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EuPTHUHu0874-55602014000200004

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National varietyEu
Year2014
SourceScielo

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Produção, transmissão e reequadramento do conhecimento por via da história das mulheres: o caso da 1.ª républica

A história social e política da 1.ª República é, de certa forma, exemplar quanto ao contributo da História das Mulheres e dos Estudos Sobre as Mulheres na renovação das suas abordagens historiográficas.

A 1.ª República foi vivida no quotidiano por mais de três milhões de portuguesas (mais de metade da população coeva) e, perfilhassem ou não aqueles ideais, os seus percursos marcaram, mesmo, as trajetórias do país durante aquele período (Pinto, 2010).

Atualmente, é adquirido o envolvimento político de alguns milhares na preparação, triunfo, defesa e construção do novo regime, mediante continuada intervenção individual e coletiva a partir de 1908, ano a que se assistiu à tentativa consciente de republicanização das mulheres e à sua visibilidade associativa e política (Esteves, 2008), assim como, do lado oposto, coexistiram monárquicas (Stone, 2010, 2011) e católicas (Moura, 2010, 2011) não menos empenhadas e ativas. Estas vivências revelaram-se antagónicas nos anos que antecederam a República, não se cruzaram durante os dezasseis anos que ela durou, nem mesmo durante o período da Guerra quando todas procuraram envolver o país no apoio aos militares mobilizados para África e Europa e suas famílias, procurando auxiliá-los, material e moralmente, e continuaram independentes na vigência das Ditaduras Militar e do Estado Novo.

Celebrações da 1.ª República: silenciamentos e visibilidades No entanto, recuando até 1960, aquando do quinquagésimo aniversário da República, pouquíssimas mulheres mereceram citação, fotografia ou enquadramento na historiografia daquele período, centrada na valorização unilateral dos intervenientes masculinos, dando continuidade à omissão das incursões femininas no espaço público na transição do século XIX para o XX.

Na década seguinte, Helena Neves (1972) introduziu na Seara Nova a problemática «A mulher portuguesa no advento da República», com destaque de capa, e traçou, na extinta revista Mulheres, em mais de duas dezenas de artigos de divulgação junto do público feminino, a evolução dos movimentos de mulheres em Portugal, caracterizando a imprensa, organizações, ideologias, reivindicações e lutas durante a Monarquia, República e Estado Novo (Neves, 1979-1981). Por sua vez, Maria José Madail Rosa (1979) realizou, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, uma tese de licenciatura sobre a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e, quase uma década depois, João Esteves (1988) concluiu, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a dissertação de mestrado em História dos Séculos XIX e XX sobre aquela organização política e feminista.

A septuagésima quinta celebração (1985) passou, deliberadamente, quase despercebida, no octogésimo aniversário destacou-se o texto de Fátima Ribeiro de Medeiros (1991) sobre Ana de Castro Osório e na última década e meia, «As Mulheres da República», enquanto objeto de estudo, adquiriram inusitada relevância, beneficiando, em parte, do Centenário da República Portuguesa, com as comemorações realizadas a nível nacional e local, fossem elas de carácter oficial, académico, escolar ou associativo, estendendo-se ainda à edição, à blogosfera e à comunicação social, a incluí-las enquanto intervenientes ativas.

Aliás, este incontestado interesse pelo papel das mulheres de cem anos terá constituído a sua caraterística mais inovadora e proeminente, extravasando o espaço universitário e atraindo o interesse do público, de coletividades e da imprensa.

Depois de arredadas dos manuais dos sucessivos ciclos de escolaridade (Alvarez, 2007), excluídas ou menorizadas em dicionários, enciclopédias, cronologias, memórias, Histórias de Portugal e teses, situação exposta em repertórios (Coelho et al.,1995), nas inventariações de Irene Vaquinhas (1996, 2000, 2002, 2003) e de Anne Cova (1999, 2003) e nas bibliografias detalhadas de Ana Nunes de Almeida (1987), de Luís Esteves de Melo Campos (1989) e de Maria Regina Tavares da Silva (1999), ausentes de conferências, colóquios e congressos (Esteves, 2003), as atenções recaíram em catadupa sobre as protagonistas ' feministas, pacifistas, maçónicas, republicanas, sufragistas, monárquicas, católicas, conservadoras ' no advento da revolução de Outubro de 1910, resgatando-as e transformando- as, repentinamente, em «heroínas». Do lado republicano e do lado monárquico e católico, em abordagens historiográficas nunca antes tão claramente concretizadas.

