Contextos e percepções de racismo no quotidiano
Portugal é um dos países da União Europeia onde não têm praticamente expressão
social ou eleitoral partidos ou forças políticas que acolham e promovam
ideologias racistas ou xenófobas. Olhando para o caso português à luz do modelo
de Wieviorka (1991), pode dizer-se que o racismo em Portugal será um infra-
racismo ou um racismo fragmentado, ou seja, um racismo não político, já que ele
não encontra, no campo político e partidário, os agentes de institucionalização
activa que tem tido noutros países.1
Tal ausência, segundo algumas interpretações, é indissociável do luso-
tropicalismo que atravessaria todo o espectro político, da esquerda à direita,
luso-tropicalismo esse que, depois de ter sido uma ideologia quase oficial do
Estado Novo, teria continuado com a mesma vitalidade após Abril de 74 (Cabral,
1997a; Vala, Brito e Lopes, 1999; Alexandre, 1999). Dir-se-ia, à primeira
vista, ser esse um ponto a favor do luso-tropicalismo. Mas a leitura que alguns
dos autores citados fazem é diversa. A ideologia luso-tropicalista facilita,
pelo contrário, "a difusão do racismo subtil", já que, ao assumirem o
não racismo como uma idiossincrasia nacional, os "grandes partidos em
Portugal, à esquerda como à direita" não tomam "posições anti-
racistas ou antixenófobas" (Vala, Brito e Lopes, 1999: 192-193).
Independentemente das relações que se possam estabelecer entre racismo e luso-
tropicalismo, ponto a que voltaremos adiante, alguns actos de violência extrema
contra imigrantes, ocorridos durante os anos 80 e 90, da autoria de grupos
explicitamente racistas, estão aí para lembrar que, embora com expressão
certamente menor do que em alguns países europeus, mas provavelmente maior do
que noutros (European Parliament, 1991: 70-71), o racismo é um problema também
na sociedade portuguesa.
A lista de ataques contra imigrantes africanos e membros da população cigana
(SOS Racismo, 1992: 64-65; Baganha, 1996: 125-128), mesmo descontando aqueles
casos em que as motivações racistas não são inequívocas, já é relativamente
longa, incluindo o assassinato do luso-cabo-verdiano Alcindo Monteiro, em Junho
de 1995, em Lisboa, na sequência do qual um grupo alargado de skinheads foi
condenado a pesadas penas de prisão. Os chamados skinheads têm sido, de resto,
em Lisboa e no Porto, os autores recorrentes de grande parte dos actos de
violência inventariados.
Sondagens de opinião promovidas pelos media, inquéritos do Eurobarómetroe
alguns estudos sobre valores e representações têm, pelo seu lado, ao longo dos
últimos dez a quinze anos, produzido um conjunto de resultados que, mesmo sendo
contraditórios entre si e também ao nível da comparação europeia, não deixam de
indicar a presença de atitudes preconceituosas e discriminatórias em sectores
significativos da população portuguesa.
Pouquíssimos portugueses, por exemplo, se consideram racistas, mas, ao mesmo
tempo, mais de 40% dizem que o racismo é uma atitude "muito comum" em
Portugal e que conhecem alguns casos de racismo nos seus círculos de amizade, e
mais de 80% consideram que o racismo aumentou na primeira metade dos anos 90.
São também poucos aqueles que dizem importar-se que os filhos tenham como
amigos ou brinquem com crianças de raça diferente, mas, paralelamente, cerca de
70% e 40% não gostariam de morar perto de um acampamento de ciganos ou de um
bairro de negros, respectivamente (Baganha, 1996: 104-140).
No plano da comparação europeia encontram-se, igualmente, sinais de sentido
contrário, com os portugueses a terem, conforme os tópicos em questão, atitudes
mais e menos preconceituosas e discriminatórias do que as de outros europeus. A
percentagem dos que dizem haver demasiados não nacionais da UE em Portugal é
bem menor do que a dos que dizem o mesmo no conjunto dos países da União, e são
também menos do que na média da UE aqueles que em Portugal dizem sentir-se
perturbados pela presença de pessoas de outra nacionalidade, raça ou religião.
Já no que toca a atitudes favoráveis à discriminação laboral dos estrangeiros
por parte dos empregadores, bem como à rejeição de vizinhos de outras raças, os
portugueses registam valores mais altos do que a média dos europeus (Baganha,
idem; França, 1993: 23, 28).
Também alguns estudos sobre valores e representações da população mais jovem
têm encontrado elementos de significado oposto no que toca à posição face a
minorias étnicas e imigrantes. Uma pesquisa sobre os jovens de um dos maiores
concelhos da área metropolitana de Lisboa concluiu que mais de 40% dos
inquiridos diziam haver em Portugal demasiados africanos, brasileiros, indianos
e pessoas de outras minorias (Pais, 1996: 184-186), enquanto uma outra,
comparando atitudes de jovens portugueses e de muitos outros países europeus,
mostra que, num conjunto de itens relativos à participação eleitoral de
migrantes, os portugueses são sistematicamente mais tolerantes do que a média
dos inquiridos (Pais, 1999: 137-149).
Do campo científico surgem, entretanto, os primeiros esforços de pesquisa
empírica sistemática sobre o tema, com destaque para o estudo pioneiro de Vala,
Brito e Lopes (1999).2 Esse estudo põe em evidência indícios sólidos de
preconceito racial explícito, confirmando indicações fornecidas pelas fontes
anteriormente citadas. Como referem os autores, embora o racismo revista hoje
formas mais subtis e difusas, "a percepção dos negros como uma ameaça
social, percepção que pode ser associada ao racismo mais tradicional e
flagrante, perdura na nossa sociedade" (idem: 69).
Para contextualizar o racismo no Portugal de hoje, dir-se-ia, seguindo
Villaverde Cabral (1997b), que se têm de ter em conta dois parâmetros
fundamentais: a longa história da expansão e do colonialismo, rematada com uma
descolonização tardia e turbulenta, e a transformação do país num receptor de
imigrantes, a partir dos anos 80.
A experiência colonial portuguesa, especialmente em África, significa, com
efeito, que há um largo campo de estudo por explorar ou aprofundar, não só
sobre as relações sociais e raciais nas ex-colónias, mas, sobretudo, do ponto
de vista do que aqui está em análise, sobre as imagens, estereótipos e
preconceitos raciais que, nessa longa duração, os portugueses foram construindo
sobre os outros e sobre si próprios.
Num dos raros trabalhos existentes sobre o tema, em que analisa a construção da
ideia de raça no contexto do império português em África nos séculos XIX e XX,
Valentim Alexandre mostra, por exemplo, que a crença na "especial
capacidade do povo português para lidar com as populações indígenas' do
ultramar" não é um produto apenas do pensamento luso-tropicalista de
Gilberto Freyre e do seu aproveitamento e difusão pelo Estado Novo, mas que já
estava muito generalizada nas elites políticas portuguesas desde finais do
século XIX. Mostra também o papel activo que um intelectual tão destacado na
época como Oliveira Martins teve na difusão em Portugal do racialismo de base
"científica", então em voga em muitos círculos do pensamento europeu
(Alexandre, 1999: 140, 136-138).3
A longa persistência histórica de preconceitos e práticas de discriminação
contra ciganos está aí para mostrar, contudo, os limites de qualquer associação
exclusiva do racismo com a experiência colonial ou a imigração das duas últimas
décadas. Em Portugal, como, de resto, noutros países, há de facto uma
"questão" cigana, de contornos complexos e pouco conhecidos, o que
não deixa de ser surpreendente, se tivermos em conta a antiguidade dessa
população em Portugal. O facto de as sondagens e estudos que fazem essa
comparação mostrarem quase sempre maiores preconceitos e atitudes
discriminatórias face aos ciganos do que em relação a todas as outras minorias
dá bem a medida da actualidade do problema.
Do lado da imigração, por sua vez, deve dizer-se que a ideia de que ela é um
contexto fundamental para a compreensão do racismo, sendo obviamente
verdadeira, só o é até certo ponto. As representações comuns que vêem a
imigração como uma "ameaça", seja económica, seja à segurança, não se
referem, de facto, a toda a imigração, mas apenas àquela que, por várias
razões, incluindo os traços fenotípicos dos seus protagonistas, se torna mais
visível socialmente. Os migrantes oriundos da União Europeia e de outros países
ocidentais, apesar de representarem mais de 40% dos estrangeiros em Portugal, e
de ocuparem, regra geral, posições profissionais, empresariais e sociais de
destaque, nem por isso têm sido vítimas de preconceito ou discriminação.
A análise que se fará aqui e que vem na sequência de um artigo de natureza
teórica dedicado à discussão conceptual do racismo (Machado, 2000) é de
âmbito mais limitado, mas também diferente das que acabámos de sumariar. Trata-
se não de analisar ideologias, preconceitos ou práticas de discriminação
protagonizadas pela população receptora, mas de analisar o racismo tal como ele
é percepcionado por aqueles que, potencialmente, estão entre as suas principais
vítimas, ou seja, os migrantes africanos, neste caso os oriundos da Guiné-
Bissau. O material empírico disponível é, por um lado, o que resulta de alguns
indicadores do inquérito feito a nível nacional a 400 desses migrantes, em
1995, e, por outro lado, o discurso directo de vários deles tal como se pôde
registar num conjunto alargado de entrevistas aprofundadas em que o racismo foi
um dos tópicos de conversação.4
Contextos e percepções de racismo: o que dizem os migrantes
Ao contrário das sondagens de opinião e dos inquéritos conduzidos junto da
população em geral, em que a verbalização de atitudes explícitas de racismo só
existe como excepção, mais ou menos provocatória, e em que, mesmo os portadores
de preconceitos têm uma contenção verbal no sentido da sua negação ou
subvalorização, no inquérito aos guineenses e, especialmente, nas entrevistas,
o discurso surgiu espontâneo e fácil e quase todos tinham histórias para
contar.
