A questão do mercado e as questões que coloca face à actual crise
Introdução
A crise financeira que eclodiu perto do final da primeira década do Séc. XXI,
pelas consequências devastadoras à escala global, trouxe ao debate público
aquilo que poderá ser designado como « a questão do mercado» .
Os mercados têm sido as principais estrelas com presença garantida nas agendas
dos vários órgãos da comunicação social. Os discursos sobre a problemática da
dívida soberana e o seu impacto transversal no sector financeiro das economias
e das empresas e, num registo mais abrangente, na economia e na sociedade em
geral, pretendem colocar os mercados na linha da frente da responsabilidade, o
funcionamento dos mercados, a lógica dos mercados, ou seja, a «diabolização»
dos mercados, com particular destaque para o trigger despoletador da crise que
ficará conhecido, na história contemporânea, com o nome de subprime1 e que fez
emergir uma crise sistémica, entrelaçando as duas primeiras décadas do Séc.
XXI.
Os discursos produzidos visando a responsabilização dos mercados consideram,
implícita ou explicitamente, de modo intencional, o mercado como entidade (um
existente) a quem se pode imputar responsabilidades. Trata-se, pois, de
discursos com uma forte carga ideológica em que, à semelhança do teatro grego
clássico, a máscara ocultava a persona. Esta « ontologização» (atribuição de
entidade) do mercado visa, efectiva e deliberadamente, ocultar a
responsabilidade daqueles que provocam as crises, quer se trate da crise actual
quer das crises anteriores.
Neste ensaio, vai procurar responder-se a duas questões fundamentais: a questão
de saber « o que é o mercado» e a questão de saber se o postulado da sua
existência, enquanto ente ou entidade imputável, é pertinente e legítima.
Um conceito de mercado
Mercado é um termo com origem latina, geneticamente rizomatizado em mercatus,
mercor, merx . En quanto noção primitiva radiculada em mercor, o conceito de
mercado sintetiza um sentido de troca, e, enquanto noção primitiva radiculada
em merx, sintetiza um sentido de objecto de troca, a condensação etimológica
das duas sínteses primitivas, operacionalizadas num mesmo conceito (o conceito
de mercado), confere a este conceito uma legitimidade conceptual de situs para
processos de trocas.
Situsé o termo latino para situação, disposição, construção, estrutura; o que
legitima, na semiose do conceito, a definição de mercado como um situssistémico
disposicional no qual ocorrem quaisquer processos de trocas, comprometendo-
o com um sentido de neutralidade em relação às próprias trocas . Qualquer situs
para processos de trocas é, de acordo com o conceito geral, um exemplo de
mercado.
Assim, a responsabilidade nos processos de trocas não pode ser imputada ao
mercado, enquanto natureza irredutivelmente disposicional e apenas
disposicional, mas, sim, aos respectivos agentes; e é essa mesma
responsabilidade inalienável que torna esses agentes os «agentes de mercado», o
que legitima as «abordagens de mercado» feitas a partir das trocas e da
natureza dessas mesmas trocas.
O situsdas trocas e a natureza sistémica das mesmas caracterizam a organização
geométrica e geográfica dos mercados.
Mercado, valor e acumulação de valor
Os mercados são caracterizados por inter-relações de trocas em que existe uma
«ideia de valor», enquanto elemento organizador daquilo que é um sistema para
trocas, convencionado como padrão para as trocas que permite avaliar a «coisa
trocada» (merx) em relação a outras coisas que poderão ser adquiridas ou
transaccionadas.
Este padrão assumiu uma autonomia crescente com o deslocamento (mercantil) da
coisa transaccionada para a transacção e acumulação de valor, o que explica a
emergência do capitalismo.
O mecanismo de acumulação de valor «tencionaliza» um futuro num presente
organizado a partir do aqui e agora do transaccionado. O valor assume assim um
papel projectivo para um futuro intencionado, ou seja: é para uma acumulação
futura de valor que se faz a transacção presente.
Assim, a transacção tem um objectivo de acumulação para um futuro visado, e é
nesse sentido que se faz a acumulação presente de capital enquanto mecanismo de
acumulação de valor futuro. O valor tornou-se e torna-se, por esta via, um
elemento centralizador do processo de trocas, tendo-se os mercados organizado
em termos de escalas de valor e em termos de mecanismos de acumulação de valor
para razões de valor futuras.
O valor acumulado, enquanto riqueza, permitiu uma ascensão social de uma
«classe rica», no sentido de acumuladora de valor para novas trocas.