O busto feminino da República foi revisitado enquanto símbolo do regime triunfante, entretanto caído em desuso; as doutoras Adelaide Cabete e Carolina Beatriz Ângelo emergiram como bordadeiras clandestinas de uma vintena de bandeiras verdes e rubras usadas durante o 5 de Outubro; a mesma Carolina converteu-se em referência sufragista ao contornar a lei eleitoral e votar em 1911, tornando-se a primeira mulher a fazê-lo em toda a Europa do Sul e uma das primeiras a exercer esse direito em todo o mundo; despontaram aquelas que, pela proximidade à monarquia e/ou religiosidade, intervieram na defesa de princípios e valores agora ameaçados; desenterraram-se nomes locais; evidenciaram- se episódios muito olvidados; vislumbrou-se um associativismo pujante e diversificado.

Passou-se da inexistência ou silenciamento das incursões femininas no espaço público para a sua valorização e a temática «As Mulheres e a República» tornou- se incontornável e até politicamente correta.

Momentos de mudança O que é que de tão extraordinário sucedeu entre os anos 1980 e a primeira década do século XXI para que se verificasse esta súbita transformação na produção historiográfica, a par da crescente visibilidade junto da opinião pública e em encontros científicos da área das Ciências Sociais e Humanas? Por um lado, o papel desempenhado desde finais dos anos 1970 pela então Comissão da Condição Feminina (CCF)/Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres (CIDM)/Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) (Silva, 2013) e o trabalho precursor de valorização e divulgação de ativistas e intelectuais das primeiras décadas do século XX. Por outro, durante a primeira metade da década de 1980, a relevância que o enfoque nos papéis históricos das mulheres ganhou nos meios académicos, explícita no colóquio A Formação de Portugal Contemporâneo: 1900 ' 1980, organizado em dezembro de 1981 pelo então Gabinete de Investigações Sociais e que contou com comunicações de Maria Regina Tavares da Silva, Judite de Almeida Rodrigues e José Machado Pais na secção «Cultura e Vida Quotidiana» (Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 1983-3º-4º- ) e, depois, nos seminários e simpósios centrados na «Mulher» promovidos, em 1983, pela Comissão da Condição Feminina (Seminário de Estudos sobre a Mulher) e, em 1985, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Colóquio Interdisciplinar sobre a Mulher em Portugal) e Instituto de História Económica e Social da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (A Mulher na Sociedade Portuguesa, envolvendo uma plêiade de historiadores e atraindo numerosa assistência.

Na década seguinte, intensificou-se a edição de dissertações de Mestrado publicadas no âmbito do Prémio Mulher Investigação Carolina Michaëlis de Vasconcelos, patrocinado pelas Organizações Não Governamentais do Conselho Consultivo da CIDM, nomeadamente Quotidianos Femininos (1900-1933) de Paulo Guinote (1997), As mulheres no mercado de trabalho em Portugal: representações e quotidianos (1890-1940), de Virgínia do Rosário Baptista (1999), e «Onde galo não canta galinha» ' Discursos femininos, feministas e transgressivos nos anos vinte em Portugal, de Anne Martina Emonts (2001); implementaram-se os Estudos Sobre as Mulheres (Cova, 1998), englobando núcleos localizados em meios universitários (Souza, 2003); concretizou-se a criação de Mestrados, de que se destaca o da Universidade Aberta, criado em 1994 e a funcionar desde 1995; surgiram associações de investigadores ' APEM, em 1991 e APIHM, em 1997 ' com resultados na promoção de colóquios temáticos e a publicação de duas revistas nessa área ' ex-aequo e Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher ', ambas datadas de 1999 e que se continuam a editar; a par da organização regular de encontros multidisciplinares de caráter científico, académico e generalista.