A julgar pelos relatos bastante circunstanciados das entrevistas, que revelam
memória fresca mesmo de casos ocorridos vários anos antes, não é de duvidar que
as respostas dadas no inquérito tenham uma base objectiva sólida. Deve deixar-
se registado, contudo, antes de passarmos à análise dos dados disponíveis, que
aquilo que esse inquérito fornece é apenas a observação do racismo mediada pela
subjectividade dos migrantes. Ou seja, esses dados dizem respeito à observação
de percepções de racismo, construídas a partir de experiências pessoais, mas
também a partir de relatos de familiares, amigos ou conhecidos, e não à
observação dos actos que conduziram à formação dessas percepções.
Como se vê no quadro_1, a maioria esmagadora dos inquiridos considera que há
racismo em Portugal. Os que dizem não haver são menos de 2% e o conjunto destes
e dos que não sabem ou não respondem à questão não chega aos 5%. Todos os
outros afirmam haver, embora essas respostas afirmativas se distribuam por dois
níveis: o dos que acham que há muito (63%) e o dos que dizem que há, mas pouco
(33%). É claro que não se pode perceber, só por este indicador, o que significa
exactamente para os inquiridos haver pouco racismo. Dentro desta resposta podem
caber diversas coisas. É de assinalar, de qualquer modo, que o facto de 1/3 dos
migrantes ter respondido dessa maneira significa que fez sentido formular a
pergunta de forma gradativa e não dicotómica.
Quadro 1 Percepção genérica de racismo (percentagens)
As avaliações dos migrantes tornam-se mais substantivas quando se pede àqueles
que responderam afirmativamente à questão anterior para dizerem se há ou não
racismo num conjunto de situações quotidianas referentes a contextos de
interacção muito variados, uns mais informais e fluidos, outros mais formais e
localizados. As respostas a esta segunda questão (quadro_2), embora também não
restituam os comportamentos ou discursos concretos que os inquiridos consideram
racistas, ajudam a perceber melhor os contornos das suas percepções.
Quadro 2 Percepção de racismo em situações do quotidiano (percentagens)
Deve dizer-se, de resto, que, para além das dez possibilidades colocadas à
partida pelo inquérito, 21% dos inquiridos referiram-se ainda a outras
situações. Parte delas diz respeito apenas a variantes das situações já
contempladas no guião, mas várias outras referem-se efectivamente a contextos
de interacção adicionais, sendo alguns deles recorrentemente mencionados.
Destacam-se aí três tipos de contextos: a procura de casa, referida com
bastante frequência; espaços públicos como discotecas, recintos desportivos,
cabinas telefónicas, piscinas e praias; e o domínio privado da afectividade e
da sexualidade.5
Neste último caso incluem-se, mais especificamente, referências relativamente
frequentes à dificuldade de estabelecer relações afectivas, formalizadas ou
informais, com portugueses brancos e uma ou outra menção a problemas de
relacionamento, afectivo e sexual, em casais mistos. A grande maioria destas
referências foi feita por homens, mas também houve algumas mulheres que as
fizeram.
Mesmo sem darem a perceber os conteúdos exactos das ocorrências em que os
migrantes dizem ter sentido racismo, as situações apresentadas pelo inquérito,
somadas àquelas que os inquiridos mencionaram por sua própria iniciativa,
permitem traçar um razoável mapa global dos pontos sensíveis de relacionamento
inter-racial quotidiano, sobretudo nos espaços públicos, mas também na esfera
privada.
Um primeiro aspecto a salientar no quadro_2 é o das percentagens consideráveis
de não respostas registadas em alguns itens, nomeadamente os do "acesso à
justiça", "escolas", "hospitais/serviços de saúde" e
"repartições e organismos públicos". Mais do que representarem
dificuldades de julgamento sobre a existência ou não de racismo nesses
contextos, as não respostas resultarão do facto de muitos migrantes não terem
contacto com eles ou terem-no apenas ocasionalmente.
O recurso a advogados ou a presença em tribunais, o contacto com
estabelecimentos escolares, a ida a hospitais ou a frequência de repartições e
organismos públicos é, com efeito, uma experiência que muitos migrantes não
têm, ou só têm esporadicamente, razão pela qual não terão podido formular
opinião. Já nas situações mais comuns do quotidiano trabalho, transportes,
estabelecimentos comerciais e circulação na rua as não respostas registam
sintomaticamente os seus valores mais baixos.
Quanto às respostas activas, elas podem arrumar-se em dois grupos distintos: o
daquelas em que o "sim" atinge valores muito elevados, perto ou acima
dos 70%, e um outro em que o desnível entre respostas positivas e negativas é
menos acentuado, ou em que o "não" chega mesmo a representar a
maioria das opiniões. Os transportes, a esfera profissional, contando aqui,
quer os locais concretos onde se trabalha, quer as situações em que se procura
trabalho, e a circulação na rua são os contextos em que as avaliações dos
migrantes mais apontam para a existência de racismo. Em sentido oposto
sobressaem, com alguma surpresa, os contextos residenciais, em que as respostas
negativas suplantam claramente as positivas.
O discurso directo dos migrantes nas entrevistas ajuda a compreender melhor o
sentido destas percepções. Ele ilustra-as com exemplos concretos relativos a
vários dos contextos e situações mencionados, exemplos que o inquérito só
lateralmente pôde captar. Desse discurso, note-se, retiveram-se apenas os
relatos de experiências vividas pelos próprios entrevistados, e não as
descrições ou alusões a casos passados com terceiros.
Os motoristas das camionetas falam assim para as pessoas, pronto, falam assim
com as pessoas de cor, eu às vezes assisto àquilo, fico a entender também que
são racistas Não só os motoristas, assim como dos passageiros também, às vezes
uma pessoa fica assim, o banco é para duas pessoas, às vezes um branco assim
sentado, um preto, pronto, a entrar e a querer sentar ao lado do branco, o
branco levanta logo.
E: Já aconteceu consigo?
Já.
[Imigrante, 35 anos, empregada doméstica e estudante universitária, Lisboa]
Entrámos e éramos cinco, e eu era o único africano e eram três raparigas
portuguesas e um rapaz português também. Fomos jantar fora, e não sei quê, e
então saímos, e vínhamos de autocarro, entrámos, pronto, havia lá quatro
lugares, sentámo-nos de cara. Eu sentei-me e uma rapariga sentou aqui, um rapaz
sentou aí e outra rapariga sentou, ficou uma em pé e sentou-se em cima das
minhas pernas e eu agarrei-a. Veio um senhor, começou logo: "se calhar era
melhor ir trabalhar nas obras do que andar aqui atrás de ", quer dizer,
começou a mandar umas bocas assim. E os colegas todos ficaram logo naquela de
nervosos, a querer Está bem, vá lá, vocês também têm que ter paciência, vocês
não me vão dizer que vão fazer besteiras aqui! Deixa lá, vocês não percebem que
aqui conta outra cultura? Vocês têm que começar a abrir os olhos nesse sentido!
Porque este senhor, se tivesse minimamente o 12.º ano, uma cultura um pouco
mais, sabia decifrar as coisas. Por isso, eu não vou minimamente ligar a isto.
E continuámos a falar, até chegarmos e lá descemos.
E: E o homem calou-se?
O gajo continuou lá a falar, se calhar estava, estava, um pouco de copos
também, não é, e eu acho que aquilo a mim não me afectou nenhuma porque, se
calhar, se eu fosse uma pessoa com menos cultura também, aí podia haver,
percebes, podia aí haver, começar a haver choques, mas para mim não me faz
diferença nenhuma.
[Imigrante, 33 anos, ladrilhador, Lisboa]
O primeiro destes dois testemunhos pode considerar-se o paradigma de vários
outros relatos semelhantes recolhidos tanto nas entrevistas como aquando da
aplicação do questionário, em observações adicionais de alguns inquiridos. Por
um lado, a recusa da extrema proximidade física característica justamente dos
transportes colectivos com negros; por outro lado, o exercício
discriminatório da pequena autoridade de fiscais e motoristas, que, como
referia outro migrante, "não pedem os passes aos brancos, mas pedem aos
negros".
No segundo caso, estamos perante uma manifestação de racismo que, como outras a
seguir apresentadas, nada tem de subtil, assumindo, pelo contrário, uma forma
aberta e primária. É o tipo de episódio que podia ter-se passado noutro espaço
público qualquer, mas que parece ser potenciado pelas características
simultâneas de proximidade, anonimato e visibilidade de comportamentos que os
transportes públicos, especialmente os autocarros, encerram.
Contém, além disso, dois ingredientes que aparecem em vários outros relatos. Um
é a vítima de racismo estar, no momento, acompanhada por amigos portugueses
brancos ou fazer menção a eles no curso do que está a contar; outro é a
atribuição do racismo à falta de informação, formação ou escolaridade dos seus
protagonistas.