No sistema capitalista (mercantil e industrial), as trocas e o valor alimentam-
se entre si, desenvolvendo uma dinâmica de auto-sustentabilidade, com
consequências na sistémica disposicional do mercado: o mercado deixa de ser
apenas o situssistémico para trocas, para se tornar, também, um situs para
acumulação de valor.
A noção de um mercado sustentado por uma comunidade de indivíduos para mais
trocas, visando uma acumulação de capital, explica um processo de transição
daquilo que é um mercado orientado por trocas, em que o valor constitui um
padrão, para um valor que vale por si enquanto centro da estrutura e da
organização sistémica das trocas de mercado.
Uma economia de mercado diz-se, então, «capitalizadora», no sentido de dinâmica
estratégica activa de trocas para uma organização projectiva em função de um
valor acumulado, com vista à acumulação futura de capital, a qual constitui o
telos mobilizador das vontades dos agentes de mercado.
O valor adquiriu, assim, uma natureza de disponibilidade para a acção segundo
fins daquilo que é acessível ou que passa a ser acessível aos agentes, mas o
valor foi assumido, também, como um fim em si mesmo, permitindo aos respectivos
agentes trocarem o «valor» na forma de títulos e expressarem-no numa forma
monetária que, em vez de assumir um papel de mediadora/avaliadora, foi assumida
enquanto fim em si mesma, para troca de moeda e de mais moeda enquanto
estrutura final de uma economia que se organizou para um fim monetário.
Mas este fim monetário desenvolveu-se, por seu turno, em função de um outro
elemento centralizador no processo de trocas: o elemento financeiro.
Mercado e a emergência do predomínio da esfera financeira
Nos processos de transacções financeiras não se lida com o uso ou com o que
vale mas com o que se pode fazer para aceder ao uso do objecto do «valor
adentrivo», ou seja, quando se refere o «capital financeiro»2refere-se ao uso
do dinheiro enquanto mecanismo «fertilizador» de mais dinheiro.
Deste modo, o «capital monetário» passou a ser assumido enquanto fim. Isto é,
aquilo que se fazia com o «capital monetário» e com as transacções para aceder
a valor futuro passou a ser um mecanismo de transacções sobre transacções para
aceder ao próprio «capital monetário» (presente e futuro), ou seja, é a
capacidade de aceder ao «capital monetário» presente e futuro que pode ser
transaccionada num mercado de transacções financeiras.
Assim, no Séc. XX, principalmente a partir da década de 1970, após o colapso de
Bretton Woods, assistiu-se à expansão de um novo mercado de transacções de
títulos financeiros3, em que o valor de uso e o valor de promessa de pagamento
são subsumidos num valor consumidor de valor, para expandir a capacidade de
gerar mais valor, à custa de mecanismos financeiros que se baseiam numa troca
de dívida por moeda para desta fazer uso, investindo em novos fundos.
A «mercadorização» do risco financeiro e o ocaso dos modelos de avaliação
financeira
O processo de inovação financeira foi iniciador de um novo denominativo de
valor: o valor como capacidade de endividar-se o outro enquanto mecanismo de
troca.
Quem empresta dinheiro passou, principalmente desde o último quartel do Séc. XX
e até esta primeira década do Séc. XXI, a poder usar a dívida do outro enquanto
mercadoria a ser transaccionada na forma de título.
De uma economia capitalista baseada no «investimento», passou-se a lidar com
uma economia financeira baseada no «emprestamento» que visa, pelo uso do
crédito, «reciclar» capitais e assumir riscos de forma a «lavar» valor para
novo valor («lavagem financeira de valor»).
Quem assume a posição final, assume o risco, mas o risco transacciona-se
juntamente com o título para produzir mais valor financeiro. Trata-se, pois, de
uma « mercadorização» do risco, ou seja, o risco assume a forma de mercadoria
sujeita, como qualquer outra mercadoria, às chamadas «leis de mercado»,
ficando, por conseguinte, na dependência das acções e intervenções dos agentes
de mercado. O risco é, assim, contaminado pelo comportamento dos agentes de
mercado e pela avaliação que os mesmos fazem do risco.
O valor financeiro titularizado (securitization) foi desconectado do uso
efectivo dos bens ou do investimento concreto em activos físicos ou capital, o
valor financeiro titularizado já não constitui um «valor capitalista», no
sentido original do termo, pois, não se trata mais de transaccionar para um
futuro valor de uso, nem de riqueza acumulada e acumulativa, trata-se, sim, de
transaccionar no presente como consumo dos futuros possíveis das economias, ou
seja, transacciona-se no presente para consumir, nesse presente, aquilo que é
possível valor económico a ser gerado no futuro.