No mesmo espaço temporal, Cecília Barreira publicou História das nossas avós (Retrato da burguesa em Lisboa, 1890-1930) e António Candeias (1994), António Nóvoa (1987, 1992), Helena Costa Araújo (2000) e Joaquim Ferreira Gomes (1987, 1991), entre outros investigadores da área das Ciências da Educação, produziram estudos com enfoque na educação e instrução femininas e o papel das professoras na transição do século XIX para o XX e primeiras décadas deste.

Individualmente, ou em simultâneo, tais iniciativas, algumas à margem das cátedras universitárias, determinaram novos caminhos da investigação e proporcionaram o aparecimento de uma bibliografia recente envolvendo a transição da Monarquia para a República, a 1.ª República e a sua substituição pelas Ditaduras, Militar e do Estado Novo, e que tem servido de referência a outros olhares sobre esses períodos, redescobrindo os papéis femininos até pouco ignorados, secundarizados ou menosprezados.

Teses, estudos, exposições, catálogos, biografias, agendas, roteiros e dicionários Num curto espaço de tempo constituiu-se um alargado conjunto de estudos abarcando catálogos de exposições, biografias, agendas e roteiros, dicionários, livros didáticos, histórias e outras obras de referência.

Primeiro, os estudos centraram-se no associativismo feminino, envolvendo a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (1908-1919), a Associação de Propaganda Feminista (1911-1918), a Associação Feminina de Propaganda Democrática (1915- 1916) (Esteves, 1992, 1998a, 1998b) e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1914-1947) (Gorjão, 1994, Lamas, 1995, Esteves, 2006a, Costa 2007), e nas protagonistas republicanas (Armada, 2010, 2011), sendo ainda de referir, para o período entre 1910 e 1926, a síntese Mulheres e Republicanismo (1908-1928) (Esteves, 2008) e As Mulheres e a I República (Mariano, 2011).

Mas a análise mais abrangente desse período, por não se confinar ao associativismo e olhar para a plenitude de mulheres que se cruzaram naquele tempo, encontra-se no Catálogo Percursos, conquistas e derrotas das mulheres na 1.ª República (Pinto, 2010), referente à Exposição de 28 painéis com o mesmo nome, organizada na Biblioteca Museu República e Resistência no âmbito das Comemorações Municipais do Centenário da República, inserindo textos de Ilda Abreu, Isabel Lousada, João Esteves, Maria do Céu Borrêcho, Maria Emília Stone, Maria Lúcia de Brito Moura, Natividade Monteiro, Paulo Guinote, Teresa Pinto e Zília Osório de Castro. Uma década antes, em 2001, organizara-se a Exposição Quotidiano Feminino (1900-1940) (2001) por proposta de Paulo Guinote, cujo Catálogo reuniu textos e 120 fotografias que procuraram retratar o universo mental, social e político das mulheres naquelas décadas, combinando a esfera pública (educação, trabalho, lazer e diversão, moda, cultura, política, cidadania, marginalidade, prostituição) com aquela mais privada (do nascimento à adolescência, namoro, casamento, maternidade, divórcio, adultério, homossexualidade, corpo).

A obra coletiva Mulheres na I República: percursos, conquistas e derrotas (Castro et al., 2011), prefaciada por Fernando Catroga e colaboração de Isabel Baltazar, João Esteves, Maria do Céu Borrêcho, Maria Emília Stone, Maria Lúcia Brito de Moura, Natividade Monteiro, Paulo Guinote, Sandra Leandro e Zília Osório de Castro, deu continuidade à mesma perspetiva ao destacar as vivências das mulheres, suas conquistas e derrotas, e abarcar a vertente política, fosse ela republicana, monárquica ou católica, o associativismo, a intelectualidade, o ensino, a educação, o trabalho, o teatro, as artes e as «marginalidades», representadas pela criminosa, a prostituta, a adúltera e a homossexual.