Também no campo profissional os relatos dos entrevistados permitem perceber por
que razão ele aparece como um dos contextos relativamente aos quais as
percepções de racismo captadas pelo inquérito são mais salientes.
Uma vez houve um gajo que trabalhava lá, que era um branco, eu para mim entendo
que era por questões de racismo, mas não estou a tomar isso em conta de que eu
não estou a dizer que os portugueses aqui não foram bons para mim, sempre tive
bons amigos. Só foi essa excepção, naquela obra onde eu estive a trabalhar é
que eu tive esse problema. Havia lá um gajo que, quando eu cheguei, houve uma
pessoa até que me chamou a atenção, "olha, muita cautela com esse gajo,
porque ele anda a fazer muita queixa das pessoas e não sei quê". E foi num
domingo que eu fui trabalhar, disseram que quem quisesse ir trabalhar ao
domingo que podia ir, eu fui trabalhar a um domingo e acontece que um amigo,
havia lá um amigo, em vez de chamar-me pelo nome, não, ele me chamava sempre de
preto, preto, preto, preto. Eu disse-lhe, "eh pá, isso já me estás a
aborrecer "
E: Esse homem?
Não. Era um outro, trabalhador também. Trabalhava lá a horas, exactamente. Eu
disse-lhe, "eh pá, eu sei o teu nome, chamas-te Quim, que é Joaquim, Eu
também chamo-me Djaló, chama-me pelo nome, por favor. Assim, sinto-me melhor.
Eh pá, brincadeira é brincadeira, preto para lá de um momento para o outro,
passa assim, tudo bem, eu não me importo, isso eu sei que é brincadeira, mas
sempre, constantemente, isso também fere o orgulho de uma pessoa. Eu tenho um
nome e tu também tens nome, vamos tratar assim pelo nome, porque isso já está a
ficar um bocado feio. Vim para aqui, tu não me conheces de lado nenhum e eu não
te conheço, portanto, lá porque estamos aqui no mesmo, isso não é suficiente
para nos estarmos assim, a querer entrar assim mais a fundo e querer
gozar". E ficámos assim. O homem, ele estava a ouvir isso e dois dias
seguidos o encarregado não veio e na quarta-feira apareceu ali na obra. E ele,
como eu já sabia que eles costumavam dizer que o gajo era assim, andava a dar
queixa das pessoas, eu não sei o que é que ele foi dizer ao encarregado, e o
encarregado chegou ao pé de mim e "desculpe lá, mas estamos a ter
problemas com trabalhadores, já temos muita gente e para mim talvez amanhã não
valha a pena vires", disse-me logo assim o encarregado. Não me passou nada
assim pela cabeça naquela altura, mas fiquei a pensar, "eh pá, mas o que é
que eu fiz? Estão a mandar pessoas embora se ainda têm trabalho, têm ainda
pisos para fazer?"
[Imigrante, 33 anos, electricista na construção civil, Lisboa]
Eu penso que há, que é um problema que nos acontece muitas vezes, a mim e ao
meu marido. Nós fomos formadores em clubes de desporto para deficientes,
jovens, deficientes e não deficientes, então o que acontecia muitas vezes, nós
saímos para irmos a algum local, somos anunciados ou pedimos para ir lá fazer
uma visita e vamos com os formandos, chegamos lá, nunca se dirigem a nós. Vão
ao branco que estiver ao lado, falam com eles, depois é que eles dizem:
"está aqui o professor e a professora" (risos). Isso acontece assim,
muitas vezes!
[Luso-guineense, 48 anos, professora de educação física, Lisboa]
Mas há brancos, formados, engenheiros, doutores, têm aquela ideia, não gostam
dum negro, não gostam, pronto. Há um gajo, engenheiro civil, ele perguntou-me
se na Guiné há vivendas. Eu disse-lhe: "não, não há, só há há árvores. E
eu vivo à beira da árvore onde dorme o embaixador de Portugal" (risos).
Claro que sim, pá. Ele merece essa resposta. Pois. E ele viu que isso é falta
de respeito.
[Imigrante, 32 anos, armador de ferro na construção civil, Porto]
(Há racismo) em todos os aspectos se eu fosse um português já trabalhava na
minha especialidade. Já tentei fazer um concurso e um senhor disse-me que
aquilo era para um engenheiro, eu disse "eu sou um engenheiro", e
depois ele disse-me para desculpar que aquilo era para portugueses Se eu
fosse ao menos, nem se não trabalhava como português arranjava um trabalho
para dar aulas. Eu já tenho equivalência, já tenho tudo, mas mesmo assim não
consigo.
[Imigrante, 36 anos, pintor na construção naval, Lisboa (licenciado em
engenharia química na ex-União Soviética)]
É evidente que estamos aqui perante situações de natureza e gravidade muito
diferente. No segundo e terceiro casos há, sem dúvida, manifestações verbais de
preconceito, mas relativamente inócuas. No segundo não é suposto, para os
intervenientes brancos, que num grupo racialmente misto de professores e alunos
adultos sejam os negros os professores, mas a expressão desse preconceito,
provavelmente inadvertida, não impede que a interacção seja rapidamente
corrigida e siga o seu curso sem mais incidentes. No episódio das vivendas na
Guiné, o próprio humor desconcertante da resposta dada tem um efeito correctivo
instantâneo, que terá ficado, de resto, na memória do dito engenheiro.
Já a primeira ocorrência tem contornos muito diferentes. Por um lado, há uma
prática de ofensa verbal recorrente como em muitos outros testemunhos, quer
nas entrevistas, quer no inquérito, o migrante aqui visado atribui à designação
"preto" um sentido pejorativo e de desconsideração pessoal. As
formas de tratamento e a linguagem de teor racista, como, por exemplo, um
empreiteiro dizer que "os pretos só servem para pasto de crocodilos",
são, de resto, e mesmo descontando aqueles casos em que se fala num registo de
mera brincadeira, relativamente comuns no contexto da construção civil, a
julgar pelo testemunho de muitos guineenses e pelo que se sabe por outras
fontes (Monteiro, 1995).
O que torna esta situação muito mais grave do que as outras duas é, no entanto,
o facto de se tratar de um caso de injustiça e discriminação flagrantes, em que
se usa o poder de modo discricionário. É um caso que se coloca, em suma, na
mesma linha daqueles em que se aproveita o estatuto precário e/ou ilegal de
muitos migrantes para se deixar salários por pagar ou pagar diferente por
trabalho igual.
O último excerto, por sua vez, diz respeito ao problema do racismo no acesso ao
emprego, ou melhor, no acesso a segmentos qualificados do emprego. Como se viu
no quadro_2, a percepção de racismo "quando se anda à procura de
trabalho" foi das que atingiu percentagens mais elevadas nas respostas ao
inquérito.
Podemos convir, seguindo a análise de Robert Miles para o caso inglês, que o
recrutamento de assalariados tem "uma dimensão representacional" em
que o empregador joga sempre com dois parâmetros distintos e cruzados: por um
lado, as capacidades e qualificações requeridas por cada posto de trabalho; por
outro, as capacidades e qualificações das pessoas concretas que se oferecem
para ocupar esse posto. Na medida em que nessa avaliação o empregador
hierarquize os candidatos, não em termos das suas características individuais,
mas em função da sua pertença a determinada categoria étnica ou racial,
atribuindo de forma determinista a cada indivíduo as características que
preconceituosamente atribui a essa mesma categoria, o recrutamento torna-se
racializado (Miles, 1989: 125-126).
Embora a evidência empírica disponível não permita substantivar devidamente a
percepção de racismo manifestada a este nível pelos migrantes, não é difícil
aceitar, até pelo que os testemunhos dos entrevistados mostram para outras
esferas da vida social, que haverá empregadores portugueses a funcionar segundo
essa lógica racializada, não propriamente na construção civil e nos serviços
pessoais e domésticos, sectores em que a dependência da mão-de-obra migrante é
estrutural, mas noutros segmentos do mercado de trabalho.
Vale até a pena perguntar o que acontecerá no mercado de trabalho, em termos
raciais, numa eventual conjuntura de aumento grave do desemprego, ou então numa
fase mais adiantada do ciclo migratório, em que a procura de trabalho por parte
dos migrantes, especialmente dos seus descendentes, se passe a fazer com maior
frequência fora dos circuitos desqualificados e precários a que a grande
maioria se cinge actualmente.
Dito isto, importa não perder de vista que já hoje há segmentos da população de
origem africana bem firmados em localizações profissionais privilegiadas, seja
nas profissões intermédias, nas profissões intelectuais, científicas e
artísticas, seja mesmo no campo empresarial. É claro que se trata de segmentos
diminutos e quase sempre constituídos, não por migrantes laborais propriamente
ditos, mas por luso-africanos (Machado, 1994).
Mas sendo estes luso-africanos também negros ou mestiços, os seus trajectos e
situações servem de contra-exemplo àqueles casos em que, por motivos raciais
manifestos ou subtis, não se recrutam outros negros ou mestiços para lugares
qualificados. No caso dos luso-guineenses, em particular, são factores extra-
raciais, como a posse de nacionalidade portuguesa, o mais longo tempo de
residência ou o ter-se feito, até certa data, a formação universitária em
Portugal, a ditar os seus percursos de vantagem social sobre os migrantes
laborais seus conterrâneos (Machado, 1999).