Não se trata, no presente, de assumir as dívidas dos outros, de se tornar
prestamista para que os outros possam investir, trata-se de transaccionar no
presente as dívidas dos outros em torno de «capital financeiro» que permite ter
margens de lucro presente, muitas vezes pondo em causa aquilo que é um futuro
potencial. Para quem vende a dívida titularizada, não é relevante saber se o
devedor paga ou não paga, pois quem compra a dívida titularizada está a
comprar, também, o risco.
É esta natureza do risco financeiro que o distingue dos outros restantes.
Quando se assume o risco financeiro, assume-se também uma parte naquilo que é
um interesse investido no negócio da empresa, mas não se trata somente de
receber os ganhos por aquilo que foi entregue e recebido, pela transacção da
dívida e pela transacção do dinheiro, de facto, o risco financeiro tem, ele
mesmo, sido transaccionado enquanto mercadoria (merx) a ser vendida e comprada.
Deste modo, existe actualmente um «desligar» entre aquilo que é a fonte do
risco financeiro e o nível do negócio propriamente dito, assim, o prémio de
risco económico tem uma ligação fraca ao prémio de risco financeiro, e,
portanto, a dívida que se acumula não contempla aquilo que são as condições de
pagamento da dívida do negócio transaccionada nos mercados de produtos
estruturados. Quem assume a dívida, no final, não «vê» os activos, faz, sim,
uma «aposta» numa dívida financeira.
Nos mercados financeiros, com a titularização e venda da dívida, as
instituições financeiras estão a trocar capital e risco por moeda, esta ideia
de troca significa um trade-off nas sociedades modernas, pois implica o
seguinte: se as condições de produção e acumulação do capital não são
reflectidas na avaliação do risco da dívida, como se faz para estabelecer o
prémio de risco?
De facto, uma vez que se tem uma dívida titularizada e vendida a retalho num
mercado pela chamada «dívida estruturada», então, perde-se, enquanto referente,
a chamada «economia real».
As condições de sustentabilidade do negócio têm pouco interesse para aquilo que
é um jogo de mercado, pois aquilo que interessa é a dívida ela mesma, enquanto
pacote que é vendido e acumulado em outros pacotes prometidos ao especulador.
Toda a dívida titularizada e estruturada em mecanismos e instrumentos
financeiros complexos assume uma natureza especulativa, pois trata-se de
apostar não nas condições de sustentabilidade do negócio, mas, sim, nas
condições de sustentabilidade da dívida.
O risco que se tem é um risco especulativo, e o Capital Asset Pricing Model
(CAPM)4 falha, neste ponto, na sua análise, pois, tem por base uma «ontologia
de mercado» que não existe nem nunca existiu, nem poderia ser o caso. De facto,
o CAPM assume necessariamente, na sua base, um pressuposto de uma «ontologia de
mercado», referindo-se ao mercado enquanto entidade autónoma estável e não
enquanto situssistémico, turbulento e dinâmico.
O CAPM, nos termos em que Markowitz (1952, 1958), Sharpe (1963, 1964) e Lintner
(1965) o formularam, pressupõe uma estabilidade e uma racionalidade económica
que não está presente nos comportamentos dos agentes de mercado, porque não é
essa a sua natureza. Os agentes que transaccionam nos mercados financeiros não
são movidos por razões de troca, associados à avaliação de investimentos, mas,
sim, por razões principalmente especulativas e aqui falham na análise os
proponentes dos mercados das transacções de títulos como se estas expressassem
razões económicas de valor fundamental.
Note-se que o próprio Markowitz (2005), ao fazer o balanço de 40 anos de
utilização do CAPM, não somente questiona a pertinência de utilização do mesmo,
como chama a atenção para as implicações do seu ensino nos cursos de MBA,
devido à total falta de realismo do quarto pressuposto, bem como de uma
variante do mesmo5, situação que, nas suas palavras, «raramente é mencionada
aos alunos» (Markowitz, 2005, p. 28). Markowitz, um dos «pais» do CAPM, junta-
se, assim, aos críticos que, desde a década de 1970, vêm a pôr em causa este
modelo de avaliação de activos financeiros.
A origem especulativa do risco financeiro constitui um elemento central,
presente no comportamento dos mercados e omisso no modelo teórico. O que é
intrínseco às trocas não é o próprio processo de evolução económica, mas, sim,
um processamento financeiro da informação sistémica tornada disponível pelas
posições dos jogadores/especuladores enquanto agentes de mercado.