As biografias, uma das grandes deficiências da historiografia portuguesa (Oliveira Marques, 2004), evoluíram e prosperaram na última década e meia, enquanto género recuperado pela academia e junto do público generalista, sob a influência, evidente, da História das Mulheres e dos Estudos Sobre as Mulheres.

Depois dos textos de Regina Tavares da Silva e, pontualmente, de Ana Vicente no Boletim da Condição Feminina em finais da década de 1970, as biografias e histórias de vida tiveram impulso significativo e impuseram-se. Sobre a feminista e republicana Ana de Castro Osório escreveram-se: «A Coleção Castro Osório ' Ana de Castro Osório (1872-1935)» (Esteves, 1997); Ana de Castro Osório et le mouvement féministe portugais (Karine Coelho, 2000), Mémoire pour l'obtention du DEA d'Etudes Portugaises Brésiliennes et de l'Afrique Lusophone, sob a direção de Anne-Marie Quint; Ana de Castro Osório e as origens do feminismo em Portugal (Moacho, 2003), dissertação de mestrado apresentada no ISCTE sob orientação de Fátima Melo Ferreira; e, recentemente, Ana de Castro Osório e a Mulher Republicana Portuguesa: Veículo de Regeneração da Nação e de Preservação da Identidade Nacional (Cordeiro, 2012), dissertação de mestrado apresentada na Universidade de Minnesota e editada com prefácio de Fátima Sequeira Dias.

Sob a orientação de Anne Cova, concluíram-se, na Universidade Aberta, dissertações de mestrado versando Maria Lamas (Fiadeiro, 2003), Adelaide Cabete (Eduardo, 2004), Domitila de Carvalho (Carvalho, 2004) e Maria Veleda (Monteiro, 2004a, 2012). Não por acaso, tendo em atenção as respetivas responsáveis, a CIDM, atual CIG, iniciou, em 2004, a publicação da Coleção Fio de Ariana, dedicada a mulheres que lutaram pelos seus direitos cívicos e políticos, de que se editaram Maria Veleda (1871-1955) (Monteiro, 2004b), Carolina Beatriz Ângelo (1877-1911) (Silva, 2005) e Adelaide Cabete (1867-1935) (Lousada, 2010), estando prevista a saída, em 2014, de Ana de Castro Osório (1872-1935). Por sua vez, coincidindo com o centenário, a editora Fonte da Palavra inseriu na coleção Livros República opúsculos dedicados a Adelaide Cabete (Lousada, 2011) e Carolina Beatriz Ângelo (Garcia, 2011).

A mesma Comissão realizou, em outubro de 2004, a Exposição Fotobiográfica de Elina Guimarães (1904-2004), comemorativa do centenário do nascimento da jurista, feminista e defensora dos direitos das mulheres, e colaborou, em 2005, com a Biblioteca Museu República e Resistência na Exposição dedicada a Maria Veleda ' Uma Professora Feminista, Republicana e Livre-Pensadora, na sequência das investigações feitas por Natividade Monteiro, ambas com edições de consulta preciosa. O carácter biográfico estendeu-se a As Primeiras Damas da República Portuguesa (1910-2005) (2006), nome da Exposição organizada pelo Museu da Presidência da República em Outubro de 2005 que incluiu um núcleo centrado na I República onde se valorizou, entre outros aspetos, a intervenção associativa de Elzira Dantas Machado. A mesma temática mereceu, no âmbito da Coleção dedicada às Fotobiografias dos Presidentes da República, a edição As Primeiras-Damas, dividida cronologicamente em três períodos ' Primeira República (Esteves, 2006b), Ditadura Militar / Estado Novo, Democracia. Na sequência do centenário da República, o Museu da Guarda dedicou uma exposição a Carolina Beatriz Ângelo ' Intersecções dos sentidos / palavras, actos e imagens ', cujo catálogo, sob coordenação de Dulce Helena Pires Borges, registou a colaboração de escritos da autoria de António Lopes, Dulce Helena Pires Borges, Isabel Lousada, João Esteves, Madalena Braz Teixeira, Manuela Tavares, Maria Antonieta Garcia, Maria do Sameiro Barroso, Maria Helena Carvalho dos Santos e Teresa Pizarro Beleza (Borges, 2010).