A descrição de alguns episódios passados na rua, por seu turno, é também
importante para perceber os contornos mais amplos das percepções de racismo que
aqui estão em análise e a pluralidade de aspectos contida nessas percepções.
Os meus pais já conheciam isto, já tinham vindo cá em 69. E depois contaram uma
coisa que até agora tenho ainda na memória. Foram visitar uma aldeia, ali para
os lados de Guimarães, e que as pessoas eles não são assim muito escuros, são
assim mais ou menos da minha cor, têm mistura na raça e que as pessoas todas
saíram "olha os pretos, os pretos", começaram a passar a mão assim
neles, nos braços da minha mãe e do meu pai, para ver se não sujavam, e tal. E
diziam, "Ah, mas não estão sujos, não fica preto", não sei que mais.
E eles contavam isso, nós éramos pequenos.
[Luso-guineense, 38 anos, empregada de contabilidade, Porto]
Eu penso que têm aumentado os indícios de racismo, o que é preocupante. Como
disse há bocado, quando vim para Portugal (em 1967) havia cá poucos negros e,
nomeadamente, guineenses havia muito poucos. As relações eram, pronto, havia
até da parte da população portuguesa em relação aos negros, digamos que as
pessoas eram tratadas muitas vezes de forma paternalista até, pronto mas havia
sempre, havia sempre aqueles comentários que se podem considerar racistas, sei
lá, preto para aqui, preto para acolá
E: Nessa altura, havia?
Havia, havia, mas talvez em menor escala. Inclusivamente, quando estava em
Braga, quando íamos para a cidade e tínhamos de passar numa aldeia, portanto, o
colégio ficava num planalto, depois descíamos e quando íamos a passar numa
pequena aldeia as crianças cantavam "os pretos da Guiné lavam a cara com
café", (risos) "têm vergonha de ir à missa com sapatos de
cortiça" (risos) e então faziam uma festa enorme, mas, pronto, era a tal
curiosidade, talvez
[Luso-guineense, 45 anos, jurista no Ministério das Finanças, Lisboa]
Foi no Rossio, eu ia com um colega, íamos comer a um restaurante e uma dessas
pessoas que têm cão, pronto, o cão veio e sujou-me as calças. Então, eu disse.
"Olhe, mas como é que é isto?". E estava lá outro senhor ao lado é
a tal coisa que eu disse, é a formação de algumas pessoas aqui que às vezes não
se compreende "Ah, então, se calhar tu és porco muito mais que esse cão,
o cão é mais limpo!". Aí é que eu fiquei mesmo Aí deu-se a bronca. Deu-se
a bronca e as pessoas começaram a encher e apareceu lá um colega: "Ó pá,
deixa estar e vamos embora, não sei quê".
[Imigrante, 38 anos, electricista na construção civil, Lisboa]
Bom, eu acho que há, há racismo mesmo, porque há uma vez, eu fui aqui numa
amiga portuguesa, fui onde é que ela trabalha, ela convidou para ir tomar café,
e fomos lá, e tomei café, e saímos juntos, ela acompanhou-me até à paragem do
autocarro. Estou à espera do autocarro para voltar para cá, vem uma carrinha
com três pessoas, mulheres e rapazes, depois passam ao pé de nós, "ó
preto, vai para a tua terra, deixa as mulheres brancas", e outro tinha um
maço de cigarro, um maço de cigarro vazio, mandou-me o maço de cigarro, deu-me
aqui no peito. Pronto, eu não liguei, mesmo se for ligar não posso fazer nada,
e fiquei assim. Mas, pronto, estava mesmo a rir com aquela rapariga, mas estava
mesmo chocado.
[Imigrante, 32 anos, pedreiro na construção civil, Lisboa]
Uma vez mais, estamos diante de situações muito desiguais, em termos de
natureza e gravidade. As duas primeiras, passadas há mais de trinta anos em
zonas do país onde o contacto com negros era pouco frequente ou raro, são, ao
mesmo tempo, ostensivas, na sua hipervalorização de um traço físico diferente,
neste caso a cor da pele, mas relativamente inconsequentes. Revelam mais
espanto e curiosidade em si mesmos surpreendentes, especialmente no primeiro
caso do que intenção de ofender.
Já as duas últimas, a do cão e a do maço de cigarros atirado juntamente com
ofensas verbais, representam, pelo contrário, o racismo em algumas das suas
modalidades mais primárias, explícitas e agressivas, ou seja, para voltarmos a
qualificações conceptuais discutidas anteriormente, são casos de racismo
flagrante, não só como atitude mas como prática concreta.
O último conjunto de testemunhos, referente a contextos de interacção variados
lojas, discotecas, procura de casa serve também para ilustrar expressões
flagrantes de racismo, tanto ao nível dos preconceitos, como em termos de
discriminação.
Às vezes, uma pessoa entra numa loja para comprar qualquer coisa, pergunta,
eles dizem "não, não tem", mesmo que tiver um lá, dizem não porque,
só uma pessoa ser preta, eles acham que alguém não tem dinheiro para comprar ou
essas coisas, começam logo a desculpar.
[Imigrante, 26 anos, operária industrial, Porto]
Tive, tive, tive essa experiência. Há uma pessoa que me disse na cara, olhe,
desculpe lá, mas eu não quero pessoas de cor na minha casa. Fui ali, e estava a
sair uma pessoa numa casa, a pessoa disse-me, olha, vai lá falar com o
senhorio. Fui lá falar com o senhorio e o senhorio disse-me que ele não queria
lá pessoas de cor porque depois a gente traz droga para casa. Disse, olhe,
desculpe lá, eu não quero pessoas de cor cá, vocês fazem barulho, e depois
trazem droga para o bairro.
[Imigrante, 36 anos, pintor na construção naval, Lisboa]
Eu, sinceramente, não posso dizer que não há, mas, ao mesmo tempo, também não
posso dizer que há. Nunca tive uma experiência própria que me afectasse muito.
Mas houve ocasiões Por exemplo, uma ocasião no Bairro Alto, saímos com esse
meu colega da faculdade e com o namorado da irmã, saímos sempre nós os quatro.
Então fomos ao Bairro Alto, a uma sexta-feira, entrámos num daqueles bares,
então eles estavam à frente e eu estava atrás, então entraram os três e eu ia a
entrar e o gajo, o rapaz, o porteiro, pôs a mão no meu peito, disse "não
pode entrar". Eu disse "o quê? então eu venho com os meus colegas,
todos a entrar, e eu não posso entrar?", "não, pá, isto está
restrito", não sei quê. Aquilo, pá, saltou-me logo à vista. Pensei logo,
pá, é problema racial, problema de cor. Então o meu colega, como não me viu,
voltou logo atrás, e chamou o nome do rapaz, do porteiro, e disse-lhe,
"mas nós estamos juntos", e ele, "ah! vocês estão juntos? Então
passa". E eu disse não, não vou também. Então a irmã teve de sair,
expliquei-lhe tudo, então vamos embora, vá.
[Imigrante, 36 anos, servente da construção civil, Lisboa]
O primeiro excerto de discurso reporta-se a situações em que, não havendo
propriamente discriminação racial, se torna bastante transparente uma das
muitas faces que o preconceito pode assumir se se é negro é-se pobre e, logo,
não se tem dinheiro para comprar determinado bem.
Os outros dois excertos dizem respeito a episódios de plena convergência de
preconceito e discriminação. No caso da discoteca, fica à vista que sozinho o
entrevistado não conseguiria entrar. A própria mudança de atitude do porteiro,
quando se apercebe de que, afinal, ele está acompanhado por brancos não
sujeitos à alegada reserva de admissão, é a melhor prova dos seus preconceitos.
O caso da tentativa gorada de alugar casa, finalmente, além de associar
preconceito e discriminação efectiva, tem a particularidade de a verbalização
desse preconceito ser completamente explícita, pouco ou nada se escondendo do
que se pensa. Tão pouca subtileza, pode dizer-se, não será, com efeito, muito
comum.
Olhando agora globalmente para este conjunto tão diversificado de relatos sobre
racismo, tanto do racismo-preconceito como do racismo-discriminação, relatos
que corroboram as percepções captadas genericamente pelo inquérito, vale a pena
sublinhar e sistematizar alguns parâmetros de análise que foram sendo esboçados
à medida que o discurso dos entrevistados era apresentado.
A primeira ideia é a de que à variedade observável de formas do racismo está
associada uma diferença de graus de gravidade de que é importante dar conta
analiticamente. Discutir e qualificar o racismo em termos dicotómicos, há ou
não há, e quando há considerar que ele é homogéneo e sempre muito, não ajuda à
compreensão do mesmo e acaba por perturbar a capacidade de distinguir o que é
efectivamente grave a discriminação racial em diferentes modalidades e o
preconceito enquistado e activo, mais ou menos ideologizado, e facilmente
transponível para a prática dos casos de mera expressão inadvertida de
preconceitos e imagens raciais inconsequentes.
Em segundo lugar, interessa dizer que, como tão bem mostram vários dos
testemunhos, o racismo flagrante está bem vivo em alguns sectores da sociedade
portuguesa. Trata-se, portanto, de manter em primeiro plano aquilo que os
recentes trabalhos sobre o chamado racismo subtil têm considerado secundário e
em declínio. A insistência tendencialmente exclusiva na temática do racismo
subtil, nos termos em que tem sido veiculada especialmente pelos estudos de
Thomas Pettigrew (1993, 1999) e pela sua réplica em Portugal (Vala, Brito e
Lopes,1999), tem favorecido a generalização da ideia de que, hoje, todo ou
quase todo o racismo é desse tipo, o que não deixa de contribuir para
subestimar e ocultar as suas manifestações mais abertas.