Mercado, especulação e a posição sistémica para uma troca de risco
Os agentes que actuam nos mercados financeiros são predominantemente
«especulativos». A síntese cognitiva para o acto de compra ou venda faz-se
segundo regras de mercado e de aprendizagem de mercado para uma comunidade de
agentes especuladores. Deste modo, uma frase como «transacciono logo especulo»
pode ser postulada como um elemento formativo daquilo que é a dinâmica própria
do capitalismo financeiro enquanto capitalismo que não se baseia num valor
intrínseco, mas, sim, num valor de mercado que emerge das trocas especulativas
dos agentes. A rede de agentes auto-organiza-se em torno de uma noção auto-
referente de valor.
A rede de agentes não tem, assim, como referente um valor fundamental
intrínseco ao activo financeiro que cabe à rede descobrir e reflectir no preço
de mercado, emergente a partir das transacções financeiras.
Pode-se considerar, também, ao nível dos comportamentos especulativos das redes
financeiras, um valor atribuído ao activo financeiro a partir do «uso para
especular», trata-se, assim, de um valor de um uso especulativo do activo
transaccionado para que se transite de um valor transaccionado para uma troca
de risco enquanto posição sistémica para os outros que operam no mercado.
Efectivamente, quando se refere uma troca de risco tem-se por base aquilo que é
designado por uma operação de transferência financeira de risco e para isso são
utilizados os derivados financeiros, pois, enquanto apostas de risco, podem ser
utilizados não por referência a um valor fundamental de um activo subjacente,
tal como é «iludido» nos manuais de finanças, mas, sim, têm por base uma aposta
no comportamento especulativo do próprio mercado.
Trata-se, pois, de um valor de uso especulativo que estimula os mercados de
derivados e esse uso permite alimentar uma economia paralela de ganhos e perdas
bolsistas ' à qual dificilmente se consegue encontrar rasto ' fluxos esses que
alimentam, por sua vez, o ganho e perda do valor do bem transaccionado no
mercado de valores.
Esse uso especulativo expressa as perdas e os ganhos em termos da performance
bolsista e da posição e do valor da posição que cada jogador assume em relação
aos ganhos e perdas resultantes das flutuações dos valores dos preços dos
activos financeiros. Os preços expressam, deste modo, uma relação entre o valor
especulativo e o comportamento global dos compradores e vendedores, todos
«apostadores» e em que o primado da ganância constitui, para a generalidade
destes «agentes», o principal determinante.
Nessa «autonomia mercativa» os preços adquirem uma posição de «bem» (ou
mercadoria) a serem comprados e vendidos na forma das transacções de derivados,
e os preços não são mais do que o resultado colectivo das transacções
financeiras como acontece, por exemplo, com a comercialização dos índices
bolsistas.
O preço de mercado, contudo, não expressa um mecanismo avaliativo de justo
valor, como em tempos terá pretendido ser, mas, sim, como algo a consumir num
valor de troca e de uso para um ganho especulativo.
E assim é, e assim foi que, na primeira década do Séc. XXI, o mercado «matou» a
economia, no sentido em que a economia que subjaz aos mercados financeiros é um
instrumento de valor para uso especulativo e não, como era missão «nobre»
destes mercados, para veículo de financiamento da chamada economia real.
Os fluxos financeiros globais alimentam uma economia mercantil especulativa que
se posiciona perante si como objecto de si mesma, a ser consumido por si, numa
volta autofágica.
Não interessa às finanças, deste modo, o financiamento da economia enquanto
propósito, mas, sim, a deterioração dos capitais para um uso externo em apostas
financeiras para os mercados financeiros sobreviverem.
Sem o «uso especulador», a economia capitalista perderia o seu valor para a
economia financeira e tornar-se-ia num limite à própria actividade
especulativa.
O sistema financeiro alimenta-se de crises , pois é nas crises que se dão as
bolhas de ordem previsíveis, capazes de transformar as «agências de rating» em
catalisadores de estratégias especulativas bem sucedidas e que, como é
evidenciado pela actual crise, actuam no âmbito da salvaguarda do interesse
próprio.
Conclusão
Os mercados, nas suas diversas manifestações, não são, como se evidenciou,
entidades inimputáveis, pelo que não é pertinente nem legítimo a assumpção do
postulado da sua existência, enquanto entidade imputável.
Deste modo, aqueles que apontam o dedo acusador ao mercado, assumindo-o como um
ente ou entidade a quem podem responsabilizar pela ocorrência de crises, estão,
seja qual for a razão ou motivação que a tal os impele, a ser coniventes com um
processo de ocultação e respectiva alienação das suas próprias
responsabilidades, enquanto agentes que intervêm no próprio de emergência
disposicional inactivo para um situs em que ocorrem as dinâmicas inerentes às
relações de troca e realização de transacções, em linha com os propósitos,
raramente revelados, que determinam a sua intervenção.