Dentro do âmbito biográfico, por reconhecida influência da História das Mulheres, é ainda de referir a tese de Mestrado em Comunicação e Jornalismo da Universidade de Coimbra Virgínia Quaresma (1882-1973). A primeira jornalista portuguesa (Seixas, 2004), sob orientação de Isabel Vargues; e as obras Operárias e Burguesas. As mulheres no tempo da República (Samara, 2007) e Carolina Beatriz Ângelo ' Guarda(dora) da Liberdade (1878-1911) (Garcia, 2009).

Um género que denota o crescente interesse pelas mulheres da República é o das Agendas (As Mulheres e a República ' Agenda Feminista 2010, e Agenda 2009 para a Igualdade) e dos Roteiros (2010), direcionados para o grande público, tendo como pressupostos a releitura das fontes, a redescoberta daquelas enquanto sujeitos e agentes da história e a sua divulgação.

O impacto da História das Mulheres estendeu-se, inegavelmente, aos dicionários, com repercussões no Dicionário de Educadores Portugueses (Nóvoa, 2003), contendo muitas dezenas de entradas de educadoras, professoras e pedagogas, e Dicionário de História da I República e do republicanismo (2013, 2014).

Assumidamente, passou a haver consciência da valorização da pesquisa de nomes femininos e da sua presença em obras de consulta. Por sua vez, o Dicionário no Feminino (séculos XIX-XX) (Castro e Esteves, 2005) e Feminae. Dicionário Contemporâneo (Castro e Esteves, 2014), projetos coletivos de dezenas de estudiosos que, entre outros objetivos, procurou dar visibilidade a mulheres que, dalgum modo, lutaram pelos seus direitos e/ou intervieram publicamente, compreendendo, ainda, entradas sobre periódicos, instituições, congregações religiosas, organizações, contêm relevantes dados para a época em análise. A lista de autores/autoras e a comparação com dicionários anteriores, onde são notórias as lacunas e ausências de nomes femininos, por mais relevantes que fossem, evidenciam o quanto se retificou nos enfoques a ter quando se estuda a 1.ª República.

Também os livros didáticos, que condicionam, direta e indiretamente, a formação anual de milhares e milhares de alunos e, simultaneamente, refletem a historiografia dominante em cada época, têm sido reatualizados, apesar de se notar que «a sub-representação e a estereotipia são os traços que caracterizam as imagens de mulheres nos manuais escolares de História do ensino secundário, nos conteúdos relativos à época contemporânea» (Alvarez, 2014: 364). Continua- se a não valorizar a sua relevância «para o conjunto da sociedade de mulheres e de homens, num dado momento histórico» (Alvarez, 2014: 366), embora se constate a introdução pontual de mulheres ' Ana de Castro Osório, Carolina Beatriz Ângelo, Carolina Michaëlis de Vasconcelos ', dando seguimento ao conteúdo sexista muito predominante, quer quanto a imagens, quer quanto a conteúdos.

Embora de forma muito incompleta, referia-se a multiplicidade de artigos surgidos nos últimos quinze anos em periódicos espalhados pelo país e em revistas de especialidade, uns mais de natureza teórico-metodológica, como os publicados em ex-aequo, outros mais centrados em histórias de vida, como os inseridos em Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, e outros mais analíticos, nomeadamente os incluídos na Análise Social, Ler História e Penélope, e que revelam, indiscutivelmente, mudança e/ou ruturas de paradigma na abordagem aos dezasseis anos da 1.ª República.

Um último reduto, quase inexpugnável, tem sido o das Histórias de Portugal, onde as mulheres continuam a não ter destaque na narrativa enquanto sujeitos e agentes históricos, ressalvando-se o texto, significativamente remetido para Apêndice, «História no feminino: os movimentos feministas em Portugal» (Silva, s./d.) na obra dirigida por João Medina. Combatida a exclusão e a ausência, predomina a sua secundarização ou guetização nos capítulos referentes à contemporaneidade, exatamente o período mais fértil na afirmação feminina nos vários domínios do espaço público político, económico, cultural e social.