Um terceiro ponto a merecer comentário é o facto de, em vários dos episódios
relatados pelos migrantes, incluindo alguns em que o racismo assume formas
explícitas de preconceito e discriminação, eles estarem acompanhados por amigos
ou colegas portugueses brancos.
Essa presença é importante por duas razões. Primeiro, em termos mais imediatos,
pela intervenção mais ou menos enérgica desses amigos ou colegas face aos actos
testemunhados. Mas ela é ainda mais importante por mostrar confirmando
resultados obtidos no estudo das sociabilidades dos guineenses (Machado, 1999:
307-376) que muitos desses migrantes estão inseridos em redes de
relacionamento interétnicas e interraciais, o que significará certamente menor
vulnerabilidade ao racismo no curso da vida quotidiana do que nos casos em que
essas sociabilidades sejam ténues ou nulas.
Finalmente, e esta é a última e quarta nota, vale a pena reter aqui o estudo em
que Philomena Essed apresenta o conceito de racismo quotidiano, discutido
noutro lugar (Machado, 2000). Há grande paralelismo entre algumas das situações
contadas pelos migrantes guineenses e aquilo que Essed, com base na recolha
qualitativa alargada feita junto de mulheres negras na Holanda e nos EUA, chama
"cenários de racismo": o cenário "procura de quarto para
alugar", o cenário "entrada numa loja" ou o cenário "sair
com um homem branco" (1991: 293-294).
A existência de manifestações difusas de racismo nestes e noutros contextos da
vida corrente não autoriza, no entanto, o maximalismo colocado na definição de
racismo quotidiano, conceito que, segundo a autora, visa superar a distinção
entre racismo individual e racismo institucional, considerada enganadora, e
"ligar as microexperiências do dia-a-dia ao contexto estrutural e
ideológico em que elas tomam forma" (idem: 288). Haver racismo no
quotidiano não significa que haja racismo quotidiano, nesse sentido de um
racismo que impregna estruturalmente todos os contextos e interacções. Trata-se
de uma maneira falaciosa de pensar, que é fácil de usar para dizer exactamente
o contrário. Ou seja, podemos tomar as inúmeras situações do quotidiano em que
não há racismo e "provar" com isso que a sociedade é ideológica e
estruturalmente não racista.
Voltando agora aos resultados do inquérito, há, como vimos no quadro_2, um dado
surpreendente, que é o de o bairro/vizinhança ter sido o tipo de contexto sobre
o qual os inquiridos menos disseram haver racismo. Foi mesmo o único caso em
que as respostas negativas (isto é, as dos que dizem não haver racismo)
ultrapassaram largamente as positivas. Além disso, em nenhuma das 21
entrevistas em que se abordou o tema surgiu qualquer relato de racismo em
contextos desse tipo.
Sabendo-se que a coexistência interétnica e inter-racial em espaços
residenciais não gera, por si só, experiências de interacção efectiva (Marques
e outros, 1999: 278) e nem sempre é pacífica (Craveiro e Meneses, 1993; Alves,
1994; Quedas, 1994; Gonçalves, 1994; Machado, 1999: 317-321), e tendo também em
conta, neste caso particular, que a esmagadora maioria dos guineenses tem
vizinhos portugueses, como interpretar estes resultados?
Um primeiro elemento de resposta tem a ver com o tipo específico de
relacionamento social característico dos contextos de vizinhança em geral.
Mesmo quando as relações de vizinhança, como acontece em muitas zonas urbanas,
não são relações de interconhecimento no sentido forte da palavra, não deixa de
haver um efeito de proximidade que decorre do simples reconhecimento dos outros
como vizinhos.
Ora, no que respeita especificamente às zonas de vizinhança inter-raciais, essa
proximidade, ainda que não passe de uma familiaridade muito distanciada,
tenderá a atenuar manifestações de racismo, por duas vias. Ou porque ajuda a
diluir eventuais percepções que associem a presença de membros de minorias
étnicas ou raciais a uma "ameaça à segurança" (Vala, Brito e Lopes,
1999), ou porque obriga a uma autocontenção que espaços públicos mais anónimos,
como a rua ou os transportes, só por si não impõem.
Mas só esse factor não explicará inteiramente que se considere haver menos
racismo nas zonas de residência do que noutros contextos de interacção
quotidiana. O padrão de distribuição residencial dos guineenses, que é, em
média, mais disperso do que concentrado, mais em zonas de alojamento clássico
do que em bairros de barracas (Machado, 1999: 211-226), não deixará de
contribuir também nesse sentido.
Sem ter de aceitar a ideia de que existiria o chamado "limiar de
tolerância" a partir do qual a concentração residencial de minorias étnica
ou racialmente diferentes seria necessariamente fonte de conflito, limiar cujas
tentativas de quantificação se revelaram, de resto, altamente inconclusivas
(Rudder, 1991), pode, em todo o caso, dizer-se que o racismo em zonas
residenciais, e a sua consequente percepção por parte daqueles que são tomados
como alvo, será mais provável quando os membros dessas minorias formam enclaves
habitacionais no meio da população maioritária do que quando estão dispersos.
Mais rigorosamente, dir-se-ia que essa probabilidade é maior quando as
populações residencialmente concentradas têm, além disso, contrastes sociais e
contrastes culturais acentuados com a população envolvente e há segmentos desta
última que passam a ver esses vizinhos como uma ameaça. Estando a maioria dos
guineenses residencialmente dispersa, as suas percepções não reflectiriam,
portanto, esse sentimento de hostilidade racial mais ou menos marcada que
minorias ao mesmo tempo espacialmente concentradas, socialmente desfavorecidas
e culturalmente diferenciadas, podem ter à sua volta.
Vale a pena notar, ainda, que a dispersão residencial dos guineenses não deixa
de representar um contraponto às suas percepções de racismo nas situações em
que procuram arrendar locais de habitação. Seja porque o racismo nessas
situações não é tão generalizado como parece, seja porque em muitos casos é
apenas o mercado que vence o preconceito, a resultante é, de qualquer modo, uma
distribuição residencial que está longe da segregação espacial.
Variações sociais na percepção de racismo
Outra questão que importa colocar quando se analisa percepções de racismo, tal
como podem ser recolhidas pela metodologia do inquérito por questionário, é a
de saber se essas percepções variam ou não de acordo com as características
sociais dos seus portadores. Dito de outra forma, se há ou não diferenciações
sociais na percepção de racismo.
No estudo já citado sobre os guineenses em Portugal (Machado, 1999), foi
possível verificar que há factores de diferenciação interna dos migrantes, como
o estatuto sociojurídico, a classe, a etnia ou o género, que operam em termos
sistemáticos e transversais, começando no próprio recrutamento dos migrantes na
sociedade de origem e nos seus projectos migratórios, passando pelas
composições sociodemográficas ou socioprofissionais e prolongando-se até às
sociabilidades, língua ou religião.
Será que esses factores de diferenciação também se fazem sentir aqui?
No quadro_3 cruza-se o indicador global de percepção do racismo usado no
inquérito com cada uma daquelas quatro variáveis de diferenciação interna. Como
se vê, exceptuando o estatuto sociojurídico, há em todos os outros casos
variações sensíveis globais desse indicador, perceptíveis pelos afastamentos em
relação ao seu valor médio. As mulheres dizem mais do que os homens haver muito
racismo; para os muçulmanos há muito mais racismo do que para manjacos e
mancanhas, ficando papéis e crioulos em posições intermédias; para os sectores
de classe mais desfavorecidos, ou seja, operários e empregados executantes, há
mais racismo do que para os profissionais técnicos e de enquadramento.
Quadro 3 Percepção de racismo segundo o estatuto sociojurídico, o género, a etnia
e a classe social (percentagens)
Não é fácil interpretar o sentido destas distribuições e para sustentar
firmemente essa interpretação seriam necessários elementos de pesquisa mais
aprofundados. Pode, em todo o caso, dizer-se, genericamente, que as percepções
que os migrantes têm do racismo dependerão bastante das suas modalidades de
inserção na sociedade portuguesa e do tipo de relacionamentos sociais
quotidianos em que essa inserção se transcreve.
Comparem-se, por exemplo, imigrantes e luso-guineenses. Se a percepção global
de racismo não difere nos dois sectores, já quando desdobramos essa percepção
por tipos de contextos há diferenças que se desenham com nitidez: para todos os
contextos institucionais repartições e organismos públicos, escolas,
tribunais, hospitais os luso-guineenses dizem sempre haver mais racismo do
que os imigrantes.
O que explicará essa diferença não é tanto que luso-guineenses e imigrantes
tenham aí tratamento diferencial, mas a própria frequência dos contactos de uns
e outros com esses contextos, maior para os luso-guineenses do que para os
imigrantes, o que tem a ver, sobretudo, com o tempo de residência e a fase do
ciclo migratório em que se encontram. As percentagens de não respostas sobre a
existência de racismo em contextos institucionais são, de resto, em
concordância com o que acabou de se dizer, sempre maiores entre os imigrantes.
