, que determinam a sua intervenção.


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