Rompendo fronteiras O impacto destes estudos ultrapassou, nos últimos anos, as fronteiras nacionais, ainda que de forma desigual. Depois de um prolongado desconhecimento internacional do caso português, verificou-se na última década e meia intercâmbio profícuo com as principais referências internacionais da área dos Estudos sobre as Mulheres ' Ann Taylor Allen, Anne Cova, Bonnie S. Anderson, Christine Bard, Efi Avdela, Françoise Thébaud, Gisela Bock, Karen Offen, Mary Nash, Michela De Giorgio, Michelle Perrot, Michelle Zancarini-Fournel, Mônica Raisa Schpun ', com a participação destas em encontros científicos no país.

Simultaneamente, avançou-se para a edição de alguns desses colóquios com incidência nas perspetivas teóricas e metodológicas: Falar de Mulheres: Da Igualdade à Paridade (Castro et al., 2003); Écrire l'Histoire des Femmes en Europe du Sud: XIXe-XXe Siècles (Cova et al., 2003); Novos Olhares: Passado e Presente nos Estudos Sobre as Mulheres em Portugal (Teresa Joaquim et al., 2003); Desafios da Comparação: Família, Mulheres e Género em Portugal e no Brasil (Cova et al., 2004); História Comparada das Mulheres: Novas Abordagens (Cova et al., 2008); Falar de Mulheres: História e Historiografia (Castro et al., 2008).

Se as obras de referência internacionais, sejam de matriz anglo-saxónica, francófona ou castelhana, não incorporam a singularidade portuguesa ou abordam- na sumariamente, pouco relevo lhe atribuindo nos estudos comparativos, seja sob o ponto de vista fatual, interpretativo ou transnacional, crescente interesse na vizinha Espanha: Rosa M. Ballesteros García (2001) sintetizou o movimento feminista português desde o despertar republicano à exclusão salazarista (1909-1947), socorrendo-se de estudos parcelares editados por autores portugueses e da pesquisa de fontes nacionais, também trabalhadas e dissecadas por aqueles, enveredando também por estudos de figuras femininas das primeiras décadas. Mais recentemente, Ángeles Ezama Gil tem confrontado os casos português e espanhol.

Autores a autoras Se se atentar nos autores e autoras mencionados, constata-se que muitos e muitas frequentaram Mestrados em Estudos Sobre as Mulheres, nomeadamente o da Universidade Aberta, ou integraram associações e grupos de investigação por si influenciados, podendo-se dizer que aqueles proporcionaram, mediante releitura e revisão dos documentos e fontes primárias, a redescoberta das mulheres na estruturação do passado, contrariando uma visão assexuada dos acontecimentos, deram-lhes visibilidade ao centrar os olhares nelas e na história das relações entre os sexos em múltiplos domínios, produziram novos estudos, influenciaram muitos outros e facilitaram a sua divulgação quer entre a comunidade académica, quer entre o público generalista. E não menos relevante, conseguiu- se transformar em objeto de estudo todas as mulheres, e não apenas as experiências singulares, e fazer chegar a um público alargado e heterogéneo o papel das mulheres enquanto fazedoras da história.

Da «moda» de As mulheres e a República à reescrita da História O caso da 1.ª República é, pois, particularmente significativo quanto à absorção de influências via História das Mulheres, porque houve a preocupação de desconstruir os silêncios que muito as subjugavam e de integrar a intervenção e vivências femininas nos diferentes domínios da sociedade e do quotidiano, não as limitando nem à família, ao lar e à esfera privada, nem à história política e associativa das vencedoras ' aquelas que enfileiraram no republicanismo militante ', e das temporariamente vencidas ' monárquicas, católicas e conservadoras, irmanadas até então no mesmo mutismo historiográfico. Espaços, nomes, vozes, testemunhos de figurantes ou protagonistas, episódios, vivências, percursos, factos, costumes, domesticidade, trabalhos, empregos, profissões, educação, instrução, ensino, assistência, crenças, beneficências, associativismo, imprensa ' feminina, feminista, republicana, monárquica, literária, instrução e educação ', artes, quotidianos e marginalidades (Guinote, 1997), até então subvalorizados, mereceram ser olhados, estudados, divulgados e reenquadrados em abordagem interpretativas plurais e multifacetadas.