Diferenças nos quadros de relacionamento e experiência quotidianos poderão
também ajudar a explicar que a percepção global de racismo seja maior do lado
das mulheres do que do lado dos homens. A hipótese interpretativa é a de que
enquanto os homens têm um quotidiano mais confinado ao circuito trabalho-
transportes-casa, sendo, no caso do trabalho, os seus horários geralmente bem
mais longos do que os das mulheres, estas participam mais, no dia-a-dia,
noutros contextos de interacção e, por essa via, têm contacto com uma maior
diversidade de ocorrências que podem percepcionar como racistas.
Uma segunda hipótese a não excluir, mas que exigiria mais evidência empírica, é
a de que, em certas circunstâncias, o género e a pertença racial possam
funcionar como dimensões cumulativas de preconceito e discriminação, aquilo que
Philomena Essed designa por "racismo sexuado" (1991: 5), o que faria
com que as mulheres sentissem racismo em situações em que os homens não sentem.
No que respeita às diferenças de percepção em função da pertença étnica, a
questão está em saber por que razão os migrantes muçulmanos dizem muito mais do
que quaisquer outros haver racismo. Uma vez mais se pode sugerir que a resposta
se encontrará, provavelmente, na modalidade de inserção na sociedade portuguesa
predominante entre esses migrantes e no quadro relacional em que eles se
movimentam.
Sabe-se que os guineenses de etnias muçulmanas vivem espacialmente mais
concentrados do que a média, têm sociabilidades intra-étnicas fortes e
interétnicas fracas e são os mais contrastantes com a sociedade envolvente em
termos linguísticos e religiosos (Machado, 1999). Se somarmos a isso o facto de
serem também os mais visíveis na sua diferença, devido ao uso de indumentária
própria que os distingue de todos os outros, não será errado pensar que possam,
por esse acumulado de diferenças, ser mais vezes alvo de manifestações que
tomem como racistas, e que seja justamente isso que as suas percepções
reflectem.
A diferença de percepções de racismo consoante os lugares de classe, com os
migrantes de condição social mais favorecida a considerarem haver menos racismo
do que os de condição mais desfavorecida, poderá compreender-se, finalmente, se
pensarmos que a inscrição dos primeiros na sociedade portuguesa é feita mais de
continuidades do que de contrastes. Não só os seus recursos económicos,
escolares e profissionais os afastam da situação de contraste em que se
encontra a grande maioria dos migrantes, como são também os que têm
sociabilidades mais interétnicas e mais afinidades linguísticas e religiosas
com os portugueses.
Sempre na presunção, que parece legítima, de que as percepções de racismo
reflectem um balanço de experiências pessoais a esse nível, pode dizer-se que,
enquanto no caso dos migrantes muçulmanos o acumulado de contrastes os tornará
alvos mais frequentes de racismo, o acumulado de continuidades sociais e
culturais torna os migrantes de maiores recursos profissionais e escolares
menos alvos dele. Um estudo qualitativo recente sobre jovens descendentes de
migrantes cabo-verdianos dá conta desta mesma relação entre condição de classe
e percepção de racismo. Os socialmente mais desfavorecidos são quem mais se
queixa do racismo, ao passo que os de classe média são os que menos acham que
ele existe (Nóbrega, 1998: 68-71).
O facto de a percepção de racismo baixar não perdendo de vista que é
globalmente elevada com o aumento dos recursos económicos, escolares e
relacionais daqueles que são as suas potenciais vítimas, ou, dito de outra
forma, de modo inversamente proporcional aos seus capitais económicos,
escolares (os migrantes com escolaridade universitária são os que menos dizem
haver racismo) e sociais, levanta a questão de saber o papel que desempenha a
variável classe na construção do preconceito racista, transposto ou não para a
prática, e, consequentemente, no modo com ele é percepcionado.
Dir-se-ia que, tanto no plano do preconceito, como no da sua percepção, há uma
combinação de critérios raciais e critérios sociais, que não é, na maioria das
vezes, consciencializada pelos actores envolvidos.
O migrante de condição desfavorecida sentirá mais racismo porque o preconceito
e/ou discriminação de que é vítima tendem a ser amplificados pelo facto de ele
ser socialmente contrastante com o perfil médio da população portuguesa, ou
seja, por haver um duplo contraste, racial e social; o migrante de condição
social favorecida sentirá menos racismo porque, no seu caso, o contraste racial
se combina com proximidade social, o que tende a poupá-lo a manifestações de
hostilidade que, sendo na aparência racialmente motivadas, se devem mais a
questões de condição social.6 Essa proximidade, contudo, não deixa de ser, por
vezes, matéria para preconceitos de segundo grau, como dizer que o migrante com
uma profissão qualificada ou com escolaridade elevada "nem parece
negro" (ou "guineense" ou "cabo-verdiano"), justamente
porque ele contradiz o estereótipo racial mais comum.7
Um último tópico a referir neste ponto é o que diz respeito à relação entre
redes de sociabilidade e percepções de racismo. Como acabámos de ver, o que faz
os contrastes dos migrantes muçulmanos, por um lado, e as continuidades dos
migrantes profissionais técnicos e de enquadramento, por outro, não é só o
perfil de classe desigual, mas também o facto de os primeiros terem
sociabilidades interétnicas fracas e os segundos as terem fortes. Será que há
uma relação mais geral entre a composição das redes sociais dos migrantes e as
suas percepções de racismo? Será que ter mais ou menos amigos ou familiares
portugueses modifica o sentido dessas percepções?
Os dados recolhidos pelo inquérito aos migrantes guineenses apontam firmemente
para uma resposta positiva a essas perguntas e, mais do que isso, convergem em
grande medida com os resultados das pesquisas que, do lado da formação dos
estereótipos e preconceitos, dão conta de uma relação estreita entre
sociabilidade inter-racial e diminuição do racismo. A relação entre contacto
social e redução de estereótipos era já identificada, nos anos 50 do século XX,
por Gordon Allport para a realidade norte-americana. Em Portugal, o estudo
recente de Vala, Brito e Lopes (1999: 102, 193-194) encontra resultados muito
semelhantes a esses e próximos, também, dos do estudo europeu mais alargado
realizado dois anos antes: nas palavras dos autores "o contacto de amizade
revelou-se um preditor consistente da redução do preconceito" (idem: 193).
Ora, não deixa de ser especialmente significativo encontrar, agora do lado dos
que são alvos potenciais de racismo, correlações com o mesmo sentido entre
variáveis da mesma natureza. Assim, os migrantes com amigos portugueses dizem
menos haver "muito racismo" (59%) do que aqueles que não os têm
(71%), o mesmo acontecendo quando se compara os que têm familiares portugueses
com os que não os têm (53% contra 66%) e ainda os que têm cônjuges portugueses
com os que têm cônjuges guineenses (50% contra 65%).
Na interpretação feita acima, a propósito das diferenciações sociais na
percepção de racismo, ou seja, das variações dessa percepção de acordo com os
perfis sociais dos migrantes, sugeriu-se que o modo como diferentes sectores da
população migrante percepcionam o racismo depende das suas modalidades
específicas de inserção na sociedade portuguesa e, em particular, dos
relacionamentos sociais quotidianos associados a essa inserção.
Estes elementos empíricos adicionais permitem agora completar essa linha de
interpretação. Percebe-se, em primeiro lugar, que as avaliações de racismo,
mais do que geradas de forma global e descontextualizada, são efectivamente
modeladas pelos quadros específicos em que se movimentam os migrantes, de
acordo com o seu perfil social. Em segundo lugar, e no que respeita
particularmente aos relacionamentos sociais quotidianos, percebe-se que a
própria composição étnico-racial das redes de sociabilidade mais próximas
família e amigos desempenha um papel fundamental na estruturação dessas
avaliações, no sentido em que quanto mais interétnicas e inter-raciais são
essas redes menos tende a considerar-se haver racismo na sociedade envolvente.
Estando as percepções de racismo tão nitidamente associadas, por um lado, à
condição de classe dos migrantes e, por outro lado, à composição das suas redes
sociais, não pode deixar de se sublinhar, finalmente, que este acaba por ser um
elemento de confirmação da ideia de que as duas dimensões fundamentais do
espaço da etnicidade (Machado, 1999: 81-150) são justamente a composição de
classe dos migrantes, no que toca ao eixo social desse espaço, e a orientação
da sua sociabilidade, no que se refere ao eixo cultural.
Vejamos, por isso mesmo, e para terminar o artigo, como é que os contrastes e
as continuidades que caracterizam a localização dos guineenses e de outras
minorias nesse espaço podem ajudar a equacionar a questão do racismo em
Portugal e as suas tendências de evolução a prazo.
Contrastes, continuidades e racismo
Sem ignorar a importância de outros factores, ideológicos ou políticos, por
exemplo, pode dizer-se que a expressão do racismo depende, em boa medida, da
configuração que em cada momento tem o espaço da etnicidade, ou seja, dos
contrastes e continuidades, sociais e culturais, da minoria ou minorias em
questão com a sociedade envolvente. Mais contrastes favorecem o aumento do
racismo, mais continuidades favorecem a sua redução. É mais provável os membros
das minorias duplamente contrastantes serem alvo de racismo do que os membros
de minorias que, do ponto de vista social e cultural, ou só de um deles,
apresentem continuidades com a população maioritária.
No caso português, é isso mesmo que mostram os elementos de conhecimento
disponíveis. O racismo anticiganos é mais forte do que o antiafricanos, que é,
por sua vez, mais forte do que o racismo anti-indianos, relativamente pouco
comum. Ora, a minoria cigana é justamente aquela que mais contrastes sociais e
culturais acumula, as várias populações africanas têm contrastes sociais
acentuados, mas continuidades significativas em termos de sociabilidade, língua
ou religião, ao passo que as minorias indianas combinam contrastes culturais
com continuidades sociais.
Dir-se-ia que a relação entre espaço da etnicidade e racismo se estabelece,
grosso modo, nos mesmos termos em que se coloca o problema da integração ou da
exclusão das minorias. Embora tanto factores sociais como factores culturais
intervenham no processo, os primeiros tendem a sobrepor-se aos segundos na
resultante final. Se com contrastes sociais fortes, nomeadamente em termos de
situação socioeconómica, não pode falar-se de integração, independentemente do
que se passe no plano cultural, pode haver integração mesmo com contrastes
culturais, ainda que ela seja mais fácil quando esses contrastes são menos
vincados.
Com o racismo parece passar-se o mesmo. Se a existência de contrastes culturais
não é certamente estranha a algumas formas de preconceito e discriminação, são
mais os contrastes sociais a criar condições para o seu surgimento ou
intensificação. De resto, a agudização dos contrastes sociais para além de
certo patamar não deixa de se repercutir sobre as próprias dimensões culturais,
especialmente no que se refere à contracção das sociabilidades interétnicas e
ao fechamento das minorias sobre si próprias, criando, por essa via, condições
adicionais para o racismo.
Deve notar-se, ainda, que, assim como os contrastes e as continuidades tendem a
favorecer ou a atenuar o racismo, também este último, conforme seja mais
virulento ou mais brando, não deixa de contribuir para gerar mais contrastes ou
mais continuidades.
Ou seja, num caso podem formar-se círculos viciosos, em que contrastes geram
racismo, que, por sua vez, vincará ainda mais esses contrastes; noutro caso,
podem formar-se círculos virtuosos, em que continuidades anulam ou minimizam as
condições do racismo, o que abrirá caminho ao aprofundamento dessas
continuidades. Basta pensar, para o primeiro caso, na questão do acesso ao
mercado de trabalho, em que a discriminação racial de membros de minorias
socialmente contrastantes se reflecte inevitavelmente na acentuação dos
contrastes sociais existentes e, para o segundo caso, na dinâmica das
sociabilidades interétnicas, que não só favorecem a diluição do racismo, como
são estimuladas quando o racismo é mais ténue.
Torna-se também assim mais clara a relação entre racismo, exclusão e
integração. Sendo na sua origem um fenómeno revelador de défices de integração,
o racismo é-o também nos seus efeitos. Racismo e exclusão alimentam-se
reciprocamente. Os processos que favorecem a integração de minorias, seja,
principalmente, pela redução de contrastes sociais, seja, secundariamente, pelo
fortalecimento de continuidades culturais, promovem, por sua vez, a redução do
racismo.
Objectos de atenção pública e de debate político e ideológico renovado, desde
que a imigração ganhou visibilidade na sociedade portuguesa, os temas da
delinquência juvenil de descendentes de migrantes, por um lado, e do luso-
tropicalismo, por outro lado, permitem ilustrar, cada um à sua maneira, a
relação que se estabelece entre espaço da etnicidade e racismo, mais
especificamente a relação entre racismo e contrastes sociais, no primeiro caso,
e a relação entre racismo e continuidades culturais, no segundo.
A delinquência protagonizada por adolescentes e crianças filhos de migrantes é,
juntamente com as taxas de insucesso escolar acima da média ou com a
precariedade profissional de muitos dos que já entraram no mercado de trabalho,
um sinal inequívoco de que parte significativa dessa geração está a reproduzir
a localização de contraste social dos seus pais.
Confinada praticamente à área metropolitana de Lisboa e mostrando, de resto,
que em Portugal só esta região entrou já numa segunda fase do ciclo da
imigração, essa delinquência tem assumido uma pluralidade de formas, algumas de
grande impacte público pela visibilidade que adquirem, outras só conhecidas à
escala local, porque acontecem nas próprias zonas de residência desses jovens
ou nas suas imediações. Na maioria das vezes, trata-se de pequenos delitos, mas
há também actos de criminalidade grave ou que tomam proporções de gravidade,
não já pelo tipo de delito em si mesmo, mas pela forma que assume, como é o
caso dos assaltos, agressões ou actos de vandalismo praticados por grandes
grupos em comboios, autocarros, centros comerciais ou na praia.
É fácil de ver que estes acontecimentos podem ser reportados a um conjunto de
condições e processos que começam no problema dos contrastes sociais e podem
acabar na formação ou consolidação de preconceitos e actos de discriminação
racial.
Sendo culturalmente muito menos contrastantes do que os seus pais, e muito
próximos de outros jovens de idêntica condição social e de origem não migrante,
esses novos luso-africanos (Machado, 1994) personificam, com efeito, um
concentrado de contrastes sociais: têm uma condição social desfavorecida, vivem
residencialmente concentrados e são jovens em zonas urbanas e suburbanas cada
vez mais envelhecidas.
A persistência dessas práticas de delinquência juvenil, que se têm feito sentir
em registo contínuo desde meados dos anos 90, produz sentimentos de insegurança
na população e é a percepção mais ou menos dilatada dessa insegurança real que
tende a funcionar como último elo de ligação na sequência que conduz dos
contrastes sociais ao racismo. A associação estreita entre a percepção da
ameaça à segurança e a formação de preconceitos raciais está solidamente
comprovada, no sentido em que a acentuação desse sentimento de ameaça
"pode exacerbar as atitudes negativas e pode conduzir a comportamentos
hostis, percebidos como legítimos" (Vala, Brito e Lopes, 1999: 67).
Nessa sequência que vai dos contrastes sociais ao racismo não se pode ignorar o
modo como os meios de comunicação social têm tematizado o assunto. Sem
partilhar as perspectivas apriorísticas e reducionistas que vêem nos media um
mero instrumento ideológico ao serviço do dito racismo das elites ou das
classes dominantes (Dijk, 1993: 241-282; Bowser, 1995: xvii-xix, 300-303),
perspectivas que decorrem de definições inflacionadas de racismo, deve em todo
o caso lembrar-se que a sua intervenção não está, obviamente, isenta de efeitos
sobre os próprios acontecimentos que noticiam e analisam.
Neste caso particular, a utilização da palavra gang para designar os autores
desses actos delinquentes, iniciada ainda na primeira metade dos anos 90 e que
se estendeu rapidamente à linguagem comum, não deixará de se repercutir nas
percepções sociais sobre os migrantes e seus descendentes. Valeria a pena
investigar até que ponto os sentimentos de insegurança serão acentuados por
essa via. Mas mesmo sem um estudo directo e sistemático do problema, a análise
sumária dos títulos da imprensa escrita nos últimos anos, contando apenas os
jornais mais importantes e de maior tiragem, revela o que se poderia designar
por construção mediática dos gangs.
Títulos como "Gangs negros investigados pelo SIS " (Independente,
3.9.1993), "Polícia já não consegue controlar gangs suburbanos",
"Grande Lisboa cercada por guetos", "Um anel de pólvora rodeia
Lisboa", "A situação está descontrolada" (Expresso, 13.9.1997)
ou "Gangs de africanos aterrorizam Lisboa" (24 Horas, 19.12.1998) são
apenas uma pequena amostra dos que merecem chamadas à primeira página ou que
encimam notícias com outras formas de destaque jornalístico.8
Noutro jornal, o Público, pode ver-se mesmo uma notícia sobre actos de pequena
criminalidade praticados por menores na Póvoa do Varzim ("Tensão na Póvoa
do Varzim", 15.12.1998) onde se usam apenas expressões como "grupos
de marginais", "bandos", "grupos de menores", alternar
com várias outras relativas à Grande Lisboa, em que o relato de situações
envolvendo protagonistas em tudo idênticos, excepto na cor da pele, não
dispensa a noção de gang(por exemplo, "Menores de gang em liberdade",
15.1.1999).
Se nos reportarmos ao significado da noção na língua inglesa, e particularmente
na literatura sociológica anglo-saxónica, vemos que a utilização que dela têm
feito os meios de comunicação social comporta uma dupla redução.9 De conjunto
de indivíduos envolvidos em actividades delinquentes, indivíduos esses que
podem ser de qualquer idade, raça ou etnia, gang passa a significar, quase
exclusivamente, grupo de jovens negros delinquentes.
A delinquência juvenil urbana fica, assim, associada a uma cor de pele e a
populações migrantes e, nas percepções comuns, os descendentes dessas
populações passam a coincidir cada vez mais com esse mesmo estereótipo. Sendo
na sua origem um fenómeno estritamente social, a tematização feita nestes
termos pelos media ajuda a torná-lo racial nas suas consequências, processo que
terá tanto mais efeito quanto for real a ameaça à segurança.
O tema do luso-tropicalismo, por seu turno, e a sua ideia nuclear de que os
portugueses têm mais capacidade de relacionamento e entrecruzamento com raças e
culturas diversas do que qualquer outro povo europeu, capacidade de que o
Brasil seria o principal mas não o único produto histórico, tem merecido uma
atenção renovada por parte das ciências sociais nos últimos anos.