O espaço público deixava de ser pertença exclusivamente masculina e a perceção dessa contaminação adveio também, ou sobretudo, da História das Mulheres.

Talvez o exemplo mais paradigmático dessa simbiose esteja patente na mostra intitulada Percursos, conquistas e derrotas das mulheres na 1.ª República, em que «catálogo e a respetiva exposição conferiram centralidade às mulheres no processo da Primeira República», não se confinando a «conferir identidades às mulheres, ou a grupos de mulheres, através da sua inscrição no tempo, mas [ ] contribuir para ressignificar o conhecimento histórico sobre o período republicano » (Pinto, 2010: 13).

Porque as mulheres conquistaram visibilidade e a temática «As Mulheres e a República» e o rótulo «no feminino» viraram «moda», é imperativo acautelar riscos ' evidenciados pelo frenesim comemorativo e por imediatismos, facilitismos e oportunismos ', como descontextualizações, anacronismos, visões unilaterais, valorização de microcosmos, propagação dos mesmos enfoques, baseados em fontes repetidas e restritas, ausência do seu escrutínio, incorreções factuais, generalizações, mitificação de nomes e de acontecimentos, textos laudatórios e inexistência de uma visão global. E como a investigação também se deve rever na sua própria história, importa resgatar trabalhos pioneiros da autoria de Fernando Catroga (1988), de Ivone Leal (1992, 1994) e de Maria Regina Tavares da Silva.

Perante o recente volume de obras, estudos e artigos, importa: ler e reler as fontes primárias; reescrever a História com homens e mulheres a formarem um todo; integrar e enquadrar a republicanização feminina na própria dinâmica da 1.ª República, retirando-a de uma espécie de gueto histórico; revisitar documentação; proporcionar outros olhares; integrar a dinâmica destas mulheres, nem sempre coincidentes, e respetivos movimentos sociais no contexto histórico mais vasto, não as confinando a painéis específicos de análise e de interpretação. O seu acantonamento não é uma solução historiográfica.

Em síntese, a História das Mulheres e os Estudos Sobre as Mulheres proporcionaram intercâmbios entre áreas do saber e integraram estudiosos de formações e profissões diversas, com reflexos explícitos na produção historiográfica recente. Influenciaram, mesmo se de forma indireta, a Academia, percetível no número crescente de dissertações de mestrado e de doutoramento envolvendo a temática das mulheres no âmbito da 1.ª República ou integrando-as na análise desta ( quase trinta anos, em 1985, quando me propus fazer uma dissertação sobre Ana de Castro Osório, esta foi considerada irrelevante e, como tal, não merecedora de reflexão, quanto mais de uma tese). Não alargaram o universo documental, como impuseram outras abordagens, quer quanto a conteúdos, quer quanto a metodologias, com as fontes a quebrarem silêncios, a «falarem» das mulheres e a tornarem-se passíveis de outras reinterpretações e, como tal, mais próximas da construção de uma História total e global, porque inclusiva. Falta reescrevê-la e reconstrui-la, provavelmente de raiz, sabendo o quão difícil e moroso é contornar o conservadorismo académico e institucional que dificulta o reconhecimento dos contributos da História das Mulheres.

Por via da História das Mulheres houve, pois, produção. Transmissão e publicitação, também. Reenquadramento? Reescrita? É o que urge aprontar. Uma coisa é complementar e reformular a visão mais tradicionalista da República, outra é reescrever a sua História, sendo este o salto decisivo que falta dar, e o mais difícil, por implicar posturas historiográficas e de mentalidade (quase) diametralmente opostas.

O caso da 1.ª República parece constituir uma (feliz) exceção, tendo vindo a contaminar os períodos temporais contíguos.


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