Seja em avaliações do luso-tropicalismo enquanto teoria social (Moreira e
Venâncio, 2000), do seu impacte sobre a ideologia colonial e pós-colonial
(Castelo, 1998; Alexandre, 1999; Almeida, 2000), do seu prolongamento no
"novo mito" da lusofonia (Margarido, 2000) ou na confrontação com os
problemas da imigração (Cabral, 1997a) e do racismo (Vala, Brito e Lopes,
1999), o trabalho de Gilberto Freyre, de que se destaca o mais criticado do que
realmente conhecido Casa-Grande e Senzala, de 1933, é de novo objecto de
apreciação e debate, não só no campo académico, mas em círculos intelectuais
mais alargados.
No que toca especificamente às questões da imigração e do racismo, afirma-se,
por um lado, que a mobilização política do luso-tropicalismo, no período pós-
colonial, foi o reflexo de sentimentos de insegurança e inferioridade das
"nossas elites, habituadas a governar autocraticamente brancos e negros
( ) perante uma Europa muito mais desenvolvida onde nos arriscávamos a perder a
identidade" e que a posição das autoridades portuguesas face à imigração
contradiz a mensagem luso-tropicalista (Cabral, 1997a: 104) Por outro lado,
diz-se que a "dissociação entre o plano político e as ideologias
racistas" é consequência da partilha por todos os partidos parlamentares
da "ideologia luso-tropicalista, ou seja, "todos parecem idealizar,
como uma suposta idiossincrasia nacional, o não racismo", facilitando assim a
difusão do racismo subtil (Vala e outros, 1999: 192-193).
Se é verdade que a situação social de muitos migrantes africanos, incluindo os
casos de racismo relatados atrás, contrasta com o luso-tropicalismo enquanto
ideologia, a simples verificação desse contraste não faz, contudo, o
equacionamento completo do problema em discussão. Outro parâmetro a ter em
conta é justamente o das continuidades culturais que aproximam os portugueses
das populações oriundas dos PALOP, mais dos luso-africanos, como se viu, mas
também da maioria dos migrantes laborais estrangeiros propriamente ditos.
A existência de uma língua e de uma filiação religiosa comuns e, mais
importante do que isso, a disseminação de redes de sociabilidade interétnica
nos domínios das relações familiares, de amizade e de trabalho, dão, de facto,
um fundo de verosimilhança, por parcelar que seja, à interpretação luso-
tropicalista.
Primeiro porque, independentemente do modo como foram construídas
historicamente, são hoje afinidades culturais objectivas e não meras
construções ideológicas. Depois, porque essas afinidades podem contribuir
decisivamente para minorar o racismo e os seus efeitos. Os mesmos actos de
delinquência praticados por filhos de migrantes, de que se falava atrás, por
exemplo, teriam certamente consequências de outra gravidade se, em vez de
continuidades culturais ou contrastes culturais fracos, estivéssemos perante
populações migrantes que somassem contrastes sociais a contrastes culturais
fortes.
De resto, pode dizer-se sobre o luso-tropicalismo no Portugal de hoje aquilo
que, sobre a questão homóloga da democracia racial no Brasil, diz Peter Fry, um
inglês aí fixado há longos anos. Ou seja, mesmo que se considere a democracia
racial um mero mito, dado o desfasamento entre a ideia e a realidade, "os
valores da democracia racial ( ) representam um contraponto fundamental aos
valores das identidades estanques. A democracia racial' é uma constante
lembrança da arbitrariedade das categorias sociais, étnicas e raciais"
(Fry, 1996: 124).
Enquanto sistemas activos de crenças, a democracia racial no Brasil ou o luso-
tropicalismo em Portugal têm, por isso, um potencial de anti-racismo que não se
pode negligenciar, principalmente quando comparados com outros mitos que,
enfatizando a pureza de certas origens nacionais, podem tornar-se com alguma
facilidade numa porta para o racismo.10
Contrastes sociais, por um lado, e continuidades culturais, por outro, são, em
suma, dois elementos básicos para a equação do racismo em Portugal a médio
prazo. A permanência dos primeiros aos níveis actuais significa probabilidade
elevada de focos de tensão futura, em que não deixarão de ser protagonistas
novas "segundas gerações" a formarem-se entretanto. O aumento das
segundas, proporcionado pelo prolongamento do tempo de residência, ajudará a
minimizar a interpretação racializada que socialmente se possa fazer dessas
tensões.
Notas
1 Neste âmbito, interessa, em todo o caso, manter sob observação o que irá
acontecer com o que em tempos foi o Partido Renovador Democrático, o qual,
depois de uma letargia de vários anos, foi, no início de 2000, tomado por
dentro e rebaptizado por grupos de extrema-direita, com um discurso de
hostilidade face à imigração e aos imigrantes.
2 Outro trabalho recente é o de Silva (2000), sobre o racismo anticigano num
contexto social e espacialmente localizado.
3 Alguns apontamentos de análise histórica sobre as imagens que os
portugueses foram construindo dos africanos ao longo de todo o processo de
colonização podem encontrar-se em Henriques (1999). Para uma abordagem singular
dessa mesma construção no século XX, tomando como material de pesquisa bandas
desenhadas, ver Cunha (1994).
4 Até ao momento, são raras as fontes de informação empírica sobre racismo
em Portugal visto pelo lado dos que dele são alvo. No estudo de Felícia Luvumba
sobre os migrantes dos PALOP na cidade do Porto, o racismo aparece em terceiro
lugar (mencionado por 34% dos inquiridos) numa lista de dificuldades de
integração, a seguir ao emprego e à habitação (1997: 101). Algumas entrevistas
a membros de minorias sobre experiências de racismo podem encontrar-se em
D'Aire (1996). Para um testemunho pessoal aprofundado, onde se relatam vários
exemplos de racismo, e onde, simultaneamente, se faz dele uma análise marcada,
muitas vezes, pela inflação conceptual discutida acima, ver N'Ganga (1995).
5 Outras situações ou contextos pontualmente mencionados foram: controlo de
fronteiras, polícia, táxis, torneios desportivos infantis e juvenis, skinheads,
racismo contra os filhos, doentes que não querem ser tratados por enfermeiras
negras; racismo por parte de pais de alunos de professoras negras; pessoas que
não gostam de ter negros biscateiros a trabalhar em sua casa.
6 Ao facto de serem profissionais técnicos e de enquadramento os migrantes
que menos dizem haver racismo não será também estranho que sejam justamente
esses os sectores da população portuguesa que, de acordo com o estudo de Vala,
Brito e Lopes (1999: 40, 196), têm menos preconceitos racistas. Isso na
presunção, que parece razoável, de que os migrantes profissionais técnicos e de
enquadramento se relacionarão mais com portugueses dessa mesma condição de
classe.
7 O processo representacional de filtragem da percepção das pertenças
raciais através das pertenças sociais, e da pertença de classe em particular,
tem sido observado noutras paragens. Michel Giraud, por exemplo, cita, nesta
linha, o ditado antilhano segundo o qual "todo o negro rico é mulato, todo
o mulato pobre é negro" e um outro, brasileiro, dizendo que "o negro
rico é um branco, o branco pobre é um negro" (1979: 179). Diga-se, no
entanto, que a correlação inversa entre favorecimento de classe e racismo, que
parece aplicar-se ao caso do racismo antinegros hoje em Portugal, não é
transponível para outros contextos e minorias. Basta pensar no anti-semitismo e
no modo como ele toma como pretexto, entre outros, justamente a condição social
favorecida de muitos judeus.
8 A peça jornalística da edição citada do jornal Independente pode
considerar-se praticamente fundadora do uso da noção de gang nos média
portugueses. Aí se noticiava, com chamada de destaque à primeira página, uma
alegada investigação do SIS sobre "gangs negros e violentos em
Portugal". Para a análise de outro estereótipo mediático, mais antigo, que
associa também migrantes a violência o do "cabo-verdiano faquista"
ver Filho (1995).
9 Ver, por exemplo, as definições de Giddens (1989: 740) e de Abercrombie e
outros (1994: 178). Em rigor, falar-se-ia até de uma terceira redução do
significado da palavra, já que à noção de gang não estão associadas
necessariamente acções ilícitas, podendo designar somente actividades mais ou
menos regulares desenvolvidas em grupo, como na expressão work gang. O estudo
pioneiro de F. M. Trasher, publicado em 1927 (The Gang: A Study of 1313 Gangs
in Chicago,Chicago University Press), mostrava já que os gangs da área urbana
de Chicago, nessa época, eram constituídos tanto por imigrantes europeus recém-
chegados a território norte-americano, como por negros fugidos do sul
segregacionista, e que muitos eram etnicamente mistos. Sobre este tema ver
Herpin (1982: 107-152). Diga-se ainda, quanto ao caso português actual, que os
próprios meios de comunicação social têm mostrado, em reportagens alargadas
sobre os ditos gangs (publicadas fora do tempo de impacte público de um
determinado acto delinquente e, por isso, sem títulos de primeira página), que
não poucas vezes eles envolvem negros e brancos e que a tese de que estão
deliberadamente organizados para o crime é altamente discutível (ver, por
exemplo, as edições do Público de 26.5.1995 e 14.12.1997). Elementos sobre a
delinquência praticada por migrantes no contexto europeu podem encontrar-se em
Poulet (1990), Bastenier (1990) e Costa-Lascoux (1991). Para uma análise da
sobrerrepresentação de migrantes e seus descendentes nas populações prisionais
dos países da UE ver Wacquant (2000).
10 Sobre o racismo como mito ver Wieviorka (1991: 71-75).